Benjamin Constant –A Liberdade dos Antigos
Comparada à dos Modernos, 2 • Lysander
Spooner – Vícios Não São Crimes: Uma
vindicação da liberdade moral, 9 • Isaiah Berlin
– Dois Conceitos de Liberdade, 18 • Milton
Friedman – A Relação entre Liberdade
Econômica e Liberdade Política, 23
A Liberdade dos Antigos Comparada à dos Modernos
Benjamin Constant (1767-1830)
Proponho-me submeter a vosso julgamento algumas distinções, ainda bastante novas, entre
duas formas de liberdade, cujas diferenças até hoje não foram percebidas ou que, pelo menos,
foram muito pouco observadas. Uma é a liberdade cujo exercício era tão caro aos povos
antigos; a outra, aquela cujo uso é particularmente útil para as nações modernas. Esta análise
será interessante, salvo engano, sob um duplo aspecto.
Primeiro, a confusão destas duas espécies de liberdade foi, entre nós, durante épocas por
demais conhecidas de nossa revolução, a causa de muitos males. A França viu-se molestada
por experiências inúteis cujos autores, irritados pelo pouco êxito que alcançaram, tentaram
forçá-la a usufruir de um bem que ela não desejava e contestaram-lhe o bem que ela queria.
Em segundo lugar, levados por nossa feliz revolução (eu a chamo feliz, apesar de seus
excessos; porque atento para seus resultados) a desfrutar os benefícios de um governo
representativo, é interessante e útil saber por que este governo, o único sob o qual podemos
hoje encontrar alguma liberdade e tranqüilidade, foi inteiramente desconhecido para as
nações livres da antiguidade. Sei que pretendem-se descobrir marcas desse governo em alguns
povos antigos, na república da Lacedemônia por exemplo, e em nossos ancestrais, os gauleses;
mas é um engano.
O governo da Lacedemônia era uma aristocracia monacal, de modo nenhum um governo
representativo. O poder dos reis era limitado, mas o era pelos Éforos e não por homens
investidos de uma missão semelhante à que a eleição confere em nossos dias aos defensores
de nossas liberdades. Sem dúvida, os Éforos, depois de terem sido instituídos pelos reis, foram
nomeados pelo povo. Mas eram apenas cinco. Sua autoridade era religiosa tanto quanto
política; participavam do próprio governo, quer dizer, do poder executivo; por isso, sua
prerrogativa, como a de quase todos os magistrados populares nas antigas repúblicas, longe
de ser simplesmente uma barreira contra a tirania, tornava-se, as vezes, ela própria uma
tirania insuportável.
O regime dos gauleses, que se parecia bastante com aquele que um certo partido desejaria
nos devolver, era ao mesmo tempo teocrático e guerreiro. Os padres gozavam de um poder
sem limites. A classe militar, ou a nobreza, possuía privilégios insolentes e opressivos. O povo
não tinha direitos nem garantias.
Em Roma, os tribunos tinham até certo ponto uma missão representativa. Eles eram os portavozes dos plebeus que a oligarquia, que é a mesma em todos os séculos, havia submetido,
derrubando os reis, a uma escravidão duríssima. No entanto, o povo exercia diretamente uma
grande parte dos direitos políticos. Ele se reunia para votar as leis, para julgar os patrícios
acusados de delito: só havia, portanto, em Roma, fracos traços do sistema representativo.
Este sistema é uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da
espécie humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se
introduzisse ou instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a necessidade nem
apreciar as vantagens desse sistema. A organização social desses povos os levava a desejar
uma liberdade bem diferente da que este sistema nos assegura.
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É a demonstrar-vos esta verdade que a leitura desta noite será consagrada.
Perguntai-vos primeiro, Senhores, o que em nossos dias um inglês, um francês, um habitante
dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade.
É para cada um o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem
detido, nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade
arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua opinião, de
escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade, até de abusar dela; de ir e
vir, sem necessitar de permissão e sem ter que prestar conta de seus motivos ou de seus
passos. É para cada um o direito de reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus
interesses, seja para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente
para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas inclinações, com
suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir sobre a administração do governo,
seja pela nomeação de todos ou de certos funcionários, seja por representações, petições,
reivindicações, às quais a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração.
Comparai agora a esta a liberdade dos antigos.
Esta última consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira,
em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados
de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, em examinar as contas, os atos, a
gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de
delitos, em condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os
antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão completa
do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase nenhum dos privilégios
que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos. Todas as ações privadas estão sujeitas
a severa vigilância. Nada é concedido à independência individual, nem mesmo no que se refere
à religião. A faculdade de escolher seu culto, faculdade que consideramos como um de nossos
mais preciosos direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas
que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social interpunha-se e restringia a
vontade dos indivíduos. Em Esparta, Terpandro não pode acrescentar uma corda à sua lira sem
ofender os Éforos. Mesmo nas relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem
lacedemônio não pode livremente visitar sua jovem esposa. Em Roma, os censores vigiam até
no interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo dependia dos
costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem.
Assim, entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo
em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a guerra; como
particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus movimentos; como
porção do corpo coletivo, ele interroga, destituí, condena, despoja, exila, atinge mortalmente
seus magistrados ou seus superiores; como privado de sua posição, despojado de suas
honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo ao qual pertence.
Entre os modernos, ao contrário, o indivíduo, independente na vida privada, mesmo nos
Estados mais livres, só é soberano em aparência. Sua soberania é restrita, quase sempre
interrompida; e, se, em épocas determinadas, mas raras, durante as quais ainda é cercado de
precauções e impedimentos, ele exerce essa soberania, é sempre para abdicar a ela.
Devo aqui, Senhores, deter-me um instante para prevenir uma objeção que me poderia ser
feita. Há na antiguidade uma república na qual a escravização da existência individual ao corpo
coletivo não é tão completa como acabo de descrevê-la. Esta república é a mais célebre de
todas; podeis deduzir que desejo falar de Atenas. Voltarei a este ponto mais tarde e,
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admitindo a verdade do fato, expor-vos-ei a causa. Veremos por que, de todos os Estados
antigos, Atenas é o que mais se pareceu com os modernos. Em qualquer outro lugar a
jurisdição social era ilimitada. Os antigos, como diz Condorcet não tinham nenhuma noção dos
direitos individuais. Os homens não eram, por assim dizer, mais que máquinas das quais a lei
regulava as molas o dirigia as engrenagens. A mesma submissão caracterizava os belos séculos
da república romana; o indivíduo estava, de certa forma, perdido na nação, o cidadão, na
cidade.
Vamos agora retornar à origem dessa diferença essencial entre os antigos e nós.
Todas as repúblicas antigas eram fechadas em limites estreitos. A mais populosa, a mais
poderosa, a mais importante delas não era igual em extensão ao menor dos Estados
modernos. Como conseqüência inevitável de sua pouca extensão, o espírito dessas repúblicas
era belicoso; cada povo incomodava continuamente seus vizinhos ou era incomodado por eles.
Impelidos assim pela necessidade uns contra os outros, esses povos combatiam-se ou
ameaçavam-se sem cessar. Os que não desejavam ser conquistadores não podiam depor
armas sob pena do serem conquistados. Todos compravam a segurança, a independência, a
existência inteira ao preço da guerra. Ela era o interesse constante, a ocupação quase habitual
dos Estados livres da antiguidade. Finalmente, e como resultado necessário dessa maneira de
ser, todos os Estados tinham escravos. As profissões mecânicas e mesmo, em algumas nações,
as profissões industriais eram confiadas a mãos acorrentadas.
O mundo moderno oferece-nos um espetáculo totalmente oposto. Os menores estados
atualmente são incomparavelmente mais vastos que Esparta ou Roma durante cinco séculos.
Mesmo a divisão da Europa em vários Estados e, graças ao progresso do saber, mais aparente
do que real. Enquanto antigamente cada povo formava uma família isolada, inimiga nata das
outras famílias, uma massa de homens existe agora sob diferentes nomes, sob diversos modos
de organização social, mas essencialmente homogênea. Ela é suficientemente forte para não
temer hordas bárbaras. É suficientemente esclarecida para não querer fazer a guerra. Sua
tendência é a paz.
Essa diferença acarreta uma outra. A guerra é anterior ao comércio; pois a guerra e o comércio
nada mais são do que dois meios diferentes de atingir o mesmo fim: o de possuir o que se
deseja. O comércio não é mais que uma homenagem prestada à força do possuidor pelo
aspirante à posse. É uma tentativa de obter por acordo aquilo que não se deseja mais
conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o mais forte nunca teria a idéia do
comércio. É a experiência - provando que a guerra, isto é, o emprego da força contra a força de
outrem, o expõe a resistências e malogros diversos - que o leva a recorrer ao comércio, ou
seja, a um meio mais brando e mais seguro de interessar o adversário em consentir no que
convém à sua causa. A guerra é o impulso, o comércio é o cálculo. Mas, por isso mesmo, devo
haver um momento em que o comércio substitui a guerra. Nós chegamos a esse momento.
Não quero dizer que não tenha havido povos comerciantes entre os antigos. Mas esses povos
de certa maneira oram exceção à regra geral. As limitações do uma leitura não me permitem
apontar-vos todos os obstáculos que se opunham então ao progresso do comércio; aliás vós os
conheceis tanto quanto eu; falarei apenas do um deles. O desconhecimento da bússola
obrigava os marinheiros da antiguidade a não perder de vista as costas; Atravessar as colunas
de Hércules, ou seja, passar o estreito de Gibraltar, era considerado o mais ousado dos
empreendimentos. Os fenícios e os cartagineses, os mais hábeis dos navegadores, só o
ousaram muito mais tarde e seu exemplo permaneceu longo tempo sem ser imitado. Em
Atenas, da qual talaremos mais tarde, o juro marítimo era aproximadamente de sessenta por
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cento; o juro habitual era apenas de doze por cento, tanto a idéia de navegação distante
implicava em idéia de perigo.
Além disso, se pudesse entregar-me a uma digressão, que infelizmente seria longa demais, eu
vos demonstraria, Senhores, pelo detalhe dos costumes, dos hábitos, do modo de traficar dos
povos comerciantes da antiguidade com os outros povos, que esse comércio era, por assim
dizer, impregnado do espírito da época, da atmosfera de guerra e de hostilidade que os
cercava. O comércio era então um acidente feliz: é hoje a condição normal, o fim único, a
tendência universal, a verdadeira vida das nações. Aliás, elas querem o descanso; com o
descanso, a fartura; e, como fonte da fartura, a indústria. A guerra é cada dia um meio menos
eficaz de realizar seus desejos. Suas chances não oferecem mais, nem aos indivíduos, nem às
nações, benefícios que igualem os resultados do trabalho pacífico o dos negócios regulares.
Para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos, tributos, terras, à riqueza pública ou
particular. Para os modernos, uma guerra feliz custa infalivelmente mais do que vale.
Enfim, graças ao comércio, à religião, aos progressos intelectuais e morais da espécie humana,
não há mais escravos nas nações européias. Homens livres devem exercer todas as profissões,
atender a todas as necessidades da sociedade.
Pode-se prever facilmente, Senhores, o resultado necessário dessas diferenças.
Primeiro, a extensão de um país diminui muito a importância política que toca,
distributivamente, a cada indivíduo. O republicano mais obscuro do Roma e de Esparta era
uma autoridade. Não acontece o mesmo com o simples cidadão da Grã-Bretanha ou dos
Estados Unidos. Sua influência pessoal é um elemento imperceptível da vontade social que
imprime ao governo sua direção.
Em segundo lugar, a abolição da escravatura privou a população livre de todo o lazer que o
trabalho dos escravos lhe permitia. Sem a população escrava de Atenas, vinte mil atenienses
não teriam podido deliberar cada dia na praça pública.
Em terceiro lugar, o comércio não deixa, como a guerra, intervalos de inatividade na vida do
homem. O exercício continuo dos direitos políticos, a discussão diária dos negócios de Estado,
as discussões, os conciliábulos, todo o cortejo e movimento das facções, a agitação
necessárias, recheio indispensável, se ouso empregar esta expressão na vida dos povos livres
da antiguidade, que se teriam entediado, sem esse recurso, sob o peso de uma ociosidade
dolorosa, acarretariam apenas perturbações e cansaço às nações modernas, onde cada
indivíduo, ocupado por suas especulações, por seus empreendimentos, pelos resultados que
obtém ou espera, quer ser desviado disso o menos possível.
Finalmente, o comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O
comércio atende a suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem a intervenção da autoridade.
Esta intervenção é quase sempre, e não sei por que digo quase, esta intervenção é sempre
incômoda. Todas as vezes que o poder coletivo quer intrometer-se nas especulações
particulares, ele atrapalha os especuladores. Todas as vezes que os governos pretendem
realizar negócios, eles o fazem menos bem e com menos vantagens do que nós...
Conclui-se do que acabo de expor que não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos a
qual se compunha da participação ativa e constante do poder coletivo. Nossa liberdade deve
compor-se do exercício pacifico da independência privada. A participação que, na antiguidade,
cada um tinha na soberania nacional não era, como em nossos dias, uma suposição abstrata. A
vontade de cada um tinha uma influência real; o exercício dessa vontade era um prazer forte e
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repetido. Em conseqüência, os antigos estavam dispostos a fazer muitos sacrifícios pela
conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do Estado. Cada um,
sentindo com orgulho o que valia seu voto, experimentava uma enorme compensação na
consciência de sua importância social.
Essa compensação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca
percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova, a seus olhos,
sua cooperação. O exercício dos direitos políticos somente nos proporciona pequena parte das
satisfações que os antigos nela encontravam e, ao mesmo tempo, os progressos da civilização,
a tendência comercial da época, a comunicação entre os povos multiplicaram e variaram ao
infinito as formas de felicidade particular.
Concluí-se que devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência
individual. Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos,
sacrificavam menos para obter mais; enquanto que, fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos
mais para obter menos.
O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma
pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a segurança
dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias concedidas pelas instituições a
esses privilégios...
A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Conseqüentemente, não
se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a liberdade política. Concluí-se daí que
nenhuma das numerosas instituições, tão aplaudidas, que, nas repúblicas antigas, impediam a
liberdade individual é aceitável nos tempos modernos.
Provar essa verdade, Senhores, parece inútil num primeiro momento. Muitos governos de
nosso tempo não parecem inclinados a imitar as repúblicas da antiguidade. No entanto, por
menos gosto que tenham pelas instituições republicanas, há certos costumes republicanos
pelos quais esses governos sentem certa afeição...
A liberdade individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua
garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para sacrificar, como os de
antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à liberdade política é o meio mais seguro
de afastá-los da primeira, com a conseqüência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe
ser arrebatada.
Vede, Senhores, que minhas observações não tendem absolutamente a diminuir a importância
da liberdade política. Não extraio dos fatos que vos expus as conseqüências que certos
homens deles extraem. Porque os antigos foram livres e porque não podemos mais ser livres
como os antigos, eles concluem que estamos destinados a ser escravos. Gostariam de
constituir o novo estágio social com um pequeno número de elementos que dizem ser os
únicos apropriados à situação atual. Esses elementos são preconceito para atormentar os
homens, egoísmo para corrompê-los, frivolidade para aturdi-los, prazeres grosseiros para
degradá-los, despotismo para conduzi-los; e também conhecimentos positivos e ciências
exatas para melhor servir ao despotismo. Seria estranho que esse fosse o resultado de
quarenta séculos durante os quais o espírito humano conquistou tantos recursos morais e
físicos; não posso admitir isso.
Retiro das diferenças que nos distinguem da antiguidade conseqüências bem opostas. Não é a
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segurança que é preciso enfraquecer, é a regalia que é preciso aumentar. Não é à liberdade
política que desejo renunciar; é a liberdade civil que reclamo junto com outras formas de
liberdade política. Os governos não têm hoje, como não tinham antigamente, o direito de
atribuir-se um poder ilegítimo. Mas os governos que brotam de fonte legítima têm ainda
menos do que os de antanho o direito de exercer sobre os indivíduos uma supremacia
arbitraria. Possuímos ainda hoje os direitos que tivemos sempre, os direitos eternos de aceitar
as leis, de deliberar sobre nossos interesses, de ser parte integrante do corpo social do qual
somos membros. Mas os governos têm novos deveres. Os progressos da civilização, as
transformações operadas através dos séculos pedem à autoridade mais respeito pelos hábitos,
pelos afetos, pela independência dos indivíduos. Ela deve dirigir esses assuntos com mão mais
prudente e mais leve.
Essa contenção da autoridade, que se mantém em seus estritos deveres, atém-se também a
seus interesses bem entendidos; pois se a liberdade que convém aos modernos é diferente da
que convinha aos antigos, o despotismo que era possível entre estes não é mais possível entre
os modernos. Do fato de que estamos muitas vezes mais descuidados com a liberdade política
do que eles podiam estar, e, em nossa condição costumeira, menos apaixonados por ela,
pode-se concluir que negligenciamos demais às vezes, e sempre sem motivos, as garantias que
ela nos assegura; mas ao mesmo tempo, como buscamos muito mais a liberdade individual do
que os antigos, nós a defenderemos, se for atacada, com muito mais ímpeto e persistência; e
possuímos para a defesa meios que os antigos não possuíam.
O comércio torna a ação da arbitrariedade sobre nossa existência mais vexatória do que
antigamente, porque, sendo nossas especulações mais variadas, o arbítrio deve multiplicar-se
para atingi-las; mas o comércio também torna a ação da arbitrariedade mais fácil de enganar,
porque ele modifica a natureza da propriedade, que se torna, por esta modificação, quase
inapreensível.
O comércio dá à propriedade uma qualidade nova: a circulação; sem circulação, a propriedade
não é mais que usufruto; a autoridade pode sempre influir no usufruto, pois pode impedir o
gozo dele; mas a circulação põe um obstáculo invisível e invencível a essa ação do poder social.
Os efeitos do comércio estendem-se ainda mais longe; não somente ele emancipa os
indivíduos, mas, criando o crédito, torna a autoridade dependente.
O dinheiro, diz um autor francês, é a arma mais perigosa do despotismo; mas é ao mesmo
tempo seu freio mais poderoso; o crédito está submetido à opinião; a força é inútil, o dinheiro
esconde-se ou foge; todas as operações do Estado ficam suspensas. O crédito não tinha a
mesma influência entre os antigos; seus governos eram mais fortes que os particulares; em
nossos dias estes são mais fortes que os poderes políticos; a riqueza é uma força mais
disponível em todos os momentos, mais aplicável a todos os interesses e, em conseqüência,
muito mais real e mais bem obedecida; o poder ameaça, a riqueza recompensa; escapa-se ao
poder enganando-o; para obter os favores da riqueza, é preciso servi-la.
Em conseqüência das mesmas causas, a existência individual é menos englobada na existência
política. Os indivíduos transportam para longe seus tesouros; levam com eles todos os bens da
vida privada; o comércio aproximou as nações e lhes deu hábitos e costumes mais ou menos
semelhantes; os chefes podem ser inimigos; os povos são compatriotas...
O perigo da liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a
participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e garantias
individuais. O perigo da liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da
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independência privada e na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado
facilmente a nosso direito de participar do poder político.
Os depositários da autoridade não deixam de exortar-nos a isso. Estão sempre dispostos a
poupar-nos de toda espécie de cuidados, exceto os de obedecer e de pagar! Eles nos dirão;
"Qual é, no fundo, o objetivo de todos os vossos esforços, o motivo de vosso trabalho, o objeto
de vossas esperanças? Não é a felicidade? Pois bem, essa felicidade, aceitai e nós nos
encarregaremos dela." Não, Senhores, não aceitemos. Por mais tocante que seja um interesse
tão delicado, rogai à autoridade de permanecer em seus limites. Que ela se limite a ser justa;
nós nos encarregaremos de ser felizes.
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Vícios Não São Crimes:
Uma vindicação da liberdade moral
Lysander Spooner (1808-1887)
I. Vícios são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a si mesmo ou sua propriedade.
Crimes são aqueles atos pelos quais um homem prejudica a pessoa ou a propriedade de
outrem.
Vícios são simples erros cometidos por um homem em sua busca pela felicidade. Ao contrário
dos crimes, eles não implicam nenhuma malícia em relação aos outros e nenhuma
interferência em suas pessoas ou propriedades.
Nos vícios, a própria essência do crime — isto é, o desejo de prejudicar a pessoa ou a
propriedade de outrem — inexiste.
É uma máxima da lei a de que não é possível haver crime sem intento criminoso; isto é, sem o
intento de invadir a pessoa ou a propriedade de outrem. Porém, ninguém jamais pratica um
vício com tal intento criminoso. Pratica-se um vício visando-se a própria felicidade tãosomente, e não por qualquer malícia em relação aos outros.
A não ser que essa clara distinção entre vícios e crimes seja feita e reconhecida pelas leis, não
é possível que existam na terra quaisquer direitos, liberdades ou propriedades individuais;
quaisquer direitos de um homem de controlar sua pessoa e propriedade, e o correspondente e
igual direito de outro homem de controlar sua pessoa e propriedade.
Quando um governo declara que um vício é um crime, e o pune como tal, há uma tentativa de
falsear a própria natureza das coisas. É tão absurdo quanto seria uma declaração de que uma
verdade é uma mentira ou de que uma mentira é uma verdade.
II. Todo ato voluntário da vida de um homem ou é virtuoso, ou é vicioso. Isto significa dizer que
eles estão de acordo ou em conflito com as leis naturais da matéria e da mente, sobre as quais
sua saúde física, mental e emocional e bem-estar dependem. Em outras palavras, todo ato de
sua vida tende a levar, pelo todo, a sua felicidade ou a sua infelicidade. Nem um único ato em
toda a sua existência é indiferente.
Além disso, cada ser humano difere de todos os outros seres humanos em sua constituição
física, mental e emocional, e também pelas circunstâncias pelas quais é envolvido. Portanto,
muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de uma pessoa são
viciosos e tendem a levar à infelicidade no caso de outra.
Similarmente, muitos atos que são virtuosos e tendem a levar à felicidade no caso de um
homem, num dado momento, sob um conjunto de circunstâncias, são viciosos e tendem à
infelicidade no caso do mesmo homem, em outro momento, sob outras circunstâncias.
III. Saber quais ações são virtuosas e quais são viciosas — em outras palavras, saber quais
ações tendem a levar, no todo, à felicidade, e quais tendem a levar à infelicidade — no caso de
cada um dos homens, em cada uma das situações nas quais eles se encontrem, é o estudo
mais profundo e complexo ao qual a maior mente humana já pôde ou jamais poderá se
dedicar. É, contudo, o estudo constante ao qual todos os homens — tanto o mais humilde em
intelecto quanto o maior — são necessariamente levados pelos desejos e necessidades de sua
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própria existência. É também o estudo do qual todas as pessoas, desde seus berços até seus
túmulos, precisam tirar suas próprias conclusões; porque ninguém mais sabe ou sente, ou
pode saber ou sentir, o que outro homem sabe ou como ele se sente, os desejos e
necessidades, as esperanças e medos, os impulsos da natureza de outra pessoa ou a pressão
das circunstâncias à que ela está submetida.
IV. Freqüentemente não é possível dizer que aqueles atos que são chamados de vícios
realmente o sejam, exceto em grau. Isto é, é difícil dizer que quaisquer ações, ou cursos de
ação, que são chamadas de vícios, são realmente vícios se paradas antes de certo ponto. A
questão da virtude ou do vício, portanto, em todos esses casos, é uma questão de quantidade
e grau, e não do caráter intrínseco de qualquer ato único, por si mesmo. Este fato se soma à
dificuldade, para não dizer à impossibilidade, para qualquer um — exceto para o próprio
indivíduo — estabelecer uma linha exata, ou qualquer coisa como uma linha exata, entre a
virtude e o vício; isto é, dizer onde acaba a virtude e começa o vício. E esta é outra razão por
que toda essa questão da virtude e do vício deva ser deixada para cada pessoa decidir por si
mesma.
V. Vícios são normalmente prazerosos, pelo menos no momento em que se passa, e
freqüentemente não se revelam como vícios, por seus efeitos, senão depois de serem
praticados por muitos anos, talvez por uma vida inteira. Para muitos, talvez para a maioria,
daqueles que os praticam, eles jamais se revelam como vícios durante a vida. As virtudes, por
outro lado, freqüentemente parecem tão duras e severas, requerem o sacrifício de tanta
felicidade presente, e os resultados, os quais provam que elas são virtudes, estão
freqüentemente tão distantes e obscuros, tão absolutamente invisíveis às mentes de muitos,
especialmente às dos jovens, que, pela própria natureza das coisas, não pode haver
conhecimento universal, ou mesmo geral, de que são virtudes. Na verdade, estudos de
profundos filósofos foram empreendidos — senão totalmente em vão, certamente com
resultados bem pouco expressivos — para delimitar a fronteira entre as virtudes e os vícios.
Então, se é tão difícil, quase impossível, na maioria dos casos, determinar o que é e o que não
é um vício; se é tão difícil, em quase todos os casos, determinar onde termina a virtude e
começa o vício; e se essas questões, às quais ninguém pode realmente e verdadeiramente
resolver senão para si mesmo, não devem permanecer livres e abertas para experimentação
por todos, cada pessoa é privada do maior de seus direitos como ser humano, a saber: seu
direito de inquirir, investigar, raciocinar, experimentar, julgar e determinar por si mesmo o que
é, para si, uma virtude, e o que é, para si, um vício; em outras palavras: o que, no todo, conduz
à sua felicidade, e o que, no todo, conduz à sua infelicidade. Se este grande direito não
permanecer livre e aberto a todos, então todos os direitos do homem, como seres humano
racionais, à "liberdade e à busca pela felicidade" são negados.
VI. Todos nós vimos ao mundo em ignorância de nós mesmos e de tudo a nossa volta. Por uma
lei fundamental de nossa natureza, todos somos constantemente impelidos pelo desejo de
alcançar a felicidade e pelo medo sofrer a dor. Mas nós temos tudo a aprender quanto ao que
pode nos trazer a felicidade e evitar a dor. Nenhum de nós é totalmente igual a outra pessoa,
física, mental ou emocionalmente; ou, conseqüentemente, em nossos requerimentos físicos,
mentais ou emocionais para a aquisição da felicidade e para a evasão da infelicidade. Nenhum
de nós, portanto, pode aprender essa indispensável lição da felicidade e da infelicidade, da
virtude e do vício, através de outra pessoa. Cada um deve aprender por si mesmo. Para
aprendê-la, o indivíduo precisa ter liberdade de tentar todas as experiências que são
recomendadas por seu julgamento. Algumas de suas experiências terão sucesso e, por conta
desse sucesso, são chamadas de virtudes; outras falham e, por causa dessa falha, elas são
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chamadas de vícios. Ele acumula conhecimento tanto através de suas falhas quanto através de
seus sucessos; tanto através de seus vícios quanto de suas virtudes. Ambos são necessários
para sua aquisição do conhecimento — de sua própria natureza, do mundo que o envolve e de
suas adaptações ou não-adaptações um com o outro — que mostrará a ele como a felicidade é
alcançada e a dor evitada. E, a não ser que ele possa tentar essas experiências para sua própria
satisfação, sua aquisição de conhecimento é restringida e, conseqüentemente, também o é a
busca do grande propósito e dever de sua vida.
VII. Um homem não tem obrigação alguma de aceitar a palavra de alguém, ou de dar
autoridade a alguém, numa questão tão vital para si mesmo, em relação à qual ninguém mais
tem ou pode ter tanto interesse quanto ele. Ele não pode seguramente confiar nas opiniões de
outros homens, porque ele vê que as opiniões dos outros homens não são as mesmas. Certas
ações ou cursos de ação têm sido praticadas por muitos milhões de homens, através de
sucessivas gerações, e foram consideradas por eles como sendo, no todo, conducentes à
felicidade e, portanto, virtuosas. Outros homens, em outras eras ou países, ou sob outras
condições, consideraram, como resultado de suas experiências e observações, que essas ações
conduziam, no todo, à infelicidade e que, portanto, eram viciosas. A questão da virtude e do
vício, como já se notou numa seção anterior, também tem sido, na maioria das mentes, uma
questão de grau; isto é, da extensão à qual certas ações devem ser executadas, não do caráter
intrínseco de qualquer ato individual em si. As questões da virtude e do vício, assim, têm sido
tão variadas e, de fato, tão infinitas quanto as variedades da mente, dos corpos e das
condições dos diferentes indivíduos que habitam o mundo. E a experiência das eras deixou um
número infinito dessas questões não resolvidas. Na verdade, mal se pode dizer que alguma
tenha sido resolvida.
VIII. No meio dessa infindável variedade de opiniões, que homem ou conjunto de homens tem
o direito de dizer, em relação a qualquer ação ou curso de ação particular "Nós fizemos esse
experimento e resolvemos todas as questões envolvidas nele. Nós as resolvemos não apenas
para nós mesmos, mas para todos os homens. E todos aqueles que forem mais fracos que nós
serão coagidos a agir em obediência a nossa conclusão. Não serão feitas mais quaisquer
experiências ou pesquisas por ninguém, e, conseqüentemente, não haverá mais aquisição de
conhecimento por ninguém"?
Quais os homens que têm o direito de dizer isso? Certamente não há nenhum. Os homens que
de fato dizem isso são grandes impostores e tiranos que impediriam o progresso do
conhecimento e usurpariam o absoluto controle sobre as mentes e os corpos dos outros
homens; deve-se, portanto, resistir a eles imediatamente e até o fim; eles são demasiado
ignorantes em relação às próprias fraquezas e em relação às suas relações com os outros
homens para serem dignos de algo que não piedade ou desprezo....
IX. É óbvio agora, pelas razões já apresentadas, que o governo seria completamente
impraticável se fosse tomar conhecimento dos vícios e puni-los como crimes. Todo ser humano
tem seus próprios vícios. Quase todos os homens têm muitos. E eles são de todos os tipos;
fisiológicos, mentais, emocionais; religiosos, sociais, comerciais, industriais, econômicos, etc.,
etc. Se o governo deve tomar conhecimento de quaisquer desses vícios e puni-los como
crimes, então, para ser consistente, deve tomar conhecimento de todos eles e puni-los
imparcialmente. A conseqüência seria a de que todos estariam na prisão por seus vícios. Não
haveria ninguém livre para trancar as portas daqueles que estivessem atrás das grades. De
fato, não existiriam suficientes cortes para processar os réus, nem prisões suficientes para
abrigá-los. Toda a empreitada humana de aquisição de conhecimentos, e até mesmo de
aquisição dos meios de subsistência, seria eliminada: pois todos nós seríamos constantemente
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processados e estaríamos sempre aprisionados por nossos vícios. Mas mesmo se fosse possível
aprisionar todos os viciosos, nosso conhecimento da natureza humana nos diz que, via de
regra, eles seriam muito mais viciosos na prisão do que jamais foram fora dela.
X. Um governo que puna todos os vícios imparcialmente é uma impossibilidade tão óbvia que
ninguém jamais foi, ou jamais será, tolo o suficiente para propô-lo. O máximo que alguns
propõem é que os governos devessem punir algum, ou no máximo alguns, vícios considerados
mais grosseiros. Mas essa discriminação é completamente absurda, ilógica e tirânica. Que
direito tem qualquer conjunto de homens de dizer "Os vícios dos outros homens nós
puniremos, mas nossos próprios vícios ninguém punirá. Nós impediremos que os outros
homens busquem sua própria felicidade de acordo com suas convicções, mas ninguém poderá
nos impedir de buscar nossa própria felicidade de acordo com nossas próprias convicções. Nós
impediremos que outros homens adquiram qualquer conhecimento experimental do que é
conducente ou necessário às suas próprias felicidades, mas ninguém poderá nos impedir de
adquirir conhecimento experimental daquilo que é conducente ou necessário à nossa própria
felicidade"?...
XII. É uma impossibilidade natural que o governo tenha o direito de punir os homens por seus
vícios; porque é impossível que um governo tenha quaisquer direitos, exceto aqueles que os
indivíduos que o compõem tinham anteriormente, enquanto indivíduos. Eles não poderiam
delegar a um governo quaisquer direitos que eles próprios não possuíssem. Eles não poderiam
contribuir ao governo com quaisquer direitos, exceto com aqueles que eles mesmos possuíam
como indivíduos. Agora, ninguém, a não ser um tolo ou um impostor, pretende ter, como
indivíduo, o direito de punir outros homens por seus vícios. Mas todos têm um direito natural,
enquanto indivíduos, de punir os outros homens por seus crimes; pois todos têm um direito
natural não apenas de defender suas pessoas e propriedades de agressores, mas também de
assistir e defender todos os outros cujas pessoas ou propriedades sejam invadidas. O direito
natural de cada indivíduo de defender sua própria pessoa e propriedade contra uma agressão,
e de ir em assistência e em defesa dos outros que têm suas pessoas ou propriedades
invadidas, é um direito sem o qual nenhum homem poderia existir na terra. E o governo não
tem existência legítima, exceto quando incorpora e é limitado por esse direito natural dos
indivíduos. Mas a idéia de que cada homem tem um direito natural de decidir o que são
virtudes e o que são vícios — isto é, o que contribui para sua felicidade e o que não contribui
—, e que deve ser punido por tudo aquilo que faz que não contribui para sua felicidade, é algo
que ninguém jamais teve a impudência ou a estupidez de dizer. Somente aqueles que alegam
que o governo tem algum poder legítimo, o qual nenhum indivíduo ou grupo de indivíduos
jamais delegou ou poderia delegar a ele, alegam que o governo tem qualquer poder legítimo
de punir vícios.
É suficiente para um papa ou para um rei — que diz ter recebido sua autoridade diretamente
do Paraíso para governar os outros homens — alegar possuir o direito, como enviado de Deus,
de punir os homens por seus vícios; mas é um gritante e completo absurdo que qualquer
governo que alegue derivar seu poder do consentimento de seus governados, pretender ter tal
poder; porque todos sabem que os governados nunca poderiam concedê-lo. Eles o
concederem seria uma absurdidade, porque seria a concessão de seus próprios direitos de
buscar suas próprias felicidades, uma vez que ceder o direito de julgar o que é conducente
para suas felicidades é o mesmo que abrir mão de todo o direito de buscar a própria felicidade.
XIII. Nós agora podemos ver quão simples, fácil e razoável é um governo que puna crimes, em
comparação a um que puna vícios. Crimes são poucos, e facilmente distinguíveis de todos os
outros atos; e a humanidade geralmente concorda quanto a quais atos são crimes. Em
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contraste, vícios são inúmeros; e não há duas pessoas que concordem, exceto em
comparativamente poucos casos, quanto a o que são vícios. Além disso, todos desejam ter
suas pessoas e propriedades protegidas contra a agressão de outros homens. Mas ninguém
deseja ter sua pessoa e propriedades protegidas contra si mesmo; porque é contrário às leis
fundamentais da natureza humana que alguém deseje prejudicar a si próprio. O indivíduo só
deseja promover sua própria felicidade e ser seu próprio juiz quanto a o que promoverá, e
pode promover, sua felicidade. Isso é o que todos desejam e a que têm direito como seres
humanos. E embora nós todos cometamos muitos erros, e necessariamente devamos cometêlos dada a imperfeição de nosso conhecimento, esses erros não são argumento contra o
direito, porque eles todos tendem a nos dar o próprio conhecimento de que precisamos, que
buscamos e que não podemos adquirir de outra forma.
Logo, o objetivo de punir crimes não só é totalmente diferente do objetivo de punir vícios, mas
se opõe diretamente a ele.
A punição de crimes pretende assegurar a todo homem a maior liberdade de que ele possa
desfrutar — em consistência com os iguais direitos dos outros — para buscar sua própria
felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua própria propriedade. Por outro
lado, a punição de vícios pretende privar todo homem de seu direito e de sua liberdade
naturais de buscar sua própria felicidade através do uso de seu próprio julgamento e de sua
propriedade.
Estes dois objetivos, portanto, estão em direta oposição um ao outro. Eles se opõem tão
diretamente quanto a luz e a escuridão, a verdade e a mentira ou a liberdade e a escravidão.
São completamente incompatíveis um com o outro, e a pretensão de que os dois sejam
adotados pelo mesmo governo é uma absurdidade, uma impossibilidade. Seria como
pretender que os cidadãos de um governo cometessem crimes e impedissem crimes; que
destruíssem a liberdade individual e protegessem a liberdade individual.
XIV. Finalmente, sobre a liberdade individual: todo homem deve necessariamente julgar e
determinar para si o que é conducente e necessário a seu próprio bem-estar e o que o destrói;
pois, se ele se omite da realização desta tarefa para si mesmo, ninguém mais pode realizá-la. E
ninguém mais tentaria realizá-la para ele, a não ser em alguns poucos casos. Papas, padres e
reis pretenderão realizá-la para ele em certos casos, se tiverem permissão para isso. Mas eles
só a realizarão de forma que, ao fazê-la, possam auxiliar no cometimento de seus vícios e
crimes. Em geral, eles somente a realizarão para fazerem o homem de idiota ou para o
tornarem seu escravo. Pais, com melhores motivos que os outros, sem dúvida, também
tentam freqüentemente fazer o mesmo trabalho. Quando coagem ou obrigam uma criança a
se abster de fazer algo que não seja realmente perigoso para ela, lhe fazem um mal, não um
bem. É uma lei da Natureza a de que, para adquirir conhecimento e para incorporar esse
conhecimento em sua pessoa, cada indivíduo deve obtê-lo por si próprio. Ninguém, nem
mesmo seus pais, podem lhe dizer qual é a natureza do fogo, de maneira que ele a conheça.
Ele precisa experimentá-lo, ser queimado pelo fogo, antes que possa conhecer sua natureza...
XV. Mas estes homens que dizem que o governo deveria usar seu poder para impedir os vícios
dirão, ou costumam dizer: "Nós reconhecemos o direito de um indivíduo a buscar sua
felicidade à sua maneira e, conseqüentemente, o direito de ser tão vicioso quanto lhe
aprouver; nós apenas defendemos que o governo proíba a venda para ele daqueles artigos
usados por ele para cometer seus vícios."
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A resposta a isto é que a simples venda de qualquer artigo — independentemente do uso que
é feito dele — legalmente é um ato perfeitamente inocente. A qualidade do ato de venda
depende totalmente da qualidade do uso para o qual a coisa é vendida. Se o uso de
determinada coisa é virtuoso e lícito, então a venda dessa coisa, para esse uso, é virtuoso e
lícito. Se o uso que se faz dela é vicioso, então sua venda é também viciosa. Se seu uso é
criminoso, então sua venda, para esse uso, é criminoso. O vendedor é, no máximo, um
cúmplice no uso que é feito do artigo vendido, seja ele virtuoso, vicioso ou criminoso. Quando
o uso que se faz é criminoso, o vendedor é cúmplice de um crime e é punível como tal. Mas
quando seu uso somente é vicioso, o vendedor é somente cúmplice de um vício e, portanto,
não é punível.
XVI. Mas se perguntará: "Não há o direito, da parte do governo, a impedir as ações daqueles
que se inclinam à autodestruição?"
A resposta é que o governo não tem quaisquer direitos na questão, dado que essas pessoas
que são chamadas viciosas permaneçam sãs, compos mentis, capazes de exercer
discernimento racional e autocontrole; pois, enquanto permanecerem sãs, elas devem poder
julgar e decidir por si mesmas se o que se considera que são seus vícios são de fato vícios; se
eles realmente as estão levando à destruição; e se, no todo, elas serão destruídas ou não.
Quando se tornarem insanas, non compos mentis, incapazes de discernimento racional ou
autocontrole, seus amigos ou vizinhos, ou o governo, devem cuidar delas e protegê-las de
males e de todos aqueles que lhes infligiriam danos, da mesma maneira que fariam caso a
insanidade lhes tivesse acometido por qualquer outra causa que não os supostos vícios.
Porém, da suposição, por parte de seus vizinhos, de que um homem está no caminho da
autodestruição, por causa de seus vícios, não se segue que ele seja insano, non compos mentis,
incapaz de discernimento racional e autocontrole, de acordo com o significado legal destes
termos. Homens e mulheres podem ser dados a vícios dos mais repugnantes, e a muitos deles
— tais como a gula, o alcoolismo, a prostituição, a jogatina, as brigas, a mastigação de tabaco,
o fumo, o uso do rapé, do ópio, o uso de espartilhos, a apatia, o desperdício, a avareza, a
hipocrisia, etc., etc. —, e ainda assim serem sãos, compos mentis, capazes de discernimento
racional e autocontrole, dentro do significado legal. E, enquanto forem sãos, devem poder
controlar a si mesmos e suas propriedades, e serem seus próprios juízes quanto a onde seus
vícios os levarão ao fim...
Caso se pergunte como determinar a sanidade ou a insanidade de um homem vicioso, a
resposta será: pelos mesmos tipos de evidência que determinam a sanidade ou insanidade
daqueles que são chamados virtuosos, e de nenhuma outra forma. Isto é, pelos mesmos tipos
de evidência pelos quais os tribunais legais determinam se um homem deve ser mandado a
um asilo de lunáticos ou se ele tem competência para tomar decisões ou dispor de suas
propriedades. Quaisquer dúvidas devem pesar em favor de sua sanidade, como em todos os
casos, e não de sua insanidade.
Se uma pessoa realmente se tornar insana, non compos mentis, incapaz de discernimento
racional ou autocontrole, então é um crime que outros homens dêem ou vendam a ela os
meios pelos quais ela pode ferir a si mesma. Não há crimes mais facilmente puníveis, não há
casos nos quais os júris estariam mais prontos a condenar, que aqueles nos quais uma pessoa
sã vende ou dá a um insano um artigo pelo qual este último provavelmente ferirá a si próprio.
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XVII. Mas será dito que alguns homens se tornam, por conta de seus vícios, perigosos a outras
pessoas; que um bêbado, por exemplo, às vezes é briguento e perigoso para sua família e
outras pessoas. Perguntar-se-á: "Não tem a lei nada a dizer neste caso?"
A resposta é: se, por conta de sua bebedeira ou por qualquer outra causa, um homem for de
fato perigoso a sua família ou a outras pessoas, não apenas ele pode ter suas ações
legitimamente reprimidas, tal como requer a segurança das outras pessoas, mas todas as
outras pessoas — que sabem ou têm bases razoáveis para acreditar que ele é perigoso —
podem ter reprimidos quaisquer de seus atos que forneçam os meios que podem torná-lo
perigoso.
Só que do fato de que um homem se torna briguento e perigoso após ingerir bebidas
alcoólicas, e do fato de ser um crime dar ou vender bebidas a tal homem, não se segue que
seja um crime vender bebidas a centenas de milhares de outras pessoas, que não se tornam
briguentas ou perigosas ao bebê-las. Antes que um homem possa ser condenado de um crime
por vender bebidas alcoólicas a um homem perigoso, deve-se demonstrar que aquele certo
homem para quem se vendeu as bebidas era perigoso e que o vendedor sabia, ou tinha bases
razoáveis para supor, que o homem se tornaria perigoso ao bebê-las.
A presunção da lei é, em todos os casos, de que a venda é inocente; e o ônus da prova do
crime, em todo caso particular, está com o governo. E o caso particular deve ser provado
criminoso independentemente de todos os outros.
A partir destes princípios, não há dificuldades em condenar e punir os homens pela cessão de
quaisquer artigos a um homem que se torne perigoso pelo uso deles.
XVIII. Freqüentemente se diz que alguns vícios são transtornos (públicos ou privados), e que
transtornos podem ser condenados e punidos.
É verdade que qualquer coisa que de fato e legalmente for um transtorno (público ou privado)
pode ser condenado e punido. Mas não é verdade que os meros vícios privados de um homem
sejam, em qualquer sentido legal, transtornos a outros homens, ou ao público.
Nenhum ato de uma pessoa pode ser um transtorno a outra, a não ser que obstrua ou interfira
de alguma forma na segurança e tranqüilidade do uso ou gozo do que é legitimamente dela.
O que quer que obstrua uma via pública é um transtorno e pode ser condenado e punido. Mas
um hotel onde sejam vendidas bebidas, uma loja de bebidas ou mesmo um botequim não
obstruem mais uma via pública do que um armazém comum, uma loja de jóias ou um
açougue.
O que quer que envenene o ar, o torne ofensivo ou insalubre é um transtorno. Mas nem um
hotel, nem uma loja de bebidas, nem um botequim envenenam o ar ou o tornam ofensivo ou
insalubre a outras pessoas...
XIX. Diz-se que incitar outra pessoa a cometer um vício é um crime.
Isso é absurdo. Se qualquer ato particular é somente um vício, então um homem que incita
outro a cometê-lo é simplesmente um cúmplice de um vício. Ele evidentemente não comete
qualquer crime, porque o cúmplice não pode cometer ofensa maior que o responsável
principal...
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Volenti non fit injuria é uma máxima do direito. A quem consente não se comete injúria. Isto é,
nenhuma infração legal. E toda pessoa sã, compos mentis, capaz de discernimento racional ao
julgar a validade ou a falsidade dos argumentos aos quais assente, está "consentindo", aos
olhos da lei; ela toma para si toda a responsabilidade por seus atos quando nenhuma fraude
intencional foi exercida sobre si...
Nós observamos o mesmo princípio no caso dos boxeadores. Se eu pousar meus dedos sobre
outro homem contra a vontade dele, não importa quão levemente e quão pouco ele tenha
sido injuriado, o ato é um crime. Mas se dois homens concordarem em dar suas caras a bater
até que elas fiquem deformadas, isso não é um crime, é somente um vício...
XX. Algumas pessoas têm o hábito de dizer que as bebidas alcoólicas são a maior fonte de
crimes; que "elas enchem nossas prisões de criminosos", e que este é motivo suficiente para
proibir sua venda...
E eu acho que se verá que se deve apiedar desses homens muito mais do que puni-los, pois foi
a pobreza e a miséria, não a paixão pela bebida ou pelo crime, que os levaram a beber e a
cometer seus crimes sob a influência do álcool.
A acusação de que a bebida "enche nossas prisões de criminosos" é feita, penso eu, apenas
por aqueles homens que não são capazes de fazer mais do que chamar um bêbado de
criminoso, e que não têm melhores fundamentos para suas acusações que o vergonhoso fato
de sermos pessoas tão brutais e insensíveis a ponto de condenar pessoas tão fracas e infelizes
quanto os alcoólatras, como se eles fossem criminosos...
XXI. Mas se dirá, novamente, que o uso de bebidas alcoólicas tende a levar as pessoas à
pobreza, tornando-as assim um fardo para os contribuintes, e que esta é razão suficiente por
que a venda delas deveria ser proibida.
Há várias respostas a esse argumento.
Uma resposta é a de que se o fato de que o uso de bebidas leva à pobreza e à miséria for razão
suficiente para proibir a venda delas, então é razão igualmente suficiente para a proibição do
uso delas; pois é o uso, não a venda, que leva à pobreza. O vendedor é, no máximo, um
cúmplice do bebedor. E é uma regra do direito e da razão a de que se o responsável principal
de qualquer ato não é punível, o cúmplice não pode ser.
Uma segunda resposta ao argumento é a de que, se o governo tem o direito e o dever de
proibir qualquer ato — que não seja criminoso — apenas porque ele supostamente leva à
pobreza, então, pela mesma regra, ele tem o direito e o dever de proibir todo e qualquer outro
ato — não criminoso — que, na opinião do governo, tende a levar à pobreza. E, a partir deste
princípio, o governo não apenas teria o direito, mas o dever, de investigar cuidadosamente os
assuntos privados de todo homem e os gastos pessoais de todas as pessoas, para determinar
quais deles tenderam e quais não tenderam à pobreza, e proibir e punir todos aqueles da
primeira classe. Um homem não teria direito de gastar um centavo de sua propriedade de
acordo com sua vontade ou julgamento, a não ser que a legislatura fosse da opinião de que
aquele gasto não o levaria à pobreza...
Embora um homem possa freqüentemente, por inexperiência ou mal julgamento, gastar
alguma porção dos produtos de seu trabalho de maneira imprudente, de uma forma que não
promova seu maior bem-estar, ele ganha sabedoria, da mesma forma que em todas as outras
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questões, através da experiência; por seus erros tanto quanto por seus sucessos. E essa é a
única maneira pela qual ele pode adquirir sabedoria. Quando ele se convence de que fez um
gasto tolo, ele aprende a não mais fazê-lo. Ele precisa poder tentar seus próprios
experimentos, e tentá-los para sua própria satisfação, nesta tanto quanto noutras questões;
pois caso contrário ele não terá maior motivo para trabalhar ou criar riquezas.
XXII. Uma resposta diferente e definitiva ao argumento de que o uso de bebidas alcoólicas
tende a levar à pobreza é a de que, via de regra, ele coloca o efeito à frente da causa. Ele
assume que é o uso de bebidas que causa a pobreza, em vez de ser a pobreza que causa o uso
de bebidas...
De fato, a pobreza de grande parte da humanidade, em todo o mundo, é o grande problema
mundial. Que essa extrema e quase universal pobreza exista em todo o mundo, e que tenha
existido durante todas as gerações passadas, prova que ela se origina em causas as quais a
natureza humana comum daqueles que sofrem com ela não foi até hoje capaz de superar. Mas
os que sofrem estão, ao menos, começando a ver essas causas e decidindo-se por eliminá-las,
custe o que custar. E aqueles que imaginam que não têm nada a fazer além de atribuir a
pobreza das pessoas a seus vícios, e repreendê-las por isso, então despertarão para o dia em
que toda essa conversa estará no passado. E a questão então não mais será sobre quais são os
vícios dos homens, mas quais são seus direitos?
Traduzido por Erick Vasconcelos
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Dois Conceitos de Liberdade
Isaiah Berlin (1909-1997)
Quando há consenso sobre os fins, restam apenas questões relativas aos meios. Essas
questões não são políticas, mas técnicas. Por isso, os que confiam em que algum fenômeno
descomunal — como o triunfo definitivo da razão ou a revolução do proletariado — poderá
transformar o mundo acreditam que todos os problemas políticos e morais podem ser
transformados em problemas técnicos.
Há mais de cem anos, Heine advertiu os franceses a não subestimarem o poder das idéias. No
entanto, os filósofos estranhamente parecem não ter consciência dos devastadores efeitos de
suas atividades. Os melhores desdenham a política; no entanto, a política permanece
indissoluvelmente ligada a qualquer forma de indagação filosófica. Negligenciar o pensamento
político é entregar-se a crenças políticas primárias e desprovidas de críticas. Em conseqüência,
nossas atitudes e ações permanecem obscuras para nós mesmos, a menos que
compreendamos as questões mais relevantes de nosso tempo.
A principal dessas questões é a guerra aberta travada entre dois sistemas de idéias que
propõem respostas distintas e conflitantes à questão central da política — a da obediência e
da coação. “Por que devo obedecer a alguém?” “Por que não devo viver como me agrada?”
“Preciso obedecer?” “Se eu desobedecer, poderei ser coagido?” “Por quem e até que ponto, e
em nome de que e em favor de quê?”
***
Coagir um indivíduo é privá-lo da liberdade — mas, que liberdade? Como felicidade e
bondade, e como natureza e realidade, o significado do termo “liberdade” é ambíguo. Não
proponho discutir os mais de duzentos sentidos do termo, usado pelos historiadores das
idéias. Proponho examinar apenas os seus dois sentidos principais.
O primeiro sentido político de liberdade, que (com base em muitos precedentes) chamarei de
“negativo”, vem incorporado na resposta à pergunta “Qual é a área em que o sujeito — um
indivíduo ou um grupo de indivíduos — está livre, ou se deveria permitir que fosse, da
interferência dos outros?” O segundo sentido, que chamarei de positivo, vem incorporado na
resposta à pergunta “O que ou quem é a fonte de controle ou de interferência que pode
determinar que alguém faça, ou seja, uma coisa e não outra?” As duas perguntas são
obviamente distintas, mesmo que haja alguma justaposição nas respostas a ambas.
O conceito de liberdade “negativa”
Sou livre na medida em que ninguém ou nenhum grupo de indivíduos interfere com as
minhas atividades. A liberdade política, nesse sentido, é simplesmente a área em que posso
agir sem sofrer limitações de terceiros. Ao contrário, coerção significa a interferência
deliberada de outros seres humanos na área em que eu poderia, de outra forma, agir. Não se
possui liberdade política quando se está sendo impedido por outros de alcançar um objetivo.
Argumenta-se, plausivelmente, que, se um indivíduo é tão pobre que não pode dispor de
alguma coisa que não é legalmente proibida (uma fatia de pão, uma viagem em volta do
mundo, um recurso aos tribunais), ele tem tão pouca liberdade para dispor dessa coisa quanto
teria se ela fosse proibida por lei.
“A natureza das coisas não nos põe loucos; o desejo doentio, sim” — disse Rousseau. Se
acredito que estou em estado de carência por algum arranjo específico que considero ilegal ou
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injusto, refiro-me à opressão ou à escravidão econômica, ao papel que acredito que outros
estão representando para frustrar meus desejos. Por “ser livre” nesse sentido, quero dizer não
sofrer interferência de terceiros. Quanto maior a área sobre a qual não há interferência, mais
ampla a minha liberdade.
Esse é o sentido que os filósofos políticos clássicos ingleses davam ao termo “liberdade”.
Discordavam quanto à extensão que poderia ou deveria ter essa área. A razão dessa
discordância era dupla. Primeiro, porque os fins e as atividades dos indivíduos não se
harmonizam automaticamente. Segundo, porque os indivíduos atribuem alto valor a outros
objetivos, como justiça, felicidade, cultura, segurança ou graus variados de igualdade. E por
atribuírem alto valor a esses objetivos, os indivíduos estão dispostos a restringir a própria
liberdade em favor de outros valores.
Em conseqüência, esses pensadores julgavam que a área de livre ação dos indivíduos deveria
ser limitada pela lei. Segue-se daí a necessidade de traçar-se uma linha que separe a área da
vida privada e a da autoridade pública. Mas propiciar direitos ou salvaguardas políticas contra
a intervenção do Estado a indivíduos que mal têm o que vestir, que são analfabetos,
subnutridos e doentes, é fazer pouco de sua condição. As primeiras coisas devem vir em
primeiro lugar: há situações em que um par de botas vale mais que as obras de Shakespeare; a
liberdade individual não é a principal necessidade para todo mundo.
***
Filósofos com uma visão otimista da natureza humana e com a crença na possibilidade de
harmonização dos interesses humanos, como Locke ou Adam Smith, e, sob certos aspectos,
Mill, acreditavam que o progresso e a harmonia social eram compatíveis com a manutenção
de ampla área para a vida privada, além de cujos limites nem o Estado nem qualquer outra
autoridade teriam permissão de passar. Hobbes, e os conservadores e reacionários que
pensavam como ele, argumentava que, para evitar que os indivíduos se destruíssem uns aos
outros e transformassem a vida social em uma selva, seria necessário instituir maiores
salvaguardas para mantê-los em seus lugares. Isto é, aumentar o controle e reduzir a área de
liberdade do indivíduo.
Mas liberais e conservadores concordavam que uma parcela da existência humana precisa
continuar independente da esfera de controle social. Qualquer que seja o princípio segundo o
qual deva ser traçada a área de não-interferência — o direito natural ou os termos de um
imperativo categórico, a sacralidade do contrato social ou qualquer outro — “liberdade” nesse
sentido significa liberdade de: ou seja, ausência de interferência além da linha traçada.
O que tornou a proteção da liberdade individual tão sagrada para Mill? Em seu famoso ensaio,
ele afirma que a civilização não poderá progredir, a não ser que os indivíduos possam viver
como desejam “no caminho que diz respeito apenas a eles mesmos”; que, por falta de um
mercado de idéias livre, a verdade não virá à tona; e não haverá espaço para a
espontaneidade, para a originalidade, para o gênio, para a energia mental, para a coragem
moral. A sociedade será esmagada pela “mediocridade coletiva”.
Podemos observar três fatos a respeito dessa posição. Em primeiro lugar, Mill confunde duas
noções distintas. A primeira é a de que a coerção, por frustrar desejos humanos, é má em si
mesma, enquanto a não-interferência, que é o oposto da coerção, é boa em si. Esse é o
conceito “negativo” de liberdade em sua forma clássica. Ninguém duvidaria que a verdade ou
a liberdade de expressão pudesse florescer onde o dogma esmaga o pensamento. Mas a
evidência histórica mostra que a integridade, o amor à verdade e o individualismo apaixonado
também brotam em comunidades rigidamente controladas. Se isso ocorre, cai por terra o
argumento de Mill em favor da liberdade como condição necessária para o aperfeiçoamento
do gênio humano.
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Em segundo lugar, essa doutrina é relativamente moderna. Condorcet observou que a noção
de direitos individuais não existia nos direitos romano e grego. A predominância desse ideal
tem sido mais exceção que regra, mesmo na história recente do Ocidente. Tampouco esse
sentido de liberdade constituiu um apelo à união para as grandes massas humanas. A vontade
de não sofrer restrições é uma característica de alta civilização, tanto para os indivíduos
quanto para as comunidades. O próprio senso de privacidade deriva de uma concepção de
liberdade que é pouco mais antiga que a Renascença ou a Reforma. O seu declínio marcaria a
morte de uma civilização, de todo um posicionamento moral.
A terceira característica dessa noção de liberdade é da maior importância. É a de que
“liberdade”, nesse sentido, não é incompatível com alguns tipos de autocracia ou com a
ausência de autogoverno. A liberdade nesse sentido tem relação com a área de controle, não
com sua fonte e, pelo menos do ponto de vista lógico, não está relacionada necessariamente
com a democracia ou com o autogoverno. Não há uma conexão necessária entre liberdade
individual e democracia. A resposta à pergunta: “Quem me governa?” é logicamente distinta
da pergunta “Até que ponto o governo interfere comigo?” É nessa diferença que reside o
grande contraste entre os conceitos de liberdade positiva e liberdade negativa. O sentido
“positivo” de liberdade surge ao tentarmos responder não à pergunta “Sou livre para fazer ou
ser o quê?”, mas à pergunta “Por quem sou governado?” ou “Quem vai dizer o que sou e o que
não sou, o que ser ou o que fazer?”
A conexão entre democracia e liberdade individual é muito mais tênue do que parece a muitos
defensores de ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou de participar do
processo através do qual minha vida é controlada pode ser um desejo tão profundo quanto o
de ter uma área livre para agir. Mas não são desejos relativos à mesma coisa. Na realidade, são
tão diferentes que levaram ao grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois é a
concepção “positiva” de liberdade, não a liberdade de, mas a liberdade para (levar uma forma
de vida determinada) que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam que seja
nada mais do que um ilusório disfarce para a tirania brutal.
O conceito de liberdade positiva
O sentido “positivo” da palavra “liberdade” tem origem no desejo do indivíduo de ser
seu próprio amo e senhor — o desejo de se autogovernar.
A liberdade que consiste em ser seu próprio senhor e a liberdade que consiste em não ser
impedido de fazer minhas próprias escolhas por terceiros podem parecer conceitos não muito
distintos entre si. No entanto, as noções “positiva” e “negativa” de liberdade percorreram
historicamente caminhos distintos, até que entraram em conflito.
Uma maneira de tornar clara essa distinção é observar como a metáfora do auto-governo
ganhou um momentum independente. Será que, ao se libertarem da escravidão espiritual ou
da escravidão à natureza os indivíduos não se tornaram conscientes de um ego que domina e
de algo neles que é dominado? O ego dominante é identificado com a razão (a minha
“natureza superior”). Dominados são o impulso irracional e os desejos incontroláveis (a minha
natureza “inferior”), que precisam ser rigidamente controlados para que o ego atinja a
plenitude de sua natureza “real”.
Podemos imaginar que os dois egos estão divididos por um fosso ainda maior: pode-se
conceber o ego real como algo maior que o indivíduo, como um “todo” social do qual o
indivíduo constitui um elemento ou um aspecto: uma tribo, uma raça, uma igreja, um Estado, a
grande sociedade dos vivos e dos mortos e dos que ainda estão por nascer. Essa entidade é
então identificada com o ego “verdadeiro” que, impondo sua própria vontade coletiva ou
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“orgânica” sobre os “membros” recalcitrantes, consegue a sua (e, em conseqüência, a deles)
própria liberdade “superior”.
O que torna plausível esse tipo de linguagem é o reconhecimento de que é possível, e às vezes
justificável, coagir os indivíduos em nome de algum objetivo (digamos, justiça ou bem-estar
público) que eles mesmos buscariam se fossem mais esclarecidos. Isso torna mais fácil aceitar
que estou coagindo outros em seu próprio benefício, e não em meu interesse; e que sei, mais
que eles próprios, do que realmente necessitam.
Mas poderei ir adiante e dizer ainda mais que isso. Poderei dizer que, na verdade, eles estão
visando o que conscientemente resistem na sua incultura, porque há neles uma entidade
oculta — seu desejo racional latente ou seu propósito “verdadeiro” — e que essa entidade é o
seu ego “verdadeiro”. Adotado esse ponto de vista, é possível ignorar as verdadeiras
aspirações dos indivíduos ou sociedades e oprimi-los e torturá-los em nome de seus egos
“verdadeiros”. E com a firme certeza de que, qualquer que seja a verdadeira aspiração do
homem, ela é idêntica à liberdade — à livre escolha de seu ego “verdadeiro”, embora quase
sempre sufocado e desarticulado.
Isso mostra que as concepções de liberdade se originam diretamente de opiniões sobre o que
constitui um ego, um pessoa, um indivíduo. Pode-se manipular as definições de indivíduo e de
liberdade com o objetivo de que signifique o que o manipulador deseja. A história recente tem
evidenciado que não se trata de questão puramente acadêmica.
Liberdade e soberania
A Revolução Francesa foi, em sua fase jacobina, a erupção do desejo de liberdade
“positiva” de autogoverno coletivo de grande número de franceses que se sentiam liberados
como nação, muito embora para muitos o resultado tenha sido uma severa restrição das
liberdades individuais. Rousseau apontou que as leis da liberdade eram mais austeras que o
jugo da tirania. Para ele, liberdade não é a liberdade “negativa” do indivíduo de não sofrer
interferências em uma área definida, mas a posse por todos — e não somente pelos membros
mais qualificados da sociedade — de uma quota do poder público que pode interferir em
todos os aspectos da vida de todos os cidadãos. Em razão disso, Benjamin Constant viu em
Rousseau o mais perigoso inimigo da liberdade individual.
Para Constant, Mill, Tocqueville e para a tradição liberal a que pertenciam, nenhuma
sociedade é livre exceto se governada, de uma maneira ou de outra, por dois princípios interrelacionados: primeiro, que nenhum poder (mas apenas direitos) pode ser considerado
absoluto, de forma que todos os indivíduos, não importa o poder que os governe, tenham um
direito absoluto de se recusarem a agir desumanamente; e, segundo, que há áreas limitadas,
não traçadas artificialmente, onde os indivíduos devem ser invioláveis. Seus limites são
definidos segundo regras amplamente aceitas há muito tempo, e observá-las já constitui
participar da concepção do que seja um ser humano normal e, portanto, também do que seja
agir de maneira desumana ou insana; regras de que seria absurdo dizer, por exemplo, que tais
regras poderiam ser revogadas por algum procedimento formal da parte de alguma corte ou
de algum poder soberano.
Esse conceito “negativo” de liberdade situa-se no pólo oposto dos propósitos daqueles que
acreditam em liberdade no sentido “positivo”. Os primeiros querem limitar a autoridade como
tal. Os últimos a querem posta em suas próprias mãos. Trata-se de um tema fundamental. Não
se trata de duas interpretações diferentes de um só conceito, mas de duas atitudes
profundamente distintas e irreconciliáveis quanto às finalidades da vida.
***
21
Pode ser que o ideal de liberdade de escolher fins termine sem exigir eterna validade para
eles, e que o pluralismo de valores a eles relacionados seja apenas o fruto tardio de nossa
decadente civilização capitalista: um ideal que não foi aceito por épocas remotas e sociedades
primitivas, e que a posteridade olhará com curiosidade, talvez com simpatia, mas com pouca
compreensão. Pode ser que seja assim, mas não me parece que daí se possam deduzir
conclusões céticas. Os princípios não são menos sagrados pelo fato de sua duração não ser
garantida. O desejo de que esteja garantido que nossos valores sejam eternos e seguros em
algum céu objetivo é talvez apenas uma ânsia pelas certezas da infância ou pelos valores
absolutos de nosso passado primitivo. “Entender que a validade das convicções de alguém é
relativa” — disse um admirável autor de nosso tempo —“e, no entanto, por lutar por elas sem
hesitação é o que distingue um civilizado de um bárbaro”.
Versão abreviada por Roberto Fendt.
22
A Relação entre Liberdade Econômica e Liberdade Política
Milton Friedman (1912-2006)
Geralmente se acredita que política e economia constituem territórios separados,
apresentando pouquíssimas inter-relações; que a liberdade individual é um problema político
e o bem-estar material, um problema econômico; e que qualquer tipo de organização política
pode ser combinado com qualquer tipo de organização econômica. A mais importante
manifestação contemporânea desta idéia está refletida no conceito de "socialismo
democrático", quando então se condenam as restrições à liberdade individual impostas pelo
"socialismo totalitário" na Rússia e se considera possível adotar as características essenciais da
organização econômica russa e, ao mesmo tempo, garantir a liberdade individual por meio de
determinada organização política. A tese deste capítulo é que um tal ponto de vista é
puramente ilusório; que existe uma relação íntima entre economia e política; que somente
determinadas combinações de organizações econômicas e políticas são possíveis; e que, em
particular, uma sociedade socialista não pode também ser democrática, no sentido de garantir
a liberdade individual.
A organização econômica desempenha um papel duplo na promoção de uma sociedade livre.
De um lado, a liberdade econômica é parte da liberdade entendida em sentido mais amplo e,
portanto, um fim em si própria. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também um
instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política.
O primeiro desses papéis da liberdade econômica merece ênfase especial porque os
intelectuais em geral têm um forte preconceito contra a consideração desse aspecto como
importante. Têm a tendência de mostrar desprezo por tudo o que diz respeito ao aspecto
material da vida e a considerar a sua própria busca de supostos valores mais altos como se
processando um plano diferente e merecendo atenção especial. Para a maior parte dos
cidadãos do país, entretanto, ou talvez até mesmo para os intelectuais. a importância direta da
liberdade econômica é pelo menos comparável em sua significação à importância indireta da
liberdade econômica como instrumento de obtenção da liberdade política.
Os cidadãos da Grã-Bretanha, que, após a Segunda Guerra Mundial, não tiveram permissão de
passar férias nos Estados Unidos devido ao controle do câmbio, estavam sendo privados de
uma liberdade essencial. O mesmo acontecia com os cidadãos dos Estados Unidos a quem se
negava o direito de passar férias na União Soviética devido a seus pontos de vista políticos. A
primeira era ostensivamente uma limitação econômica da liberdade e ã segunda, uma
limitação política, mas não há diferença essencial entre as duas.
O cidadão dos Estados Unidos que é obrigado por lei a reservar cerca de dez por cento de sua
renda à compra de um determinado contrato de aposentadoria, administrado pelo governo,
está sendo privado de uma parte correspondente de sua liberdade pessoal. Como essa
privação pode ser poderosa e assemelhar-se à privação de liberdade religiosa, que todos
considerariam como "civil" ou "política" em vez de "econômica", está dramaticamente
ilustrado num episódio que envolveu um grupo de agricultores da seita Amish. Baseado em
determinados princípios, esse grupo considerou os programas federais compulsórios de
aposentadoria uma infração à sua liberdade individual e recusou-se a pagar as contribuições e
a receber os benefícios. Em conseqüência, parte de seu rebanho foi vendido em leilão a fim de
cobrir o pagamento das taxas de seguro social. É verdade que o número de cidadãos que
consideram o seguro compulsório para a velhice como um ataque à sua liberdade pessoal deve
ser pequeno, mas quem acredita em liberdade não se perde nesse tipo de contas.
23
Um cidadão dos Estados Unidos que, em virtude de leis vigentes em diversos estados, não tem
a liberdade de dedicar-se à profissão que deseja, a não ser que obtenha uma licença
conveniente, está, do mesmo modo. privado de uma parte essencial de sua liberdade. E o
mesmo acontece com o homem que gostaria de trocar parte de suas mercadorias com um
suíço por, digamos, um relógio, mas não pode fazê-lo devido à existência de uma cota. E o
mesmo acontece com aquele sujeito da Califórnia que foi mandado para a cadeia por vender
Alka-Seltzer a um preço inferior ao estabelecido pelo fabricante, sob as chamadas leis do
"mercado livre". E o mesmo acontece com o fazendeiro que não pode cultivar a quantidade de
cereais que deseja. E evidente que a liberdade econômica, nela própria e por si própria, é uma
parte extremamente importante da liberdade total. Vista como um meio para a obtenção da
liberdade política, a organização econômica é importante devido ao seu efeito na
concentração ou dispersão do poder. O tipo de organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a liberdade
política porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite que um
controle o outro.
A evidência histórica fala de modo unânime da relação existente entre liberdade política e
mercado livre. Não conheço nenhum exemplo de uma sociedade que apresentasse grande
liberdade política e que também não tivesse usado algo comparável com um mercado livre
para organizar a maior parte da atividade econômica.
Pelo fato de vivermos numa sociedade em grande parte livre, temos a tendência de esquecer
como é limitado o período de tempo e a parte do globo em que tenha existido algo parecido
com liberdade política: o estado típico da humanidade é a tirania, a servidão e a miséria. O
século XIX e o início do século XX no mundo ocidental aparecem como exceções notáveis da
linha geral de desenvolvimento histórico. A liberdade política nesse caso sempre acompanhou
o mercado livre e o desenvolvimento de instituições capitalistas. O mesmo aconteceu com a
liberdade política na idade de ouro da Grécia e nos primeiros tempos da era romana.
A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade
política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. A Itália fascista e a Espanha
fascista, a Alemanha em diversas ocasiões nos últimos setenta anos, o Japão antes da Primeira
e da Segunda Guerra Mundial e a Rússia czarista nas décadas anteriores à Primeira Guerra
Mundial, constituem claramente sociedades que não podem, de modo algum, ser
consideradas como politicamente livres. Entretanto, em cada uma delas, a empresa privada
era a forma dominante da organização econômica. É, portanto, claramente possível haver uma
organização econômica fundamentalmente capitalista e uma organização política que não seja
livre.
Mesmo nessas sociedades, os cidadãos tinham uma cota de liberdade maior que a dos
cidadãos dos modernos Estados totalitários como a Rússia ou a Alemanha nazista, nos quais o
totalitarismo econômico aparece combinado com o totalitarismo político. Mesmo na Rússia
czarista, era possível para alguns cidadãos, sob determinadas circunstâncias, mudar de
emprego sem ter que solicitar permissão a uma autoridade política, porque o capitalismo e a
existência da propriedade privada permitiam algum controle sobre o poder centralizado do
Estado.
A relação entre liberdade política e econômica é complexa e de modo algum unilateral. No
início do século XIX, Bentham e os filósofos radicais estavam inclinados a considerar a
liberdade política como um instrumento para a obtenção da liberdade econômica. Achavam
que as massas estavam sendo massacradas pelas restrições impostas e que se a reforma
política concedesse o direito de voto à maior parte do povo. este votaria no que fosse bom
24
para ele - o que significava votar no laissez-faire. Não se pode dizer que estivessem enganados.
Houve um bom volume de reformas políticas acompanhadas por reformas econômicas no
sentido do laissez-faire. ' Enorme desenvolvimento no bem-estar das massas seguiu esta
alteração na organização econômica. O triunfo do liberalismo de Bentham no século XIX na
Inglaterra foi seguido por uma reação que levou a uma crescente intervenção do governei nos
assuntos econômicos. Essa tendência para o coletivismo foi grandemente acelerada, tanto na
Inglaterra como em outros lugares, pelas duas guerras mundiais. O bem-estar, em vez da
liberdade, tornou-se a nota dominante nos países democráticos.
Reconhecendo a ameaça implícita ao individualismo, os descendentes intelectuais dos
filósofos radicais – Dicey, Mises, Hayek e Simons, para mencionar somente alguns - temeram
que o movimento continuado em direção ao controle centralizado da atividade econômica se
constituiria no The Road to Serfdom, como Hayek intitulou sua penetrante análise do processo.
Sua ênfase foi colocada na liberdade econômica como instrumento de obtenção da liberdade
política.
Os acontecimentos posteriores à Segunda Guerra Mundial revelaram, ainda, uma relação
diferente entre a liberdade econômica e a política. O planejamento econômico coletivista
interferia de fato com a liberdade individual. Contudo, em alguns países pelo menos, o
resultado não foi a eliminação da liberdade política, mas o abandono da política econômica.
Outra vez a Inglaterra deu o exemplo mais notável. O ponto crítico foi sem dúvida o "controle
das ocupações" que o Partido Trabalhista achou necessário impor de modo a poder
desenvolver sua política econômica. Posta em vigência e realmente aplicada, a lei envolveria a
distribuição centralizada dos indivíduos para determinadas ocupações. Tal fato entrava em
conflito tão agudo com a liberdade pessoal que a lei só foi usada em número pequeno de
casos e depois revogada após curto período de vigência. A revogação motivou mudanças
amplas na política econômica, marcada por uma diminuição de ênfase nos "planos" e
"programas" centralizados, pela eliminação de inúmeros controles e por uma importância
crescente do mercado privado. Uma alteração semelhante na política ocorreu em outros
países democráticos.
A explicação mais simples para tais alterações na política reside no sucesso limitado do
planejamento central ou sua incapacidade de alcançar os objetivos estabelecidos. Entretanto,
esse fracasso pode ser atribuído, pelo menos em certa medida, às implicações políticas do
planejamento central e à inconveniência de seguir sua lógica até o fim - uma vez que fazer isso
levaria a destruir direitos privados altamente valorizados. É possível também que essa
mudança seja somente uma interrupção temporária na tendência coletivista deste século.
Mesmo assim, ilustra a relação estreita existente entre liberdade política e organização
econômica.
A evidência histórica por si só nunca é completamente convincente. É possível que a expansão
da liberdade e o desenvolvimento do capitalismo e das instituições mercantis tenham ocorrido
juntos por mera coincidência. Por que deveria existir uma relação em tal fato? Quais são as
conexões lógicas entre liberdade econômica e liberdade política? Ao discutir estas questões,
consideraremos, inicialmente, o mercado como um componente direto da liberdade e depois a
relação indireta entre organização do mercado e liberdade política.
Como produto secundário, teremos o esquema da organização econômica ideal para uma
sociedade livre. Como liberais, consideramos a liberdade do indivíduo, ou talvez a família,
como o objetivo último no julgamento das organizações sociais. A liberdade como valor nesse
sentido está ligada às inter-relações de pessoas: não teria nenhum sentido para um Robinson
Crusoé numa ilha deserta (sem o Sexta-Feira). Robinson Crusoé em sua ilha está submetido a
25
"restrições", tem "poder" limitado e tem somente um número limitado de alternativas - mas
não tem problemas de liberdade no sentido relevante para a nossa discussão. De modo
semelhante, numa sociedade não há nada i que dizer sobre o que um indivíduo faz com sua
liberdade: não se trata de uma ética geral. De fato, o objetivo mais importante dos liberais é
deixar os problemas éticos a cargo do próprio indivíduo. Os problemas "éticos", realmente
importantes, são os que um indivíduo enfrenta numa sociedade livre - o que deve ele fazer
com sua liberdade. Existem, portanto, dois conjuntos de valores que o liberal enfatizará - os
valores que são relevantes para as relações interpessoais, que constituem o contexto em que
estabelece prioridade à liberdade; e os valores relevantes para o indivíduo no exercício de sua
liberdade, que constituem o território da filosofia e da ética individual.
O liberal concebe os homens como seres imperfeitos. Considera o problema da organização
social tanto um problema negativo de impedir pessoas "más" de fazerem coisas más como o
de permitir a pessoas "boas" fazerem coisas boas. E é óbvio, pessoas "boas" e "más" podem
ser as mesmas pessoas, dependendo de quem as julgar.
O problema básico da organização social consiste em descobrir como coordenar as atividades
econômicas de um grande número de pessoas, Mesmo em sociedades relativamente
atrasadas, são necessárias a divisão do trabalho e a especialização de funções para fazer uso
efetivo dos recursos disponíveis. Em sociedades adiantadas, a necessidade de coordenação.
para usar de maneira totalmente conveniente as oportunidades oferecidas pela ciência e
tecnologia modernas, é muito maior. Literalmente, milhões de pessoas estão envolvidas em
fornecer diariamente um ao outro o pão necessário - além dos automóveis. O desafio para o
que acredita na liberdade consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade
individual.
Fundamentalmente, só há dois meios de coordenar as atividades econômicas de milhões. Um
é a direção central utilizando a coerção - a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno.
O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos - a técnica do mercado. A possibilidade da
coordenação, por meio de ação voluntária está baseada na proposição elementar de que
ambas as partes de uma transação econômica se beneficiam dela, desde que a transação seja
bilateralmente organizada e voluntária. A troca pode, portanto, tornar possível a coordenação
sem a coerção. Um modelo funcional de uma sociedade organizada sobre uma base de troca
voluntária é a economia livre da empresa privada - que denominamos, até aqui, de capitalismo
competitivo...
Enquanto a liberdade efetiva de troca for mantida, a característica central da organização de
mercado da atividade econômica é a de impedir que uma pessoa interfira com a outra no que
diz respeito à maior parte de suas atividades. O consumidor é protegido da coerção do
vendedor devido à presença de outros vendedores com quem pode negociar. O vendedor é
protegido da coerção do consumidor devido à existência de outros consumidores a quem pode
vender. O empregado é protegido da coerção do empregador devido aos outros empregadores
para quem pode trabalhar, e assim por diante. E o mercado faz isto, impessoalmente, e sem
nenhuma autoridade centralizada.
De fato, uma objeção importante levantada contra a economia livre consiste precisamente no
fato de que ela desempenha essa tarefa muito bem. Ela dá às pessoas o que elas querem e não
o que um grupo particular acha que devem querer. Subjacente à maior parte dos argumentos
contra o mercado livre está a ausência da crença na liberdade como tal. A existência de um
mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao contrário, um
governo é essencial para a determinação das "regras do jogo" e um árbitro para interpretar e
pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número
26
de questões que devem ser decididas por meios políticos - e, por isso, minimizar a extensão
em que o governo tem que participar diretamente do jogo. O aspecto característico da ação
política é o de exigir ou reforçar uma conformidade substancial. A grande vantagem do
mercado, de outro lado, é a de permitir uma grande diversidade, significando, em termos
políticos, um sistema de representação proporcional. Cada homem pode votar pela cor da
gravata que deseja e a obtém; ele não precisa ver que cor a maioria deseja e então, se fizer
parte da minoria, submeter-se.
É a essa característica que nos referimos quando dissemos que o mercado garante liberdade
econômica. Mas tal característica também tem implicações que vão além das estritamente
econômicas. Liberdade política significa ausência de coerção sobre um homem por parte de
seus semelhantes. A ameaça fundamental à liberdade consiste no poder de coagir, esteja ele
nas mãos de um monarca, de um ditador, de uma oligarquia ou de uma maioria momentânea.
A preservação da liberdade requer a maior eliminação possível de tal concentração de poder e
a dispersão e distribuição de todo o poder que não puder ser eliminado - um sistema de
controle e equilíbrio. Removendo a organização da atividade econômica do controle da
autoridade política, o mercado elimina essa fonte de poder coercitivo. Permite, assim, que a
força econômica se constitua num controle do poder político, então num reforço.
O poder econômico pode ser amplamente dispersado. Não há leis de conservação que forcem
o crescimento de novos centros de poder econômico às custas dos centros já existentes. O
poder político, de outro lado é mais difícil de descentralizar.
Podem existir numerosos pequenos governos independentes. Mas é muito mais difícil manter
numerosos pequenos centros eqüipotentes de poder político, num só grande governo, do que
ter numerosos centros de poder econômico numa única grande economia. Podem existir
inúmeros milionários numa grande economia. Mas pode haver mais do que um líder,
realmente importante, uma pessoa em quem as energias e entusiasmos de seus concidadãos
se tenham concentrado? Se o governo central ganhar poder, será provavelmente às custas dos
governos locais. Parece haver algo parecido com um total fixo de poder político a ser
distribuído. Em conseqüência, se o poder econômico é adicionado ao poder político, a
concentração se torna praticamente inevitável. De outro lado, se o poder econômico for
mantido separado do poder político t, portanto, em outras mãos, ele poderá servir como
controle e defesa contra o poder político.
A força desse argumento abstrato pode talvez ser mais bem demonstrada com um exemplo.
Consideremos primeiramente um exemplo hipotético que poderá ajudar a esclarecer os
princípios envolvidos, e em seguida examinaremos exemplos concretos da experiência recente
que ilustram o modo como o mercado trabalha para preservar a liberdade política. Uma das
características de uma sociedade livre é certamente a liberdade dos indivíduos de desejar e
propor abertamente uma mudança radical na estrutura da sociedade - desde que tal empresa
se adstrinja à persuasão e não inclua a força ou outra forma de coerção. Constitui uma
indicação da liberdade política de uma sociedade capitalista que seus membros possam
abertamente propor e trabalhar pelo socialismo. Do mesmo modo, a liberdade política numa
sociedade socialista exige que seus membros possam propor a introdução do capitalismo.
Como poderia a liberdade de propor o capitalismo ser preservada e protegida numa sociedade
socialista?
Para que os homens possam propor qualquer coisa, é preciso, em primeiro lugar, que estejam
em condições de ganhar a vida. Isto já levanta um problema numa sociedade socialista, pois
todos os empregos estão sob o controle direto das autoridades políticas. Seria necessário, no
caso. uma grande dose de abnegação - cuja dificuldade já foi sentida nos Estados Unidos, após
27
a Segunda Guerra Mundial, com o problema de "segurança" com relação aos funcionários
federais - para que um governo socialista permita que seus empregados proponham políticas
diretamente contrárias â doutrina oficial.
Mas suponhamos que tal atitude abnegada seja realmente adotada. Para que a proposição da
causa do capitalismo possa ter algum significado, os proponentes devem estar em condições
de financiar essa causa - organizar comícios públicos, publicar panfletos, usar o rádio, editar
jornais e revistas, e assim por diante.
Como poderiam eles levantar tais fundos? Pode ser que existam - e muito provavelmente
existem - alguns homens na sociedade socialista com grandes rendas, talvez mesmo somas de
capital consideráveis sob a forma de bônus governamentais, mas teriam que ser
necessariamente funcionários públicos de alto nível. É possível imaginar um funcionário
público socialista de nível baixo propondo o capitalismo e, ao mesmo tempo, sendo capaz de
manter seu emprego. Mas é bastante difícil imaginar um alto funcionário socialista financiando
tais atividades "subversivas".
A única maneira de obter fundos seria levantá-los por meio de pequenas doações de
funcionários de categorias mais baixas. Não se trata, porém, de uma solução verdadeira. Para
obter essas contribuições, seria necessário que já existisse bom número de pessoas
convencidas - e o problema consiste, no caso, em descobrir como iniciar e financiar uma
campanha para obter adeptos. Os movimentos radicais nas sociedades capitalistas nunca
foram financiados desse modo. Foram basicamente apoiados por alguns poucos indivíduos
ricos que se tornaram adeptos de tais idéias - Frederick Vanderbilt Field ou Anita McCormick
Blaine ou Corliss Lamont, para citar alguns nomes mais recentes, ou Friedrich Engels, voltando
mais atrás. Trata-se aqui do papel da desigualdade econômica na preservação da liberdade
política, que é raramente percebido - o papel do senhor.
Numa sociedade capitalista, é necessário convencer apenas algumas poucas pessoas ricas a
obter fundos para o lançamento de uma ideia por mais estranha que seja, e há inúmeras
pessoas desse tipo, inúmeras fontes independentes de apoio. E, de fato, não é nem mesmo
necessário persuadir pessoas ou instituições financeiras com fundos disponíveis da validade
das idéias a serem propagadas. Bastará persuadi-los de que a propagação será
financeiramente conveniente, que o jornal, a revista, o livro ou outro qualquer
empreendimento será lucrativo. O editor competitivo, por exemplo, não se pode permitir
publicar apenas obras com que concorda pessoalmente, pois a garantia de sua empresa é a de
que o mercado seja bastante amplo para fornecer-lhe um retorno satisfatório sobre o
investimento.
Desse modo, o mercado rompe o círculo vicioso e torna finalmente possível financiar tais
empreendimentos por meio de pequenas contribuições de muitas pessoas sem ter que
persuadi-las primeiro. Não existe tal possibilidade na sociedade socialista; existe somente o
Estado todo-poderoso.
Vamos dar asas à imaginação e supor que um governo socialista esteja cônscio desse problema
e seja formado por pessoas desejosas de preservar a liberdade. Poderia ele fornecer os
fundos? Talvez, mas é difícil imaginar como. Poderia estabelecer uma agência para
subvencionar propaganda subversiva.
Mas como poderia ele escolher a quem financiar? Se fornecer fundos a todos os que os
solicitarem, ficará em pouco tempo sem nenhuma verba, pois o socialismo não poderá
eliminar a lei econômica elementar de que um preço suficientemente alto tem como resultado
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um fornecimento amplo. Basta tornar a proposição de causas radicais suficientemente
remunerativa, e a oferta de defensores se tornará ilimitada.
De outro lado, a liberdade de propor causas impopulares não exige que tal proposição se dê
sem nenhum custo. Muito pelo contrário, nenhuma sociedade poderá permanecer estável se a
proposição de mudanças radicais for isenta de custos, muito menos se subsidiada. É
perfeitamente válido que os homens façam sacrifícios para propor causas nas quais acreditam
fervorosamente. De fato, é importante preservar a liberdade somente para as pessoas
dispostas a praticar a abnegação, pois, de outra forma, a liberdade degenera em licenciosidade
e irresponsabilidade. O essencial é que o custo de propor causas impopulares seja tolerável e
não proibitivo...
Um exemplo prático notável desses princípios abstratos pode ser encontrado na experiência
de Winston Churchill. De 1933 até às vésperas da Segunda Guerra Mundial, não se permitiu a
Churchill falar na rádio inglesa. que era um monopólio do governo administrado pela British
Broadcasting Corporation (BBC).
Tratava-se de importante cidadão do país, membro do parlamento, antigo ministro do
gabinete, um homem que estava, desesperadamente, tentando de todos os modos possíveis
persuadir seus concidadãos a tomar providências a respeito da ameaça representada pela
Alemanha de Hitler. Não lhe era permitido falar pelo rádio ao povo inglês, porque a BBC era
monopólio do governo e sua posição era muito "controvertida".
Outro exemplo notável, relatado no número de 26 de janeiro de 191 do Time, refere-se ao
problema da lista negra de Hollywood. Relata o Time: "A noite de entrega do Oscar é o grande
momento de Hollywood; mas. dois anos, o ritual sofreu um grande golpe. Quando foi
anunciado o nome de Robert Rich como o responsável pelo roteiro de The Brave One, ninguém
levantou para encaminhar-se para o palco. Robert Rich era um pseudônimo que servia como
máscara para um dos escritores colocados pela indústria na lista negra desde 1947, como
suspeitos de serem comunistas ou simpatizantes do comunismo. O caso foi particularmente
embaraçante porque a Academia de Cinema havia barrado da competição do Oscar todos os
comunistas e todos os que invocaram a 5.a Emenda.
Na semana passada tanto a instrução para comunistas quanto o mistério da identidade de Rich
foram súbita mente prescritos. "Revelou-se que Rich não era outro senão Dalton “Johnny Got
His Gun” Trumbo, um dos 'Dez de Hollywood', grupo de escritores que recusou testemunhar
nas audiências de 1947 sobre comunismo na indústria cinematográfica. Disse o produtor Frank
King, que insistira em afirmar que Robert Rich era um 'rapaz da Espanha barbudo': Temos a
obrigação diante de nossos acionistas de comprar o melhor roteiro que pudermos. Trumbo
nos trouxe The Brave One e nós o compramos...'
"Foi, com efeito, o fim formal da lista negra em Hollywood. Para os escritores barrados, o fim
informal já tinha vindo há muito tempo. Pelo menos 15% dos atuais filmes de Hollywood são
escritos por membros da lista negra. Disse o produtor King: 'Há mais fantasmas em Hollywood
do que em Forest Lawn. Todas as companhias da cidade usaram o trabalho de pessoas da lista
negra. Somos, simplesmente, os primeiros a confirmar o que todos sabem ".
Uma pessoa pode acreditar, como eu acredito, que o comunismo destruirá todas as nossas
liberdades; uma pessoa pode opor-se a ele tão firmemente quanto possível e, no entanto, ao
mesmo tempo, também acreditar que numa sociedade livre é intolerável que um homem seja
impedido de dizer e fazer acordos voluntários com outros, acordos esses mutuamente
atraentes, porque acredita no comunismo, ou está tratando de promovê-lo. Sua liberdade
29
inclui sua liberdade de tentar promover o comunismo. E a liberdade também inclui, é claro, a
liberdade de outros de não negociarem tais circunstâncias. A lista negra de Hollywood foi um
ato contra a liberdade porque foi um acordo conspiratório que usou meios coercitivos para
impedir trocas voluntárias. Não funcionou, justamente porque o mercado tornou caro demais
para as pessoas preservarem a lista negra. A ênfase comercial, o fato de que as pessoas que
dirigem empresas têm um incentivo para ganhar tanto dinheiro quanto possível, protegeu a
liberdade dos indivíduos da lista negra, fornecendo-lhes uma forma alternativa de emprego e
dando às pessoas um incentivo para empregá-las.
Se Hollywood e a indústria cinematográfica fossem empresas estatais ou se na Inglaterra se
tratasse de emprego na British Broadcasting Corporation, é difícil crer que os Dez de
Hollywood ou seus equivalentes tivessem encontrado emprego. Da mesma forma, é difícil crer
que, naquelas circunstâncias, proponentes poderosos do individualismo e da empresa privada
- ou mesmo proponentes poderosos de qualquer ponto de vista contrário ao status quo pudessem encontrar emprego.
Outro exemplo do papel do mercado na preservação da liberdade política foi revelado em
nossas experiências com o McCarthismo. Pondo inteiramente de lado as questões substantivas
envolvidas e os méritos das acusações levantadas, que proteção têm os indivíduos e,
especialmente, os funcionários do governo contra acusações irresponsáveis ou interrogatórios
sobre assuntos que não podem revelar por uma questão de consciência? Eles invocam a 5ª
Emenda; mas tal invocação seria uma trágica zombaria se não tivessem uma alternativa para o
emprego do governo.
Sua proteção fundamental consistia na existência de uma economia privada de mercado na
qual podiam ganhar a vida. Também neste caso, a proteção não é absoluta. Inúmeros
empregadores em potencial podem, certa ou erradamente, não desejar contratar os
perseguidos. E possível que haja um número de justificativas para os custos impostos a muitas
das pessoas envolvidas do que para os custos, geralmente impostos, aos que propõem causas
impopulares. Mas o ponto importante é que os custos eram limitados e não proibitivos - como
teriam sido se o emprego estatal fosse o único à disposição.
É interessante notar que um contingente extremamente grande das pessoas envolvidas
passou, aparentemente, para os setores mais competitivos da economia - comércio,
agricultura, empresas de porte médio - onde se realiza mais de perto o ideal de mercado livre.
Ninguém que compra pão sabe se o trigo usado foi cultivado por um comunista ou um
republicano, por um constitucionalista ou um fascista ou, ainda, por um negro ou por um
branco. Tal fato ilustra como um mercado impessoal separa as atividades econômicas dos
pontos de vista políticos e protege os homens contra a discriminação com relação a suas
atividades econômicas por motivos irrelevantes para a sua produtividade - quer estes motivos
estejam associados às suas opiniões ou à cor da pele.
Como sugere esse exemplo, os grupos de nossa sociedade que têm mais razões para preservar
e fortalecer o capitalismo competitivo são os minoritários - que podem mais facilmente tornar
o objeto de desconfiança e hostilidade da maioria: os negros, os judeus, os estrangeiros, para
mencionar somente os mais óbvios. Entretanto, e paradoxalmente, os inimigos do mercado
livre - os socialistas e os comunistas - foram recrutados numa proporção bem grande nesses
próprios grupos. Em vez de reconhecer que a existência do mercado os protegeu das atitudes
de seus compatriotas, eles erradamente atribuem à discriminação ao mercado.
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Os Fundamentos Econômicos da Liberdade