Marcos Antônio Lopes 142 Hobbes e a dessacralização do absolutismo* Marcos Antônio Lopes** O sentido dessa parábola é que devemos aquiescer a tudo o que disserem aqueles a quem constituímos como reis, dando-lhes autoridade sobre nós — senão estaremos preferindo ser consumidos pelo fogo da guerra civil. Thomas Hobbes (De Cive) Ao reconstituir o percurso intelectual de Hobbes o filósofo teuto-americano Leo Strauss demonstrou as diferentes fases pelas quais passou o autor do De Cive. Em meio ao processo intelectual de afirmação de seu sistema filosófico Strauss analisa as metamorfoses de seu pensamento, desde o início de seu itinerário filosófico, por ele identificado como o ‘período humanístico’. Segue-se a fase de ruptura com o aristotelismo, o engajamento de Hobbes com os ideais da Revolução Científica, culminando com a radicalidade do Leviatã. Um aspecto que chama a atenção no livro de Strauss é a diversificada utilização que Hobbes fez das Sagradas Escrituras, ora utilizando os textos bíblicos como peça de artilharia para uma defesa confiante de seus argumentos ora refutando-os como fundamentos plausíveis para a justificação de princípios políticos. A primeira tendência aparece ainda muito nítida no De Cive. Já a segunda é peculiar ao Leviatã. Naturalmente, e ainda que estes dois livros possam ser lidos como * ** Submetido ao Conselho Editorial em setembro de 2003 e logo indicado para publicação. Doutor em História – Departamento de Ciências Sociais/UEL Hobbes e a dessacralização do absolutismo 143 obras reflexivas — no sentido de que se remetem mutuamente —, a tendência a uma clara secularização de seu pensamento político acentuou-se nitidamente de um texto para outro. Mas este aspecto da exegese hobbesiana — tema específico e por demais complexo — já foi devassado pelos especialistas, entre eles Strauss, e não é o tema destas reflexões. Vai-se tentar aqui uma abordagem acerca da contribuição do autor à ‘obra’ de secularização do Estado moderno. Em seu Thomas Hobbes Norberto Bobbio recorda que o pensamento político do autor do Leviatã “representa um momento decisivo no processo de secularização da política, por meio do qual o Estado deixa de ser remedium peccati para converter-se na disciplina mais firme e segura para as paixões”. (Bobbio 1995: 10). No ensaio intitulado “Hobbes: o medo e a esperança” Renato Janine Ribeiro aponta algumas razões para as numerosas más interpretações de Hobbes, as motivações muitas vezes preconceituosas que culminaram em leituras defeituosas de sua filosofia política e que, por extensão, fizeram dele a “besta negra do absolutismo”. (Cf. Ribeiro 1997: 77). Entre as consideráveis rupturas com a tradição absolutista — à qual ele pertenceu e quis amplificar —, a secularização da política e, por extensão, da realeza sagrada, é uma das singularidades máximas do filósofo inglês.1 O texto que segue aborda este aspecto de suas idéias, na perspectiva de uma história contextual do pensamento político.2 O artigo foi concebido como análise que passa em revista o tema proposto 1 2 Na perspectiva de Reinhart Koselleck “Hobbes est un exemple instructif de la genèse de la théorie politique moderne née de la situation des guerres de religion. Il a déjà renoncé aux arguments traditionnels, comme celui de l’analogie Dieu-roi; au contraire, il veut mettre en évidence les phénomènes dans leur réalité nue à la lumière d’une méthode scientifique et a développé sa théorie politique à partir de la situation historique de la guerre civile”. (Koselleck 1979: 19) Não há espaço neste artigo para discorrer sobre questões de método. Entretanto, a perspectiva de Richard Tuck resume bem o pressuposto central desta abordagem: “Os comentadores de Hobbes tornaram-no a meu ver mais difícil e menos interessante do que ele é na verdade, e situá-lo com mais firmeza nos debates de sua própria época acentua, em vez de reduzir, sua importância nos debates de nosso século”. (Tuck 2001: 10). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.143-101 Marcos Antônio Lopes 144 à luz de alguns comentadores autorizados. Então, será preciso indagar sobre a contribuição pretendida: focar um tema relevante de sua obra freqüentemente subtraído das grandes análises. Ora, é conhecida a irrelevância que o monarquista Hobbes atribuía à teoria clássica das formas de governo, talvez a questão mais recorrente da história da teoria política. Neste sentido, o tema da monarquia — e de seu núcleo vital, a realeza — se constituem na problemática central deste texto. No século XVII a instabilidade e a desordem são males comuns à maior parte das sociedades européias. Este período foi marcado por uma sucessão interminável de grandes conflitos senhoriais que são desdobramentos da “Guerra dos Cem Anos”, da “Guerra das Duas Rosas”, das “Guerras da Itália”, das “Guerras de Religião”, da “Guerra dos Trinta Anos”, da revoltas camponesas contra os desmandos e a exploração das diversas aristocracias. Estes confrontos armados são um traço marcante, sintomático mesmo, da relativa fragilidade do poder e da luta encarniçada por ele: contra este clima de desordem Hobbes escreveu o Leviatã, traçando em seu livro as regras do poder político unitário e indivisível.3 Mesmo na Inglaterra do século XVII não havia ainda formas de poder público ampla e incontestavelmente reconhecidas num espaço territorial que ultrapassasse os domínios de pequenas comunidades e regiões restritas. O tempo de Hobbes foi uma época conturbada, na qual o único elemento universal era a religião cristã, que já havia perdido a sua unidade, o que resultou na Reforma e nas Guerras de Religião do século XVI, em relação às quais a Revolução Inglesa foi um desdo3 No campo de estudos hobbesianos a profusa recorrência do Leviatã é um dado incontornável. Contudo, seria razoável levar em conta dois argumentos acerca da reação à ultradestacada posição deste livro no pensamento político do autor e da necessidade de relativizá-la. Como demonstra Renato Janine Ribeiro, “Hoje, a maioria dos comentadores se concentra no Leviatã, o que nos dá, justamente, uma boa razão para ler Do Cidadão”. (Ribeiro 2002: XXX). Para R. Tuck, “Ainda que o Leviatã seja notável em muitos aspectos, Hobbes não pretendia que ele fosse o corpo principal de suas idéias mesmo em questões políticas e morais, e nossa (compreensível) concentração exclusiva nessa obra distorceu muito daquilo que ele se empenhava em fazer”. (Tuck 2001: 10). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 145 bramento.4 Certamente que motivações religiosas desempenharam importância considerável no processo político que levou à eclosão do evento, como acentua Renato Janine Ribeiro. (Ribeiro 1997: 77).5 Em meio a estas crises está surgindo, na Europa de século XVII, sobretudo na Inglaterra, a maior “invenção” do Ocidente: o Estado moderno, a nova e singular forma de organização política sobre a qual está estruturado o mundo contemporâneo. Como lembra o historiador alemão J.P. Mayer, “O Humanismo, o Renascimento e a Reforma haviam destruído os fundamentos da unidade medieval e traçado as linhas fundamentais de um mundo novo, legando ao século XVII a tarefa de completar a estrutura. (...) O mundo finalmente se havia feito mundano e a razão, situada numa nova dimensão, converteu-se em seu instrumento” (Mayer 1985: 103). Assim é que o Estado moderno hobbesiano, que nunca se instituiu historicamente — apesar das investidas do autor para fazer de seu sistema a base doutrinal de uma nova ordem —, pode ser definido da seguinte forma: uma entidade política autônoma à qual os súditos devem obrigações e deveres como respeito, obediência e impostos. A idéia central expressa em sua concepção de poder é a da soberania indivisível, pedra angular de seu sistema. No tempo de Hobbes — que na concepção de Norberto Bobbio é o mais expressivo filósofo político da Época Moderna6 e que George Sabine consi4 5 6 “La guerra civil, de la que Hobbes había sido espectador aterrorizado, había sido también guerra religiosa”. (Bobbio 1995:63). Naturalmente, houve sempre bem mais do que um sentido confessional naqueles conflitos do início da Época Moderna, cada lado do espectro religioso aplicando-se em purificar a comunidade cristã pela eliminação física do adversario em crença. Na análise sobre as Guerras de Religião na França ao tempo de Montaigne, Peter Burke observa que “These wars also had a political dimension. The great nobles, like the Guises and the Bourbons, did not create the situation, but they did exploit it, in their natural conflict of interest with a monarchy which had recently been pursuing policies of centralisation at their expense”. (Burke 1994: 30). Na avaliação de Reinhart Koselleck, “L’État absolutiste meurt des séquelles non surmontées de la guerre civile de religion, qui, dans une situation changée, remettront la revolution en marche”. (Koselleck 1979: 137). “Hobbes é o maior filósofo político da Idade Moderna, até Hegel”. (Bobbio 1985: 107). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.145-099 Marcos Antônio Lopes 146 dera como o mais expressivo filósofo político de língua inglesa em todos os tempos7 —, as sociedades européias ainda são ordens hierárquicas. A posição social é definida pelo prestígio das ordens. As posições hierárquicas na pirâmide social eram mais rígidas em fins da Idade Média e início da Época Moderna. À medida que as relações econômicas se tornam mais complexas, as monarquias européias passam a necessitar de quadros mais capacitados, criando os ofícios vendidos aos burgueses, que assim se enobrecem. A compra de um ofício no aparelho do Estado é, por assim dizer, a carta de nobreza da burguesia. Detalhe: num tempo em que o ethos se distingue pelo fascínio da posição social no interior da sociedade de corte, em que se encena o espetáculo da realeza, todos querem se enobrecer. Trata-se de uma sociedade de privilegiados. E qual o sentido do privilégio nesta época? Naturalmente, viver em circunstâncias felizes e socialmente reconhecidas e cobiçadas. Foi a partir da filosofia das Luzes que o termo passou a ganhar uma conotação negativa. E foi a Revolução Francesa o evento fundador da idéia de igualdade entre os homens; ou melhor, não da idéia, que também era fruto do Iluminismo, mas de sua aplicação prática.8 No tempo das sociedades aristocráticas o conceito de privilégio significará bem outra coisa. É nada menos que “distinções, tanto úteis quanto honrosas, conferidas a certos membros da sociedade e recusadas a outros”, segundo a narrativa de um testemunho do século XVII. (Citado em Rémond 1986). Para gozar de privilégios específicos, é preciso pertencer a determinados grupos sociais. No tempo de 7 8 “... hay que considerar probablemente a Hobbes como el más grande de los escritores de filosofia política que han producido los pueblos de habla inglesa”. (Sabine 1994: 354). Este tipo de perspectiva provocou efeito devastador acerca da imagem do príncipe e, por conseqüência, sobre a concepção da realeza sagrada. Como demonstra Reinhart Koselleck, “Les philosophes des Lumières réduisent le roi à la condition de l’homme, et en tant qu’homme il ne peut être qu’un usurpateur. La critique enlève son importance au personnage historique. Ainsi privé de son élément, c’est-à-dire, de la politique, le roi devient un homme, et en tant que tel il est un homme qui use de la violence, il est un tyran”. (Koselleck 1979: 101). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 147 Hobbes o privilégio pertence aos grupos hierárquicos, não aos indivíduos em particular, mas a estes como membros de uma rede de clientelas. Há uma forte base hereditária nos privilégios, que é situação legal, reconhecida pelo Estado e pela sociedade. Assim é que a idéia de privilégio não é algo repugnante até o século XVIII. Antes pelo contrário: todos lutam por ele, em seus diferentes níveis. Há uma crença, ou melhor, uma resignação diante das desigualdades sociais, que pertence a uma cosmovisão de natureza teológico-religiosa: trata-se da denominada ideologia do eterno ontem, no dizer de Ernst Cassirer, na qual as coisas são como estão porque sempre foram assim. A desigualdade entre as ordens, a sua hierarquização social numa teia complexa marcada pela antigüidade da linhagem e por outros elementos honoríficos, são traços distintivos entre as sociedades aristocráticas e as sociedades democráticas, nas quais os indivíduos, ao menos em tese, têm direito a iguais oportunidades e são iguais perante a lei. No século XVII a noção de direitos individuais ainda não havia surgido, ao menos como a concebemos em nosso tempo. Isto abre espaço para a escalada do arbítrio e da violência. É o tempo, na França absolutista, das Lettres de cachet (ordens de prisão), mediante as quais qualquer pessoa podia ser presa ou degredada, ou mesmo condenada a trabalhos forçados, sem maiores protocolos, sem a instauração de um processo judicial com o correspondente direito de defesa. Bastava apenas que um pai irado assim o quisesse, ou um aristocrata, ou o rei. Na França, é célebre o caso de Voltaire, que depois de espancado, ainda foi encarcerado na Bastilha. A Inglaterra foi o primeiro Estado monárquico a se constituir na Europa ocidental. O seu relativo isolamento geográfico da Europa continental, a sua condição de Estado insular distanciou-a dos entraves provocados por uma série de particularismos regionais dos demais reinos. Contrariamente à Inglaterra, unificada de um só golpe por Guilherme, o Conquistador (vitória na Batalha de Hastings, 1066), os reis franceses necessitaram de séculos para completar o processo de unificação política e territorial. Desde a Idade Média, os Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.147-097 Marcos Antônio Lopes 148 reis ingleses tomaram por hábito político consultar os vários setores da sociedade, o que com o tempo fez surgir um Parlamento nacional representativo da sociedade inglesa. Na França, ao contrário, estes parlamentos eram provinciais, e não era regular a convocação dos Estados Gerais. Somente no século XVIII, com a Revolução Francesa, surgiu uma representação política de amplitude nacional. Ora, isto significa que em termos de organização política, a Inglaterra de Hobbes estava na dianteira do outro Estado mais importante da Europa. A Reforma, no século XVI, acelerou este processo de aperfeiçoamento das estruturas políticas na Inglaterra, porque atacou e derrotou o maior obstáculo ao poder real, a Igreja. Entretanto, em termos do exercício do poder, Inglaterra e França não diferiam muito até meados do século XVII. Eram monarquias absolutistas de direito divino. A diferença histórica mais relevante que se produziu liga-se à adoção do protestantismo na Inglaterra. A partir dos inícios do século XVI ficou mais difícil apregoar a defesa do direito divino como apanágio da realeza. Se qualquer súdito podia sacar a Bíblia e interpretá-la livremente como o próprio rei, este espírito individualista nascente levou à superação de uma perspectiva orgânica da sociedade política sobre a qual se apoiara o poder monárquico na Idade Média. (Cf. Crossman 1985).9 Na época do absolutismo o príncipe era comumente identificado ao Estado, e vice-versa, o que se denominou historicamente por absolutismo patrimonial. O Estado era, em boa medida, um prolon9 Hobbes se utilizou com largueza desta margem de liberdade. Como observou Strauss, “Exactly as Spinoza did later, Hobbes with double intention becomes an interpreter of the Bible, in the first place in order to make use of the authority of the Scriptures for his own theory, and next and particularly in order to shake the authority of Scriptures themselves. Only gradually does the second intention become clearly predominant”. (Strauss 1984: 71). O livro De Cive está repleto do emprego das Escrituras para os fins persuasivos de Hobbes, naquilo que se refere a tirar partido da Bíblia para comprovar o “direito do rei”. (Cf. Hobbes 2002: 178). E nenhuma evidência documental é mais convincente em relação ao argumento de Strauss do que o intertítulo 6, do capítulo XI: “As passagens mais evidentes, do Novo e do Antigo Testamento, provam a autoridade absoluta” (Hobbes 2002: 176). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 149 gamento da realeza. Entretanto, a Inglaterra de Hobbes estava passando da era do príncipe de Maquiavel, ou seja, do domínio de um mando pessoal, para um regime político comandado por relações institucionais, regime com o qual Maquiavel havia sonhado, não no Príncipe, mas nos Discursos. Como veremos, Hobbes romperá com este esquema sagrado e patrimonial. Em meados do século XVII ele irá muito além de Maquiavel, identificando o absolutismo do príncipe com uma instância de ação jurídica e gendarme que passa a reconhecer como única linguagem legítima a força da lei, coadjuvada pelo sabre. Seu Leviatã expressa um momento decisivo no processo de secularização da política em que o Estado deixa de ser concebido como um mal necessário rumo à salvação coletiva, idéia vinda da Idade Média, para converter-se no único amparo seguro contra as paixões individuais. No dizer do historiador inglês R. Crossman, “Decidido a manter a soberania indivisível, Hobbes a despoja desse direito divino que constitui sua única justificação”. (Crossman in Mayer 1985: 126).10 Com sua análise racional, identificando o exercício do poder com um regime de força, ele simplesmente rompe com as tradições imemoriais da realeza. Ele promove, assim, um novo curto-circuito maquiaveliano no século XVII.11 Neste sentido, o historiador norte10 Curiosamente, três décadas separam a publicação do Patriarca, de Robert Filmer, do Leviatã, de Hobbes. Seu autor morrera em 1653, e a obra póstuma veio à luz em 1680, na tentativa de refundar a legitimidade de Carlos II, utilizando como âncora teórica a doutrina do direito divino. Seu livro foi publicado no contexto da sucessão de Carlos II e teve uma repercussão considerável, re-atualizando um antigo tema da teoria política inglesa. (Cf. Chevallier 1982 e 1999; Prélot 1974). 11 Esta idéia de uma drástica ruptura é expressa por Leo Strauss: “I concluded that Hobbes was the founder of modern political philosophy because he had expressed the conviction that he had effected, in his capacity as a political philosopher, a radical break with all earlier political philosophy much clearly than Zeno of Citium, Marsilius of Padua, Machiavelli, Bodin, and even Bacon had done”. (Strauss 1984: XV-XVI). Louis Snyder explica a adesão de Hobbes ao absolutismo nos seguintes termos: “Hobbes himself favored absolute monarchy, which he regarded as a political necessity, but he was dissastisfied with divine right as a basis for it”. (Snyder 1955: 65). E adiante: “Dissastified with the theory of divine right as a basis for absolutism, Hobbes sought to construct a new science of politics to explain absolutism as a political necessity”. (Snyder 1955: 125). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.149-095 Marcos Antônio Lopes 150 americano George Sabine observa que “É fácil conjeturar que, na visão de Hobbes, a religião não era coisa de importância vital. Atribui a ela menor peso moral que Maquiavel”. (Sabine 1994: 366).12 De forma análoga, o Estado propugnado por Locke também inverte a lógica do absolutismo teocrático (de direito divino), pela qual o direito de reger não implicava em reger direito, porque um mau príncipe pode ser um castigo divino a maus súditos, se assim deseja a Providência. A doutrina do direito divino de Filmer reivindicava privilégios inconcebíveis aos homens comuns, e os negava terminantemente à sociedade, daí a antipatia de Locke pelos católicos. O direito natural substitui a transcendência divina como justificação do poder. Coloca em seu lugar os valores humanos mais caros (vida, liberdade, propriedade), completamente independentes. E não que Locke tenha sido incrédulo. O poder dos reis tradicionais apelava às tradições imemoriais como fonte de sua legitimidade. Locke apela apenas para a sua eficácia à proteção do direito natural. E não haverá nenhuma necessidade de que o governante tenha relações profundas com os seus súditos, caso de Guilherme III de Orange. O primeiro livro dos Dois Tratados sobre o Governo é uma crítica à teoria do patriarcalismo de Robert Filmer, que afirmava ser a autoridade dos reis a mais legítima, por ser oriunda diretamente de Adão. Filmer era o Bossuet inglês, e Locke não o refutou por capricho intelectual, mas porque sua obra possuía grande apelo nos fins do século XVII. Ele não aceita a tese de que Adão recebera de Deus uma autoridade absoluta sobre seus filhos. E que esta autoridade foi transmitida hereditariamente aos reis. Isto faz dos reis o último elo de uma cadeia que os liga aos primeiros homens, os pais da humanidade. Então, o poder não deriva nem da eleição nem da conquista, mas de uma 12 Como demonstra o historiador teuto-americano Eric Voegelin, “Hobbes saw herself in the paper of Plato, to a king’s search that adopted the new truth and it inculcated it in the people. (...) Hobbes didn’t count with the government’s force to suppress the religious movements. (...) However, for his idea of abolishing the tensions of the history for the popularization of a new truth, Hobbes reveals their own gnostiques intentions”. (Voegelin 1952: 63). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 151 paternidade consentida por Deus, aliás, o mais natural dos vínculos sociais. Ora, esta idéia era muito cara às pessoas comuns e o “Primeiro Tratado” fez um grande esforço por desbaratá-la.13 Os quase cinqüenta anos de conflito, que se prolongam com algumas pausas de 1642 a 1688, demonstram a dinâmica social inglesa, e a emergência de novos segmentos sociais, que se erguem contra a aristocracia feudal, aquela “coligação” de barões que se juntaram à monarquia para fazer a Guerra dos Cem Anos e a Guerra das Duas Rosas, a qual terminou em 1585, com a ascensão da linhagem Tudor. Estes setores emergentes defendem interesses econômicos diferentes dos segmentos conservadores da ordem social, e os fazem representar no Parlamento, contra o absolutismo dos Stuarts e da grande nobreza. A baixa aristocracia e a burguesia passam a se opor à tradição caduca representada pelo autoritarismo régio, agora personificada pela dinastia escocesa Stuart. Estes segmentos sociais emergentes, num quadro econômico em rápida transformação, lutam por incentivo à produção da indústria têxtil e por vantagens para o comércio internacional. A Revolução Inglesa opôs antagonismos de dois mundos, de duas concepções divergentes em relação à forma de organização da sociedade política na Inglaterra do século XVII. Não havendo acordo acerca da possibilidade de conciliar interesses, como de fato não houve ao longo de meio século, uma concepção teria que suplantar a outra pela força. Os novos setores sairiam vitoriosos, basicamente porque faltavam ao rei e à nobreza guerreira, a necessária base social para continuar exercendo uma forma anacrônica de poder para a Inglaterra do século XVII, que havia desenvolvido consideravelmente desde o fim da Idade Média, no plano de suas forças econômicas. A Inglaterra evoluíra e a realeza perdera o “tempo da história”, ou seja, o compasso da realidade. O sistema feudal baseado na economia de 13 Uma oportuna tradução em português é a de Júlio Fischer, para a excelente coleção “Clássicos”, da editora Martins Fontes. (Cf. Locke 2002, com introdução de Peter Laslett). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.151-093 152 Marcos Antônio Lopes troca havia sido minado por fatores econômicos novos com o advento de uma economia monetária, comandada por burgueses ricos e pela pequena aristocracia denominada Gentry (setores da baixa nobreza ligados à produção e ao comércio da lã). O século XVI foi a época dos cercamentos (enclousures) que fizeram da Inglaterra, no dizer do humanista cristão Thomas Morus, “uma terra na qual carneiros devoram homens”. Esta é também a época do advento do mercantilismo, em que o Estado transferiu da Igreja para si o papel diretivo da economia, liberando-a de entraves morais que a estancavam. Mas, paradoxalmente, o liberalismo britânico e a democracia norte-americana, no dizer de Crossman, basearam-se, desde seus primórdios, em convicções morais e numa consciência religiosa, bem ao estilo da ética protestante descrita por Weber. O curso dos acontecimentos demonstrou que os Stuarts não tinham recursos econômicos para fazer frente às forças internas rivais, como dispunham o rei da Espanha (império colonial) e o rei da França (impostos e patrimônio pessoal). Em 1688 a chamada Revolução Gloriosa (revolução sem sangue porque surgida do acordo entre os setores já exaustos em luta) criou a nova realidade política e constitucional que iria “libertar” as forças produtivas rumo à chamada Revolução Industrial do século XVIII. A Revolução Inglesa do século XVII deu origem ao primeiro regime político constitucional moderno, um regime baseado na letra da lei e nos valores do liberalismo nascente. O filósofo Locke foi o seu idealizador, a despeito da filosofia política de Hobbes ter pretendido ser o ideário de uma nova ordem. O resultado da Revolução Inglesa do século XVII foi o triunfo da tolerância sobre duas partes até então intolerantes. Como Maquiavel, Hobbes é outra criatura maldita da história da teoria política. Mas ultrapassou Maquiavel no campo da justificação do poder, pois constituiu um sistema filosófico muito mais complexo, mais sutil e mais racional. Hobbes vai além de Maquiavel porque promove uma operação intelectual de suma importância: ele despersonaliza o Estado, que não é mais identificado com a figura do soberano, da forma como o historiador de Florença propõe no livro O Hobbes e a dessacralização do absolutismo 153 Príncipe. Trata-se de um regime político institucional, baseado num pacto social que é, em sua essência, um regime jurídico fundado por um contrato irrevogável, contra o qual ninguém pode se insurgir. Os problemas da teoria política hobbesiana giram em torno da necessidade do estabelecimento de uma ordem pública inquebrantável, inquestionável, rigorosa e dura, sem qualquer margem para a expressão de conflitos, como Maquiavel apregoa em seus Discursos. Para se ter uma idéia da distância teórica que separa estas duas criaturas “diabólicas” da filosofia política basta dizer que, em Hobbes, a figura da realeza heróica não possui nenhum espaço para ação, por mais milimétrico que seja, até porque esta figura não possui existência no universo hobbesiano. A política em Hobbes não é uma esfera dinâmica como o é em Maquiavel — espécie de dança ininterrupta sob a espada de Dâmocles —, submetida ao império das ações espetaculares de príncipes em contínua carreira pela conquista de um equilíbrio sempre precário. Isto equivale a dizer que o mundo histórico e real de Maquiavel equivale, mutatis mutandis, ao estado de natureza de Maquiavel. Ora, a soberania sem partilha de qualquer espécie foi instaurada e legitimada por um pacto inquebrantável. No sistema político de Hobbes, produzido em um outro contexto, muito distante das preocupações regionais de Maquiavel, não há qualquer referência a conceitos humanistas como virtù e fortuna, que haviam sido tão caros ao historiador de Florença. Se Hobbes não fundou ou inventou o contratualismo, esta corrente de pensamento político tornou-se mais conhecida com ele.14 Em que consiste esta doutrina, na configuração que Hobbes deu a ela? Consiste num pac14 Referindo-se à Grécia antiga o historiador alemão Walter Theimer afirma: “O direito natural e a teoria do contrato foram amplamente discutidos no século V a.C.”. (Theimer 1970: 15). Para Gaetano Mosca, “A idéia de um estado de natureza, anterior à vida social e organizada do ponto de vista político, não era nova. Os monarcômacos já a haviam formulado, e a idéia não era mesmo de todo desconhecida dos escritores da Antigüidade clássica; mas os monarcômacos, com o fim de limitar a autoridade real, e admitindo fundamentalmente que houvesse existido um estado de natureza, tinham sustentado que os homens, no pacto que os ligava ao Estado, haviam reservado uma parte de seus direitos”. (Mosca e Bouthoul 1987: 190). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.153-091 154 Marcos Antônio Lopes to entre todos os indivíduos que, para sair do estado de natureza, em que todos têm direito a tudo e, portanto, ninguém tem direito a nada, concordam em ceder por completo a sua liberdade a um só. E por que agem assim? Por medo de que ocorra o que há de pior na existência humana: a morte prematura e violenta. Na análise de Crossman, “O Leviatã é a primeira grande justificação da ditadura, mas nenhum ditador pode aceitar sua doutrina. Em resumo, é uma defesa democrática da ditadura e, como tal, apesar do rigor de sua lógica, baseia-se numa contradição fundamental. Como diz Locke, ‘é como se os homens, ao saírem do estado de natureza e entrar em sociedade, aceitassem que todos, exceto um, deveriam submeter-se às leis; (...) isto é pensar que os homens são tão estúpidos que se preocupam em evitar os prejuízos que podem lhes causar as doninhas e as raposas, mas que se conformam, porque assim lhes parece mais seguro, em deixar-se devorar pelos leões’”. (Crossman In: Mayer 1985: 127). O que parece incomodar a Locke no argumento hobbesiano é o fato de que alguém preservou toda a sua liberdade quando da vida no estado de natureza. E ainda mais incômodo para ele é o fato de tal liberdade ter-se amplificado no estado civil e de o dirigente político gozar ainda da legalidade de seu livre arbítrio — que pode ser inclusive arbitrário — e tudo o mais. No regime hobbesiano o príncipe (ou uma assembléia aristocrática ou democrática, não importa o número) possui poderes absolutos — absolutíssimos, se o termo comportasse grau superlativo, no dizer de Bobbio. Então, não tem tempestade, não tem geada, não tem cara feia, não tem Judiciário nem Parlamento que possa obstruir, por mais leve que sejam tais intervenções, a vontade soberana do Estado. Em síntese, estamos diante de um regime político que vai ao fundo do mais completo autoritarismo e que não pode e não deve consentir nenhuma forma de limitação de seu poder, sob pena de perder a legitimidade instituída pelo pacto. Na visão de Hobbes o absolutismo era um regime político inevitável, consubstanciado ou não na forma monárquica de governo. De acordo com Strauss, a gênese da filosofia política de Hobbes é Hobbes e a dessacralização do absolutismo 155 caracterizada, entre outros elementos, por uma firme aposta na monarquia como a forma de governo mais natural das sociedades históricas e, ainda, como a mais perfeita entre os Estados artificiais, ou seja, aqueles gerados pelo pacto.15 No intertítulo 13 do Capítulo VII do De Cive, no qual se lê que “A monarquia é sempre o governo mais prontamente capacitado a exercer todos aqueles atos que são requisito para o bom governo” Hobbes demonstra a sua insofismável predileção pela monarquia. (Hobbes 2002: 127). O elemento de diferenciação que alça esta forma de governo a uma categoria superior é a “pessoa natural” do rei, que transfere agilidade às decisões distinguindo, deste modo, a maior eficiência do poder régio.16 Ele quis dizer que a aristocracia e a democracia, sendo “pessoas artificiais”, possuíam menor mobilidade da esfera da ação política. Mas por que Hobbes prescreve o absolutismo, na sua linhagem mais pura e dura? As suas idiossincrasias pessoais ajudam a explicar a sua teoria política. De fato, o que dizer das idéias políticas de um homem que se dizia “gêmeo do medo”, do qual se conta que havia nascido antes do tempo (um quase aborto!) vítima do medo que sua mãe sentiu quando da aproximação da Invencível Armada espanhola, que o rei ultracatólico Filipe II enviou para a tomada da herética Inglaterra? O próprio Hobbes diz que o terror inconsciente sentido no ventre materno iria persegui-lo por toda a sua longa existência (91 anos!). Aos sessenta anos ele já havia assistido a inúmeras crises e conflitos militares. Antes que a revolução Inglesa iniciasse, ele tinha se refugiado na França. O seu contexto conturbado ajuda a explicar o universo temático hobbesiano, a sua preocupação com a preservação do corpo físico e, 15 “At all stages in his development Hobbes considered hereditary absolute monarchy as the best form of State. (…) monarchy is the only natural, i.e original form of authority, the only form which corresponds to nature’s original order, whereas aristocracy and democracy are artificially produced by man, merely ‘cemented by human wit’”. (Strauss 1984: 56. Cf. também p. 129). 16 “O monarca, que por natureza é uno, sempre está atualmente capacitado a executar sua autoridade”. (Hobbes 2002: 128). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.155-089 Marcos Antônio Lopes 156 naturalmente, do corpo político. Isto para dizer que o teórico da soberania indivisível elege o medo como o centro de gravidade de seu pensamento, sobretudo o medo da guerra e da morte.17 Quando ele afirma no Leviatã que é preciso procurar a paz, enquanto se tem esperança de encontrá-la, está justificando o poder sem limites, sem entraves, único agente capaz de coibir os conflitos produzidos por uma natureza egoísta e perversa. (Cf Hobbes 1974). O medo para ele é uma verdadeira “paixão civilizadora”, capaz de forjar a paz, mesmo sobre as maiores dificuldades.18 O corolário natural do argumento de Hobbes pode ser o seguinte: não haverá possibilidade de paz se existirem possibilidades de resistência ao poder e, muito mais ainda, se a política e a religião transpuserem os seus “territórios naturais”, tentando exercer influência em áreas situadas além de suas respectivas alçadas. Hobbes apregoa uma monarquia secularizada e um Estado laico, porque estas duas “paixões” (a religião e a política), quando colocadas em movimento sem controle, desencadeiam sentimentos irreprimíveis e destrutivos.19 Em sua concepção, as razões da sociabilidade humana encontram-se no egoísmo e não num suposto ideal aristotélico de busca da felicidade. Segundo Aristóteles, os homens fundavam a sociedade política por um instinto natural, em busca da felicidade. Para Hobbes não é nada disso. Trata-se de um impulso rigorosamente calculado, pela pura satisfação dos interesses pessoais. A sociedade política nasce do temor mútuo existente entre os homens. 17 “This fear is a mutual fear, i.e. it is the fear each man has of every other man as his potential murderer”. (Strauss 1984: 17). 18 A moral que leva à construção do Estado em Hobbes é a moral do medo, a “eterna moralidade” hobbesiana. Como afirma Strauss, “Hobbe’s political philosophy rests not on the illusion of an amoral morality, but on a new morality, or, to speak according to Hobbe’s intention, on a new grouding of the one eternal morality”. (Strauss 1984: 15). 19 Demonstrando a necessidade de se separar religião e política em esferas distintas Hobbes afirma, no De Cive, que “... as leis são baixadas e outorgadas com respeito a ações que dependem de nossa vontade, e não relativamente a nossas opiniões e crenças, que, estando fora de nosso poder, não seguem a vontade”. (Hobbes 2002: 87). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 157 No estado de natureza, portanto no regime pré-sociedade política, a guerra dá a qualquer um direito sobre todas as coisas. É a velha lei da selva, do mais forte, em que “o homem é o lobo do homem”. A vida no estado civil passou pelo princípio da disputa para ver quem decide, quem terá a prerrogativa do mando. Disso deriva a sociedade civil não ser natural, mas um artifício, para instituir uma realidade sobre outra. Mas só leis muito severas garantem a unidade de um agregado que era até então o próprio caos. A lei e a força são as bases desta unidade, porque de nada vale boa legislação sem uma espada muito afiada; todo o resto é conversa fiada, para rimar sword com words, nas palavras do próprio Hobbes. Aqui estamos bem próximos de Maquiavel, e dos ditos profetas desarmados. Não basta ao governante ser amado. Ele precisa estar armado, ter a seu favor a “ultima ratio regum”, quando não mais se crê nele, e na fé que ele representa. Assim é que, para Hobbes, o único interesse racional é a passagem do estado de natureza para o estado civil. Mas há um preço para a preservação do corpo e da vida: a liberdade, bem como todos os demais princípios que dela derivam. Em contrapartida há também vantagens porque somente o Estado civil soberano fundará a realidade efetiva do que é próprio e do que é alheio, constrangendo os indivíduos a respeitar a integridade do corpo (o direito à vida) e o direito de propriedade. A teoria do “individualismo possessivo” explora esta noção hobbesiana e afirma ser a doutrina de Hobbes uma arma de defesa do liberalismo e da burguesia. Por este ângulo, o absolutismo avassalador de Hobbes seria prescrito somente para aquele contexto específico da Revolução Inglesa, regime necessário apenas a uma época de crise e de afirmação de uma nova ordem social. A história efetiva desmente esta abordagem da obra hobbesiana tornando-a em mais uma daquelas “leituras defeituosas”, haja vista que deformam o pensamento de um autor, que traem as suas reais intenções. No contratualismo hobbesiano, o Estado é um triunfo histórico porque é capaz de garantir a unidade do corpo político e, portanto, a paz. Desta forma, ele obriga ao respeito à integridade do corpo, porque impõe punições muito severas às transgressões. Após celeComunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.157-087 Marcos Antônio Lopes 158 brado o pacto (o contrato social) ele é irrevogável. Nenhuma das duas partes poderá quebrá-lo sob nenhuma hipótese. No regime hobbesiano não há espaço para noções do bem e do mal. A doutrina política deste autor não trabalha na escala da ética. A sua filosofia política é de um positivismo jurídico radical porque os valores éticos inexistem ao nível das relações entre Estado e sociedade. Estamos sob o império impassível da lei do Estado. O Estado é obra humana, portanto mortal. Ele não nasce num estágio primitivo da vida social. Ele deve nascer em qualquer lugar em que ainda não surgiu o estado civil: a Inglaterra do século XVII, por exemplo, ao tempo da guerra. Como nos mostra J.P. Mayer, por estado de natureza na filosofia política hobbesiana não se deve compreender um ponto de partida pré-determinado na história. Isto porque tal estado pode surgir em qualquer momento, com uma guerra entre nações, por exemplo. (Cf. Mayer 1985: 114). Na análise de George Sabine, parece que para Hobbes a vida entre os selvagens se aproximava do referido estado de natureza. Contudo, ele não se preocupava com a exatidão histórica de uma tal descrição. (Cf. Sabine 1994: 359). O próprio Hobbes indica, no Leviatã, que os acontecimentos do passado são quase tão incertos quanto os do futuro, porque o conhecimento baseado na experiência não é grande coisa. Disso deriva a evidência — bem assinalada por Leo Strauss na referida passagem da obra de Hobbes —, da “... natureza problemática de todo conhecimento político que toma a história como seu fundamento...”. (Strauss 1984: 96).20 O Leviatã nasce de um duplo contrato: dos indivíduos entre si e com o soberano, ao qual delegam o poder. Na verdade, o contrato duplo se resume a um único contrato, porque o soberano não participou do acordo. Ele apenas o ratificou. O Estado forma uma pessoa distinta de todos os indivíduos que se uniram para formá-lo e que ele 20 E este mesmo autor complementa: “To this extent it is true to say that Hobbe’s political philosophy is ‘unhistorical’. (…) The state of nature is thus for Hobbes not an historical fact, but a necessary construction”. (Strauss 1984: 102-04). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 159 reúne em si. A forma escamosa de um monstro marinho é a metáfora que Hobbes encontrou para materializar esta imagem do Estado: a fusão completa de indivíduos microscópicos resulta num monstro que concentra em suas mãos a espada secular e o báculo episcopal, o que significa que nem mesmo a religião, e muito menos ela, escapa à tutela do Estado soberano. Para Hobbes, vale a máxima de Voltaire, ao refletir sobre a existência de Deus: se o Estado não existisse (e para ele efetivamente ainda não existe na Inglaterra de seu tempo), seria preciso inventálo. Hobbes quer inventar uma forma de Estado que tire os homens da barbárie das relações de força para introduzi-los num plano de relações jurídicas. Ele pretende transformar o indivíduo em súdito, cujo dever primeiro é a obediência passiva à lei e às sanções a que tem direito de lhe impor o Leviatã. O Estado hobbesiano é algo assim como o agente civilizador dos costumes analisado por Norbert Elias, e o medo e a coerção são os seus agentes catalisadores, rumo ao estabelecimento da ordem pública. Agente civilizador dos costumes parece ser mesmo uma expressão adequada para caracterizar o Estado hobbesiano, porque a partir de sua instituição nenhum indivíduo poderá mais “pular na garganta” de outro, como expediente de resolução de uma controvérsia ou disputa de qualquer ordem. Não haverá espaço nem mesmo para as vinganças privadas de crimes hediondos. Apenas ao Estado cabe coibir os abusos e as transgressões. Como ocorreu com Maquiavel, a filosofia política de Hobbes causou apreensão horrorizando até mesmo àqueles a quem tencionava defender. Os absolutistas ingleses se afastaram dele e os revolucionários, naturalmente, se opuseram com vigor às suas idéias.21 E isto principalmente pela evidência de que, na filosofia política de Hobbes, não há bom ou mal soberano, do mesmo modo que também não existem formas boas ou más de governo. De fato, não existe nenhuma diferença entre o rei e o tirano. Quem é o tirano, indaga 21 “His political writings caused much comment in his own day, but it was said that his opponents were more conspicuous than his disciples”. (Snyder 1955: 125). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.159-085 Marcos Antônio Lopes 160 Hobbes, e quem é o rei? Ora, o tirano é o rei que não aprovamos, e o rei pode muito bem ser precisamente o contrário. A ironia da coisa está na subjetividade do julgamento que, pela lógica do autor, invalida qualquer critério racional para estabelecer uma definição objetiva capaz de diferenciar um do outro. A diferença está apenas na natureza da soberania.22 Se é absoluta, é positiva, se não, não. Não há formas mistas de governo. Há apenas soberania indivisível e poder absoluto, seja do príncipe seja da assembléia, formada por muitos ou por poucos que, ao fim e ao cabo, deve ser um bloco monolítico. Diferentemente de Maquiavel, qualquer indício de conflito entre classes é agente de divisão do poder. Assim é que, um monumento à razão política, o Leviatã não gerou qualquer efeito histórico, conforme os anseios do autor. Esta obra de circunstância,23 escrita para servir de corretivo a um tempo marcado pelos horrores das guerras civis, não foi acolhida nem na Inglaterra nem em nenhum outro lugar: “Como teoria de ação prática morreu ao nascer, enquanto os textos de Locke, ao estarem adaptados ao espírito da época, se converteram em justificação típica tanto da ação dos whigs ingleses quanto dos revolucionários norte-americanos”. (Crossman in Mayer 1985: 129). Hobbes havia errado em seus prognósticos. E a história efetiva desmentiu as razões de Hobbes, porque a vitória dos ideais liberais-burgueses não gerou o estado de natureza que ele previra em seu livro. A história deu razão a Locke. Por isto mesmo Hobbes é visto como o último grande pensador de extração renascentista, por seu vigoroso sistema filosófico e por sua aposta num poder sem limites, mas fora de tempo e de lugar. Locke é concebido por muitos como a primeira expressão do Iluminismo, pela possibilidade de conversão de sua filosofia política no ideário da sociedade liberal emergente. 22 A natureza desta soberania é expressa por Koselleck: “Le monarque est au-dessus du droit et en même temps il est la source de celui-ci, il décide de ce qui est juste ou injuste, il est législateur et juge tout à la fois”. (Koselleck 1979: 25). 23 “Los escritos políticos de Hobbes fueron motivados por las guerras civiles y con la intención de ejercer influencia del lado del rey”. (Sabine 1994: 353). Hobbes e a dessacralização do absolutismo 161 Nos meados do século XX alguns comentadores de Hobbes tentaram identificar o seu absolutismo aos regimes totalitários (nazismo e fascismo), em vista do autoritarismo avassalador expresso no Leviatã. Estes foram contestados por outros comentadores, que julgaram tal análise anacrônica, desprovida de sentido histórico, uma vez que os apelos de Hobbes foram muito diferentes daqueles do Estado totalitário.24 E isto porque, entre outros motivos, o pensamento de Hobbes é racionalista até a medula, de uma razão fria, calculista, cartesiana mesmo.25 Ele não busca nenhum amparo na emoção coletiva, em apelos às tradições culturais comuns do povo inglês, como o fizeram fascismo e nazismo no século XX, que invocaram as culminâncias de suas tradições históricas, culturais e étnicas para legitimar as prerrogativas de hegemonia sobre outros povos, ou até mesmo o direito de decidir a sua extinção. Antes pelo contrário, o autor quer romper o que considera os grilhões da tradição, atividade que aterrorizou os monarquistas de seu tempo. A concepção do Estado nazista foi organicista e mística. Em Hobbes não há traços de união orgânica dos segmentos sociais devido às características marcantes de seu individualismo, que repercute um ideal do Renascimento. Como acentua François Châtelet, resolvendo a questão da forma de governo segundo sua lógica peculiar, o projeto hobbesiano “... deixaria aos indivíduos o cuidado de regular suas vidas privadas e de usar livremente as próprias capacidades”. (Châtelet 2000: 54). Qualquer espaço ao misticismo identificado no pensamento político do autor é um atentado contra a sua lógica 24 Acerca particularmente deste equívoco Reinhart Koselleck demonstra a essência da diferença de matrizes no plano da área de abrangência das diferentes formas de poder autoritário: “La dictature se distingue de l’absolutisme dans la mesure où elle veut intégrer l’interieur du particular que Hobbes avait retranché de l’État”. (Koselleck 1979:137). 25 Leo Strauss relativiza o grau de comprometimento do pensamento de Hobbes com a ciência moderna, que emerge com enorme vigor no século XVII. Como assinalou Strauss, “It is true that every reader of Hobbes is struck by the clarity, rigour, and decision of his thougth. But every student of Hobbes is also amazed by the numerous contradictions which occur in his writings”. (Strauss 1984: X). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.161-083 Marcos Antônio Lopes 162 matemática. Mas o método de Hobbes é falho sobretudo porque quis aplicar a lógica das ciências exatas ao domínio do empírico, ao terreno das ações humanas, uma perspectiva tão dura como empregar as leis da física no processo de compreensão da psicologia: “A natureza em geral e a natureza humana em particular eram para ele apenas sistemas de causas e efeitos”. (Sabine 1994: 356).26 A Cidade de Hobbes é fria, individualista, racional. A Cidade do nazismo é quente, coletivista, emocional. Neste ponto, estamos diante de concepções em que a razão e o sentimento são forças contrastantes e irreconciliáveis. A fortuna crítica que teve e de que goza até hoje, em especial no campo da pesquisa filosófica no Brasil, demonstra o vigor de seu pensamento, prova incontestável de que é autor de relevo para a compreensão das relações entre Estado e sociedade. Em síntese, a secularização da realeza sagrada, essência do absolutismo monárquico, foi operação intelectual de suma importância perpetrada pelo autor do Leviatã. Seu livro foi pensado numa abordagem muito avançada, ainda que tenha preservado um objeto em ruínas. John Locke e os philosophes do século XVIII foram leitores atentos de Hobbes.27 Eles repudiaram seus princípios políticos. Mas extraíram deles alguns efeitos muito positivos na luta contra o arcaísmo teológico e a tradição autoritária que fazia do exercício do poder um bem para ser gozado solitariamente pelo príncipe. Sob este aspecto, o racionalismo, o individualismo e o materialismo de Hobbes serviu à obra devastadora de Locke, como uma espécie de punhal envenenado que não somente ele, mas também os filósofos do 26 Acrescentando o aspecto do ceticismo hobbesiano, um historiador inglês expressa uma avaliação análoga: “Descartando tudo o que lhe parecia duvidoso, ele se viu com um cru materialismo a priori de acordo com o qual o universo deve consistir de objetos materiais que interagem causalmente uns com os outros, sendo porém incognoscível o real caráter desses objetos e de suas interações”. (Tuck 2001: 142). 27 E não apenas os filósofos do Iluminismo. Muito antes disso, o autor já possuía os seus leitores na França. É o caso do escritor calvinista Pierre Bayle em fins do século XVII e mais particularmente do rei, Luís XIV: “Il garde, en effect, chez lui Les Éléments de la politique de Thomas Hobbes”. (Bluche 1986: 707). Aliás, seria muito interessante imaginar as reações de um soberano tão convicto da sacralidade da realeza e de seu direito divino para governar quando diante de um texto de Hobbes. Hobbes e a dessacralização do absolutismo 163 Iluminismo,28 empunharam para cravar nas entranhas do clero e da monarquia absolutista. Locke e os Iluministas renegaram o absolutismo hobbesiano, mas extraíram de sua obra uma representação secular do Estado, do poder e da sociedade, além da sua crença na ciência como libertadora da humanidade. Mas, para todos os efeitos, o pensamento político liberal clássico fez da teoria do poder de Hobbes uma tendência destinada ao abandono, à marginalidade própria das idéias que não mais encontram campo fértil para medrar, querendose dizer com isto que encontram uma sociedade já fechada e bastante hostil à aplicação de seus princípios. Referências bibliográficas BLUCHE, F. Louis XIV. Paris: Arthème Fayard, 1986. BOBBIO, N. Hobbes. In: ——. A teoria das formas de governo. Brasília: UnB, 1985. ——————. Thomas Hobbes. México: Fondo de Cultura Económica, 1995. BURKE, P. Montaigne. Oxford: Oxford University Press, 1994. CHATELET, F et alii. História das idéias políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. CHEVALLIER, J.-J. O Leviatã, de Thomas Hobbes. In: ——. As grandes obras de Maquiavel a nossos dias. Rio de Janeiro: Agir, 1999. ——————. Thomas Hobbes ou o individualismo autoritário. In: —— . História do pensamento político. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. CROSSMAN, R. La Revolución inglesa. In: ——. Biografía del Estado moderno. México: Fondo de Cultura Económica, 1992. ——————. El pensamiento político inglés en la tradición europea. In: ——. MAYER, J.P. Trayectoria del pensamiento político. México: Fondo de Cultura Económica, 1985. GREENLEAF, W.H. Hobbes: o problema da interpretação. In: ——. QUIRINO, C. G. & SOUZA, M. T. S. O pensamento político clássico. São Paulo: T.A. Queiroz, 1992. 28 “He exerced a strong influence on Diderot, Spinoza, Leibniz and Rousseau”. (Snyder 1955: 125). Mas, se ele exerceu uma poderosa influência, as conclusões podem ser paradoxais. No caso de Rousseau Koselleck observa o seguinte: “Rousseau se réfère expressément à la peur de la mort qui, comme chez Hobbes, domine l´homme. La nature, dit’il, commande à l’homme de se servir de tous les moyens s’il peut par là échapper à la mort. De ce commandement naturel qui a son origine dans la peur de la mort, Rousseau ne tire plus, comme Hobbes, le devoir de se réfugier dans l’État. Au contraire, il constate que le danger mortel vient de l’État lui-même”. (Koselleck 1979: 141). Comunicação&política, n.s., v.X, n.3, p.163-081 164 Marcos Antônio Lopes GUNNEL, J. Teoria Política. Brasília: Editora UnB, 1982. HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Tradução, apresentação e notas de Renato Janine Ribeiro). ——————. Leviatã. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). HUISMAN, D. Thomas Hobbes. In: ——. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2000. KOSELLECK, R. Le règne de la critique. Paris: Minuit, 1979. LEFORT, C. Desafios da escrita política. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. LIMONGI, M.I. Hobbes. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. LOCKE, J. Dois tratados sobre o governo. Martins Fontes, 2002. (Tradução de Júlio Fischer e Introdução de Peter Laslett). MACPHERSON, G.B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MAYER, J.P. Trayectoria del pensamiento político. México: FCE, 1985. MOSCA, G & BOUTHOUL, G. Os escritores políticos ingleses do século XVII e Espinoza. In: ——. História das doutrinas políticas. Rio de Janeiro: Agir, 1987. POLIN, R. Politique et philosophie chez Hobbes. Paris: PUF, 1952. PRÉLOT, M. O Leviathan: Thomas Hobbes In: ——. As doutrinas políticas. Lisboa: Editorial Presença, 1974. QUIRINO, C. G. & SOUZA, M. T. S. O pensamento político clássico. São Paulo: T.A. Queiroz, 1992. RÉMOND, R. O Antigo Regime e a Revolução. (1750-1815). São Paulo: Cultrix, 1986. RIBEIRO, R.J. Apresentação. In: HOBBES, T. Do Cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ——————. Hobbes: o medo e a esperança. In: WEFORT, F. (org.). Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1997. (vol. 01). ——————. O triunfo da vontade. In: ——. Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo. Belo Horizonte: Editora UFMG, RUBY, C. Introdução à Filosofia Política. São Paulo: Editora Unesp, 1998. SABINE, G. Thomas Hobbes. In: ——. Historia de la teoría política. México: Fondo de Cultura Económica, 1994. SKINNER, Q. Razão e retórica na filosofia política de Hobbes. São Paulo: Editora Unesp, 1999. SNYDER, L. The Age of Reason. New Jersey: Princeton, 1955. STRAUSS, L. The Political Philosophy of Hobbes. Its Basis and Its Genesis. Chicago: The University of Chicago Press, 1984. THEIMER, W. História das idéias políticas. Lisboa: Arcádia, 1970. TUCK, R. Hobbes. São Paulo: Edições Loyola, 2001. VOEGELIN, E. The New Science of Politics. Chicago: The University of Chicago Press, 1952.