O movimento recente de internacionalização da burguesia brasileira Fábio Marvulle Bueno∗ Resumo: O texto analisa o processo internacionalização da burguesia brasileira ocorrido a partir da década de 1990. Ao destacar a dimensão produtiva e patrimonial dos investimentos brasileiros no exterior, levantamos as explicações da literatura econômica para o processo, bem como sistematizamos o debate sobre as possíveis conseqüências da internacionalização no âmbito econômico e político, sublinhando a incorporação da dinâmica política dos países que receberam investimentos brasileiros dentre os fatores que passam a influenciar a mobilização da burguesia brasileira. Palavras-chave: burguesia brasileira; internacionalização; investimento brasileiro no exterior. The recent Brazilian bourgeoisie internationalization Abstract: This paper analyzes brazilian bourgeoisie internationalization since the decade of 1990. When detaching the productive and patrimonial dimension of the foreign brazilian investments, we raise the explanations of economic literature for the process, as well as we systemize the debate on the possible consequences of the internationalization at both economic and political scope, highlighting the incorporation of the dynamics politics on countries that had received brazilian investments amongst the factors that influence the brazilian bourgeoisie initiatives. Keywords: brazilian bourgeoisie, internationalization, foreign brazilian investiment Introdução A partir da década de 1970, o mundo presencia a constituição de uma nova fase histórica do capitalismo mundial, a globalização financeira, marcada tanto pelo processo de reestruturação produtiva, como pela liberalização dos fluxos internacionais de capitais. No plano político, esta nova fase acarreta a retomada da hegemonia norte-americana, a disseminação de governos neoliberais e a queda do chamado “socialismo real”. No Brasil, essa conjuntura internacional se desdobra a partir da década de 1990 em um novo período histórico para nosso capitalismo, caracterizado por três eixos: re-incorporação aos fluxos voluntários internacionais de capitais, eliminação de barreiras ao comércio exterior e implementação de uma profunda reforma no aparelho estatal. Em meio a estes processos, a internacionalização da burguesia brasileira vai ganhando um novo e importante contorno: o aumento dos investimentos no espaço econômico internacional. O objetivo deste texto é analisar as principais características econômicas, bem como sistematizar o debate suscitado pelo recente processo de internacionalização da burguesia brasileira. Para tanto, além dessa introdução, faremos uma breve discussão do conceito de internacionalização e da trajetória recente dos fluxos de investimentos brasileiros no exterior, passando então a analisar a composição e destino dos mesmos. Em seguida, levantaremos as principais explicações e discussões sobre a recente internacionalização brasileira, destacando as ∗ Doutorando em Economia pela Unicamp. End. eletrônico: [email protected] repercussões políticas do episódio de nacionalização boliviana de 2006. Por fim, teceremos as considerações finais. Aspectos teóricos do processo de internacionalização O conceito de circuito ampliado de acumulação de capital, representado esquematicamente como D-M-D’, encadeia teoricamente as fases pelas quais o processo de acumulação capitalista se realiza, partindo do investimento de capital monetário (D-M) e chegando à realização (M-D’), momento que materializa um novo montante de capital monetário que novamente será lançado na busca de maiores lucros. Ao circunscrevermos o circuito ampliado aos limites territoriais e políticos do Estado Nacional, podemos definir o conceito de internacionalização como o deslocamento de fases do circuito ampliado de acumulação de capital para fora dos limites de um Estado Nacional. Conseqüentemente, podemos reconhecer diferentes internacionalizações ligadas a distintas fases do circuito de reprodução ampliado: o deslocamento dos investimentos (D-M) para fora dos limites de um Estado nacional pode ser entendido como internacionalização produtiva; as vendas no exterior na forma de exportações (M-D’) caracterizariam a internacionalização comercial; e o estabelecimento de relações de direitos (aplicação em ativos) e dividas (financiamento por passivos) com o exterior (D-D’) configuraria a internacionalização patrimonial. No âmbito dos países do centro capitalista, a extrapolação das fases de reprodução ampliada do capital para outros países e mercados é vista como uma característica estrutural da burguesia lá formada, sendo muitas vezes descrita sob o conceito de imperialismo. A incorporação dos países periféricos no circuito de reprodução ampliada de capital dos países do centro capitalista passa a condicionar as mudanças estruturais no capitalismo periférico (FERNANDES, 1975, pp. 12-53). Portanto, a ligação entre internacionalização e condicionamento histórico é o eixo que perpassa as análises sobre a presença do capital internacional em nosso país. O viés acima mencionado pode ser proveitosamente complementado pela análise da dinâmica de internacionalização dos circuitos ampliados de capital comandados ou ligados a burguesia brasileira. Ao analisarmos a história brasileira sob este prisma, percebemos que a internacionalização comercial, na forma de exportação de produtos primários (açúcar, café, borracha e mais recentemente soja) foi a maneira privilegiada pela qual o circuito ampliado de acumulação de capital se internacionalizou no Brasil. O acesso a recursos em moeda estrangeira (financiamento privado externo), uma das dimensões da internacionalização patrimonial, foi outra forma presente que nos remete ao período das Políticas de Defesa do Café durante a República Velha e às políticas de incentivo de empréstimos internacionais durante o período do II Plano Nacional de Desenvolvimento. Mas as duas últimas décadas parecem trazer novos e importantes contornos no processo de internacionalização recente da burguesia brasileira, tanto na dimensão patrimonial, a da aplicação em ativos, como na dimensão produtiva, dos investimentos diretos. A principal evidência dos novos contornos no processo de internacionalização da burguesia brasileira vem do significativo aumento de volume nos investimentos brasileiros no exterior. A Tabela 1 nos mostra que dos US$ 4,06 bi na década de 1980, os investimentos brasileiros no exterior passam para US$ 67,01 bi na década de 1990 e para US$ 112,01 bi na década de 2000. Ou seja, o total dos investimentos brasileiros no exterior aumentou 1.550% da década de 1980 para 1990 e novamente aumentaram 67% quando comparamos a década de 1990 com a década de 2000. Tabela 1 - Fluxos de Investimento Brasileiro no Exterior - US$ bi 1980199020001989 A 1999 B 2007 C B/A C/B 2,24 9,25 50,35 313 445 2,24 0,00 8,66 0,58 45,30 5,04 287 - 423 769 Investimento brasileiro em carteira 0,05 4,16 4,87 8.065 17 Ações de companhias estrangeiras Títulos de renda fixa LP e CP 0,05 0,00 2,78 1,39 7,00 -2,13 5.341 - 152 -254 1,77 53,60 56,80 2.930 6 -0,51 -1,00 -1,16 0,17 3,28 11,28 18,30 5,48 12,82 24,02 14,00 42,28 16,93 25,35 0,52 -2.312 -1.935 -571 7.623 633 24 131 209 98 -98 4,06 67,01 112,01 1.550 67 Investimento brasileiro direto Participação no capital Empréstimo intercompanhia Outros investimentos brasileiros Empréstimo e financiamento LP e CP Moeda e depósito Bancos Demais setores Outros ativos LP e CP (líquido) Total Fonte: Banco Central do Brasil Composição e destino dos investimentos brasileiros no exterior A análise do estoque de investimentos brasileiros no exterior (Tabela 2), a partir dos dados do Censo de Capitais Brasileiros no Exterior, mostra um salto no volume total de 121,9% entre 2001 (US$ 68,6 bi) e 2006 (US$ 152,2 bi), destacando-se a modalidade de investimento direto, que em 2006 respondia por nada menos que 75% do total (US$ 114,2 bi), contra 9% dos investimentos em carteira (US$ 14,4 bi) e 16% das demais modalidades (US$ 18 bi). Dentro dos investimentos diretos, aqueles dirigidos a participação em mais de 10% das ações de companhias no exterior respondiam, sozinhos, por 64% do estoque em 2006. Deslocando o foco de análise para o destino geográfico dos investimentos brasileiros no Exterior, a ótica dos estoques (Tabela 3) mostra a elevada participação dos paraísos financeiros no Caribe – Bahamas, Bermudas, Ilhas Caymam e Ilhas Virgens – em todas as modalidades, principalmente nos investimentos diretos, onde os quatro paraísos fiscais caribenhos somam US$ 67 bi de um total de UU$ 114 bi de estoque em 2006. CORRÊA & LIMA (2006:12) explicam a elevada participação dos paraísos fiscais como decorrência de uma estratégia empresarial de efetuar investimentos no resto do mundo através de holdings situadas nesses países, diminuindo custos de transação. Tabela 2 Estoque de Capitais Brasileiros no Exterior - Distribuição por Modalidade - US$ bi 2001 2002 2003 2004 2005 2006 06/01 (%) TOTAL 68,6 72,3 82,7 93,2 111,7 152,2 121,9 Investimento Direto Brasileiro no Exterior investimento direto (superior a 10%) 1/ empréstimos intercompanhia Investimento em Carteira portfólio - participação societária BDR portfólio - título da dívida LP portfólio - título da dívida CP 49,7 42,6 7,1 5,2 2,5 0,5 0,6 54,4 43,4 11,0 4,4 2,3 0,1 0,9 54,9 44,8 10,1 5,9 2,5 0,1 1,5 69,2 54,0 15,2 8,2 2,3 0,1 2,9 79,3 65,4 13,8 9,6 2,3 0,1 3,6 114,2 97,7 16,5 14,4 2,8 0,9 6,2 129,8 129,5 131,7 179,5 11,7 95,0 972,1 1,6 0,0 0,2 0,7 9,4 3,4 1,1 0,1 0,3 0,5 7,9 4,6 1,9 0,1 0,2 0,7 16,4 4,5 3,0 0,1 0,1 0,6 10,4 4,6 3,2 0,1 0,1 0,7 17,1 4,9 4,5 183,2 169,2 -54,9 -19,3 -100,0 404,2 Derivativos Financiamento Empréstimo Depósitos Outros Investimentos 0,1 0,1 0,6 0,0 17,2 Fonte: Banco Central do Brasil - Censo de Capitais Brasileiros no Exterior; 1/ Intercompanhia inclui empréstimos, financiamentos e leasing/arrendamento; Outra modalidade de peso no estoque de investimentos brasileiros no exterior são os depósitos em moeda, com elevada participação dos EUA e da Inglaterra, locais que apresentam os centros financeiros mais desenvolvidos e internacionalizados do mundo. Tabela 3- Distribuição geográfico do estoque de Investimentos Brasileiros no Exterior em 2006 IDE Pais Bermudas Cayman Dinamarca Virgens Bahamas Espanha EUA Luxemburgo US$ bi 15,00 32,00 10,00 11,00 9,00 4,00 4,00 4,00 Financiamento Pais US$ bi Argentina 0,01 Chile 0,01 EUA 0,01 Virgens 0,01 Empréstimo Pais US$ bi Virgens 0,13 Panamá 0,12 Uruguai 0,09 Luxemburgo 0,06 EUA 0,03 Depósito Pais US$ bi EUA 8,23 Reino Unido 3,82 Caymam 1,46 Bahamas 0,66 Holanda Chile Argentina Antilhas Subtotal Demais Total 3,00 2,00 2,00 2,00 98,00 16,00 114,00 Subtotal Demais Total 0,04 0,03 0,07 Subtotal Demais Total 0,43 0,13 0,56 Subtotal Demais Total 14,17 3,03 17,20 Elaboração própria a partir do Censo de Capitais Brasileiros no Exterior - 2006 Já pela ótica dos fluxos (Tabela 4), destaca-se a concentração dos investimentos diretos brasileiros nas Américas (64,4% do total no período), com grande participação dos EUA (US$ 613 mi), seguido pela Bolívia (US$ 574,8 mi), Paraguai (US$ 315,8 mi) e Chile (US$ 219,6 mi). No resto do mundo, destacam-se Portugal (528,7 mi) e Holanda como os grandes receptores de investimentos brasileiros. Tabela 4 Destino do fluxo líquido acumulado de Investimentos Diretos Brasileiros 1990 a 2002 (US$ milhões) Pais/Região Américas EUA Bolívia Paraguai Chile Equador Demais Resto do Mundo Portugal Holanda Luxemburgo Espanha China Demais Total Valor 1886,8 613 574,8 315,8 219,6 97,9 65,7 1043,6 528,7 351,1 53,5 49,2 34,5 26,6 2930,4 % do Total 64,4 20,9 19,6 10,8 7,5 3,3 2,2 35,6 18,0 12,0 1,8 1,7 1,2 0,9 100,0 Fonte: Unctad Ao analisarmos o destino setorial dos estoques de investimentos diretos brasileiros (Gráfico 1), as atividades ligadas a serviços são o destino da esmagadora maioria dos recursos investidos no exterior (aproximadamente 90% do estoque de 2006). Dentro das atividades de serviços, as ligadas à intermediação financeira e auxiliares tem grande peso, perdendo terreno apenas em 2006 para as atividades de serviços prestados as empresas. Dado que a forma concreta pela qual a burguesia brasileira se internacionaliza são os investimentos de grupos empresariais, consideramos relevante destacar, mesmo que sumariamente, os principais grupos brasileiros multinacionais. A Tabela 5 traz a lista das multinacionais brasileiras com internacionalização produtiva, na qual três características se destacam. A primeira é a concentração em três nichos de atividade: exploração de recursos naturais, construção civil e equipamentos de transportes. A segunda é a constante presença de investimentos na Argentina, Estados Unidos e China. A terceira é uma média de relação entre ativos no exterior e ativos totais da empresa baixa (0,212), metade das 16 maiores multinacionais dos países em desenvolvimento (0,435) e 3 vezes menor que das 16 maiores multinacionais do mundo (0,635), segundo dados de UNCATD (2007). Tabela 5 - Multinacionais Brasileiras Companhia Gerdau AE/AT (a) 0,38 Setor Ferro e Aço Construtora Norberto Odebrech 0,1 Construção Civil Companhia Vale do Rio Doce 0,02 Mineração Onde atua EUA, Argentina, Chile, Colômbia, Canadá, Espanha e Uruguai América do Norte, Europa, África, Oriente Médio e América Latina África do Sul, Angola, Argentina, Austrália, Chile, China, EUA, França, Gabão, Índia, Japão. Moçambique, Mongólia, Noruega, Peru e Suíça Petrobrás 0,07 Petróleo e Energia Golfo do México, América Latina e África Carrocerias de Portugal. Argentina, México, Colômbia, África do Sul e Ônibus China Marcopolo 0,46 Sabó 0,28 Autopeças Alemanha, Áustria, Hungria, EUA e Argentina Construtora Andrade Gutierrez 0,2 Construção Civil Projetos na Europa, Ásia, Portugal, México e China Tabela 5 - Multinacionais Brasileiras WEG 0,24 Embraer 0,01 Tigre 0,13 Votorantim Cimentos 0,45 Equipamentos Elétricos Argentina, Portugal, México e China Aviões Tubos plásticos e conexões Cimento Fábrica: China Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e China 7 fábricas na América do Norte Fonte: Elaboração própria a partir de OECD (2008:18), considerando apenas as empresas que possuíam ativos produtivos fora do Brasil. a) Ativos produtivos permanentes fora do Brasil (AE) / Ativo total da Companhia (AT). As análises acima sugerem algumas características importantes do processo recente de internacionalização da burguesia brasileira. A primeira é a predominância, na internacionalização produtiva, de uma estratégia financeira que utiliza os paraísos fiscais e os serviços de intermediação financeira. A segunda característica é a importância dos EUA nos estoques de investimentos brasileiros, aparecendo entre os maiores receptores para todas as modalidades, principalmente nos depósitos em moeda. Na ótica dos fluxos de IDE aparece também como principal destino, respondendo sozinho por 20,9% do total de recursos no período. Pela listagem das multinacionais brasileiras, 5 das 11 atuam no mercado norte-americano. Uma terceira característica é o destacado peso da América Latina como destino dos investimentos brasileiros, seja a América Central e Caribe na ótica dos estoques de todas as modalidades, ou a América do Sul na ótica dos fluxos de investimento direto. O destaque na listagem das multinacionais brasileiras é a atuação de 6 das 11 no mercado argentino. Motivações da internacionalização e suas implicações A literatura econômica costuma destacar alguns fatores causais preponderantes, geralmente microeconômicos, para as decisões de internacionalização dos investimentos brasileiros no âmbito comercial e produtivo. ALEM; CAVALCANTI (2005) e CORRÊA; LIMA (2006, p. 6) encontram evidências de que a busca por maiores mercados e de maior proximidade com os consumidores incentiva a internacionalização das empresas brasileiras. ARBIX et al. (2004) argumenta a existência de evidências da motivação de busca por novas tecnologias. CORRÊA; LIMA (2007) sugerem a forte influência de acesso a melhores condições de financiamento no exterior para a internacionalização. KUPFER (2006) sugere a motivação de fuga de custos nacionais. A mesma literatura que sublinha a predominância de motivos microeconômicos mostra a existência de um importante debate sobre as possíveis conseqüências econômicas e políticas decorrentes do recente processo de internacionalização. Na dimensão econômica, a primeira discussão é a respeito das conseqüências em relação ao balanço de pagamentos. TEIXEIRA (2006) e CORRÊA; LIMA (2006, p. 4) apontam a possibilidade de melhora nas contas externas do país, não só pelo aumento das exportações para os países que recebem investimentos brasileiros, mas também pela constituição de um fluxo de remessas de lucros e dividendos das multinacionais brasileiras para o país. Já MACADAR (2008:33) alerta que os investimentos diretos brasileiros podem ocasionar a redução das exportações, pois as empresas brasileiras passariam a produzir no exterior, a menos que comércio entre a matriz e a sua filial se amplie. Uma segunda dimensão do debate relaciona-se a criação de empregos. TEIXEIRA (2006, p. 4) e MACADAR (2008, p. 34) argumentam que os investimentos brasileiros desviariam para o exterior a criação de novos postos de trabalho num país que tanto precisa deles. MACADAR (2008) aponta ainda que os IDEs motivados pela busca da eficiência, mesmo quando aumentam a demanda por trabalhadores especializados no país de origem, podem ter efeito negativo sobre os trabalhadores não especializados. Outra discussão comumente apontada refere-se a incorporação de novas tecnologias. CORRÊA; LIMA (2006, p. 4) e ARBIX et al. (2004) apontam para uma perspectiva positiva de incorporação de novas tecnologias adquiridas nos mercados externos aos processos produtivos que operam no parque industrial brasileiro. No plano político, três questões começam a se colocar junto ao processo de internacionalização da burguesia brasileira. A primeira é a intensidade pela qual a política externa brasileira será afetada, pois a mesma deverá não só intermediar conflitos envolvendo investimentos brasileiros no exterior, mas buscar acordos internacionais de proteção de investimento (MACADAR, 2008, p. 33). A segunda questão são os indícios da constituição de políticas públicas voltadas para incentivar o processo de internacionalização, vindos tanto de declarações de representantes do governo1, como de medidas concretas, a exemplo da criação de uma linha de crédito específica do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)2 em 2005, a regulamentação da atuação de Fundos de Investimentos brasileiros no exterior pela Instrução da Comissão de Valores Imobiliários nº. 450, de 30 de março de 2007, e mais recentemente, a incorporação, dentre os objetivos da criação do Fundo Soberano do Brasil, do estímulo à internacionalização de empresas do Brasil3. 1 “(...), o presidente Lula incentivou as empresas brasileiras a perderem o medo de se tornarem multinacionais. De acordo com o ministro do Desenvolvimento (...)a meta do governo é chegar ao fim do mandato com pelo menos 10 empresas transnacionais brasileiras em operação” (Valor Econômico, 09/12/2004). 2 http://www.bndes.gov.br/exportacao/internacionalizacao.asp 3 "O BNDES auxiliará a internacionalização das empresas para que elas tenham mais competitividade no cenário globalizado (...) Será um instrumento para apoiar a política de expansão das empresas brasileiras no exterior” (Jornal do Brasil, 14/05/08). A terceira e mais importante questão é a tendência de incorporação, dentre os fatores que passam a influenciar a mobilização da burguesia brasileira, da dinâmica política dos países que receberam investimentos brasileiros. Prova disso foi a repercussão do episódio de nacionalização ocorrido na Bolívia, gerando uma solidariedade classista na burguesia brasileira. Internacionalização econômica e o transbordamento da arena política - o caso Bolívia Em 1.º de maio de 2006, o presidente boliviano Evo Morales, seguindo sua plataforma eleitoral, emitiu o Decreto Supremo 28071, que em essência a) devolvia ao Estado boliviano a propriedade dos recursos naturais ali encontrados; b) retomava a gestão de todas as etapas de produção daqueles; c) determinava que somente poderiam ser executados os contratos devidamente aprovados pelo Congresso Boliviano; d) ordenava a nacionalização das ações necessárias para que a Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB) passe a deter 50% mais 1 das ações das empresas transnacionais estabelecidas em território boliviano; e e) estabelecia o período de 180 dias para que estas mesmas empresas possam se adaptar às disposições do decreto (ZANELLA et al., 2007; CEPIK; CARRA, 2006). Tal decreto implicava que a filial boliviana da Petrobras, a maior empresa em atividade na Bolívia, não mais seria responsável pela distribuição atacadista (postos de gasolina) bem como pela importação de derivados de petróleo, passando tais funções para a YPFB. O Decreto Supremo gerou um cenário que trazia duas questões distintas. A primeira envolvia o controle da Petrobras sobre seus investimentos – refinarias, postos de gasolina, etc. A segunda era a garantia do abastecimento de gás natural (preços e quantidades) ao mercado consumidor brasileiro. A repercussão da nacionalização na sociedade brasileira, captada através do debate nos principais jornais e revistas na época, apresentou três linhas de argumentos, os quais em maior ou menor medida i) identificavam a Petrobrás como um símbolo nacional brasileiro, e ii) ponderavam que abastecimento do mercado consumidor brasileiro de gás boliviano era realizado através dos investimentos feitos pela Petrobras. A primeira linha argumentativa era a preocupação com a manutenção do fornecimento de gás (volume físico e preço) ao mercado consumidor brasileiro, colocando em jogo não só os custos do empresariado, mas o acesso dos consumidores domésticos ao gás de cozinha. Por se tratar de uma questão que objetivamente afetava o conjunto dos brasileiros (empresários e consumidores), a manifestação de solidariedade de classe é mais difusa, o que nos leva a não nos atermos a esta vertente. Um segundo viés encarava a nacionalização da Petrobrás como afronta direta à soberania nacional1 e ao povo brasileiro, pois identificava na empresa uma legítima representação da nação brasileira. Entretanto, o elemento que unificou o discurso de todos aqueles que comungavam desta interpretação foi o sentimento de ameaça à propriedade privada de brasileiros na Bolívia, uma clara manifestação de solidariedade de classe dos proprietários de bens no Brasil para aqueles que poderiam se somar à condição da Petrobrás na Bolívia. A solidariedade contra a expropriação dos brasileiros na Bolívia abarcou representantes de um amplo espectro de partidos políticos brasileiros2, sendo muito elucidativa i) a posição de um candidato a presidência: “(...) a expropriação dos ativos da Petrobras pode caminhar para a desapropriação de propriedades agrícolas de brasileiros na Bolívia” (Gazeta Mercantil, 09/05/2006) e ii) o argumento que embasou uma chamada à mobilização conjunta de todos os governadores pela defesa dos interesses nacionais: “(...) a decisão unilateral da Bolívia atenta contra acordos brasileiros feitos com aquele país, que devem ser respeitados. Temos contratos que têm de ser cumpridos, e é preciso também preservar o patrimônio que é nosso. Aquilo que a Petrobras investiu na Bolívia não pode sofrer qualquer prejuízo na sua manutenção” (Gazeta Mercantil, 03/05/2006). Esta identificação de classe se acentua quando analisamos as opiniões do empresariado. Um deles, diretamente afetado pelas novas medidas do governo boliviano, declarou: “(...) É a prova clara de que o governo boliviano quer expropriar e ser dono da maioria dos projetos (...) a situação é muito mais complexa e atinge todos os interesses de brasileiros na Bolívia” (Folha de S.Paulo, 02/05/06). Na mesma linha, um representante da Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP se manifestou dizendo que “(...) a entidade cobrará do governo federal respeito aos direitos brasileiros na Bolívia” (Época, 01/05/2006). A terceira linha de argumentos presente nos jornais e revistas da época centrava-se na necessidade de retaliação ao ataque sofrido pelo Brasil. O clamor por retaliação ao governo da Bolívia vinculava-se a duras críticas sobre a atitude do governo brasileiro perante o caso, pois, para os adeptos dessa visão, “(...) o governo brasileiro preferiu não polemizar. Adotou uma linha diplomática e, apesar dos apelos do setor privado e de políticos por uma reação forte, apenas emitiu uma nota formal que reconhece a soberania do país vizinho para adotar a medida” (Correio Braziliense, 03/05/2006a). 1 A declaração do então presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo, é exemplar: “Creio que o Brasil deve agir de forma a respeitar a soberania de um país vizinho e ao mesmo tempo defender energicamente os interesses nacionais representados pela presença da Petrobras” (Folha de S.Paulo, 03/05/2006). 2 Renan Calheiros, então presidente do Senado, declarou “O governo brasileiro tem que reagir, ser duro na defesa da Petrobras e do Estado brasileiro, não dá para ser condescendente com um desvario desses, com essa quebra de contrato, com essa insegurança jurídica”. Na mesma linha, Ricardo Berzoni, então presidente do PT: "Não podemos demonizar o presidente boliviano pelo movimento que faz no seu país pela nacionalização do mineral, mas também não podemos apoiar uma nacionalização hostil” (Folha de S.Paulo, 03/05/2006). Não faltaram pedidos para um reação “(...) de forma enérgica, mas sem bravatas, para obter a preservação dos direitos da Petrobras, vale dizer, do Brasil. Poderá fazê-lo pelo uso dos instrumentos de conciliação pacífica ou, se necessário, mediante mobilização contenciosa dos foros internacionais” (Correio Braziliense, 03/05/2006b), ou ainda “(..) ante a grave violência à soberania nacional concretizada na expropriação dos bens e direitos da Petrobras na Bolívia, comporta-se com ultrajante covardia. Em vez de manifestar rejeição à insolência do chefe do governo boliviano e exigir a imediata devolução das concessões cedidas por contrato à empresa brasileira, aceitou o confisco decretado por Evo Morales como “ato de soberania” (Correio Braziliense, 06/05/2006). Portanto, o caso boliviano sugere fortemente que a dinâmica política dos países que recebem investimentos brasileiros passará a influenciar a atuação da burguesia brasileira na política nacional. Conclusão A partir da década de 1990 a internacionalização de nossa burguesia ganha novos e importantes contornos na dimensão patrimonial (carteira e outros) e na produtiva (investimentos diretos), tendo os EUA e a América Latina como principais destinos regionais; os serviços financeiros e prestados as empresas como destino setorial e as atividades de exploração de recursos naturais, construção civil e equipamentos de transporte como nichos das principais multinacionais brasileiras. O recente processo de internacionalização, explicado pela literatura econômica por fatores microeconômicos enseja um debate sobre suas possíveis conseqüências no âmbito econômico – balanço de pagamentos, criação de empregos e incorporação de novas tecnologias – e político – influências sobre a política externa brasileira, constituição de políticas públicas específicas e incorporação, dentre os fatores que passam a influenciar a mobilização da burguesia brasileira, da dinâmica política dos países que receberam investimentos brasileiros. Referências: ALEM, Ana; CAVALCANTI, Carlos. O BNDES e o Apoio à Internacionalização das Empresas Brasileiras: Algumas Reflexões. Revista do BNDES, Rio de Janeiro, vol. 12, nº 24, pp. 43-76, dez. 2005. ARBIX, Glauco; SALERNO, Mário; DE NEGRI, João. Inovação via internacionalização, faz bem para as Exportações Brasileiras. Brasília, IPEA, Textos para Discussão nº 1023, 2004 CEPIK, Marco; CARRA, Marcos. 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