O PAPEL DE ALUNO: NOTAS SOBRE A CONSTRUÇÃO DE UM OBJETO DE PESQUISA LOSSO, Cristina – FURB – [email protected] Eixo: Sociologia da Educação/ n. 15 Agencia Financiadora: Sem Financiamento INTRODUÇÃO Como se dá o envolvimento da criança relativamente às expectativas criadas, sobretudo pela família e pela escola, quanto à constituição e desempenho do papel de aluno? Quais as formas mediante as quais a criança incorpora os valores e os saberes, assim como as atitudes correspondentes consideradas as mais legítimas tanto pela escola como pela família e que implicam no envolvimento da criança no papel de aluno? Como a “forma escola” e a família, por um processo de inculcação simultaneamente explícito e difuso, configuram o aluno? O objetivo das notas a seguir é sintetizar os primeiros percursos, sobretudo conceituais, de um trabalho voltado a investigar, a partir de situações empíricas particulares, a cultura escolar e as estratégias escolares das famílias para produzir conhecimento sobre o envolvimento contemporâneo das crianças no papel de aluno. A pesquisa que se pretende realizar tem como locus investigativo uma instituição de educação infantil da rede municipal de Florianópolis, Santa Catarina. Esta opção é tomada em razão da constatação segundo a qual é na educação infantil onde geralmente acontece o primeiro contato da família com a escola e, igualmente, onde se inicia a construção social e escolar do papel do aluno, estando também justificada, por isso mesmo, a opção por essa faixa etária para o desenvolvimento da investigação. Considerando que o papel de aluno não tem início e fim determinado por um breve período de tempo, este estudo analisa o período inicial dessa construção para conhecer as estratégias familiares, escolares e sociais que determinam a formação escolar desse aluno. Para a obtenção dos dados são utilizados dois instrumentos já consagrados na pesquisa social, entrevista e questionário, com pais e professores envolvidos na já mencionada instituição de educação infantil. Além disso, se pretende analisar dados documentais obtidos em periódicos e revistas de grande circulação nacional, pois estas publicações circulam entre professores atuantes no ensino escolar e, por um efeito de disseminação cultural, de algum modo contribuem para a construção da percepção que 2 se tem, pais e professores, do que é um aluno e quais as atribuições que se espera desse específico papel social. Para a construção do objeto investigativo, utilizam-se os aportes conceituais de autores tais como Basil Bernstein, Èmile Durkheim e Pierre Bourdieu, entre outros. Como ilustração dos aportes teóricos aqui mobilizados, seria suficiente observar, de acordo com Bernstein, que, “para compreender como a criança define o seu papel de aluno”, é “necessário analisar a cultura da escola”, ou seja, “os comportamentos por ela transmitidos”, e, além disso, considerar os “diferentes fatores que determinam o envolvimento do aluno” (1986, p. 116). Esta consideração geral, simultaneamente teórica e epistemológica, seria suficiente para configurar a moldura por meio da qual este trabalho é elaborado. O PAPEL DE ALUNO O estudo sobre o processo de construção social do papel de aluno pode contribuir para ampliar o conhecimento sobre os ritos de consenso e a ordem moral que estão na base da cultura escolar. Segundo Bernstein “os rituais que se desenvolvem na escola constituem o mecanismo fundamental para que os seus membros interiorizem e revigorem a ordem social que ela pressupõe permitindo assim a manutenção dessa ordem e garantindo ao mesmo tempo a perfeita delimitação do grupo social escolar e a sua continuidade no tempo.” São, portanto os rituais escolares que criam as condições necessárias para a transmissão da cultura, para as famílias estes rituais fazem de seus filhos um aluno. Os ritos de consenso são expressos pelo vestuário, pela punição e recompensa e por normas e valores da escola, relacionadas com a sociedade. Já a ordem moral da escola tende a transmitir o conjunto de valores, numa coletividade moral, aos valores e estilo de vida. Os primeiros dados bibliográficos sugerem que a construção do papel de aluno inicia-se já na socialização primária, envolvendo as estratégias familiares em relação ao “ser aluno”. A criança e a infância não são estáveis, sofrem permanentemente mudanças relacionadas à inserção concreta da criança no meio social. Este processo de socialização resulta em permanentes transformações das noções que a sociedade constrói acerca da formação destes novos sujeitos. Inseridas na sociedade, as famílias e suas as estruturas se modificaram ao longo da história e estas mudanças refletem nas famílias das crianças pequenas principalmente no que diz respeito aos cuidados dessas crianças, que deixaram de ser integralmente familiares e passaram a ser significativamente institucionais. Isso quer dizer que a 3 educação e o cuidado das crianças, assim como a constituição da infância, não estão somente sob a responsabilidade da família, mas também da escola. Significa, então, que, ao referir-se à escola, incluem-se as secretarias de educação e outras formas de organização orientadoras destas instituições, ou seja, as diversas instâncias da ação do Estado. Partindo desta afirmação, se o Estatuto da Criança e do Adolescente reconhece a legitimidade da infância como atribuição da sociedade, a criança passa a ser focada como objeto dos deveres públicos do Estado como um todo. Neste movimento social, no qual as instituições passam a ser co-responsáveis pela educação e cuidado da infância e legitimado pelo estado e outras instâncias sociais, tais como a mídia, a família e a escola, propõe-se estudar a construção e formação do papel de aluno coletando e analisando as representações que se tem de aluno dos diferentes agentes de produção cultural. Considera-se que estes agentes possuem poderes simbólicos significantes para a produção desse aluno institucionalizado. Para Durkheim (1975, p.68), “o dever é o melhor estimulante do esforço para a criança. Para ser sensível, como convêm, as punições e as recompensas, é preciso ter já consciência da sua dignidade e, por conseguinte, do seu dever. Mas a criança apenas pode conhecer o dever através dos seus professores ou de seus pais”. A saída do recesso do lar e a ida para a escola, ou seja, a ampliação do universo cultural da criança exige reflexões acerca da constituição do aluno contextualizando-o na sociedade. FAMÍLIA E ESCOLA O estudo proposto leva em consideração sujeitos cujas práticas socializadoras são muito diferentes, pois, de um lado há professores cuja lógica educativa faz parte daquilo que se chama modo escolar de socialização e, de outro, as famílias com lógicas educativas diferentes do modo escolar. Para Lahire (2001, p.9) “falar de forma escolar é, portanto pesquisar o que faz a unidade de uma configuração histórica particular, surgida em determinadas formações sociais, em certa época, e ao mesmo tempo em que outras transformações, através de um procedimento tanto descritivo quanto compreensivo. É na a rotina que se constitui e se desempenha o papel do aluno na escola, mediante a qual a criança incorpora os valores e os saberes, assim como as atitudes correspondentes consideradas as mais legítimas tanto pela escola como pela família. Essas rotinas são as responsáveis pela construção do habitus da criança, ou seja, pela construção das disposições duráveis que constituem o ser social. Para Bourdieu (2007 4 p.162) “o hábitus é o princípio gerador de práticas objetivamente classificáveis e, ao mesmo tempo, sistema de classificação de tais práticas”. Conforme Berger (2005, p.71), “desde o momento do nascimento, o desenvolvimento orgânico do homem e uma grande parte de seu ser biológico enquanto tal está submetido a uma contínua interferência socialmente determinada”. Sendo assim, o papel de aluno faz parte desta formação socialmente determinada, pois é por meio da qual a criança incorpora os valores, as crenças e os ritos. Trata-se de uma socialização resultante da ação das instituições construídas ao longo da história, num processo contínuo, concebendo variações em função de diversas configurações de relações sociais nas quais os indivíduos participam, pertencem e vivem tensões. A escola, segundo Durkheim (1975, p.51-52), “tem como função, primeiro suscitar na criança certo número de estados físicos e mentais que a sociedade à qual pertence considera não deverem estar ausentes de nenhum dos seus membros e, segundo, suscitar na criança certos estados físicos e mentais que o grupo social particular considera, igualmente, que se deve encontrar em todos aqueles que o formam”. ROTINA ESCOLAR, CONTROLE E CORPO A escola e sua rotina trazem em sua história práticas de controle que, uma vez analisadas, podem revelar elementos muitas vezes ocultos que se impõem silenciosamente sobre a formação do aluno. O presente estudo, ao revelar estes elementos, pode também contribuir para uma formação educativa e revelar outras possibilidades de ação, de comunicação com o mundo e com o outro. Como exemplo das construções sócio-histórico, políticas e culturais presentes na escola e nas práticas educativas, especificamente na educação infantil, pode ser considerado o controle e cuidado com o corpo. O corpo infantil e os aspectos relacionados à saúde e a higiene recebem atenção intensiva em espaços institucionalizados, como as creches e os núcleos de educação infantil. Para Lahire (2001, p. 14), trata-se de obter a submissão, a obediência, ou uma nova forma de sujeição o aluno aprende por meio de civilidades (...) ela (a criança) aprende a obedecer a determinadas regras – maneira de comer, de assoar o nariz, de escrever, etc. – conforme regras que são constitutivas da ordem escolar, que se impõem a todos”. É truísmo afirmar que o que se passa na escola, isto é, os seus procedimentos, influenciam o papel do aluno e constroem a sua visão da sociedade. A educação escolar 5 é formada já nos primeiros contatos com a instituição educativa, A escolha dos conteúdos, a direção, o método, a experiência, o objetivo compõem a atividade escolar como algo articulado, coordenado e normatizado de saberes, estimulando a produção de significados sobre as coisas e seres no mundo. O espaço escolar em conjunto com a família, num processo quase contínuo de socialização, são lugares privilegiados para a percepção da construção e incorporação destas práticas sociais de escolarização. FAMÍLIA E ESCOLA Muitas pesquisas apresentadas no livro Família e Escola apontam para a valorização da preocupação com a relação família / escola. Vianna (2005), por exemplo, demonstra inclusive, como resultado de estudos sobre estratégias de estreitamento desta relação, um aumento no desempenho acadêmico de crianças na escola. O discurso dos pais e dos professores também é favorável à necessidade do diálogo família / escola, assim como o Estado vem também favorecendo essa aproximação incluindo programas de incentivo a família na escola. De acordo com Nogueira (2005), Já a partir do início do século XX, com o movimento escolanovista, os métodos pedagógicos tradicionais passam ser questionados e contrapostos às pedagogias centradas no aluno que recusam a concepção da criança como um adulto em miniatura e defendem a necessidade de se atentar para as características próprias da infância e de se adaptar o ensino à natureza do educando. Essas novas perspectivas encaram o aluno como um elemento ativo do processo de ensino-aprendizagem. Tais princípios, que se prolongaram no tempo, revestem-se, nos dias atuais, de uma forte preocupação com a coerência entre, de um lado, os processos educativos que se dão na família e, de outro, aqueles que se realizam na escola. O que significa que a instituição escolar moderna deve conceber seu trabalho educativo em conexão com as vivências trazidas de casa pelo educando. Hoje, mais do que nunca, o discurso da escola afirma à necessidade de se observar a família para bem se compreender a criança, assim como para obter uma continuidade entre as ações desses dois agentes educacionais. E o meio privilegiado para a realização desses ideais pedagógicos será por meio do diálogo com os pais, conhecendo a formação do aluno. Procura-se conhecer a realidade dos discursos e das práticas efetivas dos sujeitos sociais, suas implicações e conseqüências para que contribuam para o conhecimento do mundo social. Sendo assim, considera-se que as ações familiares e escolares influenciam na participação e formação do papel de aluno 6 variando de acordo com as relações estabelecidas com o mundo, para tanto o estudo apresentado busca revelar algumas fontes desta formação que legitimam o processo de escolarização de crianças na contemporaneidade. CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES Este trabalho compreende que as crianças no papel de aluno não podem existir sem praticar, jogar as regras, participando da instituição educativa, socializando-se, conhecendo as leis, os meios, fazendo escolhas e comunicando-se com os outros. Apesar de muitas famílias procurarem o espaço escolar para deixar as crianças por necessidade, estas acreditam que este seja o espaço de aprendizagem, de crescimento e desenvolvimento, reforçando em suas falas a importância da passagem da criança pela instituição, ainda na educação infantil, como um espaço legitimado e de grande importância para o mundo social. Experimentar o jogo social individual e coletivo na infância permite a criança construir o decorrer da vida, pois jamais se constrói sozinha, depende dos juízos dos outros e de suas próprias orientações, este processo se constitui pela socialização e inculcação da forma escolar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BERGER, Peter L.; Luckmann, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Tradução de Floriano de Souza Fernandes. 12ª ed. Petrópolis: Vozes, 1995. BOURDIEU, Pierre. A Distinção: crítica social do julgamento. Tradução Daniela Kern; Guilherme J. F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007. DOMINGOS, Ana Maria et al. A teoria de Bernstein em sociologia da educação. Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 1986. DURKHEIM, Emile. Educação e sociologia. Tradução Lourenço Filho. 10ª ed. São Paulo : Melhoramentos, 1975. THIN, Daniel. Para uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.11, n. 32, p. 211- 225, maio/agosto 2006. 7 NOGUEIRA, Maria Alice. Família-escola na contemporaneidade: os meandros de uma relação. In: 28a. Reunião Anual da ANPEd, 2005, Caxambu - MG. _________; ROMANELLI, Geraldo; ZAGO, Nadir. Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. 2. ed. Petrópolis : Vozes, 2003. 183p. (Ciências sociais da educação).