Santo André, 24 de agosto de 2012 Ref.: PA NESC 204-36/2012 Interessado: Núcleo da Situação Carcerária Assunto: Fornecimento de produtos básicos de assistência material nos presídios Excelentíssimo Senhor Coordenador: Versam os presentes autos sobre a apuração das condições de assistência material prestada aos reclusos do sistema prisional paulista, nos termos do constante na portaria inaugural. Os dados coletados junto à Secretaria da Administração Penitenciária foram obtidos com fundamento na nova legislação sobre o acesso à informação (Lei nº 12.527/2011), um verdadeiro marco da luta pela transparência da gestão pública. Se “Saber é Poder”, como dizia o iluminista Francis Bacon, não seria menos afirmar que a profusão de informações poderia ensejar uma perversa dialética, reforçando a indiferença e o sentimento de impotência dos atores do jogo social e político, o que de pronto há de ser combatido. As planilhas com os dados sobre o fornecimento de vestimentas e bens de higiene pessoal não constituem uma simples coletânea de números desconexos e tampouco podem representar mais uma das centenas de denúncias sobre a disfuncionalidade do sistema carcerário. Pelo contrário, são informações consistentes, reveladoras do descaso do Estado para com a questão penitenciária. 1 O tratamento digno aos reclusos e seus familiares é uma exigência ética das mais atuais, a extrapolar a mera consideração jurídica e tecnicista sobre o tema. O resgate da subjetividade do encarcerado é a carta de alforria de toda a sociedade, pois como lembraria Paulo Freire em sua “Pedagogia do Oprimido”, a libertação não se dá pela simples troca de papeis: ninguém é livre numa ditadura, assim como ninguém pode se sentir amparado e assistido em suas necessidades básicas por um Estado desidioso, inepto e fomentador das desigualdades sociais, fatores estes sabidamente criminógenos. Ademais, a temática da assistência material aos presos traz consigo imenso potencial de mobilização e elevação do nível de consciência da população carcerária e seus familiares, isso sem descurar da possibilidade de um incremento na interlocução com a sociedade sobre a necessidade da efetivação dos direitos civis e sociais das pessoas privadas de liberdade. Feitas estas considerações iniciais, passo a discorrer sobre a temática tratada nos presente autos. A Constituição Federal ele a o respeito à dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1°, III), transformando-a em valor supremo da ordem jurídica. Não fosse isso bastante, a Carta Magna no art. 5º, assegura aos presos inúmeros direitos, tais como a proteção contra o tratamento desumano ou degradante (III), o respeito à sua integridade física e moral (XLIV) e a impossibilidade da pena passar à individualização da pena em sua fase executória (art. 5º, incisos XLV). Conforme explica J. J. Gomes Canotilho1, a primeira função dos direitos fundamentais é a “defesa da pessoa humana e da sua dignidade perante os poderes do Estado”, cumprindo uma função de “direito de defesa”. Nesse sentido, implicam no poder de exercer os direitos fundamentais e de exigir omissões dos poderes públicos, de forma a evitar agressões lesivas por parte destes. Além disso, os direitos fundamentais apresentam a função de prestação social, referente ao direito do particular de obter algo do Estado. No sistema democrático, estas prestações se convergem em políticas sociais ativas, justificadas pelos direitos sociais, econômicos e culturais concretizados na Constituição. 1 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7ª edição, 8ª reimpressão. Coimbra: Editora Almedina, p. 40. 2 Em decorrência do princípio da igualdade, consagrou-se que a garantia aos direitos fundamentais decorre da própria condição humana, e não de privilégio ou posição social. Trata-se da dignidade da pessoa humana, inerente a todas as pessoas, independentemente de quaisquer aspectos, requisitos ou condutas, conforme o artigo 1º, III da Constituição. No plano internacional, o direito ao tratamento decente e respeitoso de pessoas em situação de privação de liberdade é previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, artigo 5º, inciso 2, segundo a qual “toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. Além disso, a Organização das Nações Unidas aprovou, em 1955, as Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, que definem a obrigatoriedade de fornecimento de artigos de higiene necessários à saúde e limpeza, bem como roupas adequadas à temperatura e não degradantes. As Regras ainda trazem o entendimento de que a segregação do mundo exterior é dolorosa ao preso, por retirarem sua autodeterminação, motivo pelo qual o sistema prisional não deve agravar o sofrimento inerente a esta situação. A legislação infraconstitucional também auxilia na consolidação dos direitos das pessoas encarceradas. O artigo 10 da Lei das Execuções Penais prevê que “a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade”. No mesmo sentido, o artigo 12 define a noção de assistência material como o fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. Por fim, o artigo 41 do referido diploma menciona, dentre os direitos da pessoa presa, alimentação suficiente, vestuário, assistência material e à saúde. Do exposto, verifica-se que a pessoa presa não perde sua condição humana, mantendo os direitos fundamentais, razão pela qual tem direito à assistência material por parte do Estado, enquanto encontra-se sob custódia deste. Porém, o que se observa é uma prática que desiguala as pessoas encarceradas e o restante da população, admitindo que a infração à lei penal – suposta ou comprovada – seja fator suficiente para retirar do encarcerado seus direitos fundamentais. 3 A situação da assistência material aos presos revela-se precária em todo o território nacional. Relatório da Organização das Nações Unidas2 reconheceu que as normas nacionais e internacionais sobre condições materiais de pessoas encarceradas não são respeitadas nos presídios brasileiros. Apesar de genérico, o documento aproxima-se muito da realidade dos estabelecimentos prisionais paulistas. Segundo o texto, Além do estado deplorável das instalações das acomodações, havia uma deficiência generalizada no fornecimento de itens de higiene, vestimenta, roupa de cama e outros itens essenciais. O SPT recebeu informações de detentos de que o sabonete custava oito reais e o papel higiênico, cinquenta centavos, valores que muitos prisioneiros não podiam pagar. (p. 21) No mesmo sentido está o Relatório do Conselho Nacional de Justiça3, ao afirmar que “a assistência material e educacional no interior dos estabelecimentos penais no Estado de São Paulo segue o mau exemplo da assistência médica e social” (p. 26). Este documento também denuncia a prática institucionalizada da chamada folha de pecúlio, conforme se observa: Fato que também enseja preocupação é a existência da chamada “folha de pecúlio”, onde a quantia recebida pelo apenado ou depositada por seus familiares é usada para aquisição de gêneros de higiene pessoal, alimentos e artesanato. Mensalmente esta “folha” corre nas celas e o preso assinala o material que deseja adquirir e é debitado em seu saldo de “pecúlio”, não havendo transparência nos preços praticados. (p. 28) O relatório assume a existência de um kit higiene entregue semanalmente a todos os presos – exceto aqueles que recebem visitas de familiares ou que trabalham (p. 26). Tal fato revela uma inversão da lógica da assistência, pois parte do pressuposto de 2 Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 08 de fevereiro de 2012, relativa ao Protocolo Facultativo promulgado pelo Brasil pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Disponível em <http://www.onu.org.br/img/2012/07/relatorio_SPT_2012.pdf>. 3 Relatório Geral do Mutirão Carcerário do Estado de São Paulo, do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, de 01 de março de 2012. Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/relatorio-mutirao-carcerario-sp-2012.pdf>. 4 que a família ou o próprio preso são os principais responsáveis pela manutenção deste. Cabe apontar que inúmeros relatos de presos afirmam nunca terem sequer recebido o suposto kit higiene. A omissão estatal em prover a assistência material ao preso viola o princípio da intranscendência da pena, positivado no artigo 5º, inciso XLV, da Constituição da República, o qual define que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, pois “ninguém pode responder criminalmente além dos limites da própria culpabilidade” 4. Isso porque, diante da ausência estatal, as famílias se veem obrigadas a sustentar seus entes encarcerados, provendo itens básicos de sobrevivência, sendo instituída a prática conhecida como jumbo. Assim, o ônus do amparo material ao preso é tacitamente transferido aos seus familiares, enquanto o Estado deixa de cumprir seu dever, ou o faz de forma totalmente insatisfatória5. O mencionado relatório do CNJ detectou o problema: Diante da ausência do Estado no fornecimento de condições adequadas aos presos, em todas as unidades é institucionalizado o que se chama de “jumbo”, que nada mais é do que a autorização para que, nos dias de visita, familiares tragam aos presos comida, roupas e medicamentos essenciais à permanência na prisão. Tal prática evidencia a incapacidade do Estado na gestão da pena (material de limpeza das celas deve ser fornecido por familiares já que Estado não fornece), como também facilita a entrada de objetos não permitidos, tais como armas, celulares e drogas, o que se agrava ainda mais quando se constata que o número de agentes prisionais que realizam as revistas é insuficiente. Por outro lado, favorece a prática de abusos na revista por parte dos agentes estatais, fato que ensejou grande reclamação dos detentos. Deve ser ressaltado que mesmo permitido o “jumbo”, a SAP edita portarias estipulando os objetos e alimentos, bem como a quantidade que pode ingressar na unidade prisional. (p. 27 – grifos nossos) 4 JUNQUEIRA, Gustavo e FULLER, Paulo Henrique. Legislação Penal Especial. 6ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010. 5 SCAPINI, Marco Antonio Bandeira. Prática de Execução das Penas Privativas de Liberdade. Porto alegra: Livraria do Advogado, 2009. 5 O fato é agravado em razão de a maioria da população carcerária ser proveniente de famílias com baixo poder aquisitivo. Os gastos com o parente encarcerado prejudicam ainda mais a família já abalada pelo crime e pela prisão, aprofundando a pobreza e a desigualdade. A título de exemplo, em reportagem do jornal O Estado de São Paulo, um pai afirma já ter gasto mais de dois mil reais, em três meses, com o sustento de seu filho, que está preso em um CDP. Ao contrário do que se pode alegar, não se tratam de extravagâncias, mas de objetos de primeira necessidade: “papel higiênico, sabonete, sabão em pó, detergente, uniforme e comida” (v. documento anexo). Além disso, a reportagem aponta que os familiares precisam custear até mesmo roupas adequadas para dias de calor e frio, que não são fornecidas adequadamente na maioria dos estabelecimentos prisionais, fato este também apontado no relatório do CNJ. A situação é especialmente crítica nos Centros de Detenção Provisória do Estado, que hoje abrigam aproximadamente sessenta mil presos. É clara a violação ao princípio da pessoalidade da pena, ao ser imposto aos familiares o mantimento da pessoa sob custódia do Estado. Cumpre relembrar a pena infligida ao inconfidente Tiradentes, demonstrando que duzentos anos não foram suficientes para mudar a realidade de imposição da pena à família do preso: (...) Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier por alcunha o Tiradentes Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas publicas ao lugar da forca e nella morra morte natural para sempre (...) declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens applicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Villa Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique e não sendo própria será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados e no mesmo chão se levantará um padrão pelo qual se conserve em memória a infamia deste abominavel Réu. (Sentença de Tiradentes, prolatada em 18 de abril de 1792 – grifos nossos) 6 A situação retratada escancarou-se com a vinda das informações referentes ao ano 2011 sobre o fornecimento de itens básicos distribuídos à população carcerária no Estado. Produtos essenciais de higiene pessoal e vestimentas deixaram de ser fornecidos aos custodiados, como papel higiênico, sabonete, desodorante, escova de dente, bermudas, blusas de moletom, cobertor, roupas íntimas, lençol, meias, calçados de qualquer tipo e toalha de banho e, quando o foram, a distribuição deuse em condições absolutamente insatisfatórias, como por exemplo, no CDP de Diadema (309 sabonetes/ano para 1.215 presos) e no CDP de Itapecerica da Serra (878 rolos de papel higiênico/ano para 2.284 presos, ou seja, 11 m/ano por pessoa). Pergunta-se então: pode uma pessoa viver com dignidade – e não sobreviver – privado de vestuário e materiais básicos de higiene, como papel higiênico, sabonete, cobertores e roupas íntimas? A gravidade da situação reclama pronta intervenção por parte do NESC, nos termos do preconizado nos artigos 6º, incisos I e II, e 7º, incisos I e VII, todos do Regimento Interno do NESC (Deliberação CSDP nº 66, de 31 de março de 2008), motivo pelo qual, com fundamento no artigo 36 do Regimento Interno do NESC, convoco audiência pública, na modalidade presencial, com o fito de discutir o assunto junto à sociedade civil, autoridades da administração penitenciária, egressos e familiares de pessoas custodiadas no sistema prisional paulista, e assim ampliar o conhecimento dos aspectos atinentes à matéria e subsidiar a feitura do relatório final, bem como colher elementos para eventual propositura de ação civil pública e representação junto ao Sistema Interamericano de Direitos Civis, medidas essas que deverão ser submetidas à apreciação do Plenário do NESC. Outrossim, solicito que se digne Vossa Excelência em adotar as seguintes providências: a) Publicação do Aviso de Audiência Pública pela Imprensa Oficial e a postagem de convites específicos às entidades civis que tenham dentre as suas finalidades a tutela de interesses dos necessitados; b) Articulação com a Ouvidoria Pública-Geral e o Núcleo de Direitos Humanos a objetivar efetiva participação de ambos no processo de discussão do assunto; 7 c) Comunicação do NESC aos Coordenadores das VECs, instando-os a prestar auxílio na divulgação e articulação do evento, em especial no que tange ao encaminhamento de contribuições e denúncias sobre a falta de assistência material nos estabelecimentos de privação de liberdade; d) Solicitação de apoio da Coordenadoria de Comunicação Social para divulgação do evento e sua filmagem, além do auxílio na instrução de futura ação judicial, com a produção de material fotográfico das “filas do jumbo” nos CDPs e Penitenciárias do Estado; e) Solicitação de apoio da Coordenadoria de Tecnologia da Informação com o fito de se disponibilizar conta de e-mail específica para o recebimento de contribuições sobre o tema ([email protected]); Relativamente ao formato e dinâmica da audiência pública, proponho a adoção das regras constantes no “Aviso de Audiência” (modelo anexo), além do cumprimento dos prazos abaixo assinalados: a) De 03 a 06 de setembro de 2012 – publicação do Aviso de Audiência Pública na Imprensa Oficial e distribuição e postagem de convites, inclusive por meio eletrônico, às autoridades e entidades civis engajadas na tutela de interesses dos necessitados, em especial da população carcerária; b) De 10 de setembro a 11 de outubro – recebimento de contribuições por intermédio do meio eletrônico; c) De 15 a 31 de outubro – compilação das contribuições e propostas recebidas no prazo supra e posterior elaboração de sucinto relatório a ser disponibilizado na Internet, página do NESC do Portal da Defensoria Pública, para conhecimento de todos os interessados; d) 22 de novembro – realização da audiência pública na sede da Defensoria Pública-Geral, às 17 horas, observando-se a necessidade de designação de secretário adhoc para confecção de Ata dos Trabalhos, a qual deverá ser homologada pela Coordenação do NESC e Presidência dos trabalhos. 8 Haja vista o disposto no artigo 37, parágrafos 1º e 2º do Regimento Interno do NESC, informo que oficiei, nesta data, ao Excelentíssimo Senhor Secretário da Segurança Pública com o fito de obter informações sobre a assistência material prestada aos reclusos dos estabelecimentos prisionais subordinados àquela pasta, responsável por cento e setenta e nove cadeias e que juntas abrigam oito mil reclusos, aproximadamente. Também solicitei informações complementares ao Senhor Secretário da Secretaria da Administração Penitenciária sobre o fornecimento de produtos básicos de assistência material, relativamente aos seis primeiros meses de 2012, além da vinda da previsão orçamentária referente à aquisição de bens de higiene, vestuário e limpeza para 2013. Anexo ao presente cópia devidamente protocolada do ofício de fls. 3 do procedimento e das mensagens enviadas pela rede executiva notes, na qual consta o recebimento dos arquivos com as planilhas de gastos com materiais, além de cópias dos ofícios encaminhados à SSP e SAP e modelo do Aviso de Audiência Pública a ser publicado pela imprensa oficial e encaminhado posteriormente para as entidades da sociedade civil e autoridades do setor. Defensor Público Marcelo Carneiro Novaes 9