UMA TRAMA TECIDA POR MUITO NÓS: a escola de periferia sob o olhar do professor pesquisador ZAMBRZYCKI, Isabel Cristina, ALMEIDA, Ivone Araujo de(1090) Universidade de Passo Fundo RESUMO O presente trabalho aborda a problemática da escola de periferia, tomando como referência para sua tematização o olhar de professoras que, movidas pelos conflitos emergentes de sua prática e desse contexto, voltam-se para o seu trabalho, construindoo como objeto de investigação. É abordada a especificidade da pesquisa produzida por professoras-pesquisadoras que por ela optaram, concebendo-a como instrumento para sua formação e intervenção no processo pedagógico, e que constituíram o Grupo como espaço de produção coletiva de conhecimentos sobre o cotidiano de suas escolas, sobre as situações vividas na periferia, sobre as relações entre as crianças e entre as crianças e os seus professores. Entre as questões que o Grupo se propõe a investigar estão: Que escola atenderia às necessidades desse contexto? De que pedagogia a periferia precisa? De que forma o contexto age sobre o universo da criança e sobre o processo pedagógico e como trabalhar com esses condicionamentos? Para esse Grupo, ser professorapesquisadora significa capacitar-se a superar o senso comum e a trabalhar com os problemas concretos, garantindo um processo de formação continuada capaz de engendrar possibilidades de ação em um contexto cada vez mais adverso. Parte I A presente exposição é resultado de três anos de trabalho, nos quais professoras de 1º grau da rede pública de ensino de Passo Fundo (RS), circunstanciadas pela problemática vivida na periferia desta cidade, constroem a escola como objeto de estudo e de intervenção. Tem-se em vista com este texto discutir e contribuir para complexificar o trabalho com ensino fundamental desenvolvido nesse meio, trazendo ao debate o ponto de vista do professor que atua em tais condições e que se constitui como pesquisador ao buscar compreender essa realidade dinâmica e instrumentalizar-se para nela intervir de modo competente e comprometido com os pilares democráticos que sustentam a escola pública. O conceito de professor-pesquisador, pelo qual se designa o professor que trabalha para romper com a concepção de instrutor (Demo, 1992) e de técnico (Gómez, 1992) e que tem a sua prática como objeto de estudo, observação, análise e produção (Fazenda, 1992), é um dos produtos da vivência de um grupo de professoras que, desde 1990, atuam com um olhar atento e inquiridor sobre o seu cotidiano(1091). Nessa trajetória, foram forjados elementos para uma crítica de sua formação, à medida que ela dava sinais de limites em relação aos conhecimentos necessários à condução do trabalho pedagógico no ambiente escolar de periferia. Outro produto é trazido nesse momento para orientar a exposição. Diz respeito à seguinte constatação: a escola pública de periferia, pelos sujeitos que nela transitam, que com ela e entre si se relacionam, pelo modo como produzem e reproduzem suas vidas, por suas histórias e organização, por suas crenças e seus valores, possui uma especificidade que repercute radicalmente sobre o processo pedagógico desenvolvido em seu interior. Tal produção é proveniente de um esforço teórico e metodológico rigoroso que tem orientado as professoras-pesquisadoras em sua aproximação com a escola de periferia. Inicialmente, guiava o trabalho o objetivo de observar tudo o que acontece nesse ambiente. Isso significa, conforme Ezpeleta e Rockwell (1989), falar de tudo o "que sucede em, a partir de, em torno de e apesar da escola" (p.25). De posse de um aglomerado de dados, situações, falas e discussões, obtido através de um árduo trabalho, que incluiu diário de campo, memórias, estudos de textos, relatórios, textos provisórios, sessões de estudos e seminários, o Grupo se concentrou em torno do delineamento de alguns eixos temáticos que permitissem uma provisória elaboração.(1092) Desta forma, o que está sendo proposto, antes de ser uma análise exaustiva desse material empírico, é a composição da imagem da escola pública de ensino fundamental que atende à periferia de Passo Fundo (sabendo que não se trata de uma exceção frente ao contexto nacional, nem, contudo, considerando-a um modelo exemplar desse movimento mais amplo) como uma trama em que cada elemento interage com os demais e compõe significados que se somam e superam os sentidos particulares. Em trabalhos futuros, poderão ser expostas novas sínteses, tematizando, inclusive, as intervenções que as professoras-pesquisadoras estão produzindo, movendo-se em meio aos condicionamentos próprios desse espaço e aos conhecimentos produzidos por essa prática de investigação. A apresentação situa, primeiramente, o caráter da pesquisa que tem por sujeito investigador o professor e como seu objeto de estudo a sua ação e o seu ambiente de trabalho; e, em seguida, os eixos temáticos que têm absorvido os esforços de compreensão do Grupo de Pesquisa. 1. A complexidade do cotidiano escolar de periferia tem no professor que ali atua o sujeito privilegiado de sua tematização e análise. No movimento produzido pela investigação, as professoras-pesquisadoras se dirigem às escolas e ao seu trabalho, procurando suspender os modelos tradicionais de análise e as pré-noções constituintes do senso comum, visto que tais abordagens não dão conta da diversidade e da complexidade da problemática do seu cotidiano e buscam na realidade "as funções que o conhecimento prévio permite antecipar: a escola é vista ora como integrada, ora como seletiva, ora como reprodutora, sem que nenhum destes conceitos permita apreender tudo o que aí ocorre no dia-a-dia" (Ezpeleta & Rockwell, 1989:16). O esforço desse Grupo está em documentar uma realidade não documentada, isto é, a escola em sua positividade, tematizando o modo como os "sujeitos individuais, engajados na educação, experimentam, reproduzem, conhecem e transformam a realidade escolar" (Id.,ibid.:17-23). Na interação que existe entre todos os que nela convivem (professores, alunos, pais, funcionários), são confrontadas vivências e saberes nem sempre próprios do espaço escolar, mas provenientes de outros domínios da vida social (grupos, trabalho, família, etc.). Essa diversidade é trazida à discussão através das diferentes "versões" elaboradas sobre ela pelas integrantes do Grupo. Nesse espaço, funda-se uma instância que auxilia a promover esse embate, questionando essas versões e fazendo-as serem revistas por novas observações e análises. Cada professora-pesquisadora, a cada sessão de estudos, traz consigo registros de situações que contribuem para construir, fazer e refazer a trama. Nesse sentido, cada uma ajuda a educar e é educada pelo Grupo, num espaço de formação mútua(1093). Portanto, o grupo de professoras-pesquisadoras, ao tratar da especificidade da escola de periferia, produz reflexões a partir deste lugar determinado. Isso significa que, se o olhar do professor não for trabalhado no sentido de se voltar com atenção e rigor sobre os "'pequenos mundos', cujos horizontes definem-se diferentemente de acordo com a experiência direta e a história de vida de cada sujeito", perpetua-se a escola homogênea, que se repete em todos os lugares, independentemente dos indivíduos que nela transitam, se relacionam, agem e falam (Ezpeleta & Rockwell, 1989:22). Os avanços em relação a essa proposta de trabalho exigem a superação sistemática de inúmeras dificuldades provenientes, fundamentalmente, da organização do trabalho na escola e do modo como se estruturam em cada uma as aprendizagens construídas tanto a partir de suas práticas como pelas reflexões produzidas durante a formação acadêmica. Quanto ao primeiro aspecto, uma professora-pesquisadora comentava: "Com todos os horários preenchidos, sinto uma dificuldade enorme em parar, pensar e conseguir observar e registrar. A rotina do cotidiano nos 'leva', e muitas coisas fazemos por fazer"(1094). Cada vez mais os espaços de autonomia do professor são cerceados, aumentando, por outro lado, o controle sobre o seu trabalho, exercido por diferentes níveis do sistema de ensino, através de normas, parâmetros curriculares, testes, calendários de atividades...Apesar de o professor, ao não participar dos processos decisórios, tender a não se sentir e a não agir de modo responsável em relação a tais decisões, essa forma de resistência não anula o fato de que a intervenção sistemática, passiva ou ativa, dos órgãos administrativos junto ao cotidiano da escola tem jogado esse profissional à margem da direção do processo educacional.(1095) Tais medidas remetem a uma compreensão segundo a qual o professor não pode ser deixado sozinho porque não sabe o que faz. Nesse contexto adverso, vários são os sinais de rebeldia. São sessões de estudos e de planejamento; são grupos de trabalho com projetos alternativos em escolas; são professores solitários, compromissados com a criança e com o seu trabalho. O Grupo de professoras-pesquisadoras se insere nessa frente, através da luta por espaços para o registro e a avaliação de suas práticas, por tempos para a reflexão que lhes possibilitem atuar com autonomia diante de situações problemáticas. É nesse movimento que ganha sentido o trabalho pedagógico como objeto de um processo de investigação, "mediante o qual o professor submerge no mundo complexo da aula para a compreender de forma crítica e vital, implicando-se afectiva e cognitivamente nas interacções da situação real, questionando as suas próprias crenças e explicações, propondo e experimentando alternativas, participando na reconstrução permanente da realidade escolar" (Gómez, 1992:112). Em relação ao segundo aspecto a ser considerado na atuação do professor-pesquisador, é preciso, inicialmente, reconhecer que as situações que aguardam por ele todos os dias em sua sala de aula nem sempre conseguem ser antecipadas pelos cursos de formação ou por seu planejamento cuidadoso. Nesses momentos, orienta a sua ação o seu "conhecimento disponível" (o que Schön chama de "conhecimento-na-acção"), isto é, os seus saberes práticos, produto das vivências e reflexões anteriores, geralmente de caráter implícito, de que se vale o professor diante dos problemas enfrentados no cotidiano escolar. Esses saberes, pela rigidez com que se enraízam em sua consciência, dificultam a reflexão sobre a ação e a busca de alternativas para dar conta de seus entraves. O professor geralmente pensa sobre o que faz ao mesmo tempo em que atua, pois precisa dar respostas rápidas a situações imediatas. Nessa ação estão envolvidos elementos racionais e emocionais que a condicionam. No choque entre fatos, esquemas teóricos e saberes do professor, configura-se um momento potencialmente rico de aprendizagem. Essa potencialidade se realiza quando, já liberto dos condicionamentos da situação prática, o professor confronta tais ações com instrumentos conceituais e analíticos que favoreçam a compreensão e a reconstrução de sua prática. Tal reflexão, a qual implica a "imersão consciente do homem no mundo da experiência" (Gómez, 1992:102-5), possibilita que o conhecimento disponível não se fossilize ao tornar aplicável, indiferentemente, os mesmos esquemas/respostas a situações cada vez menos semelhantes, e, ainda, favorece a sistematização e a crítica dos saberes indispensáveis ao andamento do processo pedagógico. A articulação entre saber pedagógico e saber científico, procurada pelo professor-pesquisador, produz um conhecimento que se incorpora à sua ação, qualificando-a e restituindo-lhe a dignidade abalada pela degradação sócio-econômica da profissão docente(1096). Temos observado que por meio da pesquisa o educador consegue recuperar aspectos de sua dignidade perdida, e que aquele que consegue desenvolver-se em pesquisa, não consegue mais retroceder ao puro exercício do ensino em sala de aula. Com isso não queremos dizer que seja menos nobre o exercício de sala de aula, mas, sim, que o exercício de sala de aula, perpassado da habilidade adquirida no pesquisar, transforma e redimensiona a sala de aula, contagiando todos os que a freqüentam. (Fazenda, 1992:81) Em uma realidade que se altera e se complexifica continuamente, pensar e agir a partir dessa diversidade e do seu movimento torna a pesquisa um princípio que educa e um instrumento de redimensionamento do trabalho pedagógico. 2. Alguns eixos temáticos em torno dos quais estão agrupadas observações e reflexões provisórias sobre a escola de periferia e o processo pedagógico A exposição que se segue expressa uma aproximação provisória, descritiva e essencialmente empírica, daquilo que o Grupo chama de "especificidade da escola de periferia". Consigo vão, como se verá, considerações sobre o que é descrito repletas de conceitos e pré-noções a serem futuramente revistos ou aprofundados, com o auxílio, inclusive, do debate que essa apresentação poderá suscitar. Assume-se a sua incompletude e carência analítica e se opta pela construção de um objeto de estudo que tradicionalmente aparece dilacerado pelos recortes prévios a que tem sido submetido. Trata-se da prática pedagógica em escolas públicas situadas na periferia urbana de Passo Fundo - um espaço onde diferentes saberes e vivências interagem, se entrecruzam, conflituam. Inicialmente serão apresentados alguns elementos que caracterizam a periferia da qual se está a falar e as suas crianças. Num segundo tópico, tratar-se-á da relação que crianças e professores mantêm nesse espaço, para, na sequência, abordar dois eixos que concentram muitas das observações (e tensões) trazidas desse ambiente, a saber, o problema da disciplina/indisciplina e do exercício do poder na escola. 2.1 A Periferia Urbana: alguns elementos sobre esse espaço e suas crianças 2.1.1 A periferia Para abordar o referido objeto, há que se considerar o duplo caráter da periferia: "um geográfico, enquanto localidades distantes do centro, às margens da cidade, geralmente carentes de infra-estrutura; e um social, ao ser habitada por segmentos do lumpesinato e das camadas inferiores das classes trabalhadoras" (Dickel, 1996:42). As famílias que comungam desse espaço, em sua grande maioria, vieram do campo, de onde saíram em busca de melhores condições de vida (escola, trabalho, assistência médica), por trabalharem em terras que não eram suas, por terem de vender suas terras já que delas não conseguiam mais tirar o seu sustento (entre outras causas enumeradas em um dos relatórios de trabalho de campo). No entanto, na luta por trabalho, para a maioria dos adultos falta uma qualificação, ou seja, uma fundamentação básica que assegure o desempenho de alguma atividade que tenha caráter de especialidade. O mercado de trabalho urbano é seletivo e, cada vez mais, opera com tecnologias avançadas, jogando para o desemprego estrutural um contingente cada vez maior da população. Essas famílias acabam por agregar-se à informalidade, sofrendo com a instabilidade proveniente da ausência de vínculos empregatícios formais. Realizam trabalhos tais como: capinas, serviços gerais em empresas, faxinas, serviços domésticos, biscates variados. 2.1.2 As suas crianças A situação de fragilidade das famílias, acima referida, é um dos elementos que contribuem para o surgimento de uma variedade de problemas que atingem as escolas de periferia. Entre eles estão: a violência com o caráter de auto-defesa; o uso de drogas; as agressões entre pais e filhos e entre os pais; a fome e a saúde precária (haja vista a manifestação freqüente de dores de barriga e de cabeça, de infecções e inflamações pelo corpo); as péssimas condições de higiene e de saneamento básico; o uso de vestuário inadequado para os diferentes climas (principalmente em períodos de chuvas e frio). A experiência da fome marca a vida de muitas crianças. A merenda servida na escola não é, por muitas, considerada "lanche", mas a principal refeição do dia. Um menino conta à professora-pesquisadora que a comida existente em casa deve ser dada aos mais velhos, aqueles que trabalham, porque eles (os que estudam) fazem as refeições na escola e na creche. Não são poucas as crianças que chegam de manhã sem ter feito a primeira refeição do dia e, à tarde, sem ter almoçado. A necessidade de sobreviver empurra-as cedo ao trabalho. A biscates: vende picolés, frutas ou pastéis. maioria faz Uma professora-pesquisadora levantou os seguintes dados de uma 3ª série: dos catorze alunos da turma, seis trabalhavam - dois meninos e uma menina com venda de jabuticabas, uma menina com faxina aos sábados, um menino, nos finais de semana, com ordenha e outro menino carregando madeiras com o tio.(1097) Em meio a um contexto tão adverso, não são muitas as crianças comprometidas com o estudo. As tarefas orientadas para serem feitas em casa geralmente voltam inalteradas. Além das justificativas de terem esquecido ou de "não terem lápis", observase que a falta de incentivo e de cobrança por parte dos pais também concorre para tal situação, evidente por sua surpresa diante da notícia desse fato ao serem chamados à escola. Em alguns casos, a criança sequer tem, em casa, um espaço físico razoavelmente adequado para realizá-las. Constata-se que grande parte das crianças de periferia não cursam as séries de acordo com a faixa etária correspondente. Além das reprovações, as evasões e a migração constante das famílias agravam essa situação. A narração de uma professorapesquisadora sobre um aluno de 13 anos, que cursava a 3ª série, ajuda a explicitar o problema. Ele contou a ela que, durante sua vida, já havia passado por diversos lugares Cascavel, Santa Rosa, Mato Grosso, Medianeira, Ijuí, Passo Fundo - e "deixou bem claro, dizendo com orgulho, que nunca repetira o ano. Sempre fora tirado da escola porque a família decidia ir embora: 'Eu nunca rodei, minha mãe sempre me tirava'. Essa conversa aconteceu em julho. Em agosto, esse menino já não freqüentava mais a escola".(1098) Vários registros sobre as profissões almejadas pelas crianças (entre elas as de modelo, caminhoneiro, caixa, secretária, peão, jogador de futebol) e falas que, diante da cobrança da professora por mais empenho, retrucam: "para lavar carro não precisa muito estudo", apontam para expectativas de vida limitadas pelo lugar social que ocupam. Algumas professoras observam que os alunos estudiosos manifestam desejos em relação a um futuro melhor, diferentemente dos que necessitam ser estimulados para cada atividade. Por outro lado, também se observa que uma criança passiva diante do conhecimento escolar não se comporta do mesmo modo diante do seu mundo: defendese, locomove-se, sabe o que fazer na ausência de adultos. Os seus interesses podem estar situados em outra dimensão sobre a qual o ato pedagógico não atua e pouco sabe, já que "descobrir os interesses das crianças é uma tarefa difícil, pois eles não se revelam facilmente".(1099) Os problemas das famílias e de suas crianças convergem todos para um mesmo espaço, a escola, cujo cotidiano vai sendo tecido entremeado por péssimas condições infra-estruturais. A reação das professoras, geralmente submetidas a uma sobrecarga de trabalho (até 60h/semanais), com salários miseráveis e sem tempo para preparar as aulas e se qualificar, tem sido quase sempre de perplexidade e inconformidade. Reconhecem-se despreparadas para trabalhar com situações tão conflituosas, razão pela qual muitas solicitam a sua transferência para outras escolas ou o seu completo afastamento. 2.2 A relação professor - aluno na escola de periferia Ouve-se freqüentemente que as relações que acontecem na escola já não são harmoniosas como eram. A relação entre professor e aluno se modificou e ao primeiro cabe conquistar diariamente o respeito por seu trabalho, na relação que estabelece com as crianças, com os pais e com seus colegas. Na luta pela sobrevivência nesse meio, pode-se observar que os conflitos entre professores e alunos acirram-se diariamente e que há diferentes formas de enfrentá-los. Há professores que tentam ignorar ou camuflar esse confronto. Para estes, atuar em uma escola de periferia é o mesmo que desenvolver seus trabalhos em qualquer outra escola situada em um contexto diferente. Outros percebem o problema e respondem a ele assumindo o papel de um elemento da família que procura suprir as carências afetivas das crianças. Alguns, ainda, agem autoritariamente, abafando os conflitos e obrigando os alunos a terem atitudes pautadas por princípios e valores legitimados pela escola. Ao investigarem as razões desse enfrentamento e porem em questão as diferentes vivências que as crianças e os próprios professores trazem, os valores embutidos em suas ações e julgamentos, as professoras-pesquisadoras se vêem diante de um impasse. Proveniente, muitas vezes, de diferentes grupos sociais, professores e alunos constroem e expressam valores, moral e linguagem distintos. Ao indagarem os alunos, e às vezes os pais, sobre os seus problemas, interesses, necessidades e história, geralmente recebem respostas que eles julgam serem as esperadas pelos professores. Dificilmente explicitam o seu modo de vida, os seus saberes e as suas crenças. Algumas informações são conseguidas quando os vínculos entre professoras e crianças se aprofundam, sustentados por elos de confiança, forjados em tempos de convívio e de fidelidade. A maioria das crianças das periferias onde trabalham as professoraspesquisadoras vive diariamente "solta", sem alguém que controle o seu tempo e muitas de suas ações. Algumas têm pais alcóolatras, outras, presidiários, e, ainda, pais que abandonaram a família ou que recebem pouco por seu trabalho. São situações que levam muitas mães a serem as responsáveis pela casa e pelos filhos. Para poder suprir ou auxiliar a suprir as necessidades básicas da família, elas saem para trabalhar e ficam fora de casa o dia inteiro (geralmente em serviços domésticos e faxinas), deixando os filhos menores sob os cuidados dos maiores. Não são raras as vezes em que estes se ausentam das aulas para cuidarem dos irmãos. Poucas são as crianças que vivenciam, em casa, uma relação de diálogo, amor e respeito, trazendo essa referência de desamparo para a escola. Quando uma aluna diz, depois de ter insultado a professora, que gostaria de fazer isso com a sua mãe (que lhe bate constantemente), talvez seja possível entender que, ao agredirem a professora, muitas crianças agridem a "figura adulta" que representa a ameaça, o medo, a dor. Contra a posição segundo a qual essas crianças vão à escola por causa da merenda, o Grupo de Pesquisa registrou a mesma assiduidade em períodos em que não havia o que lhes oferecer. Se estas não vão para a escola exclusivamente para se alimentarem, se, muitas vezes, não demonstram interesse pelo trabalho aí realizado e se nem sempre a convivência com os professores lhes é agradável, por que, enquanto podem, continuam a freqüentá-la? Uma hipótese que talvez possa ser levantada é a de que as crianças estejam indo para a escola para se encontrarem, conviverem, brincarem e serem felizes. Talvez seja nesse espaço que professores precisem penetrar, criar laços para viver, aprender e ensinar. 2.3 Disciplina e Indisciplina: preocupações diárias dos professores No dia-a-dia da escola de periferia, certos alunos têm comportamentos entendidos como perturbadores da ordem e nefastos à sua organização. Por reagirem de determinado modo em relação aos seus colegas e professores, por não corresponderem às expectativas que orientam a preparação das atividades, entre outras razões, esses alunos são considerados indisciplinados. São estes, geralmente, os que reprovam e que são excluídos da escola. Em inúmeras situações, é possível observar as diversas facetas com que esse problema se evidencia: um aluno coloca papel enrolado dentro da caneta e assopra nos colegas; outro, esfrega chiclete nos cabelos dos colegas, dando origem a brigas que acabam envolvendo a todos; outro, ainda, fica o tempo todo dizendo "gracinhas" (para ficar entre casos menores, que não avançam, por exemplo, para a depredação do prédio, etc.). Diante de tais ocorrências, um sentimento de impotência e insegurança toma conta de muitas professoras, revelado por falas, tais como: "Não há condições de trabalhar, pois não sei mais o que fazer"; "Não sei o que fazer com um aluno. Como criar momentos para o estudo?"(1100) Para buscar o equilíbrio, inventam saídas: "Eu ameacei ele, falei que não o aceitaria mais na turma. Aí ele sossegou um pouco." Outros impedem a entrada dos indisciplinados na escola, quando não trazem o material necessário, não realizam o tema ou perturbaram a aula anterior; alguns, ainda, afirmam que passaram a solicitar o inverso, como "não façam o tema", "gritem", porque "eles sempre fazem o contrário do que se diz"(1101). Estabelecer a disciplina na sala de aula, através da ameaça, por exemplo, revela que há uma autoridade, a da professora, que precisa ser reafirmada sistematicamente, ao manter consigo o controle e a regulação. Nas alternativas apontadas, a ameaça ou gera a exclusão ou um aluno dependente e pouco criativo, que só faz aquilo que a professora determinar. Outra saída utilizada para tentar solucionar o problema da indisciplina volta-se para a figura do pai. Quando se diz que o pai da criança será chamado à escola - "Quero ver se você não me obedece!" - está presente a compreensão que identifica a autoridade com a figura paterna. Por que a professora se refere ao pai? A mulher (mãe ou professora) não detém autoridade? Por que a relação de obediência está vinculada à figura masculina? Que concepções e sentimentos estão presentes na professora que precisa ameaçar o aluno com a presença do pai? Por um viés semelhante, constata-se que, na maioria das vezes, a criança considerada indisciplinado é um menino - situação abordada por Estrela (1994), para quem a problemática da indisciplina é "um fenômeno essencialmente masculino". Para evitar tensões dessa natureza, é freqüente ouvir professoras mais experientes dizerem às iniciantes que não se pode tratar os alunos com carinho, "porque senão eles tomam conta da gente". Dizem que eles as escutam quando usam da mesma linguagem a que estão acostumados. E que, "se a gente não trata eles mal, eles pensam que podem fazer o que querem"(1102). De que experiências uma professora se vale para afirmar com tamanha segurança que os alunos gostam de serem tratados com rudeza? Como reconhecer as expressões de afeto próprias da criança e, principalmente, da criança de periferia e as reações próprias do seu desenvolvimento emocional? Contrariamente à recusa de se manifestar carinho pelas crianças, já que isso geraria "perturbação", as intervenções das professoras-pesquisadoras dão mostras de que o afeto entre professor e aluno pode modificar um comportamento tido como indisciplinado. O aluno deseja ser valorizado pelo professor e pelos demais colegas e faz tudo para que eles se apercebam disso. Uma professora-pesquisadora, num relato sobre o seu trabalho, dizia que, quando constrói uma relação de amizade com um aluno, logo percebe uma melhora no seu rendimento e no modo como a trata.(1103) Outra professora revelou que, somente no momento em que parou para pensar sobre o seu aluno "papagaio", percebeu que a sua conversa constante não era indisciplina, mas sim de um aluno inteligente e que quer saber mais. (1104) Muitos elementos concorrem para configurar a problemática da disciplina/ indisciplina. À professora cabe reconhecer o que está ao seu alcance fazer quando percebe que o aluno pode "estar" indisciplinado devido, por exemplo, ao tratamento que recebe no ambiente familiar. Há o registro do caso de um aluno considerado "impossível": não se interessava por nada, incomodava os colegas e roubava na sala de aula. Soube-se que ele não conhecia o pai e que sua mãe estava casada com outro homem com quem tinha mais filhos. Ela disse, ao ser chamada à escola, que o menino sempre fora "bagunceiro e revoltado", e que, para ele estudar, "só se ela batesse com cinta nele"(1105). Alguns pais, em resposta aos apelos das professoras, dizem que já não sabem o que fazer para que seus filhos tenham melhores atitudes, que já tentaram de tudo, mas nada adianta. Por sua vez, pedem às professoras que imponham regras para a sua conduta, transferindo a elas essa responsabilidade e, inclusive, dando-lhes algumas sugestões de como fazê-lo: tirar a merenda ou o recreio dos que se comportam mal, deixá-los de castigo, entre outras. Outro elemento determinante da indisciplina diz respeito às condições da escola. Vasconcellos (1993) sugere que se esteja atento a fatores físicos, tais como: "barulho externo, temperatura, ventilação, iluminação, harmonia do ambiente, disponibilidade do espaço para movimentação, limpeza do chão, paredes e carteiras. Se não estiverem satisfatoriamente equacionados, podem favorecer a indisciplina" (p. 58). Conforme outro relato, uma professora constatou, ao dar uma aula expositiva, que um aluno que "não está nem aí", ou seja, "larga piadas, briga com o colega (bateboca)", é avaliado por ela como indisciplinado.Por outro lado, se em outra aula ela se propõe a trabalhar com preenchimento de mapas ou elaboração de linha do tempo, não considera indisciplina os alunos circularem e conversarem durante a aula. A indisciplina, portanto, pode depender dos objetivos que a professora estabelece. Nesse sentido é que Vasconcellos evidencia, como critério para a disciplina, a necessidade de a professora "ter uma proposta adequada de trabalho, vinculada às reais necessidades dos alunos (conteúdo significativo e metodologia participativa)" (1993:68).