Educação da diferença: possibilidades de composição Resumo Resumo: Trata‐se de sublinhar que uma prática educacional contemporânea que se deseje produtiva não se constitui como um efeito paralelo a um mundo histórico, linguístico, geográfico, filosófico, artístico, científico, mas visa promover encontros com suas formas de conteúdo e expressão. Apropriando‐se destas formas as utiliza como elementos processuais de sua prática, transformando‐as e agenciando‐as para a fabricação de diferentes lógicas de produção de sentido. A ideia é a de tratar a Educação como intransitiva. Uma potência em si que não decorre em explicar o mundo via modelos referenciais, mas por ser força mais que forma, atua pela via diferencial escolhendo o aumento de ambiguidades como um jogo eficaz para um devir produtivo. O texto procura estudar processos e procedimentos de criações artísticas para delas extrair modos de formular uma didática contemporânea. Didática que atue como criação pedagógica e à espreita da constituição de um currículo que considere que cada elemento que o constitui é infinitesimal, continente e conteúdo de uma variação múltipla, uma vez que admite que todo elemento é composto e, por isso mesmo, compositivo. Palavras‐chave: Educação. Aula. Filosofia. Expressão Máximo Daniel Lamela Adó UFRGS [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó O objetivo deste texto é reforçar a ideia de que a expressão de uma prática educacional esteja em seu processo e não em alguma metodologia com fins que se traçam para além dela mesma. Procura fortalecer a imagem de uma Educação intransitiva, que não se estabelece como mediação, no sentido de explicar o mundo, mas interroga‐o de forma indireta ao transformar a explicação em espetáculo auleiro, ou melhor, em estratégia poética, e por isso política. Uma Educação‐tarefa que se constitua em si mesma como um fazer e não funcione apenas como suporte ou instrumento de uma atividade que deverá ocorrer ou ocorre de modo paralelo. Nisto o processo passa a atuar como acontecimento e o acontecimento passa a ser o sentido imanente dessa prática. Essa é uma Educação que se afirma por aquilo que pode em ato, e que se traça pela constituição de um campo aberto e permeável, pois é desse modo que se apropria de formas e potencializa fluxos informes destituindo hierarquias para propiciar o diálogo de diferenças. Seu intuito é o de estimular e potencializar um inter‐trans‐dinamismo‐
produtivo. Por admitir que sempre é necessário um ponto de partida performa com a ideia de que uma aula, e seus procedimentos didáticos, é um modo de encarnar desejos para esboçar linhas distantes de homogeneizações, equilíbrios, consensos, apaziguamentos, pois é a partir de uma aula que se pode estar, sempre, reconfigurando novos campos em que as repetições se ativem como variação e se conceba que “[...] não há equilíbrio que não seja para o desequilíbrio, não há permanência em que já não se agite, virtualmente, uma nova transformação” (THEMUDO, 2002, p. 95). Toda aula, para que possa ter força em sua forma, tem de se valer de muita preparação e ensaio (DELEUZE, 2008). No entanto, esse processo tem de admitir a complexidade que há, até mesmo, em um campo disciplinar bem demarcado e constituído historicamente. Pois, toda preparação que se quer produtiva para além do já sabido, funciona como um modo de possibilitar aberturas e não delimitar o campo e restringi‐lo a novas relações. Admitir a complexidade significa exercitar a composição e recomposição com o desequilíbrio, a desordem, a contradição e o dissenso. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó Afirma‐se, assim, que o campo educacional tem de se constituir em um espaço e como um espaço de dimensões múltiplas e, por isso, laico no sentido de não lançar mão de semioses que produzem univocidades. Esse espaço de multiplicidades para a educação é, também, dimensionado nos modos de conceber e fazer viver uma aula. Uma aula força. Uma aula carregada de multiplicidades que contaminam o campo educacional e que está contaminada pelas múltiplas dimensões que advêm por esse campo. No espaço de uma aula carregada de multiplicidades uma Educação se enceta e se institui como trânsito criador por meio de uma forma atenta a uma leitura interativa. Leitura que se dá e se tem como um fluxo de associações variadas, das quais nenhuma é original ou privilegiada, mas que agem no sentido de arranjar conexões para novas composições e experimentações tecidas no seu conjunto. Pois, entende‐se a leitura como uma ação relacional que se conjuga por um efeito de redes heterogêneas sendo, todas elas, conjunções e afluentes para uma didática da invenção. E, a sua vez, a didática da invenção atua como uma operação tradutora que se constitui como um tecido de citações. Um gesto que combina elementos finitos com algum outro gesto anterior, configurando uma convergência. A Educação, assim proposta, torna‐se uma eterna copista da miríade de formas que nos sugere o informe da cultura e sua instituição se dá, também, e principalmente a partir do processo relacional de uma aula. O espaço O que se repercute de/da aula, de um espaço‐aula? Quando uma aula é vista como espaço de repercussão? Bachelard, em A poética do espaço (1989), estuda os espaços na poesia como imagens poéticas que repercutem. Interessa‐nos observar a relação que ele faz entre repercussão e ressonância: “As ressonâncias dispersam‐se nos diferentes planos da nossa vida no mundo; a repercussão convida‐nos a um aprofundamento da nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso” (1989, p.07). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó Na repercussão somos tomados por alguma multiplicidade que as ressonâncias dispersam. Em uma simples experiência de leitura podemos ser atingidos por um efeito de repercussão e tomar a imagem que a leitura nos oferece como nossa. “Nós a recebemos, mas sentimos a impressão de que teríamos podido criá‐la, de que deveríamos tê‐la criado. A imagem torna‐se um ser novo da nossa linguagem, expressa‐nos tornando‐
nos aquilo que ela expressa — noutras palavras, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir de nosso ser” (IBIDEM). Ocorre‐nos dizer que Bachelard inventa, assim, a descrição de um movimento em que a expressão cria um ser da criação. Parece‐nos dizer que é necessário o devir de uma imagem poética para que haja repercussão, para que esse alguém, um leitor, por exemplo, seja tomado por ela. No entanto, esse espaço, o de uma imagem poética que repercute, é, também, um espaço que nos escapa. Pois age, paradoxalmente, de modo impassível e como algo que nos toca como um aprofundamento da existência (IDEM). Esse modo impassível ocorre como fosse um fenômeno de superfície. Parece haver certa impassividade para com aquilo que nos constitui; nossas ações cotidianas. A superfície de nossos dias de professores e alunos — e nisso entra a pergunta pelo espaço de/da aula, — é por nós, agentes desse processo, notada, vista, anotada? Que corpo de imagens poéticas podemos formar de uma aula? Ao evocar a noção de superfície em contraponto com uma profundidade lembremos Gilles Deleuze que, no capítulo “Segunda Série de Paradoxos: Dos efeitos de superfície”, de Lógica do sentido (2003), retoma os Estóicos para afirmar o presente como um efeito de superfície e de incorporais. Um presente que se furta, insistentemente, de si mesmo, pois afirma passado e futuro ao mesmo tempo. Os incorporais são tidos como acontecimentos provindos das relações entre corpos. Os corpos, a sua vez, são causas uns para os outros de efeitos que não “são qualidades e propriedades físicas, mas atributos lógicos ou dialéticos. Não são coisas ou estados de coisas, mas acontecimentos.” (DELEUZE, 2003, p. 05) Ao falar em corpo, tem‐se de pensá‐lo ao modo spinoziano, que define um corpo por duas maneiras simultâneas. Uma cinética e outra dinâmica. De um lado um corpo sempre comporta uma infinidade de partículas e são as relações de repouso, velocidades e lentidões entre essas partículas que definem sua X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó individualidade por meio de um efeito cinético. De outro, um corpo afeta outro corpo, ou é afetado por outros corpos e este poder de afetar e ser afetado define a sua individualidade dinâmica. Deste modo não se define um corpo por sua forma ou função, ou por uma substância ou sujeito (DELEUZE, 2002). Os corpos são causas e efeitos simultaneamente e tudo é corpo para os Estóicos, assim como os incorporais que, paradoxalmente, se dariam por quatro proposições: o tempo, o lugar, o vazio e o exprimível (lekton) (CAUQUELIN, 2008). Com os Estóicos devemos abandonar as oposições que nos daria a entender uma ideia de corpo e incorporais vista como contrários e “avançar um pouco em uma concepção tão sutil quanto paradoxal de suas relações” (IBIDEM, p. 23). Para Deleuze os Estóicos operam por uma distinção radical de dois planos de ser: “de um lado o ser profundo e real, a força; de outro, o plano dos fatos, que se produzem na superfície do ser e instituem uma multiplicidade infinita de incorporais” (2003, p. 06). Sendo que, como na poética do espaço de Bachelard, o que há de mais íntimo na relação entre corpos está nos acontecimentos incorporais de superfície. O encadeamento de uma totalidade animada por uma espécie de sopro que atravessa todas as coisas, onde “os acontecimentos, com sua diferença radical em relação às coisas, não são mais em absoluto procurados em profundidade, mas na superfície”; “é seguindo a fronteira, margeando a superfície, que passamos dos corpos ao incorporal.” (DELEUZE, 2003, p. 10) Para dar corpo a sua afirmação Gilles Deleuze menciona que Paul Valéry teve uma expressão profunda ao afirmar que o mais profundo é a pele. Trata‐se de uma frase de L’idée fixe [Ideia fixa], livro publicado em 1932, onde se lê o diálogo de um médico que é, também, pescador e pintor, — mas não pinta e não pesca — com alguém que está de passagem, talvez o próprio‐outro de Valéry. Nesse diálogo, à beira‐mar, o médico quer nada fazer, mas constata que o pensar é uma forma de ação que lhe causa um grande tormento. Um tipo de dor que o próprio pensamento mantém com ele mesmo e, assim, nesse processo, engendra‐se, arrasta‐se e se fortalece; mas não é perfeito em nenhuma forma. Quanto mais sutil, mais inteligente, mais potente e criativo é, também, mais inexpugnável. Um pensamento, para que seja pensamento como este acredita que deva ser, ocorre como um tormento que não se fixa. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó Ele é um acontecimento puro. E nisso o próprio pensamento descobre as suas dobras enquanto fluxos; não existe porto seguro para o pensamento e ou ideias, tampouco é necessário construí‐lo, afirma o médico: detenha‐se na superfície! Lemos no diálogo, em forma de pergunta do passante ao médico, o trecho mencionado por Deleuze. O passante pergunta ao médico se ele disse que o mais profundo no homem é a pele, e o médico responde afirmativamente e, ao ser questionado, novamente, por que disse isso, responde algo como: um dia me incomodei com as palavras profundas e suas profundezas (VALÉRY, 1934, p, 49). Ideia que já havia sido traçada por Valéry em um texto de 1895, Monsieur Teste, onde lemos: “Desconfio de todas as palavras, pois a menor meditação torna absurdo que nelas se confie”. (VALÉRY, 1997, p.84). Trata‐se de afirmar que as palavras, em si mesmas, e por participarem de um plano de expressão, são máquinas projetivas e meditar sobre elas, ir além de suas superfícies, pode significar a esterilização de sua condição material. Sua força de superfície. Trata‐se de dar voz à palavra que guarda seu valor de significação, mas que permite, antes disso, o poema como hesitação entre som e sentido. A mesma palavra que não pede prova, mas que se afirma como potência encarnada e que é ela mesma a coisa dita de modo hesitante. O espaço de uma aula, ou espaço‐aula, como preferimos, torna‐se, agora, como a palavra, uma instância de imaginações poéticas e frequência de incorporais. Há nesse espaço uma espécie de “tênue vapor incorporal que se desprende dos corpos, película sem volume que os envolve, espelho que os reflete, tabuleiro que os torna planos”. (DELEUZE, 2003, p. 10) De outro modo, mas não com menos força, George Perec pensa o espaço como um modo de fazê‐lo viver em seus textos. Ou melhor, escreve‐os; faz da escrita espaço instaurado. Os espaços de Perec são, em muitos de seus textos, personificados como personagens de uma escrita que se auto‐habita. Escreve os espaços em que, eles mesmos, atuam como personagens; os faz vivíveis. Em Espèces d’espaces. Jounal d’un usager de l’espace ele começa por habitar o espaço de uma folha em branco. Como diz no prólogo, o objeto desse livro não está, exatamente, no vazio, mas naquilo que há ao seu redor; o dentro, aquilo que é impalpável e imaterial; o fora, o exterior. O que está fora de nós, que é, também, o meio pelo qual nos deslocamos. Trata de ter como objeto o X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó espaço. Mas não o espaço infinito, aqueles que por seu mutismo poderia nos provocar medo, mas os espaços próximos: as cidades, os corredores das metrópoles, um jardim público. Nos lugares que vivemos nossa cotidianidade (PEREC, 1974). As salas de aula? A página, para Perec, “não é um suporte, não é uma folha de papel, também não é uma das caras dessa folha: ela é o ato de habitar a folha, o percurso do escritor, e esse percurso consiste em ‘criar brancos’” (PINO, 2006). Para criar brancos é necessário criar margens, pois para Perec a atividade do escritor é a de criar brancos, no sentido de escrever de modo a possibilitar que o leitor escreva. Criar brancos ao criar margens, escrever de modo a criar um espaço de escrita para o leitor; não seria esse, também o espaço de uma aula e a tarefa do professor? Criar vazios, ou seja, espaço que possam ser habitados? O espaço da sala de aula, assim como o queremos, também se personifica como elemento interativo e relacional. É ele, o espaço, também personagem. Vitaliza, com suas funções hápticas, a organicidade das vidas que fogem para todos os lados desse espaço‐
relação. A sala de aula, com seus limites e composições, é, também, um lugar de constante estado de desequilíbrio, impermanência, virtualização; espaço que preza, em sua própria composição dispositiva, um campo de diferenças. Trata‐se de um espaço não originado, mas que respeita e entende a origem como potência de surgimento. Há nele, podemos atentar para isso ou não, uma potência embriagante. Poderíamos afirmar — com a ideia niestzschiana de vida e filosofia como arte, ou, ainda, arte como vida —, que este espaço se atualiza como potência de surgimento na medida em que não se preocupa em encontrar uma forma de se expressar, pois confundindo forma e fundo, é ele mesmo o nascimento da origem (DELEUZE, 1992). Orquestração de ritmos e ritos relacionais. Como nos diz Bachelard, “para fazer um poema completo, bem estruturado, será preciso que o espírito o prefigure em projeto. Mas para uma simples imagem poética não há projeto, não lhe é necessário mais que um movimento da alma. Numa imagem poética a alma afirma a sua presença” (1989, p. 06). X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó Para que uma aula repercuta como ação produtiva de criação e possa ser vista, ouvida, tocada, ou seja, afirme a sua presença na superfície em que se expressa, tem, também, de produzir imagens poéticas. Tomar o leitor‐ouvinte‐aluno como sendo, ele mesmo, a própria aula; o próprio espaço de seu acontecimento, pois: “É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias” (IBIDEM). A repercussão abre o caminho para que uma imagem de outrem — como a da escrita de brancos e vazios, ou melhor, das margens perequianas —, estimule uma nova criação. O fazer O trabalho da docência é um trabalho de pesquisa e o trabalho de pesquisa, quando se é professor, é também um trabalho de docência. O fazer dessa pesquisa não pode ser confundido com a apresentação ou constatação de uma verdade. A Educação é um lugar que se inventa no movimento da escrita pela leitura e da leitura pela escrita; nas relações que esse movimento comporta e, principalmente, na invenção e reinvenção do espaço‐auleiro como um espaço de ficção. Entende‐se que é preciso dramatizar o conceito de verdade (DELEUZE, 1994); atentar para quais forças e que vontades este conceito qualifica e pressupõe por direito. Pois, sabe‐se que qualquer produção de verdade sempre teve um pacto com a ficção. Disso resulta dizer que o que se quer com o trabalho da docência não é o de uma produção de verdade, mas a instauração de um multiverso de possíveis. Nesse sentido o fazer da Educação, assim como o da filosofia, para que continue possível precisa começar a compreender que o conhecimento, como um modo de incorporação da verdade é, sem dúvida, impossível. O conhecimento da possibilidade é o que se afirma como paixão (pathos). E a paixão é aquele movimento que “me faz sair de mim mesmo, empurra‐me para fora de mim, para as coisas: é ‘a maneira extrema de ver algo fora de si’” (PONTON, 2009, p.53). O que conta é um fazer educacional ao modo de um traçado que opera mais para uma geografia do que para uma história. É escrevendo que se escreve e se vira escrevedor, nos diz Raymond Queneau (1995), entende‐se, então, que a educação, constituída pelos traçados de uma aula, opera desse mesmo modo. Ou seja, atenta à ideia X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó de que toda expressão só se expressa ao se expressar, já que inexiste como forma pré‐
definida ao expressado, procura que seu processo atue pelas e nas multiplicidades potenciais da expressão, sem a procura de uma estabilidade doada por um sentido unívoco ou pré‐estabelecido. O objetivo está em dar mais atenção ao processo do que ao resultado em si. A aula é todo o processo e acontecimento e não meio para chegar a outro lugar que não o de sua própria vivência. Nesse sentido, a aula como um espaço de ficção, ao operar com atenção ao processo, se planeja para que, de algum modo, funcione. Esse planejamento precisa ser constituído via certo distanciamento. Trata‐se de um distanciamento que visa tramar a dramatização desse espaço. Como esse espaço, o de uma aula, assume‐se de antemão como um espaço da ficção, ele não opera por repetição com vias a representar ou imitar, analogamente, uma ideia. Decalcando‐a como na concepção platônica de imitação. Pois, sua imitação (se é que ela ocorre) é fabricadora do processo pelo qual se constituiu uma ideia e não do objeto da mesma. Por isso o distanciamento se faz necessário. Uma vez que é via esse distanciamento, mesmo que especulativo, que se pode vislumbrar o vivível e o vivido por meio de sua reinvenção. Trata‐se de uma operação tradutora. Deste modo, ao repetir o processo de uma ideia o que ocorre não é repetição de fato, mas composição. Renova‐se aquilo que a operação tradutora passou ao traduzir dos elementos filosóficos, científicos, artísticos operados em aula. Tomemos a produção de um escritor como Paul Valéry, que fez do processo a marca de sua escrita, como um modo de fabricar uma aula e, assim, procurar reinventar a educação por meio de si mesma. A produção valéryana está mais que entremeada por rasuras, artifícios da forma, mas quer constituir‐se na e pela rasura. Adota a rasura como um estatuto paradoxal para a própria escrita. Uma escrita em que seus procedimentos, operações, mecanismos, voltam‐se à composição de textos com fins a expressá‐los para produzir o máximo de efeito ao leitor‐ouvinte, leitor que se ouve e hesita a significar o lido entre som e sentido. Por isso a escrita valéryana está composta por uma variedade temática diletante e é aí que apoia sua consistência, em uma espécie de simultaneidade na qual sensível e inteligível atuem em reciprocidade. Operando, evidentemente, por uma relação indissociável entre teoria e prática, leitura e escrita. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó Em domínios de interação mútua, no qual a escrita e sua outra metade, a leitura, agem como rasura, acaba por determinar o apagamento do que foi feito‐lido‐escrito. O que fica é uma mancha de sentido, uma tentativa de deliberar toda uma orbita por meio de qualidades próprias. Como pudesse se negar ao afirmar‐se, atuar por meio de cortes e desvios, evasões, reescritas, repetições, atualizações, por fim, incompletudes. Tem‐se que Valéry, lido assim para servir como ferramenta para a Educação, não é um modelo, mas um modo de constituir forças fabricadoras de composições. Um movimento que não se interessa por uma história da verdade, como já dissemos antes, mas por uma história que nada narra, senão, a sua potência como contingência compositiva. Um escrever como experimento do trabalho de alguém que escreve para conhecer, e não para dar a ver o que já conhece. E, mesmo assim, o conhecido — de uma escrita e de uma aula —, se dá por uma relação constante com o incognoscível e imperceptível de cada aula‐escrita, dá‐se em um processo inacabado e sempre por recomeçar. Agindo valéryanamente, ou seja, pensando que o pensamento age como um movimento em segredo que produz efeitos cria‐se um distanciamento para ficcionalizar os modos de conceber uma aula. Algo como “[...] adivinhar por quais sobressaltos de pensamento, por quais bizarras introduções dos acontecimentos humanos e das sensações contínuas, depois de quais imensos minutos de languidez são reveladas aos homens as sombras de suas obras futuras, os fantasmas que as precedem” (VALÉRY, 1998, p. 19‐21). Tais fantasmas, como movimentos em segredo, são os fantasmas das criações e anotá‐los e, com isso fazer com que se constitua de palavras a sua matéria é como se insinuar ao modo de promover um método no qual, por intermédio de uma ação imitativa e tradutora do ato descrito, um novo ato promova adaptações possíveis do primeiro, tornando‐se outro por meio da necessidade de seu uso e, a cada vez, promovendo uma nova necessidade. Trata‐se de conceber uma aula que visa operar por uma estratégia do desvio como força de constituição criadora. Ao modo do Pierre Menard, el autor del Quijote de Borges (1995), opera pela técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas. Visa, ao extrair conceitos, fazê‐los servir a fins de uma potência ficcional e, por isso, X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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Educação da diferença: possibilidades de composição Máximo Daniel Lamela Adó produtora de sentidos que diferem. Doando a estes que os extraem, professores, alunos agentes de uma aula, a possibilidade potencial da invenção como modo de portar uma paixão pelo conhecimento. No melhor dos casos — esse modo de tentar operar na educação via uma aula que se admita, a cada vez, como reinvenção de si —, cria possibilidades inesperadas que coloquem em jogo o próprio fazer, descentralizando uma prevista e imaginável autoridade do docente pesquisador. O traço Como afirma Paul Valéry: “Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê‐la desenhando‐a” (2003, p. 69). Evidentemente não se trata da mesma coisa vista, pois o modo com que se processa o visto, com o intuito de traduzi‐lo em um traço, transforma todo o corpo de relações onde opera. Uma Educação da diferença procura, por assim dizer, operar, sempre, com um lápis na mão. Seu desejo, talvez, seja o de tracejar uma superfície, e desenhar vazios ao traçar margens. Importa mais o movimento que a forma. Trata‐se de reforçar a ideia de uma Educação para um pensamento do não‐específico, do genérico, do informe e da infâmia. De uma Educação que afirme as diferenças dos seres, unicamente, pelos seus graus de potência. Uma Educação que procure caminhos para afirmar um afastamento contínuo das noções ordinárias de espécies e gêneros, ao ponto de poder encontrar entre dois exemplares de uma mesma espécie mais diferenças do que entre dois seres de espécies diferentes. Uma Educação que procure esquecer as concepções de gêneros e espécies na medida em que se ocupe em operar com uma concepção a respeito dos agenciamentos dos quais cada ser é capaz de entrar. Uma Educação da diferença que procure compor, a cada vez, uma nova invenção de si. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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