ARTIGO:
POLÍTICA TRIBUTÁRIA
Impostos e cidadania
A política tributária brasileira tem sido historicamente perversa com os cidadãos de baixa
renda que, em última análise, são expropriados às escuras, no maior programa de
transferência de recursos para financiar a luxúria dos juros altos pagos aos rentistas
por Carlos André , Ítalo Aragão
Na sociedade republicana e democrática, é o povo que determina, por meio da Carta
Constitucional, quais os fundamentos e objetivos do Estado. Esta afirmativa, num país
como o Brasil, de tradição política autoritária, pode soar abstrata, como se tivesse sido
extraída de um curso de teoria do Direito. Mas, desde a promulgação da atual
Constituição, em 1988, pouco a pouco percebemos que o espírito republicano e
democrático se vem inserindo de forma concreta nas relações sociais, políticas e
econômicas.
Um dos aspectos mais sensíveis da relação entre o povo e o Estado dá-se no campo
tributário. É o povo que financia o Estado ao pagar os tributos que suprem os cofres da
União, estados, municípios e Distrito Federal. Neste sentido, pagar tributos é um ato de
cidadania que transforma cada um, do povo, em patrocinador das políticas públicas do
Estado.
No Brasil, a função primordial do Estado é cumprir as determinações do artigo 3o da
Constituição. O Estado tem como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, o desenvolvimento com erradicação da pobreza e da
marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem
de todos, sem preconceitos. Somente a busca destes objetivos dá ao Estado a
legitimidade necessária para arrecadar tributos do povo. Contudo, grande parte dos
brasileiros, especialmente a classe trabalhadora de menor renda, não tem consciência de
quem efetivamente suporta a carga tributária e, menos ainda, da destinação desses
recursos públicos.
O peso dos tributos é distribuído de forma desigual pela sociedade. Em recente estudo, o
Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas – Ipea1 demonstrou que a carga tributária
suportada pelo décimo mais pobre da população chega a 32,8% da sua renda. No outro
extremo, o décimo mais rico tem um ônus equivalente a 22,7%. A carga tributária da
população mais pobre é proporcionalmente mais alta que a da população mais rica, em
relação à renda.
Em outras palavras, o segmento mais pobre da população é o que sofre o maior peso do
financiamento do Estado. Desta forma, a tributação no Brasil tem como efeito o aumento
da concentração de renda, pois tira mais de quem tem menos. A este fenômeno dá-se o
nome de regressividade.
A tributação regressiva resulta da opção de sucessivos governos de aumentar a
arrecadação pela via mais prática, que é o incremento da tributação indireta sobre o
consumo.
Tributação invisível
Dois são os principais efeitos da tributação sobre o consumo. Primeiro, eleva fortemente
os custos de produção e comercialização de bens e serviços, que são repassados nos
preços pagos pela população. Segundo, a população que arca com a carga tributária
embutida no preço de mercadorias e serviços não consegue percebê-la claramente, uma
vez que a tributação indireta é invisível.
Pode-se ter uma medida clara no estudo do Ipea, citado acima, que demonstra que, da
carga tributária de 32,8%, suportada pelo décimo mais pobre, 29,1% é indireta. A
desigualdade na distribuição da carga tributária carece de legitimidade constitucional e
deveria ser o ponto central de qualquer debate sério acerca da reforma tributária. Mas,
lamentavelmente, o foco do debate tem sido desvirtuado. Como a bandeira política da
reforma tributária foi assumida pela elite econômica, centrou-se a discussão na simples
redução da carga, com vistas à redução do Estado e do Alcance das políticas públicas.
No discurso elitista, a desigualdade é mascarada com manobras como o famoso
“impostômetro” que, presumidamente, diz quantos dias, em média, o brasileiro trabalha
por ano para pagar tributos. Ao basear sua informação na média, o “impostômetro” passa
a ideia de que a carga tributária seria suportada igualmente pelas pessoas, o que não é
verdade, como bem demonstra o estudo do Ipea.
Outro mito criado para contornar o debate sobre a regressividade na distribuição da carga
tributária é que o governo, ao aplicar os recursos arrecadados, atingiria o objetivo de
promover o crescimento econômico com redução das desigualdades.
Todavia, a mesma desigualdade ocorre com a aplicação dos recursos estatais. O governo
federal, por exemplo, destina muito mais recursos para o pagamento de juros da dívida
pública do que para o financiamento do Programa Bolsa Família, que mantém 11,6
milhões de famílias livres da condição de miséria. O mesmo ocorre nas áreas de saúde e
educação, as quais vêm recebendo cada uma, sistematicamente, menos recursos que os
destinados às aplicações financeiras.
De fato, o Ipea2 aponta que, em relação ao Produto Interno Bruto, a carga tributária
líquida, ou seja, a carga tributária menos o pagamento de juros variou de 10,7%, em
2000, para 12,1%, em 2005. Em 2003, chegou a cair para 9%. Estes números mostram
que todo o aumento restante da carga tributária serviu tão somente para financiar o
pagamento de juros da dívida pública.
A manutenção deste modelo transfere renda do andar de baixo para a cobertura, em
desavergonhada afronta aos ditames sociais preconizados pela Constituição Cidadã.
Sem submissão
A submissão da classe trabalhadora mais pobre às desigualdades e a marginalização de
parcelas significativas da população mostram que ainda não há uma consciência plena da
relação que deveria ser estabelecida entre o povo e o Estado.
A relação do povo com o Estado republicano e democrático não pode ser de vassalagem
ou de submissão, mas de cidadania, com dignidade, pautada por direitos e obrigações. A
constatação de que a carga tributária brasileira é regressiva faz nascer a demanda pela
sua urgente redistribuição. Já a verificação de que os gastos governamentais privilegiam
a elite econômica faz surgir o legítimo anseio pelo seu redirecionamento para promover a
redução das desigualdades.
Os trabalhadores já deveriam estar nas ruas brandindo a Constituição e reivindicando
uma reforma tributária. Uma reforma tributária que redirecione parte da carga indireta
sobre o consumo para o patrimônio e a renda dos mais abastados. Uma reforma tributária
que respeite a capacidade contributiva e cumpra o papel constitucional de distribuir renda,
em vez de concentrar.
A classe trabalhadora deve se organizar para debater como os recursos fornecidos ao
Estado estão sendo gastos, com vistas a exigir as mudanças necessárias capazes de
potencializar a erradicação da pobreza, reduzir a desigualdade e promover o
desenvolvimento com dignidade para todos.
Carlos André é ex-presidente do Sindicato dos Auditores Fiscais da Receita Federal
Ítalo Aragão é auditor fiscal da Receita Federal, especialista em Tributação.
1 Fonte: POF/IBGE (microdados). Elaboração: Ipea, a partir de Gaiger, 2008.
2 Fonte: IBGE. Elaboração: Ipea.
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