O entrelaçar da história e da ficção em Memorial do convento e Os sinos da agonia Elizabete Arcalá Sibin. (Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE) RESUMO: A temática da relação entre literatura e história tem sido bastante explorada desde os escritos historiográficos da Idade Média até a contemporaneidade, quando surgem novas possibilidades de tratamento do fato histórico a ser representado como: história romanceada, metaficção historiográfica, romance de “fundo” histórico, entre tantas outras narrativas que perpassam a relação entre história e literatura e problematizam o discurso histórico ao propor sua releitura. A proposta deste trabalho, tendo como base teórica Le Goff (1996), Hutcheon (1991), Kaufman (1987), Aguiar (1997), é discutir como José Saramago e Autran Dourado trabalham com a temática histórica e conferem novas características ao romance histórico, sendo, ambos, escritores contemporâneos que voltam seu olhar para o século XVIII. Em Memorial do convento (1982), José Saramago relata as questões históricas e ideológicas, ocorridas durante o reinado de D. João V, por meio da construção de um discurso literário que se caracteriza pela presença de várias vozes que vão assumindo pontos de vista diferenciados e, com isso, desvendam o pensar saramagueano acerca da sociedade portuguesa e, em Os sinos da agonia (1974), Autran Dourado discute o universo sociocultural de uma parcela da sociedade brasileira da segunda metade do século XVIII, pois sua obra é ambientada no interior de Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica, apresentando, via narrativa, uma sociedade cuja força de trabalho encontra-se centrada na escravidão e as famílias mais abastadas daquela localidade encontram-se preocupadas com a decadência prenunciada pela exaustão das minas e pelo endividamento dos donos de minas para com a Coroa portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Romance; Metaficção Historiográfica; Literatura e História; ABSTRACT: The theme of the relationship between literature and history has been quite explored since the historiographical writings of the Middle Ages until the present, when new possibilities for treatment of historical fact be represented as romanticized history, historiographic metafiction, romance of " background " historical, among many other narratives that underlie the relationship between history and literature and problematize the historical discourse by proposing a rereading. In this paper, based on theoretical Le Goff (1996 ), Hutcheon (1991 ), Kaufman (1987), Aguiar (1997), isto discuss how José Saramago and Autran Dourado work with the historical theme and provide new features to the historical novel being both contemporary writers returning his gaze to the eighteenth century . In Memorial of the Convent (1982), José Saramago recounts the historical and ideological issues that occurred during the reign of King John V, through the construction of a literary discourse that is characterized by the presence of several voices that are assuming different points of view and, therefore, reveal the saramagueano think about the Portuguese society, and Bells of Agony (1974) Autran Dourado discusses the socio-cultural universe of a portion of the Brazilian society of the second half of the eighteenth century because his work is set in the interior of Minas Gerais, more precisely in Vila Rica, presenting, via narrative, a company whose workforce is focused on slavery and wealthy families of that locality are concerned with the decay foreshadowed by the exhaustion of the mines and the mine owners of the debt to the Crown of Portugal. KEYWORDS: Romance; historiographic metafiction; Literature and History; A RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA De acordo com Linda Hutcheon (1991), no início do século XX, literatura e história eram vistas como pertencentes à mesma área de conhecimento, visto que ambas objetivavam interpretar experiências de vida para fornecer orientações aos indivíduos, buscando elevá-los enquanto seres humanos. Com o passar do tempo, essa ideia foi refutada, por isso literatura e história começaram a ser vistas como disciplinas completamente diferentes, mas a pósmodernidade contesta essa separação ao afirmar que há traços comuns entre textos literários e historiográficos, pois ambos apresentam o verossímil representado por meio da construção linguística. Lidar com a literatura e a história, enquanto textos que, num certo momento, se cruzam, pressupõe uma nova forma de leitura para as duas áreas, pois a história tem se servido da literatura para compreendera representação do mundo, enquanto a literatura faz uso da história como fonte de conhecimento do real a ser representado. A recriação do passado, por meio da representação literária não apresenta reflexos da realidade, mas os sentidos que foram construídos historicamente pela humanidade, por meio da manipulação ideológica. A literatura busca captar a realidade e transpô-la para a arte com a liberdade de fazer uso da imaginação para criar narrativas, nas quais os fatos ocorridos no passado servem de pano de fundo, sem a obrigatoriedade de comprová-los, embora a obra deva ser verossímil, conforme Le Goff (1996 p 50): Devo acrescentar que tenho muitas vezes prazer em ler – quando são bem feitos e escritos – os romances históricos e que reconheço aos seus autores a liberdade de fantasia que lhes é devida. Mas naturalmente que, se pedirem a minha opinião de historiador, não identifico com história as liberdades aí tomadas. E porque não um setor literário da história-ficção na qual, respeitando os dados de base da história – costumes, instituições, mentalidades – fosse possível recriá-las, jogando com o acaso e com o événementiel? Segundo Baumgartner (2000), define-se como romance histórico o gênero que tem por objetivo apropriar-se de acontecimentos históricos que marcaram uma determinada sociedade. O surgimento do romance histórico está ligado à ascensão da burguesia ao poder, fato que provocou muitas mudanças sociais, políticas e econômicas no século XIX. O romance histórico surgiu durante o Romantismo, movimento literário conhecido por apresentar uma nova sensibilidade artística baseada na subjetividade no individualismo. Essa nova tendência possibilita o surgimento do novo gênero, pois os escritores românticos valorizam os heróis nacionais, voltando-se para a Idade Média por ser o período de formação das nações europeias. O romance Ivanhoé, escrito por Walter Scott e publicado em 1819, é considerado a primeira obra do novo gênero. Desde então, os escritores que optaram por produzir romances históricos, seguindo a linha tradicional de Scott, conservam em seus textos as seguintes características: presença de fatos históricos de uma determinada época e sociedade para ambientar suas personagens; o enredo se desenvolve no passado, num tempo diferente do tempo do escritor; presença de personagens históricas, cuja existência pode ser facilmente comprovada, convivendo com personagens fictícias; papel secundário delegado às personagens históricas; presença de uma história de amor com final trágico ou feliz; os dados históricos e o respeito á cronologia dos acontecimentos históricos garantem a verossimilhança da narrativa; a narração ocorre em terceira pessoa para dar o efeito de distanciamento. A partir do século XX, as características do romance histórico sofrem transformações. Frederic Jameson (1997), afirma que os estilos do passado foram transformados em simulacro, pois recriam o passado como se fosse uma época ideal, o que, na verdade, nunca existiu, pois: O próprio passado é, assim, modificado: o que antes era, no romance histórico, segundo a definição de Lukács, a genealogia orgânica de um projeto burguês coletivo […] transformou-se, nesse meio tempo, em uma vasta coleção de imagens, um enorme simulacro fotográfico. (JAMESON, 1997, p.45) Para Lukács, o romance histórico consiste na criação de um universo particular, em que o protagonista representa as determinantes sociais e humanas para revelar como a história de um povo foi construída. Desse modo, pode-se afirmar que as transformações são perfeitamente possíveis, pois os sujeitos representados, tanto na história quanto na literatura, são constructos de manifestações discursivas, as quais, inseridas em certo contexto ideológico, produzem sentidos diferenciados. Com a evolução da sociedade, a releitura dos acontecimentos históricos pela ficção também sofreu alterações, surgindo novas possibilidades de tratamento do real a ser representado. Por isso, o romance histórico, em alguns casos, manteve suas características tradicionais, mas também sofreu alterações, dando origem a outras formas de tratar os acontecimentos históricos na obra ficcional, como: a história romanceada, a metaficção historiográfica, o romance de “fundo” histórico, entre tantas outras narrativas que perpassam a relação entre história e literatura e problematizam o discurso histórico ao propor sua releitura. Para Linda Hutcheon (1991), o romance histórico tradicional segue o mesmo modelo das antigas historiografias, as quais tinham por objetivo narrar os feitos e as experiências políticas e sociais de um povo, usando a história como ambientação de seus personagens. Com as inovações do gênero, porém, surge a metaficção historiográfica, romance pósmoderno que tem como pano de fundo a história e no qual as personagens são idealizadas como tipos que concentram os fatos, são seres que se encontram na periferia dos acontecimentos. Por isso, a obra deixa transparecer a diversidade ideológica que compõe a sociedade, como afirma Hutcheon, (1991, p.51): A metaficção historiográfica adota uma ideologia pós-moderna de pluralidade e reconhecimento da diferença: o tipo tem poucas funções, exceto como algo a ser atacado com ironia. Não existe nenhuma universalidade cultural. A narrativa de caráter metaficcional enfatiza os sentidos criados pelos fatos históricos, por isso aproveita tanto as verdades quanto as “mentiras” históricas, preocupandose com a forma como os indivíduos tomam conhecimento do passado e promovendo uma revisão dos fatos históricos, pois a preocupação do escritor está voltada para o modo como a produção e a recepção das ditas verdades históricas ocorrem. A característica marcante do texto metaficcional é a incerteza, provocada no leitor, acerca dos fatos, que podem ser desestabilizados de dois diferentes modos: primeiro por um narrador declarado que busca manipular os fatos; segundo, pela presença de inúmeras vozes discursivas que colocam o leitor em contato com as várias ideologias em conflito, no texto, operacionalizando o questionamento dos fatos históricos. Os autores de textos metaficcionais, embora trabalhem com a recuperação de fatos históricos, não estão preocupados em apresentar apenas o pensamento da classe dominante do período a ser representado, pois seus textos buscam revelar as diferentes ideologias que coexistem na sociedade, fazendo com que o leitor tenha consciência do modo como o processo ideológico moldou o desenvolvimento histórico de uma época, colaborando na formação dos sentidos culturais. O modo como o discurso é construído, nas obras pósmodernas, mesclando o histórico e o ficcional, leva o leitor a questionar o passado. Tal questionamento se torna possível porque, nessas obras, o passado é reconstruído, não por meio do olhar nostálgico que coloca os fatos como verdades acabadas de um paraíso perdido a ser recuperado, mas como algo que é passível de dúvidas em função de um discurso irônico que distancia temporalmente a narração dos fatos narrados, como afirma Hutcheon (1991, p. 128), “portanto, o pós- moderno realiza dois movimentos simultâneos. Ele reinsere os contextos históricos como sendo significantes, mas ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico.” O ENTRELAÇAR DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO EM MEMORIAL DO CONVENTO O romance Memorial do convento, publicado em 1982, é considerado pela crítica um dos melhores textos literários, escritos no século XX, que tem por temática uma parte da história de Portugal. O romance retrata o período do reinado de D. João V, que assumiu o trono em 1707, servindo de ambientação para a apresentação da história de vida de Baltasar e Blimunda, dois seres materialmente miseráveis, mas de uma riqueza incontestável no que se refere ao seu modo simples de refletir sobre o mundo e as circunstâncias que os rodeiam. Esses personagens, criados pelo escritor José Saramago, são seres tão especiais que, apesar dos obstáculos que precisam enfrentar na luta pela sobrevivência, conseguem ser felizes, não transmitindo, a nós leitores, a sensação de angústia ou de pena diante da existência tão sofrida que levam. Além de Baltasar e Blimunda, o autor apresenta personagens históricos, como o rei D. João V, a rainha D. Maria Ana Josefa e frei Bartolomeu de Gusmão. O governo de D. João V, que se estendeu de 1707 a 1750, ocorreu entre os conflitos da Restauração e o governo do Marquês de Pombal, por isso Portugal passou por um período bastante conturbado, marcado por graves crises econômicas, sociais e culturais. O povo português ainda estava preocupado com o fim das glórias obtidas com as grandes conquistas marítimas, o que fazia com que o país mantivesse muitas características de uma estrutura senhorial em pleno desenvolvimento do capitalismo mercantilista, o que colaborou para o agravamento da crise financeira da nação portuguesa. Dentre os fatos históricos, ocorridos nesse período, são representados ficcionalmente por José Saramago: a construção do Convento de Mafra, a Guerra de Sucessão, a invenção da passarola e os atos do Santo Ofício. A Guerra de Sucessão, resultante da oposição de Portugal, Inglaterra e Holanda ao acordo que uniria os reinos da Espanha e da França, é retratada para dar verossimilhança a personagem Baltasar. O ex-soldado Baltasar Sete-Sóis é um camponês que abandonou tudo para participar da Guerra de Sucessão. Ele retorna a Lisboa, no início do romance, tendo como único prêmio a amputação da mão esquerda, uma vez que nem a pensão, a que ele teria direito, o rei lhe concedeu. Jovem ainda, aos vinte e seis anos, o ex-soldado se arranja como pode vagando a pé para Lisboa, pedindo esmolas quando o dinheiro lhe falta e dormindo sob telheiros, como relata o narrador: Quando Sete –Sóis chegou a Aldegalega estava anoitecendo. Comeu umas sardinhas fritas, bebeu uma tigela de vinho e, não lhe chegando o dinheiro para a pousada, tão-só, à escassa, para a passagem amanhã, meteu-se num telheiro, debaixo de uns carros, e aí dormiu, enrolado no capote, mas com o braço esquerdo de fora e o espigão armado. (M.. C, p. 38) 1 Baltasar é o ex-soldado que, agora, luta por sobrevivência e quase não questiona os fatos a sua volta. A Guerra de Sucessão é apenas mencionada para ambientar o soldado que volta da batalha, fato comum no século XVIII, em Portugal. O fato histórico que motiva a escrita do romance de José Saramago não é o relato da guerra, mas sim a construção do Convento de Mafra. O rei D. João V promete construir o convento na cidade de Mafra, caso seja agraciado com um herdeiro que venha sucedê-lo na coroa portuguesa. Tal promessa é feita por causa da influência de um frei que garante ter recebido a revelação de que Deus concederia um filho ao rei se o convento fosse construído, como se pode notar na passagem do romance:. Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei António disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, (M.C, p. 14) O discurso do frei tece a manipulação dos fatos, pois ele afirma ter conhecimento o que irá acontecer, impõe a condição de que o convento deve ser da ordem dos franciscanos, mas não tem nenhuma explicação plausível para o que diz saber sobre o futuro herdeiro do rei, que resolve acatar a recomendação de frei António: Então D. João, o quinto de seu nome, assim assegurado sobre o mérito do empenho, levantou a voz para que claramente o ouvisse quem estava e o soubessem amanhã cidade e reino, Prometo pela minha palavra real, que farei construir um convento de franciscanos na vila de Mafra se a rainha me der um filho no prazo de um ano a contar do dia em que estamos, (M.C, p. 14). A influência dos líderes religiosos está ligada também à construção da passarola, por Bartolomeu de Gusmão, uma espécie de protótipo do balão. Frei Bartolomeu Lourenço de Gusmão, embora tenha nascido no 1 Todas as citações do romance Memorial do convento referem-se a: SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1996, que, no presente trabalho, será referenciado pela abreviatura M.C, seguido do número da página. Brasil, fazia parte da corte portuguesa por ser secretário particular de D. João V. Por causa de suas ideias inovadoras sobre os dogmas católicos e de suas invenções, o frei foi acusado de judaísmo e perseguido pelo Tribunal da Santa Inquisição. No romance, ele revela o pouco espaço que coube ao pensamento científico na sociedade portuguesa, pois, na época, a ciência era considerada uma ameaça aos domínios da Igreja Apostólica Romana. Por força da pressão inquisitorial, depois de pronta a máquina de voar, frei Bartolomeu enlouquecido foge e abandona involuntariamente seus projetos científicos. Temos de fugir, o Santo Ofício anda à minha procura, querem prender-me, [...] Vamos fugir na máquina, depois como subitamente assustado, murmurou quase inaudivelmente, apontando a passarola, Vamos fugir nela, Para onde, Não sei, o que é preciso é fugir daqui. Baltasar e Blimunda olharam-se demoradamente, Estava escrito, disse ele, Vamos disse ela. (M.C, p. 193) A perseguição ao frei não acontece apenas por causa da máquina de voar, embora esse fosse o motivo principal, mas também por seu modo diferente de pensar a religião. Um de seus sermões, em que ele discute acerca da trindade de Deus, afirmando que Adão poderia protestar contra o criador que não lhe deu a chance de arrepender-se, uma vez que, por ter cometido apenas um pecado foi expulso do paraíso, enquanto às gerações posteriores foi concedida a possibilidade do perdão por meio do sacramento. O argumento usado contra o frei era a ideia de que, para construir a passarola, o padre estaria usando um misto de ciência e magia, pois a máquina era movida pelas vontades humanas aprisionadas, o que o aproximava da prática da alquimia. Regressou o Padre Bartolomeu Lourenço da Holanda, se sim ou não trouxe o segredo alquímico do éter, mais tarde o saberemos, ou não tem esse segredo que ver com alquimias de tempos passados, porventura uma simples palavra bastará para encher as esferas da máquina voadora, (M.C, p. 115). O romance enfatiza a manipulação da Igreja sobre os fatos que ameaçam seu poder. Os inquisidores, ao invés de aceitarem a possibilidade da criação de uma máquina para voar e, com isso, discutir com seus fiéis a capacidade inventiva com que Deus dotou o homem, preferem condenar o padre inventor. No entanto, ao chegar em Mafra, Baltasar e Blimunda são surpreendidos com o fato de que havia sido organizada uma procissão para agradecer a Deus pela passagem do espírito santo sobre a construção do convento dos franciscanos : Isso aqui é a serra do Barregudo, lhes disse um pastor, légua andada, e aquele monte além, muito grande, é Monte Junto. Levaram dois dias para chegar a Mafra, depois de um largo rodeio, por fingimento de que vinham de Lisboa. Andava procissão na rua, todos dando graças pelo prodígio que fora Deus servido fazer, mandando voar por cima das obras da basílica o seu espírito santo. (M.C, p. 207) Outra personagem que é perseguida e condenada pelo Tribunal da Santa Inquisição é a mãe de Blimunda. Sebastiana Maria de Jesus é condenada por ter o dom da vidência e, no romance, tem a responsabilidade de assumir a narração para descrever o auto de fé em que foi condenada: E esta sou eu, Sebastiana Maria de Jesus, um quarto de cristã-nova, que tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento, que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária, amordaçada para que me ouçam as temeridades, as heresias, e as blasfémias, condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola , ( M.C, p. 53-54) Em Memorial do convento, por meio da narração de episódios prosaicos, revela-se a ideologia de uma instituição religiosa preocupada em manter seus privilégios sem importar-se com o modo como seus fiéis estavam sendo conduzidos. Em relação à representação ficcional dos fatos históricos, o romance de José Saramago inova quando comparado ao modelo do romance histórico tradicional. Memorial do Convento obedece aos preceitos característicos do romance histórico scottiano, pois nele há personagens ficcionais que vivem uma história de amor; há personagens históricos que coexistem com os seres ficcionais; os acontecimentos históricos relatados podem ser comprovados; porém, inova quando o enredo encontra-se no passado, mas faz também remissões ao futuro e, principalmente por questionar os fatos históricos, lançando dúvidas sobre os acontecimentos e revelando como os fatos podem ser resultantes de manipulações ideológicas. Por isso, pode-se afirmar que o tratamento dado aos fatos históricos em Memorial do convento, por meio do uso da paródia e da ironia que desmistificam a ideologia vigente durante o reinado de D. João V, tornando os acontecimentos históricos do século XVIII, em Portugal, questionáveis, permitem classificar o romance como metaficção historiográfica. O ENTRELAÇAR DA HISTÓRIA E DA FICÇÃO EM OS SINOS DA AGONIA O romance Os sinos da agonia, de Autran Dourado, revela o universo sociocultural de uma parcela da sociedade brasileira da segunda metade do século XVIII. Ambientado no interior de Minas Gerais, mais precisamente em Vila Rica, o romance apresenta, via narrativa, uma sociedade cuja força de trabalho encontra-se centrada na escravidão e revela que as famílias mais abastadas de Vila Rica estão preocupadas com a decadência prenunciada pela exaustão das minas e pelo endividamento dos donos de minas para com a Coroa portuguesa. Na composição da narrativa há menção a fatos históricos do período do Brasil-colônia, como a escravidão, as causas da Inconfidência Mineira, o modo de punição aplicada aos criminosos e a decadência social e moral ocasionada pelo esgotamento das minas de ouro. O escravo aparece como força de trabalho em várias passagens da obra. É aquele que se embrenha pela mata a serviço de seu senhor, que sonha com a liberdade, que foge para os quilombos, que, sendo cativo, compartilha dos segredos de seus senhores, como Inácia, que ajuda Malvina em seus planos para conquistar o enteado Gaspar Galvão e, ainda, como Isidoro – escravo particular de Januário que, embora almeje a liberdade e tenha pouco valor por ser um “negro fujão – prefere ficar ao lado de Januário seja qual for a circunstância”. Na fala de Isidoro é evidente a amargura, o sofrimento, o desejo de liberdade, mas sua consciência revela que na sociedade escravista, devido à sua condição social, não há lugar para um escravo alforriado, pois ele sempre foi tratado como mercadoria, objeto pertencente a alguém. Os olhos escamados de veludo e estrias de sangue no branco acastanhado às vezes pareciam voltados para dentro, buscavam alguma coisa esquecida no tempo, perdida na escuridão. Preto não carece de sono, disse. Nenhum branco, ninguém nunca respeitou sono de preto. Preto é bicho, coisa pior. Eu sou peça da Mina, branco é quem diz. (S.A, p. 16) 2 Em relação às causas da Inconfidência Mineira é possível perceber o clima de tensão instaurado na sociedade por causa da derrama. Uma das medidas adotadas por Portugal para tentar minimizar os problemas econômicos da metrópole foi a exploração do ouro e das pedras preciosas encontradas no Brasil colônia. Mas a descoberta do ouro e dos diamantes do Brasil, o incremento das exportações de vinhos (estabilizadas pelo tratado de Methuen em 1703) adiam de novo o problema econômico e social, propiciam o prolongamento e reajuste das formas barrocas em Portugal. No tempo de D. João V, com efeito, o ouro brasileiro repete os efeitos das especiarias de Quinhentos: a indústria, ainda mesteiral, definha (excepto em certos ramos sumptuários), no movimento comercial externo destaca-se a exportação visível do ouro, como moeda cunhada ou por interpole (contrabando); [...] (SARAIVA e LOPES, 1996, p 446). A exploração dos minérios brasileiros se estendeu até o século XVIII, trazendo transformações, principalmente, para a região de Minas Gerais. Em 1750, o governo português decidiu estabelecer uma cota sobre todo o ouro explorado na colônia, o que provocou um atraso no pagamento dos impostos, pois o ouro já estava escasso. Em função da dívida contraída, em 1765, instituiu-se a derrama, aumentando os abusos da 2 Todas as citações do romance Os sinos da agonia referem-se a: DOURADO, Autran. Os sinos da agonia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1998, que, no presente trabalho, será referenciado pela abreviatura S.A, seguido do número da página. metrópole sobre os colonos que deveriam pagar a quinta. A preocupação com a derrama fica evidente no episódio em que o coronel Bento Pires questiona Gaspar sobre a agitação que se instaurou na cidade: Alguma má nova, a derrama vem afinal? Não é isso, tranquilizou-o Gaspar, estou falando dos dragões e das ordenanças, dessa festa de mosquetes e varapaus que o Senhor Capitão e o Governador das Minas aprontou para receber o assassino do meu pai. (S.A, p.197). Além da cobrança dos impostos, outra questão citada é a punição dos criminosos. Era comum, na Península Ibérica, a preparação de rituais, nos quais o Tribunal da Inquisição punia os casos de heresia. Esses autos de fé tornavam-se verdadeiras atrações. Outra forma de punição era a chamada morte em efígie, que era aplicada, geralmente, a criminosos foragidos. A morte em efígie consistia na confecção e enforcamento, em praça pública, de um boneco de pano que simbolizava o indivíduo a ser punido. A partir da encenação da morte em efígie, o indivíduo poderia ser assassinado a qualquer momento sem que houvesse punição para aquele que o matasse, pois ele, a partir da morte em efígie, era considerado socialmente morto. Januário é um exemplo disso. Sua morte em efígie foi encenada publicamente em Vila Rica, após ele ser condenado pela morte de João Diogo Gaspar. Autran Dourado usa do pastiche carnavalesco ao narrar o espetáculo da morte em efígie de Januário, mostrando toda a pompa da preparação, a euforia das pessoas, a aglomeração na praça, as roupas de gala, a publicação do decreto em praça pública, reconstituindo, na vila, a mesma atmosfera dos rituais praticados em Portugal pelo tribunal da Inquisição nos casos de condenação por heresia. Embora Januário não tenha sido condenado pelo tribunal da Inquisição, e sim pela justiça criminal, por ter cometido o assassinado um potentado, o que, indiretamente, era considerado um crime de lesa-majestade, o comportamento dos moradores e a preparação para a encenação assemelha-se ao que acontecia nos autos de fé. E de manhã bem cedinho, a cidade engalanada e festiva como se fosse um dia de soberba alegria e não de macabra ópera e condenação, tropa municiada com a pólvora e as doze balas do preceito, os sabres areados com esmeril, brilhante ao sol da manhã que já vencera as brumas da madrugada […] (S.A, p. 25). Outro fato histórico relatado em Os sinos da agonia é a decadência moral e econômica, revelada por meio das personagens femininas que se casam por interesse. Malvina é um exemplo desse fato, pois não obedece à mãe e acaba por roubar o noivo da irmã, motivada apenas pelo interesse de ascensão social que o casamento com um velho rico pode lhe proporcionar. Aliás, o casamento por interesses não ocorre, apenas, com Malvina. Ana, a filha do Coronel Bento Pinto Cabral, também tem seu enlace acordado entre o pai e Gaspar Galvão para resolver a situação financeira da família. Essa forma de aliança não visava celebrar a união entre duas pessoas que se amavam, mas fazer prevalecer a vontade dos pais, sobretudo, para assegurar a situação socioeconômica das famílias. Segundo Gilberto Freyre (2003), as mulheres tinham uma função social a ser cumprida, por isso delas se esperava a submissão ao poder patriarcal. Desse modo, tanto Ana quanto Malvina se casam em nome da manutenção econômica da família, mas Malvina não faz por obediência e sim por interesses próprios, para fugir da decadência econômica. Quem mais escutava, porém era Malvina. Os olhos lumearam, deitavam chispas. Sim, nada de castelo de armas, de mil pretos espingardeiros, pretos só os de serviço, pensou. Um sobrado, um sobrado de teto apainelado, e não aquela casa deles de esteira barriguda. Tudo pintado na mil perfeição. Na melhor rua. E as baixelas de prata e ouro, as jóias e vestidos custosos, as sedas e veludos, as cambraias e holandas, os damascos e brocados. Já se via no espelho, o penteado alto, as plumas, as jóias refulgentes, a trunfa enfeitada de fios de pérola. Malvina, como o velho, desvairava. (S.A, p.76) Os dois casamentos revelam uma sociedade decadente. A decadência das famílias mais abastadas pode ser notada quando o narrador, ironicamente, comenta que aquilo que mais interessa ao pai de Malvina é casar as filhas com um magnata do ouro e pela reação que ele tem ao saber que João Diogo é um homem de posses. No caso de Ana, a decadência da família é revelada por meio da descrição de sua casa de suas roupas. Gaspar se lembrou de que Ana não andava mais de jóias, os vestidos sempre os mesmos. Se tudo acabasse bem, se nada hoje acontecer, ia apressar o casamento. Do jeito que as coisas iam Bento Pires acabava mesmo aceitando receber dele as alfaias e o enxoval da noiva, o que seria uma vexação para homem antes tão bem de vida. (S.A, p. 193) Essa decadência, várias vezes reiterada, acontece em função do exaurimento das minas e, consequentemente, do prenúncio do fim do ciclo do ouro, período em que a extração do metal era a atividade econômica mais importante da colônia. Com o exaurimento das minas e a quebra na produção, famílias, que se mantinham à custa da exploração do ouro, perdem sua valiosa fonte de sustento. João Diogo Galvão é um dos poucos personagens que se mostra precavido, pois, prevendo a decadência, toma a decisão de investir na criação de gado. A pecuária teve início nas proximidades dos engenhos no Nordeste, mas foi, principalmente, nas regiões do Piauí, Maranhão, Rio Grande do Norte e Ceará que os criadores de gado se estabeleceram, desenvolvendo outra atividade econômica importante na história da sociedade brasileira. Assim, João Diogo Galvão, em uma região na qual o principal meio de produção era o ouro, inova, importando o modelo pecuário nordestino, o que lhe garante, na contramão dos poderosos da região, tornar-se um potentado e manter a fortuna. Embora haja menção a fatos históricos, não se pode afirmar que o romance Os sinos da agonia seja um romance histórico tradicional. O texto apresenta características do romance histórico tradicional, como: o enredo ancorado num tempo passado; a presença da história de amor com final trágico e a presença de protagonistas puramente ficcionais; porém, não há citação de datas e nem de nomes de personagens históricos. As questões históricas são colocadas apenas para dar suporte às personagens, reafirmando o passado por meio do clima de suspense que envolve a vida e o fim trágico de Januário e Malvina. Em Os sinos da agonia, o passado se faz presente, mas não segue o modelo do romance histórico tradicional elaborado por Walter Scott. O romance de Autran Dourado aponta para uma nova forma de tratamento com os fatos históricos, o que leva a perceber que, no século XX, o romance histórico passa por uma fase de transição. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a leitura comparativa das obras conclui-se que, tanto em Memorial do convento (1982), do escritor português José Saramago, quanto em Os sinos da agonia (1974), do escritor brasileiro Autran Dourado, temos escritores contemporâneos que voltam seus olhares para o século XVIII e usam os fatos históricos do referido período para ambientar suas personagens. Em Memorial do convento, registra-se de modo irônico, os acontecimentos ligados à corte de D. João V, em Lisboa, mostrando a dominação exercida pela Instituição religiosa sobre a nobreza e sobre o povo, em defesa dos interesses da Igreja. Em Os sinos da agonia, o mesmo século é retratado, registrando-se fatos importantes para a vida da colônia portuguesa na América, mais especificamente em Vila Rica. Desse modo, pode-se afirmar que a história registrada se cruza, pois a metrópole está endividada, como mostra o romance de Saramago e é na colônia que se encontra a possibilidade da solução dos conflitos de ordem econômica por meio da extração do ouro, como mostra o romance de Autran Dourado. Portanto, os dois autores, resgatam fatos históricos do século XVIII a partir da contemporaneidade, reconstroem ficcionalmente acontecimentos importantes tanto para a sociedade portuguesa quanto para a colônia e, também, optam pelo gênero histórico. Ao optar pela relação literatura e história, Autran Dourado e José Saramago apontam para os novos rumos do romance histórico. Em Os sinos da agonia, Autran Dourado retoma o passado de Vila Rica e da colônia, por meio de alusões ligadas ao cotidiano das personagens, fazendo com que o romance não se prenda ao molde tradicional e apontando um novo direcionamento para o resgate do passado. E, em Memorial do convento, romance escrito oito anos depois de Os sinos da agonia, José Saramago retoma o passado da sociedade portuguesa, resgatando as características do romance histórico tradicional, mas acrescenta-lhe o questionamento, a reflexão sobre os fatos históricos, o que caracteriza uma nova modalidade de tratamento com o histórico, denominado de metaficção historiográfica, segundo Linda Hutcheon. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. O novo romance histórico brasileiro. Via Atlântica, São Paulo, n.4, out. 2000. p. 168-176. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In:____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.222-234. DOURADO, Autran. Os Sinos da Agonia. 5 ed. São Paulo: Difel, 1981. DOURADO, Autran. Os Sinos da Agonia, romance pós-moderno. Revista USP. São Paulo, n.20, p. 11924, 1993-1994 HUTCHEON, Linda. .Poética do pós-modernismo: História, teoria e ficção. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JAMESON, Frederic. A lógica cultural do capitalismo tardio. In: Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 1997. p. 27-79. SARAMAGO, José. Memorial do convento. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1996. LE GOFF, Jacques. História e memória. (Tradução de Bernardo Leitão, Irene Ferreira e Suzana Ferreira Borges). 4. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. SARAIVA, Antonio José e LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. Porto: Editora Porto, 1996. Entre a resistência e a rendição: uma leitura do imigrante alemão em A ferro e fogo Elisangela Redel (UNIOESTE) Rita Felix Fortes (UNIOESTE) RESUMO: Embora pouco explorada, a temática da imigração alemã na literatura brasileira ganhou nova roupagem a partir da obra A ferro e fogo, de Josué Guimarães, composta por A ferro e fogo I: tempo de solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975). A proposta deste trabalho, partindo do aporte teórico de Kristeva (1994), Bhabha (2005) e Bernd (2010), é discutir como Josué, ao se ater à saga da imigração alemã no Sul do Brasil, confere lugar mais descentralizado às personagens alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de enfrentamento das adversidades, de resistência face à terra hostil, de conflitos e de integração à cultura brasileira. O escritor rio-grandense soube se valer de uma visão dialética da realidade, posto que funde com muita propriedade as adversidades de uma região de vazios demográficos e a trágica e solitária existência do imigrante na luta pela sobrevivência. É relevante na obra a inserção espacial da mesma na fronteira movediça que coloca em contato/conflito as culturas de índios, portugueses, castelhanos e imigrantes. PALAVRAS-CHAVE: A ferro e fogo; imigração alemã; resistência; solidão. RESUMEN: Aunque poco explorado, el tema de la inmigración alemana en la literatura brasileña gañó nuevo ropaje a partir de la obra A ferro e fogo, de Josué Guimarães, compuesta por A ferro e fogo I: tempo e solidão (1972) y A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975). La propuesta de este trabajo, basado en el aporte teórico de Kristeva (1994), Bhabha (2005) y Bernd (2010), es discutir cómo Josué, al prenderse a la saga de la inmigración alemana en el sur de Brasil, confiere lugar más descentralizado a los personajes alemanes, cuyas trayectorias oscilan entre ejemplos de enfrentamiento de las adversidades, de resistencia frente a la tierra hostil, de conflictos y de integración a la cultura brasileña. El escritor rio-grandense supo valerse de una visión dialéctica de la realidad, ya que fusiona con mucha propiedad las adversidades de una región de vacíos demográficos y la trágica y solitaria existencia del inmigrante en la lucha por la supervivencia. Es importante, en la obra, la inserción espacial de ella en la frontera movediza que pone en contacto/conflicto las culturas de indios, portugueses, españoles e inmigrantes. PALABRAS CLAVE: A ferro e fogo, inmigración alemana, resistencia, soledad. O CONTEXTO DA IMIGRAÇÃO ALEMÃ PARA O BRASIL A imigração dos alemães para o Brasil se deu a “ferro e a fogo” – como muito apropriadamente compreendeu Josué Guimarães – pois as continências econômicas e sociais na Alemanha e em boa parte da Europa praticamente os obrigaram a emigrar para o continente americano. O Brasil que, desde o início da colonização, sempre recebeu muitos colonizadores portugueses, passou a ser o destino de milhares de imigrantes a partir do primeiro quartel do século XIX. Efetivamente, a imigração alemã para o Brasil teve início em 25 de julho de 1824 e as primeiras levas de imigrantes se instalaram, provisoriamente, na Real Feitoria do Linho Cânhamo3, no Faxinal da Courita, à margem sul do Rio dos Sinos, onde se situa o município de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. No início da imigração, os imigrantes foram recrutados em diversas regiões da Alemanha, agenciados pelo Major Antonio Schaeffer, contratado pelo governo imperial brasileiro. Além dos colonos destinados à agricultura, também foram recrutados soldados e mercenários, necessários para garantir a segurança do país, recémindependente, visto que estava em curso a disputa pela província Cisplatina (Uruguai), que1830, quando o agenciamento de imigrantes foi proibido e só retomado em 1845, perdurando até meados de 1950. A legislação imigratória do início da colonização partiu do objetivo de povoamento de vazios demográficos: momento histórico/ideológico em que se queria transformar o Brasil em um país moderno, de imigração e branco, já que a população – seja a nativa, sem a vinda através da violenta escravidão negra – era considerada incivilizada e representava um modelo econômico nômade e retrógado (SEYFERTH, 2002).4 Nesse sentido, parece que a substituição de negros por brancos no território brasileiro estava vinculada à percepção de que ... o capital investido no tráfico poderia ser usado positivamente, para chamar a imigração branca livre e industriosa que daria ao país cidadãos exemplares e ao imperador súditos fiéis. Sem qualquer referência à cor, os escravos são desqualificados como “trabalhadores estúpidos”, “brutos” e “precários” (SEYFERTH, 2002, p. 123). 3 O museu histórico Visconde de São Leopoldo contempla toda a história da imigração alemã no Rio Grande do Sul e preserva para visitação a Casa da Feitoria, ou Casa do Imigrante, criada em 1788 pelo governo português, e que serviu de abrigo para os primeiros imigrantes alemães que lá aportaram. A Real Feitoria do Linho Cânhamo recebeu este nome em virtude da produção do linho cânhamo, matéria-prima retirada de plantas ricas em fibras têxteis, usadas, na época, para velas e cordeis de navios portugueses. Site do museu disponível em: <http://www.museuhistoricosl.com.br/>. 4 Seyferth (2002) esclarece que, com a Lei das Terras e a Lei Euzébio de Queirós, a presença de negros e índios no debate sobre a colonização foi subtraída, uma vez que esses eram considerados inaptos para o trabalho livre como pequenos proprietários. O império brasileiro discutia sobre as mudanças necessárias para transformar o Brasil num país “branco” e moderno. Por isso, a exclusão “do índio, do negro e do mestiço do discurso do colono ideal ocorre em função da ideologia imigratória que, na época, não é [era] percebida como um regime imoral ou ilegítimo, mas simplesmente adjetivada por seu caráter arcaizante, um modelo econômico retrógrado e impeditivo de imigração” (SEYFERTH, 2002, p. 120). De acordo com Seyferth (2002), a escolha por imigrantes alemães não partiu de premissas raciais, dado que estava articulada à classificação do colono alemão como agricultor eficiente, habilidoso no trabalho com a terra e que emigrava em família. No entanto, na Europa da primeira metade do século XIX, já se discutia, há muito tempo, o fator racial. Portanto, parece notório que a noção hierárquica de civilização – subjacente à questão simbólica da epiderme branca como indicativo de superioridade – tinha um intuito racial, embora este não fosse claramente explicitado. Durante a avaliação do estrangeiro “ideal” que preenchesse as terras públicas vazias, produzisse alimento e instituísse uma classe de pequenos proprietários rurais, diferentes nacionalidades foram classificadas de acordo com suas habilidades agrícolas. A exigência era de que o bom colono devesse ter “amor ao trabalho e à família e respeito às autoridades, além de ser sóbrio, perseverante, morigerado, resignado, habilidoso, etc. Alemães e italianos são as nacionalidades mais frequentemente situadas no topo da hierarquia dos desejáveis bons agricultores” (SEYFERTH, 2002, p. 120). Também influenciou no estabelecimento de alemães no Brasil o fato de que Leopoldina, esposa de D. Pedro I – filha de Francisco II, último imperador do Sacro-Império Romano Germânico – por ser uma princesa germânica, providenciou para que o país recémindependente recebesse imigrantes alemães. Por outro lado, no contexto europeu, as guerras napoleônicas, ocorridas entre 1802 e 1815, haviam empobrecido o continente. Também colaborou para a imigração dos alemães o crescimento demográfico da Alemanha, cuja mãode-obra disponível passou a exceder ao que poderia ser absorvido pelo mercado de trabalho, sobretudo dos mais pobres. A título de exemplo, nas regiões do sul e sudoeste da Alemanha, “depois de cada colheita má, principalmente na Badênia e no Palatinado, a fome forçava milhares de sitiantes alemães a emigrarem, tornando-os uma presa fácil de estrangeiros” (GEHSE, 1931 apud WILLEMS, 1980, p. 33). Os minifúndios, como explica Weissheimer (s/d), decorrentes de ininterruptas divisões da terra, apresentavam baixas produções devido à excessiva exploração. A situação foi agravada pelo fato de que, para os camponeses, também não havia emprego nas cidades, nas quais, em consequência da Revolução Industrial – iniciada na Inglaterra no século XVIII – a manufatura, que até então demandara grande mão-de-obra, passou à produção já em processo de mecanização que, além de diminuir a necessidade de mão-de-obra, gerava novas modalidades de trabalho, para as quais os camponeses não tinham qualificação nem preparo. Sob o regime reacionário da monarquia, a administração de territórios também concorreu para o desarraigamento das populações rurais e a imigração de muitas famílias que, sem condições de pagar os impostos, fugiam de sua pátria em busca de novas perspectivas de vida (WILLEMS, 1980). No entanto, ainda de acordo com Willems, muitas vezes as causas da imigração de alemães se restringem a fatores econômicos, apagando o fato de que: “‘frequentemente não eram os mais pobres que emigravam, e a emigração continuava mesmo quando a situação do país já se havia tornado favorável, mais favorável, às vezes, do que a situação do país de imigração’” (FREEDEN; SMOLKA, 1937 apud WILLEMS, 1980, p. 3435). Isto quer dizer que, assim como havia um contingente de imigrantes carpinteiros, ferreiros, artesãos e seleiros – como a personagem ficcional Daniel Abrahão, de A ferro e fogo (1972/1975) – havia outra classe constituída de aventureiros, intelectuais e médicos, como, por exemplo, o Dr. João Daniel Hillebrand, que se tornou, mais tarde, diretor da colônia São Leopoldo e registrou a entrada de todos os imigrantes naquele povoado entre 1824 e 1850 5, aproximadamente. A heterogeneidade cultural dos alemães que aportaram no Brasil era bastante acentuada, levando-se em conta que grande porcentagem de imigrantes deixou a Europa antes de 1871, ano da Unificação da Alemanha. Logo, tentar definir quem/quantos foram os imigrantes alemães que entraram no Brasil é incorrer em terreno movediço, visto que não há como se obter um número preciso de quais países europeus nos quais – em sua totalidade, ou, apenas grupos – falavam a língua alemã, mas pode-se elencar: Áustria, Suíça, Rússia, Luxemburgo, Polônia, Romênia e Hungria, por exemplo. Por isso, as estatísticas sobre o contingente de imigrantes divergem de um autor para o outro e, além de desconsiderarem a migração interna, não chegam a um resultado comum, justifica Seyferth (2007). No caso de São Leopoldo, era predominante o número de imigrantes que vinham da região do Hunsrück e que, devido a determinados processos culturais internos, tal variante absorvia as demais, “... deixando assim a impressão de uma homogeneidade que a princípio não existira (WILLEMS, 1980, p. 38 – grifo nosso). A REPRESENTAÇÃO DO IMIGRANTE ALEMÃO EM A FERRO E FOGO Esta história começa com a chegada, no Rio Grande do Sul, do bergantim Protetor, em 1824, trazendo no seu precário bojo de madeira 38 colonos 5 Disponível em: <http://www.rootsweb.ancestry.com/~brawgw/alemanha/col_SaoLeopoldo.htm>. Acesso em: jan. 2013. alemães destinados à extinta Real Feitoria do Lingo Cânhamo, no Faxinal da Courita, hoje São Leopoldo. Depois deles, outros tomaram o mesmo caminho, trazidos a tanto por cabeça, por um aventureiro internacional, o Major Jorge Antônio Schaeffer. Muitos conseguiram sobreviver. Bem, mas então temos a história de homens e mulheres em solidão que plantaram as suas raízes, a ferro e a fogo, nas fronteiras movediças dominadas por castelhanos, índios, tigres, caudilhos e portugueses (grifo do autor). É assim que Josué Guimarães inicia a trilogia inacabada – visto que o terceiro volume, que seria sobre os Mucker, não foi escrito e publicado – A ferro e fogo I: tempo de solidão (1972) e A ferro e fogo II: tempo de guerra (1975), sobre a temática da saga da imigração alemã no Rio Grande do Sul. O autor situa a narrativa no início em 1824, ano que teve início o processo migratório no Brasil, com a fundação da colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul. A obra foi escrita em Portugal, quando o autor estava exilado em razão do Golpe Militar no Brasil em 1964, e narra a trajetória da família de imigrantes alemães, Daniel Abrahão Lauer Schneider e sua esposa Catarina Klummp Schneider. As condições de sobrevivência de ambos eram miseráveis, o que os levou a aceitar a proposta de trabalho de seu conterrâneo Gründling, um abastado comerciante que lhes ofereceu terras a perder de vista na Estância de Jerebatuba, em troca de receber e armazenar mercadorias. Daniel Abrahão e Catarina fogem de São Leopoldo, mas depois descobrem que foram enganados, pois as mercadorias se tratavam de armas contrabandeadas do Uruguai, em um momento conturbado em que se iniciava a Guerra Cisplatina. Assim, quando a tropa castelhana invade a fazenda dos alemães, Catarina esconde seu marido dentro de um poço, onde a personagem permanecerá durante anos. Nos moldes do romance histórico, a narrativa faz remissão a episódios históricos, como a Guerra Cisplatina (1825-1828), a Revolução Farroupilha (1835-1845) e a Guerra do Paraguai (1864-1870). Entretanto, as referências a estes fatos históricos se dão com a liberdade de uma obra ficcional, portanto, não têm compromisso factual com a história. Tais dados ajudam a construir o cenário histórico e social no romance – no qual aparecem nomes de bergantins, navios e pessoas que realmente existiram, sendo este o caso do médico Hillebrand e do agenciador Schaeffer. Tais resgates dão verossimilhança ao texto ficcional e criam no leitor a impressão de realidade. Josué Guimarães busca criar a ilusão de tratar-se de uma história real tanto nas referências históricas supracitadas, quanto nas contingências culturais e sociais do início da colonização. Sob a perspectiva microcósmica do cotidiano dos alemães – sobretudo do da família do seleiro Daniel Abrahão Lauer Schneider – o autor opera uma desleitura do discurso historiográfico e literário sobre a temática. O escritor rio-grandense soube se valer de uma visão dialética da realidade, posto que funde com muita propriedade as adversidades de uma região praticamente desabitada e os conflitos do indivíduo em sua relação com o outro, com a sociedade e consigo mesmo. A preocupação de Josué Guimarães, para além de dados históricos regionais e da manutenção de um discurso estereotipado sobre o imigrante alemão, está centrada no homem e na sua trágica existência. Tal como Simões Lopes Neto, Josué Guimarães trabalha com a matéria regional, mas supera a ficção regionalista. Em uma trama pautada tanto nas dificuldades reais sobre o início da imigração, quanto nos conflitos entre o eu e o outro muito diverso culturalmente, Josué Guimarães resgata a saga do imigrante alemão no Sul do Brasil e confere lugar mais descentralizado – se comparado às obras Canaã e Um rio imita o Reno, nas quais ora os imigrantes alemães são representados como superiores pela raça, ora desprezíveis por serem germanófilos demais – às personagens alemãs, cujas trajetórias oscilam entre exemplos de enfrentamento das adversidades, de luta pela sobrevivência, de resistência diante de uma terra hostil, de coragem, integração ou negação. Tal descentralização se opera, primeiramente, por meio do espaço no romance, que é um entre lugar, uma zona de fronteiras movediças cercada por diversos grupos culturais em contato: índios, portugueses, castelhanos, negros e imigrantes europeus. A ficcionalização de um espaço cultural e étnico tão diverso e conflitante é um elemento fundamental em A ferro e fogo. Ao discutir sobre os traços identitários transnacionais na cultura do Rio Grande do Sul, Cicero Galeno Lopes (2010) aponta que esta foi se formando entre as linhas fronteiriças atuais da Argentina, do Brasil e do Uruguai. E, sobre a noção de transnacionalidade, o autor explica que: como o assinala o prefixo trans, o transnacionalismo implica um processo segundo o qual formações identitárias tradicionalmente circunscritas por fronteiras políticas e geográficas vão além de fronteiras nacionais para produzir novas formações identitárias. [...] O transnacionalismo é a recusa das definições identitárias fechadas (PETERSON, 2008, p. 96 apud LOPES, 2010, p. 362). De acordo com Gonzáles (2010), James Clifford, em Itinerarios transculturales (1999), discute com propriedade sobre a questão das fronteiras como forma particular de deslocamento, pois, em zonas de contato, as identidades diaspóricas, fronteiriças e híbridas “tendem a unir idiomas, tradições, imaginários, sempre de maneira criativa, ‘articulando pátrias em combate, forças da memória, estilos de transgressão, em ambígua relação com as estruturas nacionais e transnacionais’” (GONZÁLES, 2010, p. 112). É desta perspectiva que, também, Homi Bhabha (2005) ressalta que, enquanto inovação teórica e importância política, é necessário “focalizar aqueles momentos ou processos que são produzidos na articulação de diferenças culturais. Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação [...] que dão início a novos signos de identidade...” (BHABHA, 2005, p. 20). Afora o espaço ficcional transnacional, a representação estereotipada e fechada do imigrante alemão é deslocada através do caráter dialético das personagens de A ferro e fogo. Com as personagens Daniel Abrahão, Catarina e Gründling não se abre espaço para uma simplista oposição entre vilão e vítimas, mas para a encenação de a que ponto de penúria e grandeza podem chegar as sociedades e os homens na luta pela sobrevivência dos sonhos, ideais e ambições mais dignos ou comezinhos. A saga corrói e reconstrói, a cada passo, suas duas principais matrizes, a épica e a dramática, numa interessante dobra dialética (MARTINS, 1997, p. 46). Conforme aponta Martins (1997), Gründling não é, apenas, um homem inescrupuloso, preconceituoso e corrupto, mas é, também, sensível e relegado à solidão como todas as outras personagens: ...e que diria eu, meu filho, que estou ficando para semente? Que perdi a minha Sofia [sua esposa] tão cedo [...] que quando voltar para casa vou encontrar quatro paredes vazias, Albino [seu filho] morto, Jorge Antônio [também seu filho] com a sua vida, sei lá [...] me resta pouca coisa na vida (GUIMARÃES, 1975, p. 212). Gründling representa o paradoxo humano, pois, por outro lado, ele se aproxima muito do perfil de Lentz, de Canaã, e de Frau Marta, de Um rio imita o Reno, por ser um sujeito emparedado a preconceitos raciais, e que se mantinha no Brasil com o propósito explícito de explorar o próximo e de enriquecer: “...é preciso que a gente que vem da civilização abra bem os olhos e trate de ganhar dinheiro. É o que importa, meu caro, ganhar dinheiro.” (GUIMARÃES, 1972, p. 16). Assim, o comportamento de Gründling em relação aos negros e aos índios é de exclusão e frieza, visto que ele os descreve como “bastos” para o trabalho braçal e os compara aos animais, reproduzindo o discurso socialmente construído que buscou justificar a relação de opressão e exploração do colonizador europeu sobre o colonizado, do senhor sobre o escravo: “digo a vocês agora que Deus inventou o negro para derrubar mato, cavar terra e carregar água. Não há sol que consiga queimar a sua pele, as patas e as mãos deles tem mais casco que fazem inveja de quanta mula existe por aí [...].” (GUIMARÃES, 1972, p. 7). E continua: “para domar cavalo xucro, camperear, marcar boi, castrar bicho e servir mate, que vocês pensam que o diabo inventou? [...] que para isso o diabo inventou o índio, o bugre, que forma com o cavalo um só corpo ...” (GUIMARÃES, 1972, p. 8). Tal discurso respalda-se na ideologia colonial, cujo objetivo é “apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 2005, p. 124). Tendo-se em vista o contexto histórico e social representado por Josué Guimarães – quando a escravidão ainda estava totalmente legitimada pelo discurso oficial nas colônias – as diferenças de raça, cor e cultura são anuladas num processo automático de recusa por Gründling, que vê ao índio e ao negro como animais. Ou seja, como afirmou Bellei (2000, p. 129), “trata-se de uma questão de sobrevivência cultural e racial em que se torna imperativo ativar narrativas que venham atender ao desejo branco de auto-afirmação” (grifo do autor). Neste sentido, a fala de Gründling alude à conquista violenta da terra americana e à brutalidade colonizadora às quais índios e negros foram submetidos. Pois, ao se afirmar a incapacidade racial e cultural dos “selvagens” e dos negros escravos, está-se afirmando, subliminarmente, que eles não têm o direito de possuir a terra, tampouco que têm direito pleno ao status humano. Esse nível ideológico é sustentado, por exemplo, pelo casamento entre o abastado Gründling e Sofia Spannenberger, uma jovem alemã órfã, abandonada, violentada e miserável – que muito se aproxima das condições de Maria Perutz, de Cana – que, apesar de sua condição econômica, é branca e alemã, ou seja, ela se equipara a ele em relação à condição humana, ao contrário dos negros, índios e demais. Através da Catarina, mulher do seleiro Daniel Abrahão, Josué Guimarães “busca comprovar a relação do europeu com a nova terra: coragem, audácia e integração. É a tentativa de uma raça capaz de exercer o papel de agente civilizador” (MARTINS, 1997, p. 25). Tal integração se revela no amor que a personagem, a despeito das adversidades, nutre pela terra, pelo espaço habitado e construído com o seu trabalho: - E abandonar tudo aqui, sem mais nem menos? As casas, os bichos, as plantas e todo o resto? Isso não, nunca. Depois desse trabalho todo, do sacrifício que se fez. E mais, agora peguei amor a esta terra, ela é minha, força nenhuma me tira daqui - disse Catarina (GUIMARÃES, 1972, p. 34). Para Catarina, a casa e o espaço que ela criou não são apenas espaços físicos e materiais, mas remetem às heranças simbólicas imemoriais herdadas do homem religioso e à imago mundi. No entanto, a despeito de sua força, coragem e do ódio que nutre por Gründling, Catarina não é, apenas, um modelo da mulher matriarca. A construção dialética da personagem se evidencia na cena em que ela se dirigia à casa de Gründling, o compatriota explorador, para matá-lo, e encontra-o levando o caixão de sua esposa, Sofia. Assim, se em Gründling o paradoxo humano se evidencia, o mesmo, de certa forma, também acontece com Catarina, pois seu rancor e ódio, naquele momento, se transformam em piedade, ternura e reconciliação. O que Josué Guimarães discute com propriedade é que ambos, Catarina e Gründling, apesar da rivalidade e das diferenças econômicas e sociais, enfrentavam o mesmo problema: a solidão e a fragilidade do homem diante da vida, e que, portanto, estão acima de qualquer diferença. Ao passar por ela, Gründling parou, os homens que o ajudavam olharam curiosos para ela. Então ele disse: - Não esperava que viesse, não sei como agradecer. Estava magro, olhos vermelhos e inchados, encurvado. Catarina desceu, empurrou para debaixo da almofada do assento o pedaço de cano da espingarda que se deixava entrever. Caminhou até Gründling; ele sem Sofia, ela sem o seu velho ódio. Os dois em solidão. Catarina seguiu ao lado dele, sem uma palavra, olhando duro para frente, com medo de chorar (GUIMARÃES, 1972, p. 237 – grifo nosso). Em A ferro e fogo as relações de conflito entre as personagens se invertem, pois nota-se que os inimigos, neste caso, pertenciam ao mesmo grupo: Catarina e Gründling eram alemães que, de modos diferentes, buscavam melhores condições de vida e de ascensão econômica no Brasil. Por outro lado, a relação de Catarina com o índio Juanito – que lhe foi dado por Gründling, quando se deslocaram de São Leopoldo para a Estância de Jerebatuba – é harmônica e de aceitação, pois, a sobrevivência supera os preconceitos étnicos e raciais. Assim, não obstante haverem diferenças, Juanito tornara-se integrante da família de imigrantes alemães: “Catarina [...] trouxe para Juanito meio pão de milho aberto em dois, dentro dele uma grossa fatia de pernil. Disse em português: Ceji boa, ficando boa. Ele assentiu com a cabeça e começou a comer devagar, sem fome” (GUIMARÃES, 1972, p. 66). O autor mostra que o processo de aculturação realmente acontecia no contato dos grupos de imigrantes com a cultura local, como exemplificam a assimilação do hábito do chimarrão, do churrasco e do charque pelos alemães, por exemplo: “Queres alguma coisa mais? - Unglaubich6, mas sinto vontade de tomar um mate. A gente se acostuma com tudo. 6 Tradução: Inacreditável. Minutos depois Catarina fazia descer no balde uma cuia já preparada e uma pequena chaleira de água quente...” (GUIMARÃES, 1972, p. 43). No caso de Daniel Abrahão, as causas que o levaram ao estado de deterioração de sua condição mais puramente humana foram as contingências econômicas extremamente precárias às quais foram submetidos muitos dos imigrantes que se estabeleceram no Brasil no início do processo migratório. Daniel aguardava, ao lado de outros alemães, o recebimento de sementes, ferramentas, animais e terras, conforme assegurava o regulamento imigratório do Império. Tais condições fizeram com que Daniel aceitasse a oferta de seu conterrâneo, Gründling – amigo do Major Jorge Antonio Schaeffer – um comerciante bem sucedido, instalado em Porto Alegre, que designou Daniel Abrahão à função de receptor de mercadorias contrabandeadas da Banda Oriental (Uruguai), enganando-o com promessas de fartura em terras a perder de vista, longe do ataque de “bugres” e feras: “a terra da zona da Feitoria era pocilga para negro, e até então só negro vivera ali, muito justo, o que não tinha explicação era ele, um Schneider, mais a mulher e o filho, confinados naquele estábulo, bem que mereciam um destino melhor” (GUIMARÃES, 1972, p. 13). Contudo, a família Schneider foi submetida a contingências trágicas, como ocorreu historicamente com muitos imigrantes. Daniel Abrahão não tinha conhecimento de que as mercadorias descarregadas em sua estância eram, de fato, armas, justamente no momento em que uma grande guerra se iniciava, entre o Brasil e Argentina pela posse da Província Cisplatina. A partir daí o leitor acompanha a ruptura muito profunda da personagem que, graças aos cuidados da sua mulher Catarina, se esconde em um poço sem saber que lá seria para sempre sua morada. O despersonalização de Daniel se intensificava à medida que a tortura psicológica o confrangia ao delírio existencial, sob o medo mais natural do homem frente à morte. O ódio e a dor lancinantes o mortificavam ao ouvir os gemidos de soldados violentando sua mulher. Água pelo queixo, impotente, a corda solta – restara para ele cravar as unhas nos vãos das pedras, morder forte os lábios e chorar de ódio, de soluçar. Num silêncio quase igual ao da mulher que estava sendo de outro. Depois mais nada, apenas um retinir de esporas de distanciando (GUIMARÃES, 1972, p. 39). Ao permanecer durante anos escondido no poço, Daniel Abrahão adquire, ao longo do tempo, feições de animal e arquiteta outro mundo para si, mais suportável e seguro entre as paredes estreitas, escuras e úmidas e o alçapão que o separa do mundo real. A imigração de alemães para o Brasil passa a ser representada enquanto experiência traumática, dado o surto psicótico provocado na personagem em vista do choque com a alteridade do outro, dos acontecimentos de desespero, violência e morte que vivenciou (FERREIRA; GIL, 2007). Assim, as adversidades encontradas no Brasil provocam um desdobramento psicológico na personagem, transfigurando-a em um duplo estrangeiro: enquanto alemão que emigrou para outro país e enquanto desconhecido de si mesmo (KRISTEVA, 1994). O poço no qual Daniel Abrahão reside é a fronteira dentro da fronteira, é uma linguagem alegórica de crítica e de denúncia, é memória das mazelas sociais, pois as “formas de existência social e psíquica podem ser melhor representadas na tênue sobrevivência da própria linguagem literária, que permite à memória falar” (BHABHA, 2005, p. 34). Ou seja, as experiências traumáticas e conflituosas advindas com a imigração emergem do buraco, imagem presente no romance que traz à tona as vozes esquecidas e não representadas do passado. O poço é a imagem discursiva que dá voz ao silêncio de Daniel Abrahão, é uma forma de expressão do acontecimento histórico da imigração alemã para o Brasil, visto como instância interna – a psíquica – e externa, política, social e governamental. CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência da imigração é o distanciamento necessário que leva à conscientização da pluralidade cultural, tornando-se, desta perspectiva, uma experiência positiva. Josué Guimarães desenvolve uma reflexão diferente sobre a problemática migratória, assumindo postura crítica em relação à visão que escamoteia a experiência dolorosa e traumática do sujeito migrante, pois, se por um lado o migrante é significativo/representativo para o discurso do entre-lugar, por outro lado, desconsidera-se que ele, muitas vezes, não habita lugar nenhum socialmente e psiquicamente, explica Olivieri-Godet (2010). A autora, ao fazer tal reflexão sobre o ensaio Réflexions sur l’exil, de Edward Said, afirma que a cultura moderna elegeu a migração, o exílio, a errância e o nomadismo como temas enriquecedores, banalizando as mutilações causadas às vítimas. A autora ainda acrescenta que, se a dimensão estética de tais temáticas fascina, ela não pode apagar a experiência trágica de deslocamentos abruptos e violentos de populações: “a dimensão estética do exílio não apaga a angústia, o sofrimento da perda, o horror a que estão sujeitas as massas humanas expatriadas, desenraizadas em nosso tempo” (OLIVIERI-GODET, 2010, p. 196-197). Portanto, é às adversidades enfrentadas no Novo Mundo que Josué Guimarães se reporta ao mostrar que o estabelecimento de imigrantes no Brasil se deu a ferro e a fogo. Relegados a própria sorte, coube aos primeiros imigrantes europeus do século XIX povoar os vazios demográficos e sobreviverem, visto que a vida destes no Brasil foi marcada pelo abandono do governo – que não cumpriu, de imediato, com a medição da terra e a entrega de animais, ferramentas, sementes e certa quantia em dinheiro, conforme prometido na Alemanha –, pela miséria e pela violência com que foram recebidos pelos habitantes da região: “os bugres andavam cada vez mais atrevidos, nem esperavam a noite para atacar. Ela mesma vira um bugre morto por Franz Bohrer, o corpo ainda quente. Matavam homens e mulheres, raptavam as crianças, saqueavam, queimavam as choupanas” (GUIMARÃES, 1972, p. 109). Como afirma Octavio Paz em Signos em rotação (2003, p. 126), “uma literatura nasce sempre frente a uma realidade histórica e, frequentemente, contra essa realidade”. Dessa forma, faz sentido a citação de Vargas Llosa nas primeiras páginas de A ferro e fogo: escribir novelas es um acto de rebelión contra la realidade, contra Dios, contra la creación de Dios que es la realidade. Es uma tentativa de corrección, cambio o abolición de la realidade real, de su sustición por la realidade fictícia que el novelista crea. Este es um dissidente: crea vida ilusória, crea mundos verbales porque no acepta la vida y el mundo tal como son (o como cree que son). La raiz de su vocación es um sentimento de insatisfacción contra la vida; cada novala es um deicídio secreto, um asesinato simbólico de la realidade. VARGAS LLOSA: García Márquez, História de um Deicídio. Levando-se em conta o pensamento da época representado por Josué Guimarães – quando ainda não se discutia sobre fronteira e alteridade – a problemática vivida por Daniel Abrahão parece estar relacionada ao discurso dos direitos humanos, consolidados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, criada em 1789. Segundo Kristeva (1994), o documento, longe de ser a expressão fiel da igualdade entre os homens, estabelece a dicotomia cidadão versus homem, fazendo com que o indivíduo se torne mais ou menos homem de acordo com a sua cidadania. Sem ela, ele é subtraído de seus direitos enquanto pessoa e de seu lugar em um mundo de fronteiras em que se acentua, cada vez mais, a dificuldade de viver com o outro e com as adversidades. REREFÊNCIAS BELLEI, Sérgio Luiz Prado. Monstros, índios e canibais: ensaios de crítica literária e cultural. Florianópolis: Insular, 2000. BHABHA, Homi. O Local da Cultura. Trad. Miriam Ávila et al. Belo Horizonte: UFMG, 2005. 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A aculturação dos alemães no Brasil: estudo antropológico dos imigrantes alemães e seus descendentes no Brasil. 2. ed. São Paulo: Nacional, 1980. As “Sagas do País das Gerais”, de Agripa Vasconcelos Maurício Cesar Menon (UTFPR Campo Mourão/Bolsista de Pós-Doutorado PDJ/CNPQ) [email protected] RESUMO GERAL: Entre as décadas de 50 e 60, no século XX, o escritor mineiro Agripa Vasconcelos escreve uma série de seis romances históricos, cada qual correspondente a um ciclo de importância econômica, social ou cultural não só na formação do estado de Minas Gerais, mas também na do Brasil. Por intermédio dessas obras, o escritor revisita o passado desde o período colonial até o republicano, compondo um grande painel repleto de episódios e personagens que emergem da História e se juntam a outros provenientes da tradição oral, ou oriundos da própria criação ficcional do autor. Embora cada romance possua um título diferente e não haja uma integração diegética entre eles como se vê em O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, todos foram publicados no ano de 1966 pela editora Itatiaia, a fim de se estabelecer a idéia de conjunto intitulada “Sagas do País das Gerais”. Este trabalho visa à apresentação desse conjunto, evidenciando alguns procedimentos narrativos comuns em todos esses romances, como também revelando o silêncio do cânone literário oficial em torno da obra do escritor. PALAVRAS-CHAVE: romance histórico; narrativa; cânone; conjunto ABSTRACT: Between the 50’s and 60’s , in the twentieth century , Agripa Vasconcelos writes a series of six historical novels , each corresponding to a cycle of economic, social or cultural importance. These cycles were important in the history not only in the state of Minas Gerais, but also in Brazil. Through these works , the author revisits the past from the colonial period to the Republican , composing a large panel full of episodes and characters that emerge from history and join others from the oral tradition , or arising out of his own fictional creation. Although each novel has a different title and there is no diegetic integration between them as seen in O Tempo e o Vento, by Erico Verissimo , all were published in 1966 by publisher Itatiaia in order to integrates them, under the title " Sagas do País das Gerais ". This work aims at presenting this set, showing some common narrative procedures in all these novels, as well as revealing the silence of the official literary canon around the writer’s work. KEY WORDS: historical novel; narrative; canon; series AGRIPA VASCONCELOS E O CÂNONE LITERÁRIO NACIONAL7 Adentrar os limites da história literária é, quase sempre, pisar em um solo árido e minado. Árido pelo extremo exercício de paciência e desgaste que a matéria requer, e minado pelos muitos conceitos e também preconceitos nele existentes. Tal fato, porém, não é mérito apenas da história produzida no Brasil, mas também de qualquer história estrangeira que se proponha a sistematizar um cânone. Essa afirmação, contudo, não pretende desmerecer, de maneira alguma, o trabalho e os anos de pesquisa de análise e de recolha de material gastos pelos historiadores que já imprimiram e ainda imprimem sua marca nos estudos literários; o objetivo é demonstrar como o assunto torna-se emblemático, quando do questionamento acerca das inevitáveis lacunas observadas nos cânones. Não se podem desvencilhar quaisquer discussões que envolvam o cânone literário e a história literária de qualquer país, da questão da autoridade do historiador e do método por ele utilizado, por se tratarem de elementos cruciais que interferem tanto na escolha quanto na busca do material analisado. Nesse sentido, afirma Alamir Aquino Corrêa (1995): Mais que o simples apontamento de datas e fatos, a história literária está sujeita a um contexto do historiador, que escolhe ou filtra o material a ser historiado. Não há história, em qualquer área do conhecimento humano, que não deixe transparecer que ‘value judgements are implied in the very choice of materials’ (Wellek e Warren 1949: 32). A separação do joio do trigo se dá a partir da consciência do historiador daquilo que é bom ou ruim, ou seja, uma escolha de valores. Basicamente, ele utiliza-se de princípios aceitos pela comunidade, que lhe conferem uma condição de autoridade. (p. 323,324) Nesse filtrar do material a ser historiografado, evidencia-se o caráter pessoal da escolha proveniente de valores, conceitos, ideologias e formação intelectual inerentes à figura do historiador. Em vista disso, torna-se impossível tentar tomar uma história literária como completa, uma vez que ela sempre será seletiva e apresentará variáveis – algumas histórias da literatura compreendem maior abrangência de abordagem que outras. 7 Parte deste texto foi retirada do segundo capítulo de minha tese de doutorado, defendida na UEL no ano de 2007. Nesse capítulo foi feita uma reflexão acerca do cânone literário, sua autoridade e seus preconceitos, portanto, como se faz pertinente essa reflexão neste trabalho, utilizei-me de alguns parágrafos presentes na tese, atualizando-os, reparando-os, como também neles inserindo o recorte aqui pretendido. Um caso notório de análise seletiva, a título de exemplificação, ocorre nesse filtrar do material a ser historiografado, evidencia-se o caráter pessoal da escolha proveniente de valores, conceitos, ideologias e formação intelectual inerentes à figura do historiador. Em vista disso, torna-se impossível tentar tomar uma história literária como completa, uma vez que ela sempre será seletiva e apresentará variáveis – algumas histórias da literatura compreendem maior abrangência de abordagem que outras. Um caso notório de análise seletiva, a título de exemplificação, ocorre na história literária brasileira em relação ao poeta Gregório de Matos Guerra (1636 – 1696)8; Sílvio Romero e Araripe Júnior celebram o poeta como a grande personalidade do barroco nacional, enquanto José Veríssimo assinala uma série de restrições a esse respeito. Na esteira desses críticos e historiadores do século XIX, caminharam também os do século XX. A discussão atinge um ponto culminante quando da publicação de O seqüestro do Barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Matos (1989), livro no qual Haroldo de Campos questiona alguns pareceres de Antonio Candido ao tratar do poeta baiano na Formação da Literatura Brasileira (1957). O que vale notar, aqui, é que Antonio Candido imprime seus julgamentos valendo-se de um filtro – sua visão de literatura nacional enquanto formação de um “triângulo ‘autorobra-público’, em interação dinâmica, e de uma certa continuidade da tradição” (CANDIDO, 2000, p. 16). Dentro dessa perspectiva, portanto, é que ele traça seus apontamentos a respeito do barroco no Brasil, bem como do poeta. O próprio Candido, contudo, em vista a algumas críticas ao seu trabalho, imprime no prefácio da 2ª edição de sua obra historiográfica que “(...) há várias maneiras de encarar e de estudar a literatura” (p. 15) – o que reconhece lucidez de sua parte no que diz respeito às múltiplas possibilidades de se abordar um cânone, como também resguarda o valor do seu trabalho. Em vista a essas constatações há de se levantar um questionamento: será possível haver uma história da literatura imparcial, que contemple as suas mais diversas manifestações? A resposta certamente é negativa, pois a escrita da história passará, antes, pelo olhar do historiador que não pode se eximir de sua própria pessoa, por mais que tente, no ato da escrita. 8 A data de nascimento do poeta é discutível, tendo em vista que alguns historiadores assinalam o nascimento no ano de 1633. Em um sentido mais específico, pensando apenas na história da literatura brasileira, seria praticamente impossível um historiador conseguir abraçar todas as manifestações inerentes à literatura produzida no Brasil em sua obra; isso se deve, em parte, à extensão territorial – fato que impede, por vezes, a coleta de material – como também às dificuldades de preservação da memória nacional existentes no país. Sendo assim, apenas uma tarefa conjunta seria capaz de reunir material suficiente para alcançar, não de forma completa, o objetivo de se produzir um trabalho que contemplasse as mais diversas manifestações literárias dentro dos mais variados gêneros, no Brasil. Talvez, ao se pensar nisso, possa ser citada a volumosa obra organizada por Afrânio Coutinho como grande esforço de compilação de olhares sobre a literatura no Brasil, constituindo-se, por isso, numa das mais abrangentes já feitas. Tal obra, todavia, só se tornou possível devido à reunião de esforços de vários críticos e historiadores que deram a sua contribuição na escrita de muitos dos capítulos. Não se pode negar, também, a importância, nesse sentido, dos trabalhos desenvolvidos dentro dos grupos de pesquisa (nem sempre tão visíveis) por pesquisadores docentes e discentes da área de Letras nas várias instituições de ensino superior Brasil afora. Atualmente, não são poucos os pesquisadores que têm olhado para a história e para o cânone nacional numa perspectiva de revisão e compreensão do mesmo, atendendo, assim, a necessidades que passaram despercebidas ou, por vezes, nem foram entendidas como tais. Cite-se como exemplo de esforço conjunto o trabalho de resgate das escritoras brasileiras do século XIX, sob a liderança da professora Zahidé Lupinacci Muzart. O tratamento dado às escritoras do século XIX pelos historiadores, mesmo os mais empenhados, era parco ou, como na maioria dos casos, nulo. Era mister, por isso, levantarem-se vozes que tirassem do olvido tais escritoras e suas respectivas obras, a fim de se trazer lume a essa matéria – abre-se, com isso, um novo capítulo de estudos nas Letras nacionais. As lacunas que ficaram abertas na história quase sempre dizem respeito àquilo que esteve marginalizado em termos de literatura, fato que é totalmente compreensível ao se constatar que a maior parte das histórias literárias feitas no Brasil é produzida baseando-se numa concepção estética das obras, o que, de fato, constitui-se como um dos fatores mais relevantes para a análise literária, porém não como o único fator existente. Sendo assim, gêneros ou subgêneros, como se queira chamar, como: ficção científica, terror, narrativa policial entre outros, caíram e ainda caem no desprestígio de uma parcela considerável dos estudiosos de literatura. Em seu ensaio sobre o Direto à Literatura, CANDIDO expõe a seguinte ideia: Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. (1995, p. 232) No mesmo texto de que decorre a citação acima, o autor, falando sobre o processo de humanização por meio da literatura, reconhece que “A obra de menor qualidade também atua, e em geral um movimento literário é constituído por textos de qualidade alta e textos de qualidade modesta, formando no conjunto uma massa de significado que influi em nosso conhecimento e nos nossos sentimentos” (p.251). A postura adotada pelo crítico sobre o tema, porém, nem sempre é seguida por outros historiadores ou estudiosos da literatura que se colocam de forma arbitrária e autoritária frente à produção literária. Cid Vale Ferreira, em breve ensaio sobre o poeta João Cardoso de Menezes e Souza, inicia o seu texto com uma afirmação tão contundente quanto verdadeira: Nos países marcados pela escassez de leitores, o ofício poético desafia a peneira do tempo sob o iminente risco do esquecimento. A desatenção da crítica pode cavar a cova de quaisquer poetas, mas seu desabono – pá de cal – encobre-os sob conceitos repulsivos de difícil remoção. No Brasil, qualquer estante de biblioteca pode confirmar que, à margem de cada autor consagrado, espreitam centenas de talentos desacreditados, relegados pelos mais diversos – às vezes torpes – motivos (FERREIRA, 2002, p. 201). A marginalização de textos e de autores revela a face autoritária da história literária que legitima determinadas obras ao mesmo tempo em que relega parte considerável à periferia. Decorrente disso tem-se a canonização de autores e de obras que, por sua vez, passam a ser quase que inquestionáveis, pois aparecem como paradigma ou como exemplos da grande arte. Nesse sentido adverte KOTHE (2000) “A história da literatura é escrita como se o cânone fosse puro abrigo de talento, e como se todo talento fizesse parte desse panteão acadêmico” (p.22). Aquilo que, muitas vezes, a história literária não contempla é feito, em alguns casos, por estudos sobre literatura que se detêm de forma particular a pesquisar um recorte bem definido de objeto. Vêm à tona, então, trabalhos que colaboram na compreensão de determinado fato como também na expansão de olhares acerca dele. É o que realiza Marlise Meyer em profícuo estudo sobre o romance-folhetim. Dessa forma, não é possível deixar à margem dos estudos literários textos rotulados de fracos e inconsistentes meramente por terem eles recebido tal designação; mesmo porque essa designação pode ser resultado não apenas da escolha pessoal do estudioso, como também do filtro do qual se utiliza para estereotipá-la. Ao se estereotipar a obra, faz-se, geralmente, o mesmo com o público leitor. É de praxe assinalar que obras de “menor qualidade” são lidas ou apreciadas por pessoas de pouca instrução, de gosto duvidoso, pessoas que não são capazes de apreciar uma obra de arte em seus muitos níveis. Por outro lado, também se crê que uma obra de “maior qualidade” só poderá ser apreciada por um grupo restrito de iniciados, o que constitui meia verdade, não se podendo estabelecer regra de conduta para tal. MEYER (1996) aponta, dentre os muitos casos por ela estudados, que “A popularíssima mrs. Radcliffe foi muito admirada por Byron, ao passo que romancistas consagradas pela crítica oficial, louvadas algumas por Walter Scott, que nelas via modelos dignos de imitar, eram abundantemente representadas nos catálogos das circulating libraries9” (p.38). Têm-se, nesse caso, dois fatos que atestam a vulnerabilidade das rotulações acerca de obras, bem como de leitores. Primeiramente, observa-se uma escritora de “2º time” sendo admirada por um escritor de “1º time”. Em um segundo plano constata-se que escritoras consagradas são difundidas em meio populares e lidas por um público acostumado às peripécias folhetinescas. Isso demonstra que a rigidez só pode ocupar espaço nas cabeças mais ortodoxas, cegas a outras possibilidades e firmadas num estatuto de autoridade que, a bem dizer, traz subliminarmente o conceito de dominação. A literatura está impregnada disso, como bem atesta KOTHE (1994): Com a prática continuada de uma política de assimilação, impondo a identidade de um grupo sobre os demais, ao invés de se adotar uma política de agregação ou integração, acaba-se tendo um resultado bem 9 Gabinete de leitura de aluguel mais pobre e subdesenvolvido do que aquele que se originaria da incorporação das diversas culturas em um todo maior. (p.88) É nesse sentido de agregação, ou integração, que se fazem necessários trabalhos que tragam ao bojo das discussões acerca de cânone e história literária textos, autores ou gêneros que se encontram à margem. Alinhado a essa perspectiva encontra-se o objeto deste trabalho que pretende apresentar a ficção histórica do autor mineiro Agripa Vasconcelos (1900 – 1969). Natural de Matosinhos MG, Agripa Vasconcelos iniciou sua carreira literária com o livro Silêncio, que o levou, aos 22 anos de idade, a conquistar um lugar na Academia Mineira de Letras, sucedendo a Alphonsus de Guimaraens. Em 1949, obteve o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. O escritor produziu uma obra bastante fértil, transitando entre a poesia, a narrativa, o ensaio e textos de caráter científico. De toda sua produção, porém, destaca-se o conjunto de seis romances denominados, pelo próprio autor, de “Sagas do País das Gerais”. Esses romances, escritos entre 1951 e 1966, compreendem a parcela mais significativa e trabalhosa da produção de Vasconcelos, devido ao resgate histórico e biográfico que promove amalgamando-o à ficção. Interessa notar que, à época da escrita desses romances, Érico Veríssimo encontrava-se escrevendo a sua saga gaúcha, composta pelos romances que integram O Tempo e o Vento (1949 – 1961), recuperando a história e a memória de outro estado importante, o Rio Grande do Sul. Parece haver, da parte de Agripa Vasconcelos, intenção semelhante à do escritor gaúcho cuja obra despontava há algum tempo no cenário das letras nacionais. A diferença, porém, entre uma e outra saga é bastante notória, no que tange à técnica narrativa empregada. Enquanto na saga de Érico Veríssimo tem-se a história do Rio Grande do Sul desenrolada a partir de alguns personagens, num fluxo narrativo interdiegético, na saga de Agripa Vasconcelos, tem-se a história de Minas perpassada pelos ciclos que correspondem a cada romance, não havendo uma continuidade narrativa de um para outro, no que diz respeito a personagens e fatos. Os romances do escritor mineiro, portanto, não se encontram descontextualizados no cenário da ficção histórica nacional na época em que são escritos. Há, contudo, um silêncio muito grande pro parte da crítica e dos historiadores da literatura no que tange a essa produção do autor mineiro. Na pesquisa realizada para a composição deste trabalho, percebeu-se que Agripa Vasconcelos mereceu um verbete, bem como cada uma de suas obras, na Enciclopédia de Literatura Brasileira, compilada por Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, edição de 2001, contudo seu nome ou sua produção não constam nas mais importantes histórias literárias utilizadas por docentes e discentes da área de Letras. Podem-se mencionar, entre trabalhos que fazem referência ao autor, pelo menos três que reconhecem a obra do escritor mineiro, dando-lhe algum crédito. O primeiro deles é a História da Literatura Mineira, de Martins Oliveira, cuja primeira edição data de 1958, no qual se evidencia o Agripa Vasconcelos poeta; o segundo é o trabalho de José A. Pereira Ribeiro, intitulado O Romance Histórico na Literatura Brasileira (1976), no qual são abordados todos os romances históricos das Sagas das Gerais; por fim, há de se mencionar o trabalho dirigido pelo professor Dr. Antônio R. Esteves, organizado em livro sob o título O Romance Histórico Brasileiro Contemporâneo (1975-2000) (2010), no qual existe uma única citação acerca da obra do autor. Se faltou lugar no cânone literário para o escritor mineiro, é de se crer que ele só não caiu no total esquecimento por conta de dois de seus romances que foram levados à tela, A Vida em Flor de D. Beja que se tornou a telenovela Dona Beija (1986) e Chica que Manda que se tornou, além de já referido filme, a telenovela Xica da Silva (1996), ambas exibidas com grande sucesso pela extinta TV Manchete. Este artigo tem como maior objetivo trazer um pouco mais de luz sobre Agripa Vasconcelos e sua obra, apresentando de forma sucinta a ficção histórica por ele produzida, assinalando a importância dessa produção no contexto cultural brasileiro da época. AS “SAGAS DO PAÍS DAS GERAIS” Os seis romances que compõem as sagas mineiras constituem a parcela mais importante e elaborada da produção de Agripa Vasconcelos. Nessas obras, o autor revisita o passado de Minas Gerais recuperando, por meio de ciclos temáticos, personalidades históricas que sintetizam cada um dos temas propostos. Em 1966 a editora Itatiaia publicou todos os romances que fazem parte das sagas, com a finalidade de gerar a ideia de conjunto relativa à obra; cada romance é interdependente, todavia um complementa o outro, no sentido de montar um extenso painel histórico do passado mineiro, que se estende desde o Brasil colônia até o Brasil republicano. Assim, os romances passaram a ser apresentados da seguinte forma: 1) Fome em Canaã – Romance do Ciclo dos Latifúndios nas Gerais Provavelmente escrito em 1951, este romance foi publicado em 1964 pela editora Cruzeiro; em 1966 surge pela Itatiaia, integrando o conjunto das sagas de Minas. A ação transcorre entre o final da década de 20 e início da década de 30 do século XX, explorando a temática do latifúndio, comportando os mandos e desmandos dos grandes latifundiários e a violência que, acima da justiça, prevalece como elemento norteador e condutor das situações. Neste romance, ambientado na região do Vale do Rio Doce, mostra-se como da terra virgem brotaram poderosos latifúndios que experimentaram ascensão e decadência, numa época em que a chamada República Café com Leite vive seu o declínio. Esta obra diferencia-se de todas as outras cinco no que diz respeito a não ser protagonizada por algum personagem histórico. A trama, simples e até certo ponto previsível, ganha corpo com o retrato dos costumes políticos e sociais da época, tanto urbanos quanto rurais; as marcas da exploração, a rígida moral patriarcal colocada em xeque, as agruras do trabalho duro, os conchavos políticos amealhados por traições, o poder que transita sempre na mão dos mais abastados, as marcas da cultura do povo e os episódios históricos evocados aqui e ali circundam a trama principal compondo o estofo do romance. O que sobra, no melancólico final, é o questionamento acerca de muitas das práticas que cercavam os latifúndios da época, chegando-se a uma conclusão de cunho pessimista e de viés moralista. 2) Sinhá Braba – Romance do Ciclo Agropecuário nas Gerais Editado em 1966, este romance traz à tona a figura de Joaquina Maria Bernarda da Silva de Abreu Castelo Branco Souto Maior de Oliveira Campos (dona Joaquina do Pompéu), retratando o maior latifúndio das Minas Gerais, entre o final do século XVIII e meados do século XIX, pertencente a um matriarcado. Para se ter uma idéia, o montante de terras registrada em testamento quando da morte de Dona Joaquina compreendia um milhão de alqueires – totalidade dos municípios de Abaeté, Dores do Indaiá, Maravilhas, Martinho Campos, Paracatu, Pequi, Pitangui, Pompéu; uma extensão territorial maior que a Bélgica, Holanda, Suíça, Dinamarca ou El Salvador. Romance repleto de citações, datas, fatos e personagens históricos, retrata a fase de transição do ciclo do ouro para o ciclo agropecuário na região central mineira. Agripa Vasconcelos constrói toda a trama principal em torno não somente de Joaquina do Pompéu, como também no de Maria Tangará, sua maior rival. Ambas senhoras de escravos eram detentoras de temperamento difícil e dominante, todavia o autor as concebe em registros diferentes, explorando a ambiguidade de Joaquina e a crueldade de Tangará, colocando em dúvida sobre quem seria realmente a sinhá braba. Todo o livro é permeado pelo ambiente rural que desponta com as descrições e histórias que lhe são inerentes; lendas, assombrações, cânticos de negros e de trabalhadores e destaca, em meio ao enredo, a importância que Joaquina adquiriu no cenário nacional ao suprir, com gado e mantimentos, a corte de D. João VI, recém chegada ao Rio de Janeiro. 3) A Vida em Flor de Dona Bêja (1957) – Romance do Ciclo do Povoamento nas Gerais Este romance foi publicado pela primeira vez em 1957, pela editora Pongetti; em 1966 passou para a editora Itatiaia, juntamente com os demais romances que compõem as sagas. A obra retrata a figura de Ana Jacinta de São José (Dona Bêja) que, segundo historiadores e o autor do livro, foi a responsável por reconquistar para Minas a região conhecida como Triângulo Mineiro, usurpado por Goiás. Para amarrar o tema do povoamento das Minas Gerais, Agripa Vasconcelos recupera a história desde a bandeira de Lourenço Taques cuja entrada se deu pelo Sertão do Novo Sul, hoje conhecida por Triângulo Mineiro; a partir daí constrói-se todo o estofo da narrativa que irá enfocar a figura da prostituta que exerceu papel tão importante na história mineira. Dona Bêja é apresentada ao leitor desde muito pequena, quando já mostrava espírito vivaz e iniciativa que encantavam todos a sua volta. A menina fora criada pelo avô que, movido pela vergonha de ver sua única filha grávida ainda solteira, muda-se para as terras do Araxá a fim de recomeçar nova vida longe da sociedade a que pertencera. Mais tarde esse avô será morto no episódio em que o Ouvidor, fascinado pela beleza de Bêja, manda raptá-la para levá-la consigo. Tudo é narrado, até neste ponto, acentuando-se o caráter trágico da história e justificando-se, dessa forma, o destino da protagonista. O que ocupará, porém, o cerne da narrativa será a própria vida opulenta da rainha do Araxá, lugar ao qual voltou e se estabeleceu após abandonar o Ouvidor. Todos os pequenos episódios da vida de Dona Bêja são costurados a outros que demonstram os movimentos de aborígenes, de quilombolas e das pessoas que formaram os núcleos urbanos de algumas cidades mineiras. Agripa Vasconcelos reconstrói essa personagem tirada da história, acentuando-lhe contornos contrastantes que exploram desde a inteligência até o sadismo da personagem. 4) Gongo-Sôco – Romance do Ciclo do Ouro nas Gerais O nome do romance alude à mina de ouro de onde se extraiu quantidade considerável de ouro entre os séculos XVIII e XX. Como na maioria dos outros livros das sagas das Gerais, a narrativa focaliza uma figura histórica, neste caso a de João Batista Ferreira Chichorro de Sousa Coutinho (1º Barão de Catas Altas). Por meio de encadeamentos de histórias que lembram As Mil e uma Noites vislumbra-se a trajetória do sacristão que, de enfermeiro de sangue chega ao patamar de um dos homens mais ricos do Brasil. Trata-se de uma história de ascensão e decadência desse homem, seguida de nova ascensão e decadência, promovida pela busca do ouro e pelo uso perdulário da riqueza adquirida. Parece ser este um dos mais bem trabalhados romances de Agripa Vasconcelos, senão o melhor. A urdidura da trama, tecida com vigor, é amparada por largas descrições dos opulentos banquetes promovidos pelo Barão de Caltas Altas a seus convivas e agregados, revelando o poder, ainda que transitório, que o dinheiro tem não só de comprar tudo o que se quer, mas também de fazer amigos cuja amizade e solidariedade desaparecem ao surgirem os primeiros sinais da decadência monetária. Agripa Vasconcelos não deixa de salientar o contraste entre a vida dos ricos e a dos escravos, explorados e castigados dentro e fora das minas de ouro. Nesse sentido vale a perspicácia do autor em mostrar também como João Batista Chichorro, de menino humilde, sacristão, de enfermeiro de sangue, solidário ao sofrimento escravo nas minas de seu tio, passa a mandatário rico e poderoso, cujo passado esquecido cede lugar a ações frias e calculadas. O final, cercado de certo moralismo, revela-se melancólico ao protagonista que relembra dos dias que se foram e não voltam mais. 5) Chica-que-Manda (Chica da Silva) – (Romance do Ciclo dos Diamantes nas Gerais) Trata-se de outro romance de Agripa que merece destaque, seja pelo tema ou pela tessitura bem construída. Nesta obra foca-se a figura lendária de Francisca da Silva e Oliveira e de seu matrimônio com o contratador João Fernandes de Oliveira. O título do livro, numa brincadeira fonética, aproveita-se, na verdade, do apelido dado a ex-escrava: “Chica Queimada”. A face revelada de Chica da Silva neste romance destoa um pouco daquela apresentada por Cecília Meireles em Romanceiro da Inconfidência (1953); na obra de Cecília destaca-se o caráter perspicaz e o amor entre ela e o contratador, mantendo-se certo tom lírico em torno da personagem. No livro de Agripa Vasconcelos, além desses elementos, revela-se uma Chica passional e vingativa, capaz das piores atrocidades ao ser corroída pelo ciúme, fato que não lhe era raro. Este livro pode figurar lado a lado a Gongo-Sôco, no sentido de evidenciar o luxo e a riqueza advinda da exploração de mão de obra escrava na extração de minérios preciosos. Toda a história é construída com o intuito de revelar os contrastes quase caricaturais que se produzem ao se tentar arremedar a vida da corte com todos seus exageros nas paragens do Tijuco. Tais contrastes equivalem, analogamente, à própria figura de Chica da Silva e à história por ela vivida numa época em que o negro ou o mulato não tinham vez nem voz. 6) Chico-Rei – Romance do Ciclo da Escravidão nas Gerais A figura central deste romance não é consenso entre os historiadores, contudo pertence à tradição oral de Minas Gerais. Segundo os poucos registros, Chico Rei fora rei no Congo, onde foi aprisionado com toda sua corte e enviado ao Brasil como escravo; sua esposa e filha foram jogadas ao mar durante a travessia, como forma de sacrifício para salvar a nau de uma tempestade. Depois de chegar ao Brasil e ser vendido como escravo, com o tempo, conseguiu comprar sua alforria e a do filho. Após a alforria comprou uma mina e enriqueceu, o que proporcionou que ele comprasse a alforria de muitos outros negros, fundando assim uma espécie de 2ª corte no Brasil, em Ouro Preto, com anuência do governador-geral Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela. Em todos os outros cinco romances históricos das sagas a escravidão torna-se sempre uma discussão latente, geralmente evidenciando-se a crueldade dos senhores em relação aos escravos. Chico-Rei oferece outra possibilidade, que é a da focalização da narrativa sobre um protagonista escravo que age, quase que messianicamente, no sentido de ajudar a libertar seus pares; emerge via personagem, nesse sentido, a visão, mesmo que distorcida em muitos pontos, que o negro tinha da própria escravidão, por isso trata-se do único romance dos que compõem o conjunto a mostrar o episódio de dentro da escravidão para fora, ao contrário dos demais que a mostram de fora para dentro. SOBRE PROCEDIMENTOS NARRATIVOS Embora não haja uma intradiegese entre os seis romances, é possível verificar que Agripa Vasconcelos adota procedimentos narrativos semelhantes em cada um deles que, de alguma forma, auxiliam na compreensão da obra como conjunto. Dentre tais procedimentos, podem-se destacar os seguintes: 1) Elaboração de narrativas que possuem progressão linear de tempo, corroborando com a ideia de ciclo evidenciada no peritexto; 2) Preocupação didática demonstrada por meio de elementos adjuntos ao texto como: dicionário de termos ao final de cada livro; notas de rodapé elucidativas ou informativas sobre elementos mencionados no corpo da narrativa; prefácios explicativos em três dos romances – nesses prefácios o autor procura indicar as fontes de pesquisa ou elucidar historicamente quem são as figuras centrais trabalhadas; 3) Inserção de trechos puramente documentais na narrativa; 4) Explanação histórica em alguns dos romances, por vezes se estendendo ao longo de 60 páginas; 5) Narrativa principal permeada por outras pequenas narrativas, lendas, folclore, histórias oriundas da oralidade, cantigas sertanejas, trechos de poemas; 6) Abundância de descrições; 7) A presença de um narrador em 3ª pessoa, intruso que, ao longo do texto, pontua críticas, tece comentários, desfaz expectativas, antecipa conclusões e arbitra diante de situações. 8) Trechos que beiram, por vezes, o Naturalismo do século XIX. 9) Marcas do tempo presente na narrativa. CONCLUSÃO As décadas de 50 e 60, tempo de grande efervescência literária no Brasil, colocaram os autores mineiros ocupando um dos primeiros planos do cenário literário nacional. A título de exemplificação vale destacar a presença multifacetada da poesia de Drummond, uma das mais importantes do gênero, e a do escritor Guimarães Rosa que, em 1956, escreve uma das obras máximas da literatura Grande Sertão Veredas. Ao lado desses escritores, é possível ainda colocar Lúcio Cardoso com sua magistral Crônica da Casa Assassinada (1959) e Autran Dourado que, em 1967, já trazia à tona um dos seus romances mais importantes, Ópera dos Mortos. Guimarães Rosa extrai sua matéria dos mitos, histórias e casos contados nos rincões mineiros, mixa essa matéria a elementos que perpassam o arcaico e o moderno, empregando apurada técnica narrativa; Lúcio Cardoso e Autran Dourado, por outro lado, sondam o íntimo da família mineira, instituição construída sobre os pilares da tradição, expondo seus conflitos, sua decadência e suas contradições. Em vista disso, pode-se supor, então, que a obra de Agripa Vasconcelos preencha outro espaço: o da ficção histórica de Minas. Curiosamente, no entanto, as histórias literárias nacionais e os estudos acadêmicos dão pouco testemunho a esse respeito, havendo certa escassez de trabalhos sobre o autor e sua obra. Em se tratando de cânone literário, o fato de Agripa Vasconcelos e de sua obra ser pouco mencionado não se põe como algo isolado, ele se coloca lado a lado com tantos outros que ainda aguardam que, sobre eles, seja lançado algum foco de luz. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CAMPOS, Haroldo. O seqüestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório de Mattos. Salvador: Casa de Jorge Amado, 1989. CANDIDO, Antonio. “O Direito à Literatura” in Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995. __________. Formação da Literatura Brasileira. volumes 1 e 2. 9ª ed. Belo Horizonte: editora Itatiaia, 2000. CORREA, Alamir Aquino. “Historiografia, cânone e autoridade”. Anais do VIII Seminário do CELLIP. Umuarama: UNIPAR, 1995. 323-328. COUTINHO, Afrânio. SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de Literatura Brasileira vol. II. São Paulo: Global, 2002. ESTEVES, Antonio R.. O Romance Histórico Brasileiro Contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2010. FERREIRA, Cid Vale. Org. Voivode – estudos sobre os vampiros. Jundiaí, SP: Pandemonium, 2002. KOTHE, Flávio Rene. A narrativa trivial. Editora UNB, 1994. _________________.O Cânone Imperial. Editora UNB, 2000. MENON, Maurício Cesar. “Figurações do gótico e de seus desmembramentos na literatura brasileira de 1843 a 1932″. Tese. Londrina: UEL, 2007. MEYER, Marlise. Folhetim, uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. OLIVEIRA, Martins de. História da Literatura Mineira 2ª ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1963. RIBEIRO, José A. Pereira. O Romance Histórico na Literatura Brasileira. São Paulo: Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, Conselho Estadual de Cultura, 1976. VASCONCELOS, Agripa. A Vida em Flor de Dona Beja. Belo Horizonte: Itatiaia, 1985. _____________________. Chica-que-Manda. Belo Horizonte: Itatiaia, 2010. _____________________. Chico Rei. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966. _____________________. Fome em Canaã. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966. _____________________. Gongo-Sôco. Belo Horizonte: Itatiaia, 2003. _____________________. Sinhá Braba. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999. Agradecimentos Agradeço ao CNPQ pela concessão da bolsa de pós-doutorado júnior para a realização da pesquisa sobre os romances históricos de Agripa Vasconcelos, na UFPR, sob supervisão da professora Dra. Marilene Weinhardt. O romance histórico de Sherwood Anderson: historicidade literária e literatura histórica Lucas André Berno Kölln (Unioeste) RESUMO: Existindo à sombra das transformações históricas que abalaram a economia e sociedade dos Estados Unidos do início do século XX, os escritores não poderiam permanecer ignorantes nem calados diante de seus efeitos e desdobramentos humanos. Como parte de um grupo de críticos sociais engajados com a denúncia do impacto do capitalismo monopolista sobre a realidade do período, Sherwood Anderson (1876-1941) foi uma das vozes que se ergueram, e que soube, através de sua literatura, dar relevo aos problemas postos pela evolução histórica tanto com relação ao conteúdo quanto em relação à forma de sua obra. Por meio de sua trajetória de vida emblemática, que experimentou as mudanças históricas de uma forma amarga - sofrendo, entre outros efeitos, um colapso nervoso em 1912 -, Anderson buscou congregar em sua literatura tanto problemas existenciais quanto problemas estéticos, ambos históricos e humanos em primeira e última instâncias. Como um dos pioneiros da prosa realista norte-americana, o escritor constitui-se um objeto de análise valoroso enquanto representativo de uma tradição que se estendeu por décadas na literatura estadunidense. Além disso, por sua perspicácia na observação da realidade e por sua concepção engajada e sensível acerca da literatura, a obra de Anderson constitui-se num rico documento histórico em seu retrato e em sua interpretação da conflituosa realidade, contribuindo, inclusive, para a discussão acerca do romance histórico e da historicidade da/na literatura. PALAVRAS-CHAVE: História, Literatura, Estados Unidos, Literatura Norte-Americana, Sherwood Anderson ABSTRACT: Existing under the shadow of the historical changes that rocked the American economy and society in the beginning of the twentieth century, the writers could not have kept silent or ignorant towards the human effects of those changes. As part of a group of social critics engaged in the denounce of the monopolist capitalism's impact over that reality, Sherwood Anderson (1876-1941) was one of the voices that rose and that knew, through his literature, how to identify the problems posed by the historical evolution, using his literature's form and content to do it. Through his emblematic story of life, that experienced the historical changes in a bitter way - suffering, among other things, a nervous breakdown in 1912 -, Anderson tried to congregate in his books not only the existential problems but also the aesthetic ones, both being human and historic primarily and ultimately. As one of the pioneers of American realist prose, the writer is a worthy object of study while representative of one tradition that extended itself for decades in the United States. Besides that, for his keen observation of reality and for his compromised concept of literature, Anderson's oeuvre constitutes a rich historical document regarding its portrait and its interpretation of that conflict-ridden reality, inclusive of the discussions on the historic novel and the historicity of/in literature. KEYWORDS: History, Literature, United States, American literature, Sherwood Anderson O presente trabalho tem por objetivo contribuir com as discussões que marcam o campo de intersecção entre a literatura e a história, estando, entretanto, dentro do domínio da historiografia. A pertença a um campo informa as opções teóricas e metodológicas de uma investigação, e acaba por servir à função de acautelar o leitor com relação às distinções existentes entre diferentes perspectivas de abordagem. Antes de um estigma limitador, portanto, essa posição delimita o caráter da abordagem e guia o olhar sem que, com isso, torne impossível o diálogo entre um e outro campo de análises. Toda essa introdução encontra-se vinculada a um pressuposto que serviu de base para a análise aqui levada a cabo: a de que os interesses epistemológicos do campo das Letras é diferente dos interesses epistemológicos do campo da História. Por conflitante que isso possa parecer - afinal trata-se de uma abordagem historiográfica da literatura -, é nesse diálogo de distanciamentos e aproximações que a análise se move, bem como, aliás, os próprios escritores. Não se almeja aqui levar a cabo grandes virtuosismos ou discussões teóricos, dada a envergadura e a profundidade não serem consoantes a um texto dessa extensão e desse jaez. O que se deseja, sim, é trazer alguns dos elementos constituintes desse debate teórico para o centro da discussão na medida em que alguns dos romances de Sherwood Anderson (18761941) forem sendo dissecados. O escopo de abordagem, portanto, gira em torno desse eixo temático, localizado no tempo e no espaço, buscando propô-lo como um problema de investigação historiográfica, isto é, buscando abordá-lo em sua historicidade e em seu diálogo com as condições sócio-históricas que o ensejaram. Para que tal intento seja levado a cabo, é importante que o escritor de que se fala, bem como sua realidade histórica, estejam minimamente delimitados como elementos constituintes da experiência desse sujeito e, por consequência, também de sua obra. Sherwood Anderson nasceu na cidade de Camden, em Ohio, no último quartel do século XIX. O escritor fez parte de uma numerosa família cuja renda dependia em grande parte dos frutos da pequena fábrica de arreios que seus pais possuíam. Pela condição material e social de que os Anderson gozavam, é possível dizer que eles faziam parte daquele tradicional grupo social que o sociólogo estadunidense Charles Wright Mills chamou de "as antigas classes médias" (MILLS, 1979, pp. 25-79). As cidades nas quais viveram os Anderson na infância e na juventude do escritor eram cidades predominantemente rurais, visto que os produtos que a fábrica da família produzia eram direcionados especialmente para o campo, embora também para a cidade. Nesse cenário rural e de rarefeita urbanização é que Sherwood Anderson cresceu, e foi a partir das experiências vividas naquele contexto que ele primeiramente começou a se aperceber da realidade que o cercava. Na conjunção de uma crise particular e de uma crise estrutural, os Anderson tiveram sua antiga base de existência abalada. Irwin Anderson, o pai de Sherwood, começara a beber e ganhara má fama na cidade onde a família habitava, de modo que uma série de mudanças começou. Ainda que se movendo dentro de Ohio, os Anderson mudaram-se várias vezes, e na medida em que as casas e as vizinhanças se sucediam, a condição social da família era posta em xeque. Arreios são o tipo de produto que não encontra grande demanda em economias em vias de modernização. Ohio ainda era um estado de tradição agrícola sólida, assim como vários outros do Meio-Oeste (Midwest, como Sherwood Anderson veio a chamá-los posteriormente), mas os ventos da modernização estavam soprando por sobre aquela região: as transformações econômicas anunciavam cada vez mais o ocaso dos antigos modos de produzir, seja por meio da mecanização, seja por meio do advento dos tentáculos monopolísticos do capitalismo em transição. Sherwood Anderson cresceu, portanto, num ambiente que carregava toda a dramaticidade encerrada no seio das transformações econômicas: o descompasso entre os movimentos da vida material e da vida subjetiva. A economia e a maneira como os sujeitos se inseriam nessa conjuntura de transformações era muito cambiante e instável. Embora não possamos simplesmente assumir que essa "onda de mudanças" tenha se abatido irremediável e fatalisticamente por sobre todo o território dos Estados Unidos e por sobre todos os habitantes dele, a trajetória de Sherwood Anderson possui marcas desses abalos estruturais, marcas essas que se incrustaram como cicatrizes simbólicas no âmago de sua literatura. Enquanto o pai de Sherwood Anderson se afundava no alcoolismo, e enquanto o negócio da família ia se tornando mais e mais recessivo no conjunto da economia, outras mudanças se operavam no cotidiano da família. O irmão do escritor se mudou para Chicago em busca de emprego, a mãe começou a lavar roupa para fora e o próprio Sherwood Anderson foi obrigado a entrar precocemente no mundo do trabalho. À época, por conta da quantidade de diferentes e efêmeros trabalhos aos quais o escritor teve de se submeter, ele ganhou o alcunha de "Jobby"10 (TOWNSEND, 1987, pp. 1-30). Não creio que a trajetória de Anderson tenha sido, de um ponto de vista geral, arquetípica. Contudo, ela certamente possui profundas ressonâncias históricas em outras famílias e sujeitos que viveram nesse período, pois a economia estadunidense estava passando por amplas metamorfoses, de modo que os abalos que sofriam os Anderson fossem tão seus quanto de outros, tanto econômicos quanto sociais, tão materiais quanto espirituais. A conjuntura econômica que imperou ao longo de praticamente todo o século XIX foi uma que oferecia condições para que os pequenos produtores (pequenos proprietários, comerciantes e empresários, por exemplo) pudessem ter uma existência minimamente estável e segura. As "antigas classes médias", para usar novamente o termo cunhado por Wright Mills, eram proprietários dos meios de produção e podiam, por conseguinte, organizar seu trabalho e a maneira como iriam se inserir na economia. A estabilidade e a prosperidade alcançadas por esse grupo social ao longo daquele século foram tamanhas que tal experiência sócio-histórica se arraigou profundamente em sua visão de mundo e mentalidades. Como Wright Mills ressalta, "[h]avia (...) uma estreita relação entre renda, status, trabalho e propriedade." (MILLS, 1979, p. 31) Irwin Anderson, por exemplo, quando dispunha do controle sobre sua fábrica de arreios, estava ligado de maneira intrínseca à dinâmica e aos nuances daquele trabalho, tendo a possibilidade de decidir acerca dos horários, das rotinas e dos demais aspectos que diziam respeito àquela atividade. Ele controlava sua produção e sua posição social estava diretamente ligado ao papel social que ele ocupava enquanto fabricante de arreios local. A separação entre trabalho e vida era pouca, pois os dois se constituíam enquanto elementos da existência dos sujeitos, de modo que a ligação entre as antigas classes médias e seu trabalho tendia a ser ontologicamente visceral. Na medida em que a presença de pequenos proprietários, comerciantes e empresários constituía a forma pela qual a economia e a sociedade estadunidenses estavam organizados, a fábrica de arreios dos Anderson estava minimamente protegida contra concorrências desleais contra empresas de maior envergadura e maior capacidade de competição. Precisamente nesse ponto é que a economia do período mudava, pois, como notou Wright Mills, a "(...) pequena empresa torna-se cada vez menor, [e] a grande empresa torna-se cada vez maior." (Idem, p. 10 Não há tradução precisa para essa palavra. Sendo "job", em português, "emprego", "jobby" talvez seja melhor traduzido na expressão "faz-tudo", já que a característica das experiências de trabalho de Sherwood Anderson no período tenham sido de inconstância e provisoriedade permanente. 45) A base da "democracia econômica" (BOTTOMORE, 1970, p. 30) dos pequenos produtores estava ruindo. A concentração de capital - a tendência do modo de produção capitalista ressaltada por Marx - alterava a constituição da economia na medida em que tornava possível a existência de grandes indústrias, grandes empresários, grandes investidores, grandes proprietários e assim por diante. Para os pequenos empresários como o pai de Sherwood Anderson, isso significava tornar-se anti-econômico conforme o avanço das grandes indústrias tornava a fabricação de arreios mais barata - ou mesmo tornando-os obsoletos pela produção de alternativas a eles. A ascensão do capitalismo monopolista foi a quebra de todo o arranjo sócioeconômico que o mundo das antigas classes médias havia criado e no qual se baseava, desde suas componentes materiais até suas componentes sócio-culturais mais profundas. Se não podemos necessariamente esperar encontrar na literatura registros evidentes das primeiras, certamente podemos esperar encontrar aspectos da segunda. Os romances de Sherwood Anderson são históricos por estarem incrustados irremediavelmente nessa conjuntura de mudança, uma vez que ela era a experiência com a qual o escritor teve de lidar - isto é, ele não poderia dela se furtar. São históricos, também, por dialogarem com essa realidade, ainda que o façam a sua maneira e se valendo de toda a miríade de potencialidades e artifícios da ficção. Diante de todas as transformações pelas quais passava seu cotidiano e de sua família, Sherwood Anderson mudou-se para Chicago, onde continuou fazendo jus ao seu alcunha "Jobby". Ele morou com familiares e buscou conciliar a jornada de trabalho com os estudos numa escola noturna. O escritor se alistou e chegou a ir a Cuba, como soldado, para lutar na Guerra Hispano-Americana, mas voltou em 1899, continuando os estudos e persistindo em diversos empregos. Em alguns deles Sherwood Anderson encontrou algum sucesso e estabilidade, como em um emprego ligado à uma empresa de fabricação de tintas; em outro, relativo a vendas por catálogo; ou, ainda, em um ligado à administração de uma empresa de publicidade. A alternância de trabalhos e a própria natureza deles não agradavam ao escritor, que teve um colapso nervoso em 1912, evento que foi seguido pela decisão do abandono da "existência materialista" que, segundo ele, vinha levando até então. A literatura passou a ser a atividade à qual ele passaria a dedicar seu tempo e esforços a partir de então. Numa trajetória que vai desde a vida tranquila nos arredores de Ohio até o momento em que, tendo passado pelos vários empregos e pelas provações físicas e espirituais deles, ele sofre uma crise nervosa, é a literatura que se tornou o objetivo ao qual Sherwood Anderson decidiu se dedicar. Partindo apenas desse ponto de vista já é possível perceber que a literatura representa para Anderson algo diametralmente diferente daquilo que ele vinha fazendo até então, isto é, a literatura era uma espécie de contraponto à "existência materialista" da qual ele escapara tão sofregamente. Não se pode passar ao largo das profundas ressonâncias ontológicas dessa decisão radical de Sherwood Anderson para a investigação historiográfica de sua literatura, afinal a ligação entre autor e obra é um elemento de primeira importância. Essa constatação é basilar para uma análise historiográfica da literatura por conta de ser um dos pilares de sustentação do pressuposto de que, sendo o homem um ser histórico por natureza, também são históricos os frutos de sua ação. Desse modo, reconhecendo o mundo no qual Sherwood Anderson habitou e os dilemas e problemas com os quais teve de lidar, sabemos também quais foram as imediações e circunscrições históricas nas quais sua literatura pode florescer. As escolhas informam realidades históricas, de modo que no âmbito da literatura, as escolhas estéticas, tanto quanto aquelas relacionadas ao conteúdo em si - ou do "tema da obra" -, estejam revestidas de historicidade. As escolhas indicam renúncias, da mesma maneira como as escolhas informam a especificidade de um e de outro autor dentro do gigantesco universo de possibilidades literárias. O fato de Sherwood Anderson ter optado pela narrativa em primeira ou em terceira pessoa, a concepção de homem apresentada, o estilo da narrativa, a organização da trama, a construção dos personagens, os silêncios ou omissões e assim por diante, tudo isso, devidamente observado e dissecado dentro de quadros sociais, políticos, econômicos e culturais - i.e., históricos -, apresenta a possibilidade de ir além e fruir a obra como a ação de um sujeito histórico. O escritor foi alguém que viveu determinadas experiências social e historicamente construídas e que, condicionado por sua implacável realidade, não pôde se furtar a lidar com elas. Por mais metamorfoseada que a historicidade esteja por conta de toda a carapaça e as entranhas literárias - com todos os seus artifícios e potencialidades estéticas, metafóricas e estilísticas -, é possível abordá-la como um documento histórico. Mais do que arrolar fatos para tentar encaixá-los nas entrelinhas da ficção, essa breve nota biográfica serve ao propósito de introduzir algumas informações que serão utilizadas para a interpretação historiográfica dos livros de Anderson a partir de agora. Essa análise não busca interações mecânicas e simétricas entre a obra e a realidade histórica, visto que não há maneira única de lidar com os acontecimentos e nem são eles os mesmos para todos. Dentro da complexidade dos universos micro e macro que o sujeito histórico - o escritor - habita, é preciso ter sempre em conta a necessidade de não pressupor reações ou visões como atos "esperados", é preciso ir além e perceber como o escritor se inseriu naquela realidade, considerando, portanto, tanto sua pertença social e coletiva quanto sua individualidade idiossincrática. Afinal, a mesma variabilidade existencial que distingue uns dos outros é aquela que torna suas leituras e interpretações de mundo também distintas. As obras de Sherwood Anderson começaram a ser publicadas nos anos 1910, primeiramente em 1916, com a publicação de Windy McPherson's son (O filho de Windy McPherson, em tradução livre), livro que conta a história de Sam McPherson - o filho de Windy McPherson - em sua busca por novas experiências e por uma vida melhor do que a que ele levava na cidadezinha onde morava. O pai de Sam é um alcoólatra que continua revivendo as supostas glórias que teve quando da Guerra de Secessão, fazendo com que o filho busque ser o oposto do pai através da busca de um trabalho que lho permita fazê-lo. Esse trabalho surge quando Sam muda-se para Chicago, onde passa a ser uma espécie de negociador para uma firma de implementos agrícolas. Não bastasse a similaridade do enredo do livro com a vida de Sherwood Anderson por demais evidente para ser ignorada ou tratada como algo de menor significado -, surgem algumas questões que se repetiriam nos livros posteriores do escritor. São exemplos disso: o significado dúbio acerca da vida tranquila do campo e do trabalho na cidade, o dilema vivenciado no conflito entre a existência aberta a experiências de engrandecimento espiritual e as diligências burocráticas do emprego, o desconforto com a modernidade industrial e urbana e assim por diante. Isso sem contar a recorrência de personagens cujas trajetórias são muito similares a experiências vivenciadas pelo próprio Anderson. Assim como a vida de Sherwood Anderson esteve marcada pelos dilemas que ele vivenciou em suas experiências com o mundo do trabalho e com as exigências que eles faziam em relação a sua vida como um todo, suas obras carregam os mesmos questionamentos. A fuga da "existência materialista" - um fato da vida de Anderson - não encontra ressonâncias profundas no trecho em que o escritor fala através da boca de um de seus personagens: "Um homem de negócios - o que é ele? (...) Ele tem sucesso passando a perna nas mentes pequenas com as quais ele entra em contato"?11 (ANDERSON, 1916, location 7012) 11 Todas os trechos de livros de Sherwood Anderson citados ao longo desse texto, com exceção daqueles provenientes do livro Winesburg, Ohio, são de tradução livre, de minha autoria. 12 Como li o e-book em formato .MOBI no e-reader Kindle, tomarei como base para citação as 'Locations', que são a referência gerada pelo próprio aparelho para a localização de trechos no interior de uma obra. As A busca que o escritor empreendeu em Chicago, por exemplo, certamente era uma busca dura mas que fora vivenciada com um ardor similar ao que Sam McPherson experimentou quando se punha a pensar sobre o que se tornaria quando se transformasse num adulto, como o seguinte trecho nos permite observar: Ser um jovem jornaleiro ou engraxate numa pequena cidade americana de leitores de romance é aparecer no mundo. Não são esses mesmos pobres jornaleiros que se tornam, nos livros, grandes homens? E não é esse garoto que caminha entre nós tão industriosamente dia após dia aquele que aparecerá no mundo? (ANDERSON, 1916, location 197) Há uma vontade de ser alguém e de fazer algo, uma vontade de se tornar alguém reconhecido, com um lugar no mundo. A ânsia de Sam certamente tem muito da ânsia de Anderson ao mudar-se para Chicago e se submeter à dura lida diária de trabalho seguida da dura rotina de estudos noturnos. Ao que parece ele pensou estar "aparecendo no mundo" aos poucos, ao pular de emprego em emprego ou ao servir como soldado em Cuba, mas tudo parece ter deixado de fazer tanto sentido para ele levando em consideração o abandono tão decidido que ele levou a cabo em 1912, com sua crise nervosa. As esperanças do filho de Windy McPherson, exploradas por Anderson com intimidade e sensibilidade como o são, não estão descoladas de todo um constructo histórico, afinal a instabilidade trazida pela conjuntura de transição econômica gerou tais tipos de inseguranças e incertezas em diversos outros sujeitos e grupos sociais. Estando Sherwood Anderson num lugar social ameaçado por essas mudanças, não pôde sua vida - nem sua literatura - passarem incólumes pelo turbilhão de mudanças. Não era somente a falência da fábrica da família que marcava a vida de Anderson, mas a maneira como esse fato desencadeou uma série de mudanças na maneira como ele teve de inserir-se naquele mundo e naquela sociedade. A vontade de realização pessoal que ele alimentava tão ardorosamente estava ligada àquilo ao que seu grupo social - as antigas classes médias - costumava almejar enquanto parte de seu modo de vida. Essas aspirações foram minimamente garantidas para esse grupo social durante muito tempo - ao longo da maior parte do século XIX, pelo menos -, de modo que se tornaram parte da mentalidade e das expectativas correspondentes a ela. Isso, no entanto, encontrava-se cada vez mais ameaçado na medida em que as bases materiais que outrora "permitiam" tais aspirações também estavam referências acerca do endereço virtual onde os arquivos (e-books) encontram-se hospedados estão listadas nas referências bibliográficas ao final do texto. sendo ameaçadas. Os dramas e os dilemas pessoais que boa parte das obras de Anderson carregam em seu seio são, em grande parte, resultados dialéticos desse traumático processo de transformações que iniciavam-se na economia e espraiavam-se por todos os demais âmbitos da vida social estadunidense. O ardor que encontramos em Sam McPherson é muito parecido com a ânsia de realização que anima a marcha de Norman "Beaut" McGregor, protagonista do romance Marching men (Homens em marcha, em tradução livre), de 1917. Na história deste, o protagonista também é um jovem que mora numa pequena cidade, nesse caso ligada à extração de carvão, e que decide deixá-la em busca de melhores condições de vida e da realização de seus sonhados intentos. As marcas autobiográficas não precisam sequer ser mencionados em específico para que seja possível perceber como os enredos que compõem as histórias ficcionais guardam jornadas muito similares àquelas que Sherwood Anderson experimentou como suas. Embora não se possa assumir, pura e simplesmente, que a história ficcional seja a transposição da vida do escritor, tal e qual, para as páginas de um livro, é impossível ignorar tais indícios. Sendo a figura do jovem sonhador e industrioso uma das recorrências das obras de Sherwood Anderson - não somente dessas duas supracitadas, mas de diversas outras -, é forçoso que a cotejemos como parte de um problema que ocupava os pensamentos do escritor de tal modo que ele julgou-a digna de figurar em suas histórias. À medida que diversas marcas dessa história vão se repetindo, novos problemas vão as delineando, visto que o próprio escritor passara por novas experiências e construía outras interpretações acerca do mundo e de sua concepção de literatura. Se no primeiro livro a busca de Sam McPherson é por um trabalho estável, por status e por um futuro do qual se orgulhar de realização, num sentido mais amplo -, no segundo romance dos anos 1910 a busca envereda por nova seara. McGregor foi, a exemplo de Anderson e McPherson, para Chicago em busca de um futuro estável, mas foi lá que encontrou uma constante instabilidade e uma realidade que parecia hostilizá-lo ao invés de acolhê-lo. Em um de seus contos, Sherwood Anderson parece sintetizar a impressão que Chicago, bem como o mundo urbano, industrial e moderno, lhe causava: "Em Chicago, era às vezes inacreditável quão feio o mundo se tornara." (ANDERSON, 1921, location 2876) Tal passagem encontra ressonâncias significativas quando posta diante de outra passagem, essa do livro Winesburg, Ohio, em que o escritor parece identificar as transformações pelas quais o mundo passava - aquelas que causam a feiúra dele -: Nos últimos cinquenta anos verificou-se uma grande mudança na vida de nossa gente. Houve, a bem dizer, uma revolução. O advento do industrialismo, acompanhado pelo tumulto dos negócios, (...) o tráfego dos trens, o crescimento das cidades, a construção de linhas interurbanas de bondes que entram nas cidades e delas saem (...) (ANDERSON, 1987, p. 50) Era a modernidade, enquanto conjunto de mudanças concretas e enquanto conjunto de experiências humanas, que ele tinha como algo incômodo, ruim e feio. Era a modernidade a realidade na qual buscavam se inserir tanto o escritor quanto seus personagens, pois Chicago foi um dos centros da industrialização e urbanização dos Estados Unidos nesse período. A ânsia subjetiva de McGregor em sua busca por realização chocava-se frontalmente com a incontornável dureza da realidade, que não tinha mais amplas condições para fomentá-la. Do choque entre esses dois elementos é que boa parte da literatura de Anderson se alimenta, não somente porque fosse um conflito digno de exploração literária, não somente porque fosse um dos dilemas pessoais de Sherwood Anderson, mas também porque era um problema posto pelos rumos da evolução histórica da economia e da sociedade estadunidense da época. Ainda que a tônica subjetiva e intimista seja um dos ingredientes da literatura de Anderson, ela não fala de uma situação restrita à individualidade do autor: dado que a conjuntura era de profundas transformações e que os abalos dessa mudança se estendiam amplamente pelos diversos rincões da sociedade estadunidense, é possível encontrar diversas outras vozes e sujeitos a lidar com problemas semelhantes. O diálogo de Anderson com outros escritores do período, aliás, contribui para dimensionar quão complexos eram esses movimentos que a uma primeira vista podem parecer simplesmente econômicos. Mas primeiras impressões são potencialmente enganadoras. Quando Sherwood Anderson escreve sobre Norman "Beaut" McGregor e cria uma história em que ele, insatisfeito com a aparente impossibilidade de construir uma vida minimamente segura em Chicago, passa a marchar pelas ruas da cidade, o escritor falava sobre seu tempo através dos artifícios da ficção. A historicidade está presente nos mais obscuros cantos e arestas da trama ficcional, pois sabemos que Chicago era um dos centros pulsantes do capitalismo em transição, de modo que dentro dos novos parâmetros exigidos pela acumulação monopolista, a destruição de antigos modos de vida e antigos valores se tornara parte da pauta, legando aos trabalhadores - sujeitos como McGregor - uma vida de instabilidades e poucas possibilidades de se estabelecerem em definitivo em um trabalho. A historicidade também se infiltrou na forma como "Beaut" McGregor tentou reagir à "(...) desordem e falta de sentido da (...) vida americana (...)" (ANDERSON, 1917, location 45): marchando. Considerando que Anderson dedicou o livro aos "trabalhadores americanos" (ANDERSON, 1917, location 8), o ato de marchar e o fato de que o protagonista do romance de 1917 arregimentou um contingente bastante grande de outros homens para com ele marchar se infla de sentido e se põe a tecer uma crítica àquela realidade, ainda que dúbia e em vias de se fazer. Há uma dúvida que permeia o ato de marchar - e que se estende por todo o livro -: porque se marcha? ou em nome de quem ou de que ideal ou de qual razão se marcha? A dúvida que ocupa as mentes de "Beaut" McGregor e os demais homens em marcha é uma dúvida que vem seguindo na mente de Anderson desde o primeiro romance dos anos 1910, justamente porque se tratava de uma questão que jazia em aberto na experiência histórica do escritor. O retrato subversivo da Chicago, não a vitrine da pujança do capitalismo mas a cidade cuja propalada riqueza obscurecia a condição precária de muitos sujeitos, era uma das maneiras com as quais Anderson deu forma aos conflitos que vivia enquanto seus e enquanto conflitos pertinentes a uma situação histórica definida. A dedicatória do livro endereça-o aos trabalhadores americanos, fato do qual não se pode passar ao largo em uma análise desse jaez, uma vez que redimensiona a escritura na medida em que informa um posicionamento e o sentido daquilo inscrito nas páginas dos livros do autor. Diante das incertezas e dos posicionamentos em construção é que surge o livro de poesia Mid-American chants (Cânticos americanos ou Cânticos do Meio-Oeste, em tradução livre) em 1918. A seu modo, ele é uma forma de tentar responder aos dilemas e dramas que se colocavam historicamente, e apresenta Sherwood Anderson apontando para direções que até então somente haviam se insinuado em sua obra, especialmente aquela visão voltada para o modo de vida rural - com sua realidade material, suas experiências e sua gente - como uma espécie de repositório de valores que eram mais dignos de constituírem lirismo literário e parâmetros existenciais do que outros. É assim que ao longo do livro encontramos passagens que louvam os campos do Midwest estadunidense, tais como a que segue: Eu sou o Oeste, o longo Oeste dos pores-do-sol. Eu sou os campos profundos onde o milho cresce. A doçura das maçãs está em mim. Eu sou o início e o fim das coisas. (...) A carícia daqueles que estão cansados veio para dentro dos milharais. (ANDERSON, 1918, location 281) A Mid-America, especialmente com relação à tradição agrícola e ao modo de vida ligado ao campo que ali surgiram, passa a ser uma espécie de referência para Anderson, uma realidade digna de ser cantada, inclusive como forma de se opor a uma realidade diferente, que forma seu negativo: a realidade do "industrialismo". Considerando a passagem anterior, é muito provável que aqueles que "estão cansados" e que vão para "dentro dos milharais" sejam justamente aqueles que, como Anderson, sofreram as agruras da instável e poluída vida urbana, e encontraram nos campos a "carícia" dos milharais e a "doçura das maçãs". Os cânticos são formas de traduzir de maneira poética o Oeste e os homens que o habitaram, conclamando seus descendentes a levantar suas vozes para cantar contra as imposições humanas das transformações históricas. Os ecos dessa conclamação encontram-se reverberando na seguinte passagem: Eu não serei esmagado pela máquina de ferro. Cante. Ouse cantar. Beije a boca da canção com seus lábios. À manhã e ao anoitecer Confie na força terrível da canção indômita (ANDERSON, 1918, locations 905-920) Há um inegável tom de crítica em relação ao industrialismo, embora haja também um quê de fuga em buscar no campo aquilo que a cidade não parecia poder oferecer, tão entranhada estava no industrialismo. A escolha mesmo do "industrialismo" como contraponto à "doçura" do campo é algo que não passa incólume por ressonâncias históricas: os Estados Unidos do final do século XIX e início do XX eram uma sociedade e uma economia que se industrializavam cada vez mais e esvaziavam cada vez mais seus campos, quando não os mecanizavam. O avanço do "industrialismo" por sobre o campo estadunidense não passou despercebido pelos olhos de Sherwood Anderson, pois ele compreendeu e retratou as mudanças que acompanhavam - e fomentavam - a inserção dos milharais na órbita capitalista, como permite enxergar o seguinte excerto: Eu não sou como o banqueiro Walker (...) Ele pensa sobre o cultivo de milho em termos de engorda de cabeças de gado na fazenda Rabbit Run; eu penso sobre o cultivo como algo majestoso. Eu vejo as longas ruas de milho com homens e cavalos semi-escondidos, quentes e ofegantes, e penso num vasto rio de vida. (ANDERSON, 1916, location 713) Sam McPherson não conseguia conciliar sua visão acerca do campo com aquela mais sintonizada com os interesses capitalistas. Para Anderson, a julgar pelo conjunto das obras de 1910 e mesmo as posteriores, o mundo rural era um "vasto rio de vida" cujos potenciais dividendos dele provenientes eram elementos secundários. A proximidade ontológica da ligação do escritor com o mundo de feições rurais de outrora encontra-se explorado em sua beleza poética na seguinte passagem: Fundo em meu velho vale jaz o homem nu. Ele é uma semente. A semente dorme nele. Esse homem será o pai de uma tribo, de uma raça. Ele é o mundo e todo um mundo tem estado nele adormecido (ANDERSON, 1918, locations 580-595) A sacralidade subjacente a esse retrato certamente consideraria sacrílego um pensamento que tome os lucros da terra antes da riqueza transcendental de um mundo, em forma de um "homem-semente", nele adormecido. Aquela angústia experimentada nos longos e árduos anos de tentativas, fracassos e perseverança de Chicago, deságuam na tranquilidade muito mais humana dos campos do Midwest. É precisamente esse sentimento que veio a coroar Sherwood Anderson quando da publicação daquela que é tida como sua obra-prima: Winesburg, Ohio, de 1919. No corpo de pequenas histórias, o escritor faz várias trajetórias de personagens se entrecruzarem, tendo como o protagonista virtual da trama o jovem George Willard, um jovem jornalista aspirante a algo maior do que aquelas promessas de sua cidadezinha. Uma das razões que faz de Winesburg, Ohio uma obra significativa para uma análise historiográfica dos escritos de Anderson é o fato de que o livro celebra a vida das pequenas cidades num conflito com aquele mundo existente para além delas, aparentemente tão grandioso e promissor, mas que proporciona tantas experiências traumáticas, como as do próprio escritor. As histórias do livro de 1919 exploram a beleza da simplicidade do cotidiano e da vida da pequena cidade de Winesburg. Através da narrativa, Anderson vai dissecando a beleza da pequenez e o grande sentido humanista e sensível que ele via em tal tipo de vida. Em si própria, pode não parecer uma obra de peso enquanto documento histórico, mas posta diante da trajetória existencial de Anderson e das obras literárias que ele produziu antes dela, Winesburg, Ohio se redimensiona, tornando-se um livro de profundos significados históricos. Na medida em que Sherwood Anderson valorizava o tipo de vida levado nas pequenas cidades tais como Winesburg, e na medida em que ele criticava a vida encontrada nas grandes cidades tais como Chicago, vemos que algumas fibras do tecido histórico e humano daquela realidade foram retratadas e cotejadas pelo escritor em suas obras. O conjunto de transformações em curso na sociedade e economia estadunidenses foram compreendidos e retratados por Sherwood Anderson ainda que ele se valesse dos filtros de sua experiência para fazê-lo. Por mais restritas e específicas que as obras de Anderson possam parecer nesse sentido, as conexões entre elas e a realidade histórica mais ampla são inegáveis. A "totalidade" proporcionada pelo romance, segundo escreveu Lukács em O romance histórico (2011), encontra-se nas frinchas em que a experiência de Anderson, de suas histórias e de seus personagens, as quais encerram profundos sentidos acerca do que era a realidade histórica para diversos sujeitos naquela conjuntura de transformações. A mudança no mundo do trabalho e na forma como, por exemplo, a vida de egressos de pequenas cidades corria era marcada pela constante instabilidade e incerteza, de modo que a busca por tranquilidade se tornasse algo pleno de significado para Anderson bem como para outros sujeitos que se encontravam em situação similar. É diante de toda aquela vida e literatura pregressa que Winesburg, Ohio tem de ser compreendida, isto é, como parte de um processo histórico em que mesmo as obras ditas "menores" se enchem de significação exegética e historiográfica. A trajetória de Sherwood Anderson e sua literatura nos anos 1910 conta a história de como aqueles grupos sociais que tiveram o status quo de sua existência social e subjetiva abalados procuraram lidar com a intempérie dos tempos: ora tentando inserir-se no mundo que se transformava, ora marchando sem rumo definido, ora voltando-se à experiência passada, ora celebrando a tranquilidade humanista como antídoto a um mundo que lhes fugia ao controle. Nesse sentido é que se desenha a historicidade dos livros de Anderson. Não por sua referência cronológica ou pela simples associação mecânica da vida do escritor e de sua obra, mas da confrontação dos usos da literatura - temática e esteticamente falando - com tudo aquilo que constituiu a experiência histórica do escritor. E tudo isso, por sua vez, levando em consideração a subjetividade do escritor-sujeito histórico em existir, ontologicamente falando. Ainda que a literatura de Anderson não seja arquetípica, ou ainda que a vida dele não seja analogamente extensível à totalidade dos sujeitos sociais daquela sociedade ou mesmo daquele grupo social, é possível entrever traços, elementos e visões que permitem enxergar parte importante do que era aquela realidade e o que era aquele processo histórico. Dentre outras razões, é por conta dessa riqueza documental, metamorfoseada por toda a carapaça e as entranhas literárias e ficcionais, que vale a pena voltar os olhos à obra de Sherwood Anderson. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON, Sherwood. Marching men. Disponível em <http://archive.org/details/ marchingmen00anderich> Acesso em: 1 jul. 2013. __________. Mid-American chants. Disponível em <http://archive.org/details/midame ricanchan00andegoog> Acesso em: 1 jul. 2013. __________. The triumph of the egg and other stories: A Book of Impressions from American Life in Tales and Poems. Disponível em <http://archive.org/ details/cu319240 22236776> Acesso em: 1 jul. 2013. __________. Windy McPherson's son. Disponível windymcphersonss07443gut> Acesso em 1 jul. 2013. em <http://archive.org/details/ __________. Winesburg, Ohio. Tradução de James Amado e Moacyr Werneck de Castro. Porto Alegre: L&PM, 1987. BOTTOMORE, Tom B. Críticos da sociedade - O pensamento radical na América do Norte. Tradução de José Ricardo Brandão Azevedo. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. LUKÁCS, György. O romance histórico. Tradução de Ruben Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. MILLS, C. Wright. A nova classe média. 3ª ed. Tradução de Vera Borda. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. TOWNSEND, Kim. Sherwood Anderson. Boston: Houghton Mifflin Company, 1987. Romance Histórico: Rupturas Iniciais ao Modelo Clássico LOPES, Rodrigo Smaha (UNIOESTE)13 13 Mestrando do Programa de Pós-Graduação Stricto Senso em Letras, Área de concentração em Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE/Cascavel). Integrante do Projeto de FLECK, Gilmei Francisco (UNIOESTE)14 RESUMO: Neste trabalho buscamos: expor como se deu a gênese do romance histórico, por Walter Scott; apresentar as características dessa narrativa em seu modelo clássico; e tratar de duas produções românticas, uma norte-americana, The last of the mohicans (1826), de James Fenimore Cooper e outra hispano-americana, Xicoténcatl (1826), de autoria anônima, a fim de mostrar como a primeira segue, quase em sua totalidade, os padrões do gênero inaugurado por Scott, enquanto a segunda, de mesmo ano, porém, com locus enunciativo e contexto ideológico distinto, apresenta, com um olhar avant-garde, rupturas em relação ao modelo clássico. Como base teórica, utilizamos alguns dos pressupostos e conceitos do romance histórico, escrita híbrida que objetiva fazer uma releitura da histórica pela ficção, reconfigurando, poeticamente, personagens e fatos do passado. Esperamos possibilitar aos leitores da literatura, mais especificamente do romance histórico, um olhar geral sobre ambas as narrativas e sobre o romance histórico em seus primórdios, mostrando como o gênero em questão sofreu modificações em sua estrutura e linguagem em um curto espaço de tempo, doze anos mais especificamente. Essa tarefa se realiza com o apoio de autores como Lukács (1970) Márquez Rodríguez (1991), Abrantes (s.d.), Menton (1993), Mata Induráin (1995), Prieto (2003), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Romance Histórico Clássico; The Last of the Mohicans; Xicoténcatl. ABSTRACT: This paper aims at: exposing the genesis of the historical novel by Walter Scott; showing the characteristics of this narrative in its classic model; and addressing two American romantic works, one North-american, The Last of the Mohicans (1826), by James Fenimore Cooper and an Hispanic-american one, Xicoténcatl (1826), written anonymously, in order to show how the first follows, almost entirely, the standards of the genre inaugurated by Scott, while the second, from the same year, with an enunciative locus and ideological context distinct, presents, with an avant -garde look, ruptures in relation to the classical model. As theoretical background, we use some of the assumptions and concepts of the historical novel, hybrid writing that aims at re-reading the historical fiction by reconfiguring, poetically, characters and events of the past. We hope to present readers of literature, specifically the historical novel ones, with a general look at both narratives and at the historical novel in its infancy, showing how the genre in question has undergone changes in its structure and language in a short time, twelve years specifically. This purpose is accomplished with the support of authors such as Lukács (1970) Márquez Rodríguez (1991), Abrantes (s.d.), Menton (1993), Mata Induráin (1995), Prieto (2003), among others. KEYWORDS: Classic Historical Romance; The Last of the Mohicans; Xicoténcatl. INTRODUÇÃO extensão "Literatório: a prática da literatura na escola", vinculado ao Programa PELCA - Programa de Ensino de Literatura e Cultura. E-mail: [email protected] 14 Gilmei Francisco Fleck - Professor Adjunto da UNIOESTE/Cascavel na Graduação em Letras, nas áreas de Literatura e Cultura Hispânicas, e na e Pós-graduação em Letras, nas áreas de Literatura Comparada e Tradução. Doutor em Letras pela UNESP/Assis. Vice-líder do grupo de pesquisa “Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura”. Coordenador do PELCA: Programa de Ensino de Literatura e Cultura. E-mail: [email protected] O inaugurador do gênero híbrido que hoje conhecemos como romance histórico foi o escritor escocês Walter Scott (1771–1832). Anteriormente às suas produções híbridas conscientes da mistura entre história e ficção – como Waverley (1814), Rob Roy (1817) e Ivanhoé (1819) – publicaram-se obras com temas históricos, porém, a estas lhes faltava um olhar sobre a realidade social como sendo um produto da história, uma representação artística fiel de um período concreto, configurado por meio de personagens e suas ações. Assim, “a la llamada novela histórica anterior a Walter Scott le falta precisamente lo específico histórico: el derivar de la singularidad histórica de su época, la excepcionalidad en la actuación de cada personaje. (LUKÁCS, 1997, p. 15). Ao falar do romantismo do século XVIII, Lukács afirma, ainda, que os escritores refletiam: “[...] las características esenciales de su época con un realismo audaz y penetrante. Pero no saben ver lo específico de su propia época desde un ángulo histórico”. (LUKÁCS, 1977, p. 16). O crítico refere-se à ideia de que cada momento na existência de um grupo ou de uma nação é condicionado por um passado que deveria ser representado de forma mais consciente pela ficção quando essa se alimenta do passado histórico. Entretanto, é necessário entender que o material histórico terá um tratamento diferenciado ao ser incluído na trama romanesca. Lukács (1977), como primeiro estudioso do gênero romanesco em questão, busca trazer tal diferenciação entre os romances que apenas exploram a temática histórica daqueles romances históricos clássicos produzidos por Scott. Segundo seus registros, no primeiro caso, temos uma narrativa na qual a historicidade não é penetrante e os fatos do passado trazidos para a trama romanesca serão apreciados apenas na sua superfície. No segundo tipo de narrativa híbrida mencionada há uma tematização de um período histórico concreto, exposto na ficção, sobretudo, a partir das crises oriundas dos conflitos de classes. As características mais evidentes desse tipo de romance, de acordo com Carlos Mata Induráin (1995, p. 16-20), que se baseia no texto de Lukács sobre o romance histórico, são as seguintes: 1. Situam uma ação fictícia, inventada, narrada em primeiro plano, em um passado real, histórico, mais ou menos longínquo; 2. Narrativas que reconstroem a época em que se situa a ação de forma rigorosa; 3. É um gênero híbrido, mistura de invenção e discurso historiográfico. Assim, ficção e história se entrecruzam na junção de elementos históricos com elementos inventados pelo romancista e isso pode ser facilmente comprovado pelo tema ou argumento utilizado pelo ficcionista. De outra forma, é possível definir, ao ler os textos de Lukács (1977), Márquez Rodríguez (1995) e Mata Induráin (1995), as principais características dos romances históricos românticos, por meio de quatro características básicas, a saber: 1-Presença de um “pano de fundo” cuja ambientação é feita com base em um período histórico real, mais ou menos distante do tempo do romancista. Este “pano de fundo” é constituído de um rigoroso caráter histórico e da apresentação de personagens históricas bem conhecidas que agem segundo as normas de sua época, conservam traços físicos, emocionais e psicológicos que já lhe foram atribuídos pelo discurso historiográfico e localizam-se em situações historicamente comprovadas. Busca-se, assim, ensinar história pela ficção, não há questionamentos sobre a forma como esse passado foi apresentado anteriormente; 2-Uma trama ficcional na qual personagens são artisticamente compostas é apresentada, mas estes se adéquam às características de existência comum, dadas pelos personagens de extração histórica da época real do “pano de fundo”. Os personagens ficcionais vivenciam suas aventuras, ações que são o centro da narrativa. Ou seja, há dois planos bem definidos. 3-Apresentação, nesta trama ficcional em primeiro plano, de uma história problemática de amor, cujo desfecho pode ser tanto feliz quanto trágico, mantendo-se dentro dos padrões românticos da época; 4-A trama ficcional é o componente essencial da obra e nela se concentra a atenção tanto do autor como do leitor. O contexto histórico real constitui somente “pano de fundo”. É do enfrentamento entre as personagens principais, de caráter ficcional, e das secundárias, históricas e de extração real, que se originam alguns dos argumentos fundamentais da trama. No romance histórico clássico, segundo Lukács (1977), em seu estudo de análise de todos os processos que levaram ao surgimento desse gênero, pode-se perceber um conjunto de características específicas desse gênero romanesco, com relação aos personagens. A primeira delas seria a escolha de personagens medianas, desprovidas de uma elevação “natural” que as colocariam diretamente em um nível superior, ou seja, o ethos não possui relevância para a caracterização das personagens puramente ficcionais no novo gênero. Uma segunda característica tem relação com o tratamento dispensado aos personagens de extração histórica, que no romance histórico clássico, diferentemente das epopeias e tragédias, ocupam um lugar secundário na trama. Elas continuam, porém, a preservar toda a sua importância, pois são figuras consagradas antes pelo discurso historiográfico. As personagens de extração histórica são a peça fundamental para a criação das obras, pois é em torno a elas que são representadas as crises históricas que se quer pôr em evidência pela ficção. No texto híbrido essas crises são tratadas indiretamente, buscando-se ressaltar não o momento em si, mas as consequências e efeitos que essas transformações causaram nos personagens. As crises mudam não só a história, mas também, e de maneira profunda, os destinos pessoais, perpassando por relações entre pais e filhos, amantes e amadas, enfim há um entrelaçamento entre o indivíduo e o momento histórico. Essa era, talvez, a forma “crítica” que se ocultava nas profundas redes do romance histórico clássico, já que nele não se buscava, de forma alguma, contestar as “verdades” cristalizadas pelo discurso histórico sobre as personagens e suas ações realizadas no passado reconstituído na trama ficcional. Pelo contrário, nessa primeira modalidade de romance histórico, a ficção se irmanava com o discurso historiográfico. Não obstante, por meio das obras Xicoténcatl (1826) e The Last of The Mohicans (1826), mesmo ambas pertencendo ao gênero clássico, apresentam algumas divergências em relação à este, conforme veremos na sequência. 1 XICOTÉNCATL (1826) A obra foi escrita no México, publicada na Filadélfia, e possui autoria anônima. Contudo, alguns críticos tentam desvendar a nacionalidade do autor. Um deles, Pedro Henriquez Ureña (1928), diz o seguinte: No cabe pensar que el autor de Jicoténcal sea otra cosa que americano: las censuras a los conquistadores son demasiado fuertes hasta para un español liberal de entonces. Y la especie de patriotismo indígena que alienta en la obra hace pensar que el autor ha de ser mexicano. (UREÑA, 1928, p. 243) A América hispânica se revelou, com a publicação dessa narrativa, que apresenta a lentidão e a elevação moral comum aos escritos do final do século XIII e começo do XIX, conhecedora da modalidade romanesca tão explorada na Europa de então: o romance híbrido de história e ficção. Um desenvolvimento calmo e um diálogo sensato colocam tal obra no seio da literatura neoclássica tardia que foi predominante no período anterior ao advento do Romantismo. Narra-se o encontro entre dois mundos: o dos conquistadores europeus e o das civilizações americanas pré-colombianas (ANÓNIMO, 1826a). Dividem o espaço protagônico da obra, de um lado, Hernán Cortés e Malinche – por meio da qual temos uma temática da obra: a relação inter-racial: pois ela é uma mulher nativa que ajudou o europeu na conquista. Porém, nesse caso de narração híbrida hispano-americana a união dos dois se concretiza e dela se gera um filho, considerado o primeiro mestiço dessa região americana. Além desse exemplo, temos outra tentativa de união inter-racial que se dá por meio da tentativa de Cortés em “conquistar” Teutila, mulher de Xicoténcatl filho. Esta, contudo, não resultou exitosa – e, de outro lado, o jovem Xicoténcatl, que atua de forma direta na construção do discurso histórico, e toda a sua tribo Tlaxcalteca. Pelo fato de tais personagens dividirem o espaço de destaque da obra, temos, assim, a primeira ruptura em relação às características do romance histórico clássico, anteriormente mostradas. Ocorre a ficcionalização de personagens históricos, ao contrário da fórmula de Walter Scott, aprovada por Luckács, que se utilizava de personagens fictícios como protagonistas. Ou seja, nessa obra, o fato histórico em si que, nos romances clássicos anteriores constituía-se em pano de fundo, é tema central e único do romance, com um ambiente histórico rigorosamente reconstruído, no qual figuras históricas ajudam a fixar a época, agindo conforme a mentalidade de seu tempo e os personagens e fatos não são inventados pelo autor, mas recriados sob outras perspectivas. Tais fatos e personagens existiram na realidade da conquista do México. O fictício também está presente de modo suficiente para conferir ao texto valor romanesco e não historiográfico, portanto, os elementos fictícios e os históricos se fundem de forma harmoniosa. Com o deslocamento da ação principal, os elementos fictícios “serán mas bien observaciones personales del novelista; suposiciones justificadas por el caráter omnisciente del narrador; pequenísimas e intrascendentes alteraciones de elementos de la realidad histórica.” (MÁRQUEZ RODRÍGUEZ, 1991, p. 39). Ou seja, no romance histórico clássico, o narrador apresenta-se, geralmente, na terceira pessoa, fato que confere ao texto um maior distanciamento e imparcialidade, já em Xicoténcatl, com o abandono de dois planos bem definidos, cria-se a possibilidade de atuação de um narrador que terá mais liberdade, capaz de revelar as vozes interiores dos personagens, seus fluxos de consciência, em primeira pessoa; além de estabelecer diálogos com o narratário e expressar opiniões sobre personagens e ações por elas efetuadas. Na obra os nativos Tlaxcaltecas, assim como outras tribos da região mexicana, são exaltados; e os conquistadores espanhóis, severamente denunciados – tema que seguirá repetindo-se no romance histórico-latino americano – invertendo-se, assim, o discurso da conquista do México a partir de um foco narrativo centrado na visão dos autóctones que revela a hipocrisia e as intrigas das negociações feitas por Cortés para, finalmente, conquistar a Cidade do México e derrotar todas as resistência a sua invasão. Esse discurso crítico em relação à história oficial é uma das maiores rupturas desse romance de 1826 com a modalidade clássica scottiana anterior. Ou seja, mesmo sendo esse o primeiro romance histórico da América Latina, já é possível observar nele uma maior criticidade em relação aos movimentos sócio-políticos, uma fuga do discurso pacificador da colonização da América, uma clara posição anti-hispanista em relação ao discurso produzido pelo conquistador sobre os eventos narrados na perspectiva eurocêntrica da história positivista. No romance se descreve desde a chegada de Hernán Cortés e seu exército na fronteira da república de Tlaxcala, no outono de 1519, e a resistência oferecida no início pelas tribos autóctones, até a morte de Xicoténcatl filho, em 1521. As tribos, uma vez derrotadas, fornecem a colaboração que ajudou o conquistador espanhol no seu avanço em direção a Tenochtitlán. Essa trajetória culminou com a última derrota dos nativos e a conquista do Império Asteca pelos espanhóis. Com a chegada de Cortés em território dos Tlaxcaltecas, Xicoténcatl filho assume o poder. Ele propõe aos guerreiros nativos que lutem contra os espanhóis invasores. Contudo, o influente nativo Magiscatzin, persuadido por Cortés, força o jovem guerreiro pelas artimanhas realizadas no Senado a colaborar com o líder espanhol. Xicoténcatl o pai, cuja configuração revela forças morais e qualidades que são diretamente opostas aos defeitos e fraquezas morais de Cortés, respeita a resolução do Senado de Tlaxcala, que apoia Magiscatzin, e induz seu filho mais rebelde a obedecer a essa decisão até que possam encontrar outro meio de resistência. O jovem aceita o designío de seu pai, porém, segue relutante e cheio de suspeitas. O personagem, Xicoténcatl o filho, tem uma configuração idealizada na obra: é decisivo e inteligente. Tem grande força de vontade, a personalidade forte, porém sensível. Ele é um homem fiel, honesto e comprometido. Determinado, um jovem distinto, possuidor de talentos militares, dons naturais e um grande amor pela sua nação. Ele possui uma voz sonora e dignificante, é respeitoso, um homem de grandes virtudes. Ele oscila entre o libertador e o bom selvagem, sábio e calmo em seu discurso. Xicoténcatl liderava seu povo de maneira sem igual, atencioso, apaixonado e romântico. A descrição do personagem serve para mostrar uma norma de conduta moralmente digna e politicamente correta, pondo em jogo o poder que rege as palavras e as normas que regem a sociedade moderna. Com relação a tal configuração do personagem, logo na introdução de Xicoténcatl conseguimos apreender o propósito e importância da obra, na qual toda uma corrente de oposição à imagem dos colonizadores está presente e o porquê da configuração do herói anteposta àquela dos europeus: [...] the author’s purpose in the writing of Xicoténcatl was not solely to fictionalize historical events that were and continue to be significant to Mexico and Spanish America as a whole. Had that been his only purpose, they surely would have been little reason for him to hide his identity. There are frequent allusion throughout the novel to the effort that people must exert to attain the freedom from the tyranny that oppresses them. The constant reference to the struggle between the republics of the New World and the empire-building represented by the conquering Spaniards is clearly analogous to the ongoing conflict at the time of the novel’s publication between like forces in Mexico immediately following the wars of independence begun in 1810 and ending in the early 1820s. (ANÔNIMO, 1999b, p. 5) Ou seja, o autor de Xicoténcatl parecia ter o intuito de fazer com que os leitores retomassem a noção de liberdade, não usando o romance como uma forma de dominação intelectual de classes ou somente feito para ensinar a história, manipula, assim, artisticamente trechos da história da conquista do México, conforme nos é informado no estudo introdutório da obra, publicada pela University of Texas Press, cuja tradução ao Inglês foi feita por Guilhermo I. Castillo-Feliú. O autor, conforme vemos nesse estudo, procede assim em sua narrativa a fim de “To add credence and historicity to the events depicted here, the anonymous author intersperses the narrative with generous extracts from Historia de la conquista del Mexico, chronicles of the conquest written by Antonio de Solís (1610 – 1826)” (ANÔNIMO, 1999b, p. 5). Por meio da representação de Xicoténcatl filho, duas temáticas ficam evidentes na obra: a mudança da ideia de família: Xicoténcatl filho é adotivo e também passa a adquirir características do povo de Tlaxcala. Temos, assim, uma ideia de configuração familiar que ultrapassa as fronteiras dos laços sanguíneos para promover, ainda que de forma implícita, uma possível união entre diferentes culturas, buscando-se por um bem comum; e a outra é a introdução do discurso do Colonizador no contexto histórico: Xicoténcatl filho, consegue entender as consequências, nada boas, que estão por trás desse discurso e tenta convencer, de forma falha, os demais nativos de suas percepções. Contudo, outro lado da república também é mostrado por meio do personagem Magiscatzin, cuja configuração malévola se opõe àquela de Xicoténcatl filho: Traidor da causa de seu povo, mentiroso, manipulador, vingativo. Ele é inimigo da família dos Xicoténcatl e se deixa levar por interesses pessoais, guiado ainda mais pela inveja, após a eleição de Xicoténcatl. No entanto, apresenta, também, uma caracterização positiva, por ser, em si, nativo; é um guerreiro talentoso e é valido lembrar-se de que tais características negativas só aparecem após o seu contato com Cortés e seu exército, trazendo à tona a teoria do bom selvagem, do Rousseau, em O Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1750), que diz que o homem por natureza é bom, nasce livre, mas sua maldade advém da sociedade. Aqui, no caso do romance, ela nasce do contato com o colonizador. O personagem nativo malévolo, contudo, ao enfrentar-se com a morte arrependese de toda a sua maldade e está consciente que, no passo seguinte, terá que pagar pelos horrores que cometeu. Sendo assim, ao mesmo tempo em que há exemplos de personagens que possuem e mantêm características cavalheirescas do herói, mesmo em contato com novas culturas, há também aqueles antagonistas, que possuem, sim, boas características, porém após o contato que estes tiveram com os colonizadores, suas características boas foram anuladas. Estes vão se tornando subordinados aos colonizadores, na esperança de que essa relação lhes seja benéfica. Vale lembrar que isso não quer dizer que os colonizadores, em si, são maus e transmitem tais características aos nativos, mas que tal contato pode tanto acarretar consequências boas como ruins para ambos. A aliança que o imperador Asteca, Cuauhtémoc propôs aos tlaxcaltecas para lutar contra os invasores e que Xicoténcatl filho havia recomendado, é rejeitada sob a influência de Magiscatzin. Conforme Cortés avança em direção à capital do império asteca, ele ordena o enforcamento do jovem Xicoténcatl, pois suspeita que o mesmo tenha um plano para traí-lo. Ao mesmo tempo, sabe-se que o espanhol está apaixonado pela beleza de Teutila, a esposa do líder indígena Xicoténcatl, a quem o conquistador espanhol havia, anteriormente, tentado seduzir. Teutila, contudo, mantém-se fiel, buscando, inclusive, vingar a morte do marido, matando o conquistador, mas, por ironia do destino, o veneno tomado por ela faz efeito antes de que possa levar seu propósito a cabo. O ponto crucialmente dramático para Xicoténcalt filho ao longo da narrativa é sua fatal incapacidade de convencer seu pai e o Senado todo de que a rivalidade entre Tlaxcala e Tenochtitlán é muito menos perigosa e significante que a rendição aos espanhóis e uma organizada colaboração contra os Astecas. O jovem Xicoténcatl se destaca como uma exposição idealizada do “Novo Mundo” prestes a sofrer irreversíveis mudanças devido à conquista espanhola. Todo o processo de conquista do México muda de perspectiva nesse romance, uma vez que os fatos são apresentados pela perspectiva dos nativos, em especial a de Xicoténcatl filho; ou seja, há um deslocamento do locus de enunciação, transferindo-o do homem europeu para o nativo. É a primeira vez que isto ocorre em um romance histórico. Pelo discurso ficcional, os nativos são enaltecidos e os conquistadores, sempre heroicizados pelo discurso historiográfico, são denunciados como hipócritas, falsos, inescrupulosos e gananciosos. Além disso, vale ressaltar que, na literatura hispano-americana desse período, exemplos laudatórios das ações dos europeus no “Novo Mundo”, como Colombo ou qualquer outro espanhol da fase do “descobrimento” e conquista, submetidos aos parâmetros scottianos, voltados à recriação ficcional da história da América, são praticamente inexistentes. Os nativos, nomeados de Americanos na obra, são nobres e moralmente corretos, com um caráter: “belicoso, sufrido, franco, poco afecto al fausto y enemigo de la afeminación” (ANÓNIMO, 1826a, p. 80). Apenas Magiscatzin, como já mencionado, membro do Senado Tlaxcalteca, é exceção: ele é um traidor da causa de seu povo, inicialmente por abusar de uma moça da tribo vizinha, deixando-a com marcas; e por se subordinar a Hernán Cortés e se aliar à causa espanhola. Silvia Benso (1988, p. 113), em um artigo sobre a obra, descreve o estado de Tlaxcala, como uma espécie de civilização ideal, utópica: “incontaminado, cerrado al comercio del oro y de la plata, famoso por la rectitud de sus gentes, por la justicia de su senado”. E, conforme afirma Brushwood (1973, p. 87), em Xicoténcatl (1826): “se siente un respeto ilimitado por la bondad del hombre en su estado natural y se pone en tela de duda el valor de las instituciones sociales que niegan el origen común y la igualdad de los hombres”. Esse é, pois, o conflito que vive o jovem guerreiro: seguir seus próprios impulsos de justiça e retidão, ou submeter-se aos desígnios coletivos (manipulados e negociados) do senado de sua república. Como última temática, podemos citar a morte: nesse romance, tal temática, como uma forma de submissão mesma, é tratada de forma vinculada à crítica ao sistema dominador e revela a perda da resistência, o produto do processo de imposição sofrido pelos nativos do continente, pois a morte do herói, Xicoténcatl filho, condenado à forca por razões políticas, serve como forma de mostrar a quebra da resistência, a impossibilidade da continuação de uma união que poderia gerar frutos conscientes da situação do autóctone frente ao invasor europeu. 2 THE LAST OF THE MOHICANS (1826) A segunda obra, The Last of the Mohicans (1826), é considerada a obra de maior importância do norte-americano James Fenimore Cooper (1789–1851). Ela fez com que ganhasse fama internacional e, atualmente, tal romance é considerado um clássico mundial. Cooper, devido a sua criação em New Jersey, em região praticamente inexplorada na época, conviveu com desbravadores e nativos, e com a natureza. Fato esse que o fez gostar de narrar aventuras baseadas nas histórias dos mais velhos. Aventura, poesia, violência, imaginação e história são alguns dos elementos que estão à disposição do leitor. Entre os elementos que qualificam tal obra destaca-se o seu teor histórico que fornece dados para o entendimento do processo de colonização norte-americana, ou melhor, de uma fase marcante desse processo. Além do conflito entre os brancos, oriundos das duas grandes potências europeias, Inglaterra e França, está representada na obra, também, a disputa entre brancos e nativos e entre nativos de tribos diferentes, pois os ingleses tinham, também, seus aliados de pele vermelha. Os moicanos – povo nativo que habitava as proximidades do lago George e que foi arrancado de suas terras com a chegada dos brancos – exemplificam a luta pela sobrevivência, já que eles foram algumas vítimas do processo de colonização. O pano de fundo do romance é a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), na qual Ingleses e Franceses se confrontaram em solo americano, e se utilizaram da destreza indígena para conquistarem as terras da região. Além de a obra mostrar a manipulação do nativo pelo colonizador, ela trata de um dos principais antecedentes do processo de independência dos Estados Unidos. A narrativa contextualiza os eventos do passado e mostra ao leitor aspectos a respeito do processo de colonização norte-americana, com lugares e personagens cuidadosamente retratados. O romance, por se tratar de um gênero híbrido, obviamente, mistura ficção e realidade para nos fornece uma configuração do tempo, do espaço e do comportamento das pessoas que viveram em tal época, com uma mistura de suspense, ação, drama e romance. Resumidamente, a obra trata da história de duas irmãs, Cora e Alice Munro, filhas do general Munro. Elas estão tentando encontrar seu pai e nessa busca são guiadas até um forte, no qual o general se encontra, por um exército, pelo Oficial Duncan Heyward e por Magua, um nativo da tribo Huron. Nessa trajetória eles encontram Hawkeye, homem branco criado pelos nativos, e seus amigos Moicanos, Chingachgook e Uncas - por meio destes, temos uma das temáticas da obra: a mudança da ideia de família: uma vez que, quando o pai de Uncas desaparece, Hawkeye se torna seu pai simbólico. Uncas, ao longo da obra, passa a adquirir algumas de suas características, isto além de representar uma família não formada por sangue, representa uma de raças diferentes, fato que Cora e Uncas, conforme veremos na sequência, não conseguiram constituir. - Após o encontro, Magua é então revelado como traídor por Hawkeye por estar guiando as filhas de Muron ao caminho errado. Após isso Magua foge, porém consegue capturar as Murons na manhã seguinte. Os nativos de pele vermelha são descritos no romance como temíveis, selvagens, especialmente os Hurons. Os Moicanos, no entanto, se mantêm acima das demais tribos. Após uma série de conflitos e tentativas de conciliação, somente Alice se salva, sendo Cora morta por um Huron. Uncas tenta se vingar, porém, é morto por uma facada de Magua, que também morre, logo em seguida, por um tiro de Hawkeye. Ocorre, então, a morte de Uncas, o último grande guerreiro com sangue moicano. Em relação à configuração os personagens, podemos ver que, ao mesmo tempo em que Cooper idealizada certos personagens – como Chingachook e Uncas, por suas falas figurativas e metafóricas, suas descrições físicas refletirem noções de nobreza, e suas ações são sempre altruístas, generosas e puras – ele configura outros de forma malévola, como Magua e outros Hurons, por exibirem tendências sub-humanas, uma disposição antinatural para violência e o hábito de comer carne crua. Essa dicotomia entre idealização e maldade levará ao eventual triunfo que representará a imagem do Nativo americano para a Cultura americana. Porém, há, ainda hoje, controvérsias sobre tais representações. Ao lermos Romancing the Indian, An Introduction criado pelo grupo de pesquisa do professor Henry Nash Smith, temos a explicação de alguns dos motivos que levaram Cooper a configurar os nativos de tais formas: Not all stereotypes in nineteenth-century literature depicted American Indians as villains; some portrayed them as naturalistic saints. These polarities, demonizing and idealizing, are different forms of romanticizing: idealization romanticizes the positive, and demonization romanticizes the negative. Both terms are expressions of extravagance: the former is extravagant praise, and the latter is extravagant criticism. Neither courts reality more than the other; both equally ignore it. Em The Last of the Mohicans o próprio título simboliza a morte da cultura indígena e o início da dominação Europeia. Na obra percebemos a presença de um discurso apologético, que privilegia a visão dos vencidos, e críticas, em relação à colonização, que são trazidas de forma implícita. Em The Last of the Mohicans o pano de fundo é o ambiente histórico da Guerra dos Sete Anos, em que figuras históricas ajudam a fixar tal época. Esse pano de fundo força os personagens a terem tais ações, uma vez que o que eles vivem está atrelado à guerra. Não se relata a guerra em si, mas sim as consequências dela. Sobre esse pano de fundo histórico há uma trama fictícia, com personagens e fatos criados pelo escritor: Coronel Munro, Marquis de Montcalm, the Indian nations, e o massacre do Fort William Henry, todos encontram sua base na realidade, porém são significativamente alterados, uma vez que são ficcionalizados. Cooper trata também do papel da religião na selva ao expor que o personagem David Gamut, com seu calvinismo intenso, simboliza a entrada de um modelo europeu de religião no Novo Mundo. Ele tenta evangelizar os nativos por meio de seus salmos, ao pensar que seria uma tarefa fácil, assim como pensou Cristovão Colombo que, em seu relato primeiro sobre nossas terras, afirma: “[...] y creo que ligeramente se harían cristianos. (VARELA, 1983 p. 62-63). Porém, percebe-se um escárnio frequente de Hawkeye sobre a salmodia de Gamut, sugerindo que a religião institucional não deve tentar penetrar na selva e converter seus habitantes. Na obra se percebe um posicionamento de repulsa do narrador em relação à religião, que muito mais do que salvar, destruirá. O romance de Cooper é mais facilmente entendido por meio de uma análise de oposições. A narrativa ganha seu impulso a partir da justaposição de elementos opostos como os Franceses e Ingleses, o Nativo e o Branco, e de justaposições mais particularizados de personagens tipos. A complexidade da estrutura do romance é sugerida pela densidade de tais contrastes, que não só fornecem comparações entre o Velho e o Novo Mundo, mas, também, refletem esses mundos em si mesmos, eliminando a possibilidade de avaliações simplistas. Na obra de Cooper, Uncas e Magua, ambos chefes sem uma tribo, estão em contraste com os outros e com os europeus presentes na obra, provocando uma negociação mais complexa de culturas. Uncas é bonito, forte, e sem marcas, Magua é "um selvagem" na aparência, pintado e marcado pelos costumes, pela guerra, e punição. Assim, enquanto Uncas é um nativo "puro", não contaminado pelo contato com os europeus corruptos, por isso ele é "intocável" na aparência, um nobre selvagem, a corrupção crescente de Magua está literalmente inscrita em sua carne. Uncas, por sua vez, reflete o Major Heyward, ambos apaixonados por uma das irmãs de Munro, sendo apenas Heyward capaz de defendê-la adequadamente. Além dessas, a relação entre os personagens: Webb/Munro, Munro/de Montcalm, e Heyward/Gamut fornece uma comparação sobre a visão de mundo europeia. Ou seja, Cooper fez com que todas estas representações: nativo-nativo, europeu-europeu e nativoeuropeu estivessem presentes em sua obra. Por meio dos personagens Uncas e Heyward, encontramos uma das temática presentes na obra: a união inter-racial. Essa menção ocorre no relato que descreve a relação entre Uncas e Cora. Cooper retrata isso de forma ambígua, pois, ele nega o estereótipo do século XIX, de relações inter-raciais, no qual este tipo de romance é considerado pecado, mas não projeta, no nível da narração, uma verdadeira união inter-racial. O romance entre Alice e o Major Duncan Heyward, projeta a formação incipiente de um povo euro-americano. Por outro lado, a atração do chefe Huron Magua por Cora representa uma ameaça nacional de miscigenação e, por mais que Cooper também sugere que Uncas, um herói digno, filho de Chingachgook, secretamente ame Cora, ele descarta a possibilidade da relação inter-racial ao optar pela morte dos três personagens em luta no clímax do romance. Para explicar a atração de dois nativos por Cora, o autor revela que a filha mais velha de Coronel Munro foi o produto de seu primeiro casamento, nas Índias Ocidentais, com uma mulher de sangue branco e Africano. Assim, apesar de Cooper, por meio de Munro, lamentar a escravidão e, por meio de Magua, descrever as múltiplas injustiças sofridas pelos povos nativos e que eram promovidas pelos colonizadores, ele encontra uma forma de evitar uma futura nação americana com descendentes de Cora e Uncas. A morte dos personagens, outra temática, romântica, surge na obra como solução à problemática do relacionamento inter-racial, o qual a sociedade não queria enfrentar. A morte atua, assim, como uma eventual realização dessa impossibilidade social da época, uma vez que, assim como menciona Barros (2003, p. 20-21), “no apogeu do racismo científico (século XIX), momento em que as interpretações poligenistas ganham maior destaque, observa-se uma condenação impiedosa ao que seria o relacionamento indesejável entre seres de “espécies” diferentes”. Alômia Abrantes, em seu resumo sobre a obra de Cooper, afirma que: “a morte, como todas as emoções e crenças que suscita, é o que fica mais forte da leitura de The last of the Mohicans. Ela sintetiza a complexidade do sistema de dominação escolhido e praticado pelos homens, nessa e em outras fases da história mundial.” (ABRANTES, s.d, p. 150). CONSIDERAÇÕES FINAIS Tais romances servem de amparo para se apreender as configurações que o romance histórico tomou em diferentes regiões da América, em um curto espaço de tempo, porém dentro do mesmo gênero – o clássico. Embora sejam obras do mesmo ano (1826), sobre a mesma temática (colonização), a hispano-americana é muito mais um modelo de ruptura do clássico, do que um exemplo dele. Por mais diversas que sejam as diferenças estruturais entre as obras, com relação às caracterizações, tanto Cooper quanto o autor anônimo representaram de forma semelhante os nativos e os colonizadores, dando mais voz aos primeiros. Nestes, o processo de colonização é denunciado, tem-se a falta de liberdade acarretando em uma dominação forçada, o que gera em uma mudança na forma como o colonizador e o nativo passam a tratar um ao outro, assim como os demais dentro de suas próprias instituições. Enfatizamos, neste trabalho, o primeiro romance histórico hispano-americano, tendo em vista que este apresenta uma maior ruptura com o modelo clássico scottiano, uma vez que os fatos históricos são o cerne mesmo do romance. Temos, assim, na construção do romance, uma perspectiva de um evento histórico que atua no centro da narrativa, diferentemente do modelo clássico scottiano, cujo primeiro plano é constituído por uma diegese puramente ficcional. A construção do romance aborda de forma diferente o processo de conquista do México, diferindo, contudo, pela perspectiva eleita daquela apresentada na historiografia original, cujos registros mais significativos são aqueles feitos por Hernán Cortés, nas Cartas de Relación (1519, 1520, 1522, 1524, 1526), e seu cronista Bernal Díaz del Castillo, em sua obra Historia verdadera de la conquista de la Nueva España (1568). REFERÊNCIAS ABRANTES, A. O último dos moicanos, uma aventura na américa. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d ANÓNIMO. Xicoténcatl. Imprenta de Guillermo Stavely. Filadelfia, 1ª ed. 1826a. ANÔNIMO. [Jicoténcal. English] Xicoténcatl: an anonymous historical novel about the events leading up to the conquest of the Aztec Empire/Translated by Guillermo I. CastilloFeliú. Texas: University of Texas Press. First edition. 1999b. BARROS, Z. dos S. Casais inter-raciais e suas representações acerca de raça (Dissertação de Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003. 204 p. BENSO, Silvia. Xicoténcatl: para una representación del pasado tlaxcalteca. Romanticismo 34: Atti del IV congresso sul romanticismo spagnolo e ispanoamericano (Bordighera, 9-11 aprile 1987): la narrative romantica. Genova: Facolta’ di magistero dell’ universita’ de Genova, Istituto di lingue e letterature straniere, Centro di studi sul romanticismo iberico, 1988. BRUSHWOOD, J. S., México en su Novela, Fondo de Cultura Económica, México 1973 LOPES, R. S. 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