REPRESENTAÇÃO DAS PERSONAGENS FEMININAS EM LUCÍOLA E NOME DE GUERRA Clarice Gomes Clarindo Rodrigues (UNEMAT)1 Resumo: Propõe-se através deste artigo demonstrar que há, nas narrativas brasileiras e portuguesas, especificamente em Lucíola (1862), de José de Alencar e Nome de Guerra (1938), de Almada Negreiros, questões de confluências e divergências em relação à condição feminina das personagens. Assim, permite-se inseri-las no âmbito da literatura comparada. Respectivamente romântico e modernista, os romances se fundamentam na temática da prostituição nos períodos em foco. Partiu-se do ponto de vista de que a prostituição em evidência nos romances é tratada de maneiras similares e distintas, desta forma, há de se considerar a contextualização histórica e social que a figura feminina representa nas produções literárias por intermédio das personagens Lúcia e Judite. Nessa direção, A personagem de ficção (2005), de Antônio Cândido, subsidia o estudo em uma perspectiva de ressaltar a importância da personagem no enredo, na composição da obra e no contexto que se insere. A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental (1996), de Nickie Roberts é uma referência para a compreensão da origem da prostituição, da projeção dos mitos e da condição feminina a que as personagens protagonistas nos romances se submetem. Palavras-chave: Nome de Guerra, Lucíola, personagem, prostituição, modernismo, romantismo Abstract: It is proposed that through this article to demonstrate that there are Brazilian and Portuguese narratives, specifically in Lucíola (1862), by José de Alencar and Nome de Guerra (1938), by Almada Negreiros, issues of consensus and divergence in relation to female characters condition. Thus, it is allowed to insert them in the context of comparative literature. Respectively, the romantic and modernist novels are based on the theme of prostitution in the period in focus. It started from the point of view that prostitution in evidence in the novels is treated in similar and different ways, in this way, we should also consider the historical and social context that the female figure represents the literary productions through the characters of Judite and Lúcia. In this direction, A personagem de ficção (2005), by Antonio Candido, subsidizes the perspective of a study highlighting the importance of character in the plot, work composition and the context which it operates. A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental (1996), by Nickie Roberts, is a reference for understanding the origin of prostitution, the projection of the myths and womanhood that the protagonists undergo in the novels. Keywords: Nome de Guerra, Lucíola, Character, Prostitution, Modernism, Romanticism. Pode-se dizer a partir do enfoque de A prostituição através dos tempos na sociedade ocidental (1996), que a história da prostituição transcende o mundo ocidental. No período pré-histórico, a mulher era vista como criadora e detentora das forças vitais, sendo que, primeiramente, foi construído o matriarcado e o ato de gerar filhos com seu próprio corpo designou à figura da mulher o sinônimo de fertilidade, conceituada pelos humanos da Idade da Pedra sob a forma de uma deusa. Desta forma, os mitos e as formas de cultura e arte surgiram por meio da mulher. A religião, a cultura e sexualidade estavam intimamente ligadas, tudo provinha da deusa. Assim, o sexo era considerado sagrado por definição e era conduzido pelas sacerdotisas xamânicas em forma de rituais em grupo, nos quais participavam toda a comunidade, com o intuito de compartilhar em união extática o manancial de forças vitais. Segundo Roberts (1996), é desta forma que a verdadeira história da prostituição começa; com as sacerdotisas dos templos. 1 Bolsista Capes, Aluna do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – Mestrado Acadêmico, Campus Universitário de Tangará da Serra, Universidade do Estado de Mato Grosso. O fato é que, após milênios, a prostituição feminina persiste. Inicialmente, sempre associada à figura de deusas, o estatuto das prostitutas era elevado, até que lentamente, o poder patriarcal sucumbiu o lugar e prestígio das sacerdotisas, inferiorizando a um plano de degradação moral do corpo e suas práticas. Enquanto a mulher domesticada tinha sua sexualidade reprimida e limitada a um só homem, pelo contrário, aos homens era dado o direito de recorrerem às prostitutas sempre que lhes convinha. Naturalmente, a feminilidade e o poder da mulher são aflorados desde os tempos primórdios. Através da imaginação real e irreal, há traços da presença marcante da mulher. Seguindo a linha de pensamento de Roberts (1996), os muitos deuses e mitos referentes à sensualidade, beleza e sexualidade surgiram por intermédio da mulher. Neste aspecto, evidencia-se neste estudo, o mito de Lilith, primeiramente, pelo fato de constituir-se de acordo com Maia (1993), como alusivo à prostituição e à personagem protagonista do romance Nome de Guerra, em um segundo plano, por representar a encarnação da transgressão à ordem patriarcal. Pois sendo Lilith, segundo a mitologia, antes de Eva, a primeira mulher de Adão, criada do pó, reivindica seus direitos de igualdade junto a Adão. De acordo com Sicuteri (1985, p. 19), Lillith questiona a Adão: “- Por que devo deitarme embaixo de ti? – Por que devo abrir-me sob o teu corpo?” Não aceitando a posição do ato sexual, Lilith é reprimida. Para Lilith, sua sexualidade era vital, o controle de seus desejos sexuais teria que ser considerados. Segundo a tradição hebraica, Lilith deixa o paraíso, tornase endemoniada, porém, permanece na liberdade de praticar sua libertinagem sexual. Maia (1993), para justificar a genealogia do nome Judite até chegar à Lilith, parte da citação que se depreende do romance, no qual diz que “[...] A história verídica é a única que vale e pode-se contar: o primeiro homem que elas conheceram era um pulha! E cada uma teve o seu para virem juntar-se todas ali na sala de distracções, dos estranhos e do esquecimento.” (NEGREIROS, 1997, p. 256). O personagem Antunes é a pulha, assim como foi o primeiro homem, Adão. Para Maia (1993), mulher e narrativa apontam para o nome Lilith. Os espaços ficcionais nos romances são locais onde se pode deparar com os mais variados tipos humanos possíveis, de maneira que para o leitor, a personagem torna-se o maior elo entre a realidade e a ficção. Candido (2005), por sua vez, ressalta que ante a colisão de valores, as personagens passam por terríveis conflitos, que se resulta em aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou luminosos. Desta forma, o homem pode transformar imaginariamente no outro, verificar, viver e até mesmo reviver aspectos de sua própria condição, pode-se dizer que por meio das personagens ocorre uma espécie de fusão entre ficção e realidade. Nome de Guerra (1938), romance modernista, surge como resultado de uma ideologia que visava colaborar para ascensão sócio-cultural de Portugal, de forma que o autor procurou romper com todas as modalidades de academicismo pregadas pelas escolas literárias anterior, buscando inovação nas artes e na literatura. Trata-se de uma obra com prenúncios existencialistas, em que o homem procura dar sentido à sua existência. O romance traz à tona a reflexão sobre os fatos cotidianos da vida dos protagonistas Antunes e Judite. Aborda não somente as características físicas das personagens, como também psicológicas, características estas, marcantes do período, no qual há interesse pela vida interior (estados de alma, espírito). O autor trata sutilmente do tema prostituição, através dos indícios, logo é possível perceber que a protagonista é uma prostituta. O primeiro fator que colabora para este fato, parte da perspectiva do título da obra Nome de Guerra, em seguida, a referência ao codinome, assim, o narrador destaca que “[...] o seu verdadeiro nome não era Judite [...]” (NEGREIROS, 1997, p. 255), fato comum na história da prostituição, desta maneira, a personagem se refugia através deste codinome, deixando de mostrar por ora, a sua verdadeira personalidade. Outro fato que corrobora para a temática da prostituição no romance é a adoção de codinome, fato comum na história da prostituição. Tal codinome é alusivo à personagem bíblica Judite. Segundo o narrador, “Judite é um nome de mulher a quem a Bíblia faz cortar a cabeça de Holofernes.” (NEGREIROS, 1997, p. 255). A trajetória bíblica ressalta no decorrer dos seus escritos a condição desta mulher, que ora apresenta-se de forma conflitante. Em um primeiro momento, Judite bíblica, é a típica imagem de boa mulher, respeitável, recatada; no entanto, de mulher resignada, passa à sagacidade, revela a polaridade que há em sua personalidade, Segundo a bíblia católica, Judite era uma mulher recatada, mesmo em sua viuvez, honrava seu marido e a Deus, pois “Jejuava todos os dias da sua viuvez, exceto aos sábados e em suas vigílias, nas luas novas e nas vigílias, nas festas e nos dias de regozijo da casa de Israel”. (CNBB, Judite 8: 6). Porém, a figura de Judite, a viúva, combina a feminilidade com a determinação, usa o seu poder de sedução para atrair a atenção de Holofernes, grande comandante do exército rival de seu povo e quando o tem em seu domínio decepa sua cabeça. Por fim, outro fator que Justifica a questão da prostituição no romance é o fato de a personagem Judite possuir características que é possível associá-la à Lilith. De acordo com Maia (1993), a tradição antiga esteve muitas vezes ligada aos mitos de uma forma geral, sendo que em algumas orações aparece a expressão “serva de Lilith”, indicando a figura da prostituta, de forma que as projeções das personagens dos mitos eram descritos como eróticos e sensuais. Sicuteri (1985) nos apresenta as mulheres de Adão sob duas vertentes: Lilith, sob o ângulo da obscuridade, vista como a lua negra. Em oposição, Eva é apresentada como luz do Sol, como pura graça. A primeira lhe é censurada o prazer carnal; a segunda exprime a imagem de boa companheira e submissa. Assim como Adão, o personagem Antunes de Nome de Guerra encontra-se diante de duas imagens de mulheres, uma era a noiva Maria, a outra era Judite. Conforme nos apresenta a onisciência do narrador, “[...] A primeira era suave, tão suave que não apetecia acordá-la no sono branco em que dormia; a segunda tinha as carnes sequiosas e mordia com os dentes, e cuspia com a raiva, e beijava com os lábios, e arranhava com as unhas” (NEGREIROS, 1997, p. 282-3). A suavidade e o sono branco de Maria são a representação da imagem pura para Antunes, assim como Eva representa a luz do sol para Sicuteri (1985). Em oposição, Judite é como Lilith, a lua negra, o prazer carnal. As carnes sequiosas pela voracidade sexual de Judite nos levam a confrontar com os comportamentos de Lilith. Segundo Sicuteri (1985, p. 84): “[...] as interpretações de Lilith brotam ainda de comportamentos agressivos inconscientes a serviço do Eu contra as solicitações da libido sexualizada”. Na representação de personagens femininas, apresentam-se diversos perfis e comportamentos, destacam-se, neste estudo, as protagonistas Lúcia e Judite dos romances Lucíola e Nome de Guerra respectivamente. Divididas por dois contextos distintos, marcados por dois períodos literários; romantismo e realismo, as personagens que encenam o romance são aproximadas e distanciadas por seus símbolos emblemáticos. A prostituição feminina tratada nos romances não está muito distante de um período e outro, no entanto, a contextualização histórica e social apresenta as personagens, enfocando e conduzindo-as de formas divergentes. Lúcia e Judite são prostitutas, cada qual ao seu tempo e modo. Lucíola (1962), do escritor brasileiro José de Alencar, narra a história de uma prostituta, de luxo e de um amor verdadeiro desenvolvido na trama entre as personagens Lúcia e Paulo. Assim como Antunes de Nome de Guerra, Paulo é um jovem do interior, que se desloca à metrópole, com o objetivo de viver uma nova experiência de vida, no caso de Paulo, uma experiência profissional. Em ambos romances, os jovens logo se envolvem com as prostitutas. Paulo, no entanto, é levado a nutrir uma boa imagem de Lúcia, até o momento que esta fica nua em público, resultando daí um conflito entre o casal. Lúcia apresenta-se como a típica figura feminina romântica do século XIX, os fatos do enredo a conduzem para a sua transformação, assim, no final do romance, sua personagem regenera-se, corroborando para a idealização da mulher. Lucíola situa-se como um romance urbano, no qual o foco se concentra nos costumes e nos valores de uma sociedade. O período retratado mostra a tradicional burguesia fluminense do século XIX, arraigada pela velha moral dos bons costumes. A respeito desta classificação, Candido (2005, p.62) salienta que “[...] o romancista “de costumes” vê o homem pelo seu comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão normal que temos do próximo”. Narrado em primeira pessoa pela personagem protagonista Paulo, a temática acerca da prostituição evidencia-se no início do enredo no romance. Através de um diálogo entre as personagens Paulo e Sá, logo é possível observar a condição de Lúcia. Conforme o trecho: “Quem é esta senhora? Perguntei a Sá. [...] - Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?” (ALENCAR, 1992, p.15). Para Sá, Lúcia estava distante de ser considerada uma senhora, de acordo com o costume do século XIX, o olhar patriarcal impera, à senhora de bem, cabia-lhe companhia. Assim, o narrador declara: “[...] Só então notei que aquela moça estava só; e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão, devia-me ter feito suspeitar a verdade.” (ALENCAR, 1992, p.15). Como fato comum na história da prostituição, há uma metamorfose de nomes. No romance existe uma dualidade de nomes em torno de Lúcia, assim como Judite de Nome de Guerra, o seu verdadeiro nome não era este. A transformação do nome da protagonista é narrada com um sentimentalismo típico romântico. Seu verdadeiro nome era Maria da Glória, Lúcia, na realidade, era um nome de uma prostituta que morreu, porém, no óbito, Maria da Glória troca os nomes, assumindo a partir daí a personificação deste novo nome. Lúcia é a típica personagem romântica, o romance ressalta aspectos da vida interior da personagem, de maneira que se encontra envolta em uma cadeia de contrastes, apresenta-se ora discreta, ora extravagante, santa e devassa, conflitante, traduzida na desarmonia de situações e sentimentos. Lúcia vive uma dualidade, por vezes representa o mal, a meretriz depravada e discriminada pela sociedade, por outro lado, é a menina pura e inocente. O narrador busca constantemente mostrar a transformação da figura de Lúcia. A dualidade dos nomes da personagem Lúcia, leva a uma oposição que vai além da genealogia. Maria da Glória não somente soa contraditório à Lúcia, com também significativamente expressa totalmente o oposto. O nome Maria provém do hebraico, a bíblia foi assim disseminadora do sentido de pureza e santidade em torno deste nome, pelo fato da designação da figura de uma mulher pura e casta para ser designada mãe de Jesus, que para os cristãos é considerado o salvador do mundo. A partir do momento em que a personagem assume de fato a prostituição, deixa de ser Maria, deixando para trás a pureza, assim, adota com todos os seus significados um novo nome, Lúcia. De acordo com a narração, Lúcia é a própria representação do mal: “[...] Em lugar de Lúcia- diga-se Lúcifer!” (ALENCAR, 1992, p.41). Lúcia, em consonância com a citação, declara que “[...] Quem não sabe que eu sou o anjo de luz, que desci do céu ao inferno?” (ALENCAR, 1992, p. 41). Lúcia toma para si neste instante os atributos de Lúcifer antes de sua queda do céu ao inferno, uma vez que, segundo a tradição cristã, Lúcifer foi um anjo portador de luz, mas que se torna o demônio Satanás. No romance, a genealogia do nome Lúcia nos leva ao termo Lúcifer, que por sua vez possui o mesmo significado do planeta Vênus, “portador de luz”, na sequência de sentido, vêse que o nome deste planeta é proveniente da deusa romana Vênus. Há desta forma uma tríade de sentidos ao redor do codinome da personagem em Lucíola, constituindo assim: Lúcia, Lúcifer e Vênus. Vênus era a deusa romana do amor e da beleza, segundo esta mitologia, era casada com Vulcano, porém mantinha relações extras conjugais com o deus da guerra, Marte. Na mitologia grega, Vênus se equipara à Afrodite. Segundo a tradição antiga, a história da prostituição está ligada a figura de deusas. Na cultura grega clássica, já não eram as sacerdotisas que cumpriam os rituais sagrados de prostituição, neste momento da história, eram as prostitutas; mulheres servidoras da deusa e eram respeitadas pelos homens. Desta forma, Roberts (1996, p. 32) diz que: “[...] Encontrava-se templos por todo o continente grego, especialmente em Corinto, << cidade de luxo do mundo grego>>, onde o templo de Afrodite (com fama de ser um dos templos mais ricos do velho mundo) abrigavam mais de mil prostitutas <<sagradas>>.” Para o narrador de Nome de Guerra, às prostitutas restam as mutilações correspondentes aos estragos que a vida fizera sobre a natureza formosa e robusta, assim se Judite fosse uma estátua, podia ser aproveitada como sinônimo de beleza, porém somente, após sofrer algumas mutilações, como sofreu a Vênus de Milo. Na representação artística literária, a figura da prostituta no século XIX, se justifica socialmente pelas condições que estas se encontravam, de maneira que eram como Vênus de Milo, mutilada parte de sua existência pelas condições sociais às quais se submetiam. Segundo Roberts (1996, p. 238): Assim, “[...] A este respeito o século XIX não era diferente de qualquer outro período: a grande maioria das prostitutas eram mulheres da classe trabalhadoras”. No romance Lucíola, Lúcia é cruelmente forçada a prostitui-se, com o intuito de salvar a família que foi cometida por febre amarela. Aos catorze anos de idade, Lúcia é induzida por meio da pobreza e das circunstâncias a enveredar-se ao caminho da prostituição. A fusão entre texto e contexto, a qual se refere Candido (2005), nos leva a partir do texto ficcional e adentrar no contexto de produção. Segundo Roberts (1996, p.238), “Muitas prostitutas vinham de lares destruídos, onde a perda súbita de um ou dos dois pais a privava do apoio econômico do rendimento familiar”. Mulheres exploradas sexualmente, Judite e Lúcia refletem o caráter de uma sociedade patriarcal e preconceituosa. De acordo com Roberts (1996, p.231), “[...] era necessário que existisse uma outra classe de mulheres para desviar da família as necessidades sexuais dos homens: mais uma vez a prostituta voltava a ter um papel central”. A prostituta era vista perante a sociedade não mais como uma figura sagrada como na tradição antiga, mas como necessária, apesar de repugnante. Roberts (1996) ressalta que na tentativa de dividir as mulheres em classes e se firmar os estereótipos sobre as prostitutas, a sociedade do final do século XIX tentou impregnar o conceito de que os motivos que levam as mulheres para a vida de prostituição vão além das circunstâncias mais comuns e evidentes, vão para o lado da moralidade, com o objetivo de justificar que a mulher que se prostituía, já trazia o negócio do sexo nas veias. A burguesia deste período encontrava-se na condição de impor ao restante da sociedade suas ideias e costumes, assim, poderia existir apenas duas classes de mulheres; as casadas e as prostitutas. O narrador de Nome de Guerra não deixa claro as razões pelas quais a personagem Judite entrou na prostituição, no entanto, observa-se que a personagem também é induzida pelas questões sociais. No contexto modernista, o que é importa é acompanhar as tendências do novo, os ritmos da modernidade, as modas, as danças, tudo afinal que pudesse exprimir o espírito moderno, desta forma, o que se evidencia neste período é o capitalismo sem medida impregnado na sociedade do século XX. Judite é, portanto, uma personagem que revela essa característica marcante do período, conforme se verifica no trecho: [...] Uma vez era um vestido de soirée que uma senhora da aristocracia tinha posto só uma vez, outro dia era um casaco de peles muito barato por causa da dona ter que ir para o estrangeiro, uns sapatos da última moda que vinham oferecer a porta muito em conta, meias de seda baratíssimas que nunca mais se apanham por aquele preço, um empréstimo feito a uma irmã precisada, a mesada para o seu querido filhinho, a prestação para o perfumista e muitas outras coisas que infelizmente não podiam esperar [...] (NEGREIROS, 1997, p. 299) Apesar de a personagem Judite inserir-se no século XX, onde a história da prostituição o designa como o século da sociedade livre, alguns estereótipos vitorianos acerca da prostituta se aplicam a personagem. De qualquer forma, são comportamentos, que contribuem na verificação que vai além dos traços superficiais da caracterização física e psicológica da personagem, revela-se o modo íntimo de ser. A prostituta representava também imaturidade e instabilidade; era, à vez, taciturna e incrivelmente frívola, arrogante e ordinária, estava sempre a mudar, era inconstante e impulsiva, mudava de opinião, de roupa, de humor, de casa e até de classe social; falava constantemente sem saber o que dizer; mentia; consumia álcool e comida em excesso; era regularmente tomada de acessos de raiva; gastava dinheiro como água. (ROBERTS, 1996, p. 234). A personagem Judite se enquadra neste perfil: a prostituta sem escrúpulos, permeada desta imaturidade e instabilidade. No decorrer do romance, Antunes passa a refletir sobre suas mentiras, seu comportamento no clube noturno, seu humor na voluptuosidade de opinião e ainda em seu sentimento capitalista, duvidando, assim, definitivamente do amor dela por ele, conforme se observa no trecho: “Os seus dezenove anos cheios de cicatrizes são a estátua mutilada da verdade. Os gestos da estátua são falsos, é tudo mentira, apenas a matéria da estátua mutilada é verdade!” (NEGREIROS, 1997, p. 325). Lúcia e Judite inserem-se em sociedades nas quais o preconceito prevalece. Porém, observa-se que ao longo da narrativa de Alencar que a personagem Lúcia é idealizada, sua condição regenerada, o amor entre Paulo e Lúcia sobressai. Essa idealização, no entanto, não ocorre com Judite, e em relação ao relacionamento com Antunes, este, servira apenas como uma etapa no árduo processo de aprendizagem. Judite permanece até o fim do romance como uma estátua de pedra, imutável, estática. A onisciência do narrador afirma que: “[...] Ela serlhe-ia na memória uma pedra de toque para as coisas do coração, uma coisa doce que se estragou, mas que foi doce, uma chamada forte para a realidade [...]” (NEGREIROS, 1997, p. 320). Lúcia não se rende inteiramente aos valores da sociedade que por ora estigmatiza sua condição, a personagem romântica luta contra os preconceitos estabelecidos pela sociedade, seu comportamento funciona como combate a sua suposta fragilidade, assim, fortalece-se mediante as circunstâncias que as forçaram a prostituir-se. Judite, ao contrário, encontra-se em uma teia de sentidos, por inserir-se em um romance modernista de aprendizagem, não há idealização da figura da mulher. No decorrer das narrativas, Lucíola e Nome de Guerra, há muitas similaridades. Além da prostituição e todo seu contexto, existe uma inversão de valores associada aos nomes. No final do romance Lucíola, a personagem Lúcia morre, ressuscitando, então o caráter de Maria da Glória por meio da alusão deste nome. Maria, nome imaculado, universalmente associado à figura santa da mãe de Jesus, revela o caráter da mulher pura a quem a bíblia faz menção de virgem. No caso, Alencar faz reviver essa Maria, idealizando dessa forma a imagem de moça recatada e pura. Em Nome de Guerra, o narrador também menciona o nome de uma personagem chamada Maria. Esta era a noiva que Antunes havia deixado na província, assim, Antunes se vê dividido entre as duas imagens de mulheres, de um lado, a pureza e a castidade, de outro, a própria sexualidade encarnada. Antunes encontra-se fascinado com os prazeres que Judite o proporciona e acaba deixando Maria de lado. Muitas cartas lhe são enviadas por seus pais notificando acerca da tristeza e doença de Maria, porém, devido à alienação à Judite passam despercebidas, até que um dia resolve ler as cartas e a última delas, revela a morte de Maria. A morte faz parte em ambos romances e marcam definitivamente um começo na vida dos personagens Paulo e Antunes. A morte presente nas narrativas possibilita ao crítico literário construir com mais clareza os sentidos de efeitos que essas circunstancias inferem. De acordo com Candido (2005, p. 64): “A morte é um limite definitivo dos seus atos e pensamentos, e depois dela é possível elaborar uma interpretação completa, provida de mais lógica, mediante a qual a pessoa nos aparece numa unidade satisfatória, embora as mais das vezes arbitrária”. Ao contrário do romantismo, em Nome de Guerra, não há regeneração e idealização da figura da mulher. A morte de Maria assinala um momento de ruptura com os conflitos até então vividos por Antunes. A morte não lhe correspondia nada, porém viu muito além das cartas, viu outras palavras que significavam muito mais. A partir daí, qualquer possibilidade de relacionamento futuro com Judite é descartada. Verifica-se esta questão da morte através do trecho: “E quando a Maria morreu o Antunes ficou, acto contínuo, liberto da Judite. A essa mesma hora estava terminada a missão da Judite junto do Antunes.” (NEGREIROS, 1997, p. 342). A morte em Lucíola ocorre por diversas vezes. Primeiro, morre literalmente a verdadeira Lúcia, Maria da Glória troca de identidade, passando assim de Maria da Glória à Lúcia, com esta morte, ocorre o fim da inocência e da pureza de seu nome. Em um segundo momento, morre a suposta Lúcia, no entanto, uma Maria é renascida. De forma que se idealiza a figura feminina, eternizando dessa maneira a sua regeneração enquanto prostituta. Lúcia. Em Nome de Guerra, Maria é morta, destruindo com qualquer possibilidade de regeneração de Judite. Nome de Guerra se apresenta aos moldes de um romance de aprendizagem, nos quais as questões vão sendo apresentadas numa articulação de personagens, cenário e ação, conectados a uma reflexão filosófica, permanente de um narrador onisciente; as personagens neste romance são apresentadas de acordo com Candido (2005), além de suas caracterizações superficiais, pelo seu modo íntimo de ser e agir das personagens. Lucíola, no entanto é apresentado como romance urbano, pois tem como características a representação dos costumes e críticas de uma sociedade, narrado em primeira pessoa pelo personagem Paulo, no qual vive toda a trama. José de Alencar e Almada Negreiros, autores de nacionalidades diferentes, abordam em suas obras o mesmo tema, embora em estilos diferentes, ambos expressam ideologias e concepções sobre a prostituição. Enquanto José de Alencar funde características do Romantismo através da personagem Lúcia, Almada Negreiros, no Modernismo, permeiam tendências simbolistas, trabalhando a questão do conhecimento da própria personalidade. No contexto de produção, a ideologia torna-se fator fundamental, uma vez que esta rege nações, sendo elas primitivas ou contemporâneas. Assim, “A ideologia, que é uma percepção historicamente determinada da vida, passa a distribuir valores e esconjurar antivalores, junto à consciência dos grupos sociais”. (BOSI, 2000, p. 138). Em ambos os romances, o cerne é a condição da mulher como prostituta. A trajetória e história da prostituição vão sendo traçadas ao longo dos séculos, mas o que se percebe é que a sociedade apenas transpõe seu tempo, porém evolui muito pouco em sua ideologia. Um fator imprescindível para investigação literária é discuti-la dentro de um contexto de produção, ou seja, considerar os fatores históricos e sociais, elementos que permitem compreender as mensagens explícitas e propositalmente implícitas. Em suma, a literatura, neste sentido, tem a função social de humanizar e transformar paradigmas. Candido (2008) destaca que entre a relação literatura e sociedade, os fatores externos-sócio-históricos devem ser analisados na medida em que se tornam fatores internos, ou seja, em que passam a desempenhar algo relevante na estrutura da obra. Dessa forma, evidencia-se que a literatura tem o poder de transformar uma sociedade, trazer à tona as vozes de marginalizados e, ainda, de cumprir o papel desmistificador da verdade pura e absoluta imposta pela sociedade. Referências ALENCAR, José de. Lucíola. 2. ed. São Paulo: Editora FTD, 1992. BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. 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