UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI FABIO SILVESTRE CARDOSO O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI: O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?” SÃO PAULO 2012 FABIO SILVESTRE CARDOSO O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI: O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?” Dissertação de Mestrado apresentada à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Ferraraz. SÃO PAULO 2012 FABIO SILVESTRE CARDOSO O CINEMA DE TESE DE SÉRGIO BIANCHI: O CASO DE “QUANTO VALE OU É POR QUILO?” Dissertação de Mestrado apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre do Programa de Mestrado em Comunicação, área de concentração em Comunicação Contemporânea da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr. Rogério Ferraraz. Aprovado em 19/12/2012 Prof. Dr. Rogério Ferraraz Nome do orientador Profa. Dra. Lúcia Nagib Nome do(a) convidado(a) Profa. Dra. Sheila Schvarzman Nome do(a) convidado(a) RESUMO O presente trabalho, “O cinema de tese de Sérgio Bianchi: o caso de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, desenvolve uma reflexão sobre a obra de Sérgio Bianchi, tomando como principal referência para análise o penúltimo trabalho desse autor, “Quanto Vale ou É Por Quilo?” (2005), cujo roteiro foi livremente inspirado no conto “Pai Contra Mãe”, de Machado de Assis, sem deixar de observar as características de seus filmes anteriores. O objetivo central é analisar como Bianchi concebe um cinema de tese, tomando emprestado, para tanto, gêneros audiovisuais distintos. Para realização dessa dissertação, além de uma breve revisão da obra de Bianchi, buscou-se também a discussão do conceito de ironia, tendo em vista que se trata de um recurso bastante utilizado pelo cineasta. E, por fim, a análise principal discorreu sobre “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, com o propósito de identificar quais são os elementos constitutivos do cinema de tese de Bianchi, que, no caso desse filme, teve como alvo principal o chamado Terceiro Setor. Palavras-chave: Cinema brasileiro. Sérgio Bianchi. Ironia. Distopia. Crítica. Análise fílmica. ABSTRACT This essay, “O cinema de tese de Sérgio Bianchi: o caso de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, reflects on the work of Sergio Bianchi, taking as main reference for analyzing one of his last movies: "Quanto Vale ou É Por Quilo? "(2005), whose screenplay was loosely inspired by the short story "Pai contra Mãe ", by Machado de Assis, while observing the characteristics of his previous films. The main objective is to analyze how Bianchi conceives a thesis film, borrowing, therefore, different audiovisual genres. In order to accomplish this, first of all, there is a brief review of Bianchi’s work, also sought to discuss the concept of irony, considering that it is a resource commonly used by the filmmaker. And finally, the main analysis dwelt on "Quanto Vale ou É Por Quilo?", in order to identify which are the main elements of the film Bianchi thesis, which in this case had the Third Sector as the main target. Keywords: Brazilian Cinema. Sérgio Bianchi. Irony. Distopia. Critic. Filmic analysis. Agradecimentos Direta ou indiretamente, muitas pessoas contribuíram para que este trabalho fosse concluído. Ao “grande” Ricardo Matsuzawa, um dos primeiros alunos do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi, que sempre se mostrava interessado por este trabalhao e desde o começo foi um grande incentivador. Na mesma linha, aos amigos Paulo Vasconcellos, Chico Bicudo, Cristina Almeida, Whaner Endo e Ricardo Senise (na última hora, Senise, o empréstimo de livro foi seu!) À Karina Menegaldo, ao Lucas Rodrigues e ao Martim Vasques da Cunha, leitores criteriosos das primeiras versões de textos dessa dissertação. Ao professor Rogério Ferraraz, cuja orientação, sempre objetiva e necessária, foi elementar para a elaboração deste trabalho. Aos demais professores do Programa de Mestrado em Comunicação, em especial Laura Cánepa, Luiz Vadico, Sheila Schvarzman e André Gatti. Aos meus pais, Geraldo Cardoso e Noeme Silvestre, e à minha irmã, Daniela Silvestre, que sempre me apoiaram. E à querida (e linda) Luciana Morais Borges, cujo carinho e afeto foram (e são) decisivos. Você foi mais do que importante! Dedico este trabalho à memória do meu avô, o pioneiro Anselmo Silvestre (1917-2012) SUMÁRIO Introdução..........................................................................................................9 1. Sérgio Bianchi..............................................................................................12 1.1 .A propósito do Cinema Novo e o ocaso das utopias................................19 1.2 A anticelebração........................................................................................25 2. Quanto vale a ironia?..................................................................................34 3. Sérgio Bianchi e o cinema de tese..............................................................58 3.1. Sobre a pesquisa nível-médio e o cinema de Bianchi.............................61 3.2 Sobre a composição de Quanto Vale ou É Por Quilo?..............................68 3.3 O ressentimento como motor para o sucesso..........................................78 3.4. Relatos do Arquivo Nacional.....................................................................83 3.5. Entendendo a tese de Bianchi..................................................................87 3.6 Como se faz uma tese................................................................................90 4. Considerações finais...................................................................................95 5. Referências................................................................................................100 Introdução Em “Pai contra Mãe”, o escritor Machado de Assis traz a história de um homem, Candinho, e as inúmeras dificuldades para cuidar de seus filhos. Como alternativa, o personagem decide incorporar um dos “ofícios de seu tempo”, como assinala o narrador do conto. Resultado: Candinho se torna capitão do Mato, ocupação cujo objetivo central era o de recuperar escravos fugidos, como diz o texto. Com o término da escravidão, Candinho novamente se vê na iminência de ficar sem dinheiro. Como consequência, chega ao extremo de levar seu filho à Roda dos Enjeitados, local onde eram deixados os filhos que não tinham futuro graças às parcas condições de subsistência de seus pais. Esse era o caso de Candinho, até o momento que vê Arminda, a escrava fugida que funciona como um bilhete premiado para o capitão do mato. No desfecho da história, Candinho captura a escrava, que suplica por sua vida, ressaltando que está grávida e que pode perder seu filho. Candinho não titubeia: entrega a escrava, que, por sua vez, logo depois de um tempo, aborta. Como recompensa, Candinho recebe a quantia de cem-mil contos de réis. Ao final, constata numa afirmação fria e lapidar: “nem todas as crianças vingam”. O cineasta Sérgio Bianchi tomou emprestado o conto de Machado de Assis e, livremente inspirado no texto, elaborou o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Bianchi lança um novo olhar sobre o conto, estabelecendo uma relação de parentesco entre as práticas sub-repticiamente denunciadas naquela história (as condições de vida dos escravos, que eram tratados como 9 mercadoria) e o atual Terceiro Setor (que usa como matéria-prima para suas práticas a condição de vida empobrecida de uma camada considerável da população que vive à margem do êxito nas grandes cidades). A presente dissertação “Sérgio Bianchi, por um cinema de tese: o caso de “Quanto Vale ou É Por Quilo?” tem como objetivo analisar como Sérgio Bianchi, concebe sua obra, mais precisamente busca examinar quais são os elementos centrais utilizados por esse autor para, de um lado, reafirmar sua visão de mundo e, de outro, estabelecer uma peça cinematográfica que prima pela enunciação de um discurso crítico, original e na contramão do consenso de certa intelectualidade brasileira. Para sua realização, este trabalho estabelece como recorte a produção cinematográfica de longas-metragens de Sérgio Bianchi até o ano de 20051. Com isso, já no primeiro capítulo, O Cinema de Sérgio Bianchi, o texto dá conta de apresentar a obra do autor, comentando que características são recorrentes, passando, assim, pelos filmes “Maldita Coincidência”, de 1979; “Romance”, de 1988; “A Causa Secreta”, de 1994; “Cronicamente Inviável”, de 2000; e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005. No segundo capítulo, Quanto Vale a Ironia?, observa-se como esse recurso é utilizado pelo diretor como estratégia de crítica aos temas abordados em seus filmes. Assim, nesse segmento, num primeiro momento, são estudados alguns teóricos que fundamentam o conceito de ironia. Na esteira desse estudo, o conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, é observado à luz desse debate. De maneira semelhante, o cinema de Bianchi é também comentado de acordo com essa abordagem. 1 Em 2009, o diretor lançou o filme “Os Inquilinos”, que não foi analisado neste trabalho porque o tema e a forma da obra obedecem à outra estrutura narrativa, uma vez que o diretor opta por uma encenação mais tradicional se comparada a seus cinco filmes anteriores. 10 Por fim, no último capítulo, Sérgio Bianchi e o cinema de tese, o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?” é analisado, a partir de uma perspectiva que relaciona texto e contexto, forma e conteúdo, no sentido de observar de que maneira o diretor concebe seu cinema de tese, atentando, especificamente, para o filme em que o objeto da crítica são as ONGs. Assim, este trabalho filia-se ao que David Bordwell (2004) chamou de “pesquisa nível-médio”, tão cara aos estudos de cinema atualmente. A presente dissertação não busca encerrar o debate sobre a obra de Sérgio Bianchi; antes, pretende contribuir para tal debate ao ensaiar uma reflexão sobre a crítica que o autor estabelece em seu discurso cinematográfico. 11 1. Sérgio Bianchi A obra do cineasta Sérgio Bianchi está, a um só tempo, na contramão do projeto que fez parte do imaginário da cultura brasileira na década de 1960 – o Cinema Novo – e na direção oposta do Cinema da Retomada, projeto que trouxe de volta para as telas a produção brasileira depois do início da década de 1990. Cineasta nascido no Paraná, Bianchi já nos seus primeiros filmes parece contar com uma agenda, singular e regular, capaz de metabolizar as discussões de fundo sob uma forma mais provocativa, enfrentando os temas a partir de um olhar questionador, e de certa forma subversivo, sobre a sociedade. É o cineasta, em síntese, do “Cronicamente Inviável”, filme de 2000, espécie de interpretação sobre o Brasil às avessas na qual todos os envolvidos, cada qual à sua maneira, inviabilizam cronicamente o País: tanto as elites, que ignoram as mazelas do Brasil onde vivem, como as demais classes subalternas, que se movem graças ao combustível do ressentimento 2 . Na percepção de Bianchi, e conforme a observação atenta desse filme, os dois grupos corrompem o estado das coisas no País, conforme a visão desencantada desse cineasta que começou a fazer cinema na década de 1970. Além de apresentar uma contextualização crítica necessária da obra de Sérgio Bianchi, o propósito, neste capítulo, é observar o trabalho do cineasta em perspectiva, tomando como referência alguns de seus depoimentos, e, essencialmente, seus filmes, que, como se verá nos capítulos a seguir, podem ser analisados em partes: de um lado, a partir da 2 Mais adiante, trataremos da questão do ressentimento na obra de Sérgio Bianchi. 12 chave da ironia (a ser desenvolvida no capítulo 2); de outro, com base na correlação forma-conteúdo (a ser trabalhado no capítulo 3, observando especificamente o caso do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005). Antes disso, voltemos a Sérgio Bianchi. Em um livro publicado em meados da década de 1980, Luiz Nazário (1983) apresenta a obra de Sérgio Bianchi de forma, a princípio, bastante inusitada. Isso porque, de acordo com o crítico, o cineasta já nas primeiras obras (“Omnibus” e “A Segunda Besta”, não analisados nessa dissertação) de uma carreira semiclandestina consegue desenvolver uma espécie de “estilo pessoal”, marca que seria percebida tanto nos curtas-metragens quanto em seu primeiro longa, “Maldita Coincidência” (1979). Na avaliação de Nazário, chama a atenção o uso do termo ironia para destacar esse estilo. O inusitado aqui reside exatamente no fato de que o trabalho de Bianchi, mesmo sendo relativamente pouco em número de filmes realizados, já conseguia se estabelecer a partir do que podem ser consideradas características autorais. No trabalho “Brasis Imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo”, Pedro Vinícius Asterito Lapera (2007) disserta sobre a obra de Bianchi, destacando os elementos-chave da produção cinematográfica do autor. Acerca de “Maldita Coincidência”, é interessante observar que o autor chama a atenção para o fato de, embora atualmente soe datado e sem contar com elementos originais em sua estrutura, Sérgio Bianchi já dar mostras de fazer um cinema sério e não-convencional. A avaliação de Lapera, de alguma maneira, define o filme de Bianchi – ecoando, em certa medida, a análise de Nazário ainda na década de 1980. 13 A obra se constitui de um mosaico de pequenas histórias que mais se parecem esquetes nonsense, se forem percebidas separadamente. Em conjunto, no entanto, o filme adianta boa parte da agenda do cineasta no tocante ao tratamento dos temas polêmicos e à forma de expor essas questões. Em texto considerado referência sobre o filme, Jean-Claude Bernadet salienta os elementos centrais da obra, como se lê a seguir: Através da fragmentação narrativa (situações dramáticas não evoluem a partir de relações de causa e efeito, mudanças de atitude e comportamento dos personagens não encontram motivação lógica justificada pelo enredo), mudança de tons (o filme altera vários registros distintos: farsesco, paródico, patético, filosófico) e multiplicidade de vozes, letreiros invadem a tela acrescentando comentário paralelo à imagem), Bianchi tenta harmonizar o equilíbrio entre a rebeldia poética, a experimentação formal e o engajamento político (BERNADET, 1983, p3) 3. Para além do fato de esse comentário representar uma espécie de síntese do cinema de Bianchi, é correto assinalar que “Maldita Coincidência” estabelece, pela primeira vez na obra do diretor, o retrato de um desencanto de uma geração que havia acreditado nas possibilidades da utopia políticolibertária. Assim, no já citado mosaico em que vivem os personagens, existe uma frustração manifestada na contradição evidente entre o discurso e a imagem. Tal contraste também seria aprofundado em obras seguintes do cineasta. Ainda sobre o filme, Bernadet assinala que os mecanismos internos do filme corroboram para essa percepção desencantada do mundo, enfatizando o quanto esse cenário se vincula a um contexto político que exigia envolvimento político emocional por parte dos personagens. Tão importante O texto em questão se chama “Maldita Coincidência/Eles não usam Black Tie”. A crítica foi publicada na revista Filme Cultura em 1983. O acesso ao texto se deu a partir da publicação no item Fortuna Crítica, do DVD da coleção Sérgio Bianchi, editado pela Versátil em 2010. 3 14 quanto essa chave para o sentido da obra, Bernadet, citado por Lapera (2007), observa na contramão dos textos que comentaram o filme à época, que se trata de obra estruturada, ou seja, o crítico também observa as características formais da obra cinematográfica em análise. Esse mal-estar para com a causa política como grande narrativa, espécie de tópico fundamental da poética da pós-modernidade 4 , marca também a produção de “Romance”, filme de 1988. Diferentemente de “Maldita Coincidência”, “Romance” se notabiliza pela existência de uma narrativa menos experimental. O filme traz a história de uma investigação sobre a morte de Antônio César, intelectual de esquerda e libertário. Às vésperas de sua morte, ele preparava um livro no qual denunciava um escândalo internacional em que estavam envolvidas autoridades políticas. A jornalista Maria Regina sai à cata de informações que possam desvendar a morte do amigo intelectual, funcionando, no filme, como espécie de fio condutor da narrativa. Além dela, existem outros dois personagens, Fernanda e André, que tentam superar a ausência de Antônio César, o que não será fácil, pois, tão importante quanto o engajamento ideológico, existe, ainda, o relacionamento afetivo nesse triângulo amoroso. Sobre “Romance”, Nezi Heverton de Oliveira observa que: Bianchi opta por uma estrutura narrativa mais clássica, que incorpora elementos do gênero policial com alguns elementos de ruptura em que os elementos já testados em filmes anteriores são retomados: o discurso paródico/sarcástico construído em grande parte às custas do conflito entre imagem, narração e trilha musical (o filme publicitário; o documentário sobre as condições de vida dos habitantes que vivem à margem De acordo com Linda Hutcheon, autora do livro “Poética do Pós-Modernismo” (Rio de Janeiro: Imago, 1991): “aquilo que quero chamar de pós-modernismo é fundamentalmente contraditório, deliberadamente histórico e inevitavelmente político” (p.20). O conceito se aplica ao cinema de Bianchi exatamente porque este se impõe por manifestar um olhar crítico e estabelecer um diálogo irônico para com o passado, como se vê em filmes como “Romance”. A ideia de poética aqui sinaliza características elementares que pontuam as obras que estão sob esse pressuposto. 4 15 da estrada que liga Curitiba a São Paulo) e o questionamento entre o ilusionismo cinematográfico através da intervenção inesperada do realizador na diegése (a intromissão do diretor durante o transcorrer de uma cena para criticar a má atuação de uma atriz) (OLIVEIRA, 2006, p.46) Ao observar as características do filme, o pesquisador atenta, mais uma vez, para elementos que mais partes ajudariam a conceber a obra de Bianchi em sua totalidade, como a estratégia de propor uma música que destoa da cena que está sendo exibida; ou a sobreposição dos discursos, assim como a intervenção do diretor na cena. Assim, embora em “Romance” o diretor realize um filme com características mais próximas a um enredo tradicional, suas marcas autorais permanecem em evidência. A trama é marcada pela tenacidade com a qual a jornalista Maria Regina investiga o caso na mesma medida que todos a sua volta parecem se conformar com a corrupção e com o desengano das causas políticas. O tom de desengano se apresenta aqui pelo fato de o discurso cinematográfico apontar para um caminho que não prepara o terreno para a redenção. Em vez disso, existe a percepção de que o caminho das utopias políticas não apenas não faz mais sentido, como também pode ser trocado por uma visão de mundo mais pragmática. Nesta direção, uma cena do filme é emblemática. Maria Regina vai atrás do político que mantinha vínculo com o jornalista Antônio César. Quando se sente investigado, o político não hesita e oferece a ela a oportunidade de participar da criação de um instituto cultural que tem como mote o nome de Antônio César, a fim de que seus textos sejam reunidos e possam contribuir para o debate nacional. A cena é intrigante porque mostra claramente como se dá a tentativa de cooptação pelo poder quando é 16 colocado em xeque. E mostra, de outra parte, como Sérgio Bianchi interpreta a dinâmica existente com relação à crítica ao poder estabelecido no Brasil5. Sobre isso, a análise de Nezi Heverton de Oliveira salienta que: Bianchi investe na discussão da degeneração moral que ele vê tomar conta do país, tendo como principal sintoma a corrupção política generalizada. Velhosnovos temas vêm à tona: a destruição irresponsável da natureza, degradando a qualidade de vida, e o recrudescimento da liberação sexual diante do fortalecimento de um neo-moralismo nos primeiros tempos da Aids. (OLIVEIRA, 2006, p.47) Em 1994, Sérgio Bianchi avança num filme que tem a referência literária já no título. “A Causa Secreta”, baseado em um conto de Machado de Assis6. A história apresentada por Bianchi dá conta do trabalho de campo de uma companhia teatral cujo objetivo é montar uma peça a partir do conto de Machado de Assis. Para tanto, esse grupo realiza uma pesquisa de campo a fim de conhecer a realidade social do Brasil em filas de hospitais públicos e nas ruas e encontram, cada vez mais, um sentimento de indiferença à dor e à humilhação dos marginalizados. Em certa medida, os próprios atores são acometidos por essa (falta de) reação perante as cenas que são expostas. Como se verá mais detalhadamente no capítulo 2, dessa dissertação, essa falta de sentimento é apresentada com requintes de ironia, o que ajuda a realçar a contradição daqueles que deveriam demonstrar algum sentimento para com a realidade à qual estão expostos. Em vez disso, os personagens reagem como autômatos e cumprem seu trabalho de forma ordinária e burocrática, fazendo eles próprios parte do cenário que pretendem criticar. Em sua pesquisa sobre o filme de Bianchi, 5 Para que fique mais claro, as críticas que Antônio César fazia ao núcleo político davam conta do descaso com o Meio Ambiente, provocado por desmandos relacionados àqueles que, em vez de proteger o patrimônio nacional, se interessavam por colocá-lo à venda, sem se preocupar com o bem público. 6 O objetivo do presente trabalho não é comentar as nuances existentes entre os diversos níveis de adaptação literária para o cinema, ainda que, em uma passagem ou outra, haja espaço para alguma menção a esse respeito. 17 Nezi Heverton de Oliveira atenta para o fato de que em “A Causa Secreta” nota-se uma “primeira tentativa de síntese” do cinema de Sérgio Bianchi, uma vez que o diretor condensa elementos existentes em obras anteriores, como se lê a seguir: Esse laboratório de horrores serve de pretextos para que muitas das entranhas do País sejam cruelmente dissecadas e temas já trabalhados em filmes anteriores, retrabalhados de forma mais contundente e virulenta: a insensibilidade das elites frente à miséria urbana, as humilhações embutidas no jogo de poder, a discriminação racial, a falta de solidariedade, a burocracia dos gabinetes, a ausência de uma política de saúde que garanta um atendimento com um mínimo de dignidade, as falsas inviabilidades criadas pelos funcionários públicos para justificar sua incompetência, a omissão e a denúncia servindo como álibi que exime toda a culpa e a ética perversa dos projetos científicos que torturam animais em experimentos de vivissecção. (OLIVEIRA, 2006, p.48) O filme abre as portas para a identificação de um cinema cuja proposta é o estabelecimento de uma agenda crítica que tem uma denúncia mais contundente a ser feita, se comparado com outros filmes com temas políticos ou propostas utópicas. Em verdade, é até mesmo possível observar que, no caso de Bianchi, essa análise do estado de coisas na sociedade brasileira encontra eco numa matriz antiutópica, uma vez que seu filme não propõe uma conscientização que encontra saída ou solução na tomada de poder. Antes, a abordagem se revela mais propensa a desacreditar esses projetos políticos que têm a transformação social como esteio de suas narrativas. Assim, na melhor tradição pós-moderna, o cinema de Sérgio Bianchi, conforme se observa em filmes como “Maldita Coincidência”, “Romance” e “A Causa Secreta”, demostra um caráter que contrasta com as ideias forjadas 18 em um cinema político com agenda declaradamente utópica, como é o caso do Cinema Novo tal qual pensado e idealizado por Glauber Rocha, para citar um de seus artífices mais audaciosos. Dessa maneira, no item a seguir, a partir de um resgate das ideias do projeto do Cinema Novo, pretende-se mostrar suas dissonâncias em relação ao discurso elaborado pelo cinema de Sérgio Bianchi, que, por sua vez, será retomado logo em seguida a partir do filme “Cronicamente Inviável”, levado às telas no ano 2000. 1.1 A propósito do Cinema Novo e o ocaso das utopias Pensar no Cinema Novo atualmente é levar em conta um projeto estético importante para a cultura brasileira, que foi capaz de determinar o debate e articular as mentalidades dos realizadores que viriam a seguir, tanto a favor como em sinal de oposição, num processo que, de certa forma, até o presente momento faz com que a crítica tenha a sua poética cultural como referência quando se trata de analisar as produções contemporâneas autorais ou de gênero (num movimento distante daquela proposta da década de 1960). Em tempo: a expressão poética cultural pode ser definida aqui como a ideia de arte e suas regras de composição, de leitura e de visualização7. Assim, tais peças contêm os elementos básicos que caracterizam determinado movimento cultural, por exemplo. No livro “A Utopia do cinema brasileiro – matrizes, nostalgia, distopias”, Lúcia Nagib comenta a produção daquele período, tomando como base um de seus principais artífices, Glauber Rocha. Desse modo, conforme 7 Este conceito foi definido pelo prof. Dr. Ivan Prado Teixeira na linha de pesquisa Literatura e Poética Cultural. 19 sugere a autora, Glauber Rocha fez um cinema de ideias, remontando uma proposta que já havia sido aventada pelos primeiros cronistas do Brasil. Nas palavras de Nagib: A carta de Pero Vaz de Caminha, os livros de Jean de Lery e André Thevet, as cartas dos padres jesuítas e muitos outros documentos de europeus que visitaram o Brasil no século XVI reiteram o mito do país edênico, que iria perpetuar-se no imaginário brasileiro. Glauber soube tirar proveito desse amálgama de lendas, corroboradas pela geografia específica de um país de imensa costa e rios caudalosos, articulando-as, em “Deus e o Diabo”, com histórias de rebeliões populares ocorridas nos sertões, como os movimentos de Canudos e Pedra Bonita (NAGIB, 2006, p.30-31) Como se nota, para além de um trabalho com a imaginação, algo que é parte integrante da natureza do cinema, o projeto do Cinema Novo, representado aqui pela obra e pensamento de Glauber Rocha, tinha como proposta a politização das narrativas que, a partir daquela corrente estética, seriam levadas às telas. Para além disso, o que se nota, conforme a leitura de Lúcia Nagib, é que essa proposta política se fundamenta num projeto utópico. Sim, mais do que uma câmera na mão e uma ideia na cabeça (ou exatamente por esse motivo), os cinemanovistas desejavam mudar o Brasil, e essa mudança se baseava na matriz utópica que não havia nascido com o cinema; antes, se originava nas interpretações idílicas que haviam sido feitas sobre o Brasil. Numa proposta mais abrangente, não por acaso a partir da década de 30 do século XX, autores do quilate de Sérgio Buarque de Holanda, em “Visão do Paraíso” (1959), ou mesmo Stefan Zweig, em “Brasil: país do futuro” (1941), ensaiaram reflexões sobre o País utilizando como premissa esse imaginário idealizado, e por que não dizer utópico?, sobre o Brasil. A diferença, agora no caso do Cinema Novo, é que esse projeto se materializava em imagens e sons que não somente salientavam a “cor local”, 20 mas, essencialmente, que entronizavam o que ia às telas com um discurso político inflamado, arrojado e progressista. Lúcia Nagib a esse respeito assinala que: (...) a obsessão pela “ilha” que move os personagens de “Deus e o Diabo”, esta, como a Thomas More, significando um projeto ao mesmo tempo prático e irrealizável – ou o melhor lugar e o lugar nenhum, sugeridos no ambíguo termo “utopia”. Dotados à semelhança dos mitos na sua origem, de força fundadora, as imagens de Glauber oferecem um recurso estético seguro aos cineastas da retomada em reconectar-se à nação. (Idem, p.18) Com efeito, o projeto do Cinema Novo, que ecoava a ideia de imaginação no poder, até hoje marca o trabalho de realizadores e de quem pensa cinema no Brasil, haja vista que, mesmo na retomada do cinema nacional, em meados da década de 1990, essa proposta de reconexão com País, conforme escreve Lúcia Nagib, permanece como agenda dos primeiros filmes daquele período. É interessante observar, nesse sentido, que “Terra Estrangeira” (1995), de Walter Salles e Daniela Thomas, e “Carlota Joaquina” (1995), de Carla Camurati, são os filmes que reiniciam a relação da produção cinematográfica com o público no País. Na percepção de Nagib, e esse é um dos argumentos centrais do livro, essa retomada do cinema nacional também bebe nas fontes dessa ideia de utopia. O que existe entre aquele período, na década de 1960, e a retomada8, a partir dos anos 1990, é o desencanto que se estabelece como sentimento nos anos subsequentes ao lançamento de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Na análise de Ismail Xavier, para o livro “The New Brazilian Cinema”, organizado por Lúcia Nagib, a motivação havia se transformado: 8 É importante ressaltar que existe diferença entre o cinema da retomada e o cinema da pós-retomada, conforme analisa Lúcia Nagib no livro “O cinema da retomada”. Na obra, a autora observa que o cinema da retomada se circunscreve no período que vai de 1994 a 1998. E o período posterior a esse, de 1999 em diante, é classificado como de pós-retomada por diversos autores. 21 We all know the ways of culture and politics in the past decades, a period in which the filmmaker no longer has had that convenction and has plunged him/herself into that defensive stance typical of current art cinema in its relationship to the social and the political. Looking back, one realizes how the sense of loss – related to the legitimization of political cinema through the idea of a popular mandate – had come to the foreground already in the late 1960s, when Brazilian filmmakers moved away from a utopian impulse, especially after 1967, the year of Glauber Rocha`s Terra em transe. Since this example of exasperated drama of disenchantment, it has become impossible to insist on pedagogical art akin to populism, and the years 1968-69 brought blatant opposition to that sense of popular mandate, whether from Cinema Novo or the so-called Cinema Marginal, as Brazilians saw the rise of a cultural dissidence that refused any social teleology of redemption. The model of the enlightened intelectual willing to raise a new popular consciouness prepared for national liberation faded. In the early 1970s, film practice was contaminated by a sense of impotence that the film critic and writer Paulo Emílio Salles Gomes, in 1973, turned into a formula: in terms of film, underdevelopment is not a stage with a progressive direction, it is a state of being. The best brazilian cinema in the 1970s turned around this bitter conviction, exploring Family dramas, experiences of decadence, acute crises lived by frustrated characters who failed in their endeavours, or catastrophic peregrinations, of poor and rich alike, that enden in misfortune (XAVIER, 2003, p.41)9 Já na avaliação de Lúcia Nagib, esse sentimento de desencanto surgiu mesmo depois do Golpe de 1964, nos anos subsequentes ao lançamento de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Conforme comenta a pesquisadora: Terra em Transe, feito após o golpe de 1964, no qual se especula sobre os erros que levaram ao fracasso do projeto revolucionário no Brasil, é um filme pós-utópico, que lança 9 Na livre tradução do autor deste texto, segue: Nós todos conhecemos as formas de cultura e política nas últimas décadas, um período em que o cineasta não teve a mesma convicção tendo mergulhado em uma postura defensiva típica do cinema de arte atual em sua relação com o social e o político. Olhando para trás, percebe-se como o sentimento de perda - relacionado com a legitimação do cinema político através da idéia de um mandato popular veio para o primeiro plano já na década de 1960, quando os cineastas brasileiros se afastaram de um impulso utópico, especialmente depois de 1967, o ano do lançamento do filme “Terra em Transe”, de Glauber Rocha. Como este exemplo de drama exasperado do desencanto, tornou-se impossível insistir sobre a arte pedagógica semelhante ao populismo, e os anos 1968-69 trouxeram oposição flagrante de que o senso de mandato popular, seja do Cinema Novo ou do chamado Cinema Marginal, e os brasileiros viram o surgimento de uma dissidência cultural que recusou qualquer teleologia social da redenção. O modelo do intelectual disposto a elevar a consciência popular preparado para a libertação nacional desapareceu. No início dos anos 1970, a prática cinematográfica foi contaminada por um sentimento de impotência que o crítico de cinema e escritor Paulo Emílio Salles Gomes, em 1973, transformou em uma fórmula: em termos de cinema, o subdesenvolvimento não é uma etapa com um sentido progressista, é um estado de ser. O melhor do cinema brasileiro na década de 1970 voltou-se para esta convicção amarga, explorando dramas familiares, as experiências de decadência, crises agudas vividas por personagens frustrados que não conseguiram em seus esforços, ou peregrinações catastróficas, de pobres e ricos, que terminaram no infortúnio. 22 sobre os formuladores do mito edênico brasileiro responsabilidade por seu fracasso (NAGIB, 2006, p.39) a Esse debate acerca das visões do Brasil, entre a utopia e o seu inverso (o desencanto ou distopia), é interessante porque a obra do cineasta Sérgio Bianchi trava relação permanente com essas questões – em especial com a visão política mais cética e desencantada. Desse modo, talvez seja correto assinalar que Bianchi “problematiza” os temas e as representações desse cinema que se pretende utópico. Em sua obra, o cineasta efetivamente estabelece uma agenda com a premissa de abordar as histórias que caminham na contramão do consenso tanto do ponto de vista das temáticas abordadas quanto da maneira como esses filmes são concebidos; para ser mais exato, da forma dos filmes (e aqui vale a pena reforçar a ideia de elaboração de uma espécie de agenda no cinema de Sérgio Bianchi). Se, nos filmes já observados, elementos em comum aparecem para dar um efeito de unidade ao cinema de Bianchi, como são os casos da postura crítica de seus personagens quanto a questões polêmicas e de sua visão de mundo desencantada, na contramão de propostas cinematográficas que idealizam o Brasil, essa posição se torna ainda mais acentuada em filmes mais recentes, como “Cronicamente Inviável”, de 2000, e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005. Nestes, a unidade do cinema de Sérgio Bianchi se apresenta de forma mais enfática. A análise desses dois filmes mostra como, aparentemente distintos em seus temas, as obras se complementam e abordam questões de fundo, concedendo um sentido mais consistente quando se olha a obra do cineasta desde o seu início. 23 Assim, a obra de Bianchi pode ser percebida a partir da unidade de seu conjunto. Isto é, os filmes como que se complementam, tais como peças de um quebra-cabeça. O paralelo pode soar esdrúxulo, sobretudo porque os filmes não contam com declarada proposta de continuidade. Ainda assim, é possível encontrar marcas autorais do cineasta na obra, de maneira que seus filmes acabam por obedecer a uma ideia de unidade, sem que isso signifique repetição (haja vista que as temáticas são distintas). Do já citado “Mato Eles?” ao recente “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, passando por “Maldita Coincidência” e “A Causa Secreta”, é bastante possível encontrar elementos que servem como denominadores comuns do cinema de Bianchi: o olhar enviesado a propósito da sociedade brasileira; o discurso irônico e amoral de alguns de seus personagens; a intervenção do diretor em determinadas cenas dos filmes 10 ; e a contundente crítica social ou visão do mundo distópica (que se confunde com uma visão niilista, como se verá ao final do capítulo) que o autor defende em seus filmes. Para dar forma mais evidente a essa análise, nas páginas a seguir, este trabalho dá conta da articulação estética e da proximidade crítica desses dois filmes recentes de Sérgio Bianchi11, ambos realizados após o período da retomada do cinema brasileiro: “Cronicamente Inviável”, de 2000; e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005. 10 Cito aqui especificamente o caso de dois filmes: em “Maldita Coincidência”, de 1979, e “Romance”, de 1988, Sérgio Bianchi aparece e participa da cena. No primeiro exemplo, ao final do filme, comentando as ilusões perdidas com os sonhos de uma geração; no segundo exemplo, o diretor interrompe a fala da atriz, corrompendo a encenação pedindo para a atriz repetir a cena, enfatizando que ela não soube reproduzir a fala corretamente. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Bianchi não aparece, mas em uma das cenas vemos os bastidores da própria realização audiovisual. Como observa João Luiz Vieira temos aqui o questionamento das formas tradicionais no próprio cinema de Sérgio Bianchi. 11 Depois de “Quanto Vale ou É Por Quilo”, Sérgio Bianchi realizou outro filme, “Os Inquilinos”, de 2009, que não entrou como objeto de análise porque 1) o propósito primeiro do trabalho era tomar como referência “Quanto Vale ou É Por Quilo?” e 2) “Os Inquilinos” apresenta uma proposta diferente como narrativa, distante, portanto, da que havia sido estabelecida até aqui pelo cineasta. 24 1.2 A anticelebração No ano de 2000, o Brasil viveu um período de grande comoção em torno das comemorações dos 500 anos de Descobrimento. Celebrações oficiais foram marcadas, assim como exposições e mostras que davam conta, entre outros temas, da riquíssima diversidade cultural do País ao longo de sua trajetória. O tom oficial do discurso não alardeava as cores locais, as virtudes dos artistas nacionais e, por fim, o significado disso para a formação do povo brasileiro. Em meio a tantas comemorações, surgiu o filme de Sérgio Bianchi, o polêmico “Cronicamente Inviável”. A obra pode ser entendida como um falso-documentário 12 sobre a identidade nacional e, ao mesmo tempo, apresenta a visão desencantada e ressentida de uma certa elite baseada na cidade de São Paulo. É interessante observar que, no caso do falso-documentário sobre a identidade nacional, o personagem Alfredo Bur, interpretado por Umberto Magnani, viaja pelo país apontando, sempre com altas doses de ironia, as várias formas de dominação (na contramão do consenso sobre o apaziguamento dos conflitos sociais no Brasil); na outra ponta, como que marcando território, o filme mostra alguns personagens em volta da mesa (interpretados por Cecil Thiré, Daniel Dantas, Betty Gofman e Dira Paes) em volta de uma mesa, comentando cinicamente o estado de coisas no País. Numa análise mais detalhada sobre o filme, Nezi Heverton de Oliveira destacou o papel dos personagens para o substancial efeito de sentido provocado pelo filme. Assim, nas palavras do pesquisador: 12 A expressão falso-documentário consta na resenha-crítica do filme, assinada por Reinaldo Azevedo, e publicada na revista “Primeira Leitura”, em maio de 2000. Esse texto está coligido na fortuna crítica do filme, disponível nos extras da versão em DVD do filme, na coleção Sérgio Bianchi, editada pela Versátil, em 2010. 25 Esses personagens encaram a condição de brasileiros como uma espécie de dever patriótico, vivido com pesar. Permanecem aqui, quase que por obrigação. O sonho maior, ser e estar no primeiro mundo, anunciada direta ou indiretamente ao longo das conversas, nega essa ideologia do sacrifício. A válvula de escape para permanecer nesse caos social e urbano é o cinismo: a convicção de que a realidade social é imutável, por mais dolorosa e condenável que seja, mas que é necessário dominar as regras do jogo para sobreviver e atuar em benefício próprio ou ainda inventar álibis para outros e para si mesmo como forma para justificar sua inércia e transformá-la. (OLIVEIRA, 2006, p.144) Sérgio Bianchi produz, em “Cronicamente inviável”, um tipo de leitura crítica acerca da sociedade brasileira que, a um só tempo, reproduz parodicamente os discursos totalizantes dos grandes intérpretes do Brasil (num recurso tipicamente pós-moderno, conforme apreciação de Linda Hutcheon em livro sobre o assunto13) e também atualiza seu alvo: desde já, não é somente o brasileiro médio que é confrontado nesse debate; mas também a elite supostamente esclarecida se transforma em alvo preferencial, e aqui Bianchi não poupa sequer Alfredo Bur, o narrador das crônicas sociológicas desse Brasil contemporâneo: ao final, trata-se de um personagem que coaduna com a prática aviltante, imoral e ilegal do tráfego de órgãos. As duas narrativas que caminham em paralelo, ao final do filme, se encontram e concretizam a visão mais corrosiva e distópica desse Brasil, à época 500 anos depois de seu descobrimento: a corrosão do caráter é prática constante mesmo daqueles que possuem uma visão de mundo mais crítica (e, por extensão, supostamente privilegiada por ser mais informada), daqueles que entendem por que é que o Brasil não funciona. 13 Linda Hutcheon desenvolve esse postulado no livro “Poética do Pós-Modernismo” (1991), no qual escreve acerca das características básicas da paródia, associando-as à estética da pós-modernidade. Para a autora, “na pósmodernidade (...), o resultado dessa deliberada recusa em resolver as contradições é uma constatação daquilo que Lyotard chama de narrativas totalizantes de nossa cultura, aquele sistema por cujo intermédio costumamos unificar e organizar (e atenuar) quaisquer contradições a fim de coaduná-las”. 26 “Cronicamente Inviável”, para além de estudos acadêmicos e grande repercussão na imprensa14, provocou também a contestação de um discurso conformista sobre o País naquele ano comemorativo, com destaque para exposições sobre a arte brasileira no Pavilhão da Bienal e reavaliações sobre o papel do Brasil no mundo. Ainda com relação à repercussão do filme, vale a pena resgatar o texto inicial do livro organizado por Daniel Caetano (2005), “Cinema Brasileiro: 1995-2005 – ensaios sobre uma década”. No texto de apresentação do referido livro, aborda-se um contexto no qual o cinema brasileiro é promovido pelo Estado e não precisa do público. Nesse cenário, coincidência ou não, são poucas as obras que anseiam por esboçar uma crítica efetivamente contundente ao país. O resultado é que a obra de Bianchi nesse ambiente se destaca também por apontar a existência dessas características tão peculiares. Conforme apontam os autores: (...) Mas o caso muito mais curioso foi o de Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi: muito badalado na época de seu lançamento, em 2000, foi prestigiado de forma parodicamente autocrítica pelo público intelectualizado de classe média (e toda a polêmica ao seu redor tinha mesmo um quê de inusitado). No entanto, pode-se dizer que, de certo modo, tratava-se de um filme sobre fazer cinema no Brasil15, apenas disfarçado em painel sobre a situação nacional, o que o tornava tão mais equivocado como testemunho de nação – e tão mais coerente como relatório resignado sobre o fazer cinematográfico neste país. Não por acaso, tanto sua recepção favorável quanto suas críticas negativas foram diretamente proporcionais à proximidade das fontes em relação ao círculo do cinema brasileiro. (CAETANO et. al., 2005, p. 20) 14 De acordo com a pesquisa de Nezi Heverton de Oliveira, somente na “Folha de S.Paulo”, foram mais de dez artigos publicados, sem contar as exibições, seguidas de debates, na Universidade de São Paulo e na PUC-SP. 15 Daniel Caetano et. al, no ensaio de apresentação do livro “Cinema Brasileiro – ensaios de uma década”, vinculam o filme “Cronicamente Inviável” como obra que relaciona o cinema com o Estado Brasileiro. Nessa abordagem, os autores supõem como legítima a crítica de Bianchi à relação política cultural do Estado, mas rejeita sua visão política distópica. 27 Embora esse fragmento represente um contraponto à proposta cinematográfica de Sérgio Bianchi, é possível assinalar que também anuncia as suas características autorais, uma espécie de marca que o cineasta consolidou ao longo de toda a sua trajetória. Afinal, embora tenha sido coincidência que “Cronicamente Inviável” tenha chegado às telas em 2000, a força de seus argumentos e sua constituição anárquica já são parte do que qualificou-se neste trabalho de agenda do autor, como se fosse um detalhe de sua assinatura. Não por acaso, já nesse filme, é possível observar uma espécie de embrião da sua obra seguinte, “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, cujo lançamento aconteceu em 2005. O elemento comum está presente na personagem Maria Alice, interpretada pela atriz Betty Gofman. A burguesa-caridosa16 é refém de uma espécie de culpa por viver em melhores condições de vida que a média dos moradores de sua cidade. Para aplacar esse sentimento, Maria Alice não hesita em distribuir brinquedos ou prestar caridade às crianças que, nas ruas, se entorpecem com crack e cola de sapateiro. Aparentemente, seu discurso ecoa a fala ingênua de certa esquerda que tem problemas para conviver com seus padrões de riqueza ou mesmo de classe média, uma vez que, de acordo com Nezi Heverton de Oliveira, também Maria Alice teme a violência urbana e assume um tom paternalista ao conversar com a sua empregada doméstica. Todavia, a certa altura, numa fala contundente, agora em off, ela assume que não há problema algum em oferecer caridade e que o Estado deveria dar crack para as crianças de rua – afinal, já que elas iriam morrer, que morressem entorpecidas e felizes. 16 Em seu trabalho de pesquisa, Nezi Heverton de Oliveira tipificou as personagens do filme “Cronicamente Inviável” a partir de suas características e de suas reações ao longo do filme. Nesse sentido, temos, além da burguesacaridosa, o intelectual-vigarista, o contestador-anárquico, e o estrategista da inviabilidade. 28 De certa forma, a visão de mundo ingênua e condescendente de Maria Alice é reelaborada no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Aqui, o cerne da questão, o alvo de Sérgio Bianchi, é a classe média-alta que traveste seu cinismo e seu descaso para com os mais pobres com base no trabalho do Terceiro Setor17. Esse filme de Bianchi traz duas histórias em paralelo. Na primeira, que se passa no século XVIII, o espectador vê fragmentos extraídos do Arquivo Nacional que dão conta da relação entre os escravos e seus negociadores. Na segunda, que se passa no século XXI, o público assiste a uma trama mais encadeada em torno das Organizações Não-Governamentais, as ONGs, e sua agenda oculta para além do interesse declarado em ajudar os mais necessitados. Já em seu cartaz promocional, a obra se destaca pelo uso do recurso da ironia: “Mais valem pobres na mão do que pobres roubando18”. A princípio, as duas narrativas paralelas caminham de forma independente ao longo do filme. O seu cruzamento se dá graças aos personagens. Isso porque Sérgio Bianchi, adaptando livremente o conto de Machado de Assis, “Pai contra Mãe”, toma emprestado o núcleo central do conto daquele texto. Assim, embora esse núcleo não apareça no segmento da narrativa do século XVIII, a figura do capitão do mato encontra uma espécie de duplo no segmento do século XXI, representado por Candinho, interpretado pelo ator Silvio Guindane. É a partir dele que as histórias estabelecem um elo entre si. 17 Terceiro Setor aqui representa o trabalho desenvolvido por institutos, associações e sobretudo Organizações NãoGovernamentais, as ONGs, que, no Brasil, têm sido auxiliados pelo Governo com incentivos fiscais. As empresas, nesse caso, oferecem apoio e subsídio às ONGs com o compromisso de abatimento de impostos. A crítica feita por Bianchi reside no fato de que as ONGs, criadas com o propósito de assistir os desassistidos, têm agora um fim em si mesmas. 18 Esse slogan aparece na capa do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo”, distribuído pela Versátil. O slogan, em certa medida, parodia o ditado popular: “é melhor um pássaro na mão do que dois voando”. 29 Antes desse entrelaçamento, que se dá no desfecho do filme, o filme se desenvolve, como já foi dito, de maneira independente. Assim, de um lado, o espectador conhece pouco a pouco o contexto das negociações dos escravos, com base em documentos de época. De outro, observa como são os bastidores das relações entre aqueles que trabalham com o Terceiro Setor. Por trás do discurso, o filme de Bianchi identifica uma prática perversa na busca por dinheiro em nome do trabalho dos pobres. Conhecemos, nesse núcleo, a história de Noêmia (vivida por Ana Lúcia Torre), uma empresária do setor, que age sem quaisquer escrúpulos não apenas para ocupar os espaços de oferta assistencialista, como também para conquistar mais investimentos de parceiros (empresas) interessados em manter a associação em funcionamento. A associação de Noêmia conta com a ajuda de duas funcionárias, que dependem do favor da patroa para que possam continuar em suas respectivas funções. O filme mostra também o desenvolvimento de ambas. A principal delas é Mônica, interpretada por Cláudia Mello – que, no filme, estabelecerá um vínculo familiar com Candinho. É à Mônica que Noêmia faz uma oferta (em dinheiro para a festa de casamento de Candinho e Clara, interpretada pela atriz Leona Cavalli) irrecusável em troca de seu aceite em trabalhar na associação em tempo integral. Mônica aceita, mas quando Noêmia vai lhe cobrar o favor, não consegue agir de outra maneira a não ser oferecendo a mão de obra de uma garota pobre e órfã, que vive naquela família como que de favor. Além da associação de Noêmia, o filme traz, ainda, a Stiner, empresa de captação de recursos comandado por Marco Aurélio, vivido pelo ator Herson Capri, e Ricardo, interpretado por Caco Ciocler, dois empresários 30 resolutos e ambiciosos, interessados em arrebanhar novos clientes, sempre em nome da prática social. No filme, chama a atenção o contraste existente entre o discurso da Stiner e a maneira como a empresa lida com seus funcionários e com quem questiona seu modus operandi19. Influente, a Stiner também tem seus laços na política. Um vereador, interpretado por Umberto Magnani (o mesmo ator de “Cronicamente Inviável”20), estabelece a ponte do Estado para com a iniciativa privada, a fim não apenas de garantir mais votos de uma determinada comunidade, mas também para fazer com que os empresários conquistem contratos do governo sem licitação. Quando essa trama é descoberta por Arminda, ela parte para denunciar o ocorrido, e a solução encontrada para silenciá-la é o seu assassinato, ato que vai ser cometido por Candinho, o capitão do mato, que na versão do século XXI (na visão Sérgio Bianchi), é o matador de aluguel. No meio dessa história sobre as Ongs, Sérgio Bianchi insere um fragmento de violência urbana que remonta à ideia de ressentimento, como será elaborado conceitualmente por Maria Rita Kehl no comentário que acompanha os extras do filme. No terceiro capítulo da presente dissertação, escrevo mais acerca dessa ideia de ressentimento a partir dessa cena. O crítico e teórico Ismail Xavier, em dois ensaios, elabora uma reflexão semelhante, tratando especificamente da questão do ressentimento a propósito do cinema de Sérgio Bianchi. Os dois artigos tomam como referência para tanto o filme “Cronicamente Inviável”. É possível, baseado 19 Em pelo menos duas cenas, os personagens que representam a Stiner tratam seus subordinados como serviçais e lacaios. Na primeira cena, a responsável pela limpeza é desprezada porque está na entrada social; em outra passagem, Ricardo, personagem de Caco Ciocler, escorraça e ameaça Arminda, vivida por Ana Carbatti, porque ela estaria questionando a entrega de computadores para a comunidade representada por Arminda. 20 Sérgio Bianchi se notabiliza por trabalhar com um núcleo de atores que segue em suas produções de forma regular. Assim como Magnani, Cláudia Mello e Zezé Motta já estiveram em filmes anteriores do cineasta. 31 nisso, sugerir que o cinema de Bianchi enfrenta o tema do ressentimento, revelando essa característica inconfessável nas classes mais baixas da maneira como única reação viável à sua condição de vida. Talvez mais do que nas obras anteriores, nesse filme Bianchi consegue atacar um tema que há tempos se tornara um tipo de consenso do bem. Isso porque, ironicamente, o trabalho voluntário se transformou num tipo de atividade quase obrigatória hoje em dia. No entanto, a crítica que Sérgio Bianchi esboça a propósito desse tema possui um sentido mais político do que meramente comportamental. E isso se torna mais evidente se tomarmos como referência um depoimento que o cineasta concedeu anos antes de o filme ser realizado. Bianchi apontava o interesse em produzir um filme com as características de “Quanto Vale ou É Por Quilo ?”, sobretudo no que tange à abordagem crítica que o autor pretendia fazer ao Estado. No trecho a seguir, extraído do livro “O Cinema da Retomada – Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90”, de Lúcia Nagib (2002), Bianchi revela que: Agora vou fazer um documentário chamado Quanto Vale ou É Por Quilo?. É uma ideia ótima, e será inteiramente ficcional. Quero saber, por exemplo, se os objetos de tortura de um torturador no DEIC, que é funcionário público, foram comprados com licitação. Quero saber quantas pessoas ele tortura por dia. Quero saber o valor de três pobres sendo torturados porque assaltaram um banco ou roubaram um televisor. Ou então um burguês que falou contra o Estado. Quero saber o valor. Se é por quilo, 2 kg de burguês torturado valem 400kg de pobre triturado? (NAGIB, 2002, p.119.) Como se veria anos depois, o filme de Bianchi enfrentaria a questão política tomando as ONGs como esses instrumentos que seriam operados pelo Estado, sendo, com isso, manipulados a partir dos interesses das classes dominantes. Aos pobres, restava uma condição não somente subalterna, mas, também, de dependência – a não ser que tentassem 32 escapar pelo método da violência, o que não deixa de ser uma estratégia política. Tão curioso quanto isso é o fato de o autor enfatizar, nesse depoimento, na forma: “documentário que será inteiramente ficcional”, um gênero que é transformado já na origem porque, como se verá no terceiro capítulo, o diretor altera as características supostamente intocáveis desses gêneros. Enquanto o espectador aprende como acontece essa mecânica de manutenção do poder, Sérgio Bianchi também investe numa narrativa que dá conta dos eventos históricos sobre a escravidão (outra forma de dominação21). Explica-se: ao lado da história sobre as ONGs e o cinismo dos seus principais operadores, o cineasta compõe, em paralelo, uma narrativa sobre o período da escravidão. O tom dessa outra história assume, à falta de expressão mais precisa, o de um relato protodocumental, uma vez que temos a narração over, personagens caracterizados com as indumentárias da época, e histórias, segundo o narrador, extraídas do Arquivo Nacional. A estratégia do autor nesse caso é utilizar um formato consagrado e, dominando-o, instrumentalizá-lo com vistas a alcançar seu objetivo final, a defesa de uma tese sobre as sutis formas de dominação de antes e de agora na sociedade brasileira. No intuito de manifestar essa tese, Bianchi não utilizará uma linguagem direta. Preferirá usar e abusar da ironia, conceito que será explicado e analisado no capítulo a seguir. 21 A expressão “outra forma de dominação” é utilizada pelo narrador-personagem de “Cronicamente Inviável”. Nesse caso, o que se tem é a ideia de dominação assumindo um caráter mais híbrido, porém não menos perverso. Adiante, a proposta do presente trabalho é articular essa estratégia fundamentando seus pressupostos no conceito de ironia. 33 2. Quanto vale a ironia? A definição de ironia nem sempre é elaborada de forma adequada. Frequentemente, costuma-se definir esse conceito à luz não do significado teórico, mas, essencialmente, a partir de exemplos e ilustrações que muitas vezes demonstram as possibilidades desse recurso retórico, sem necessariamente atacar o seu problema conceitual – de que maneira esse postulado foi pensado pelos estudiosos ao longo do tempo; como é que se chegou à conclusão do que significa a ironia. Nesse sentido, o objetivo do capítulo que segue é estabelecer uma análise mais consistente e aprofundada da questão da ironia com base em revisão bibliográfica e de seus respectivos formuladores, sem deixar de lado a utilização específica da ironia na obra do cineasta brasileiro Sérgio Bianchi, tomando como eixo elementar para análise o filme “Quanto Vale Ou É Por Quilo?”. Para que se possa compreender melhor o significado de ironia, vale a pena resgatar a história desse conceito. De acordo com o “Dicionário Filosófico” organizado por Nicola Abbagnano (2012), é correto assinalar que existem duas formas fundamentais de ironia, a saber: a que se origina nos postulados socráticos e aquela que se baseia na poética romântica. Em Sócrates, conforme sinaliza o verbete, a ideia de ironia pode ser percebida nas entrelinhas dos diálogos socráticos. Nesse ponto, a estratégia era, num debate, propositadamente se diminuir a fim de refutar a tese do adversário. E, como que para arrematar a discussão, o pensador grego dizia 34 exatamente o contrário do que pensava. A ironia aparece aqui como simulação, estratagema ordinariamente utilizado nos embates retóricos. Ainda segundo o mesmo “Dicionário de Filosofia”, o sentido de ironia tal qual formulado pelos românticos fundamentava-se no primado da atividade criadora; isto é, de acordo com essa premissa, o pensador romântico concebe a “realidade concreta” como uma espécie de “jogo do Eu”, tendendo a relativizar a importância da realidade, não a assumindo como uma determinação tão séria. O autor essencial no quesito ironia para os românticos é o filósofo alemão Friedrich Schlegel, para quem a ironia seria a maior manifestação da liberdade absoluta. Com efeito, Schlegel foi um pensador que esboçou uma reflexão de forma consistente sobre o princípio da ironia. Isso porque, interessado que estava no estudo da literatura e dos gêneros literários, o filósofo romântico discorreu de forma sofisticada que a ironia funcionava como uma espécie de beleza lógica, advertindo ainda que, para quem não a possuía, ela permanecia como enigma, como explica o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard. A propósito, em que pese a avaliação de Schlegel, é fundamental aqui esboçar uma reflexão sobre o que Kierkegaard dissertou sobre o conceito de ironia. É o autor de “Tremor e temor”, com efeito, enfrenta o tema resgatando os vários sentidos da expressão, incluindo, aí, um comentário crítico que se torna até o presente momento referência elementar no quesito de definir a ironia. Investe, nesse sentido, numa espécie de inventário do significado do termo, observando em seu livro “O Conceito de Ironia” 35 É o que se lê, por exemplo, quando, concordando com o que escreveu Schlegel, Kierkegaard observa que: A ironia possui portanto uma liberdade absoluta. Livre das preocupações da realidade, ela é-o também de suas alegrias e da sua felicidade; porque por não reconhecer nenhum valor mais elevado que ela própria, não está mais nas condições requeridas para receber a felicidade, esse dom pelo qual um ser superior satisfaz as aspirações de um ser inferior (KIERKGAARD, 1991, p.213) Embora muitas vezes o senso comum identifique a ironia apenas como uma manifestação do humor, a análise de Kierkegaard leva em consideração o potencial crítico desse conceito. Há, de acordo com o filósofo, na utilização da ironia uma atitude crítica, aparentemente protegida pelo que se entende de mal-entendido para com a realidade. Com o subterfúgio da ironia, portanto, fica velado um subtexto cujo sentido, exatamente sob a carapuça do humor, tem um alvo que muitas vezes não é identificado à primeira vista. A consequência disso é que, de um modo geral, o entendimento do uso da ironia fica marcado pela suposta leveza de seu conteúdo em detrimento de uma forma que, na verdade, é consideravelmente relevante. Vale a pena ressaltar que o humor, nesse caso, existe como método de correção de costumes, sobretudo se ecoarmos aqui a expressão latina Ridendo Castigat Mores (rindo, corrigem-se os costumes). Nesse ponto, talvez seja interessante apresentar o conceito e as características da ironia, segundo Kierkegaard: Assim, ocorre no discurso retórico frequentemente uma figura que traz o nome de ironia; e cuja característica está em se dizer o contrário do que se pensa. Aí já temos uma definição que percorre toda ironia, ou seja, que o fenômeno não é a 36 essência, e sim o conteúdo da essência. Na medida que eu falo, o pensamento, o sentimento mortal, é a essência, a palavra é o fenômeno. Estes dois momentos são absolutamente necessários, e é neste sentido que Platão observou que todo pensar é um falar. (KIERKEGAARD, 1991, p.215) O filósofo dinamarquês observa, ainda, que é possível perceber uma espécie de linguagem irônica, a partir da qual se processa um jogo entre os ouvintes que a compreendem e os falantes que a enunciam. Nesse caso, caberá ao ouvinte, ao receptor da mensagem, a descoberta de que se trata de um recurso irônico. Já que, se houver mal-entendido na compreensão da mensagem, a responsabilidade pelo não-entendimento da linguagem ou mesmo da ironia não é do falante. Em contrapartida, o autor concede que a linguagem irônica está aliada a um princípio de nobreza, que, ao mesmo tempo em que deseja ser compreendida, não anseia que isso seja alcançado muito rapidamente. Essa linguagem irônica da qual fala Kierkegaard pode ser sintetizada num exemplo trazido no livro “O Conceito de Ironia”. Tayllerand22, o famoso diplomata francês do período de Napoleão Bonaparte, afirmou que “a linguagem não foi criada para manifestar pensamento, mas, sim, para ocultálos”. Na afirmação, percebe-se exatamente o jogo que se estabelece entre a expressão e o sentido, isto é, a forma que está sendo negada pelo conteúdo. Kierkegaard prossegue ao dissertar sobre os mecanismos internos do que representa lançar mão dos recursos da linguagem irônica, uma vez que, quando o enunciado não corresponde ao que efetivamente está sendo dito, 22 O diplomata Tayllerand é citado em um dos livros mais estudados sobre política internacional nos últimos anos: “Diplomacia”, escrito pelo ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger. Publicado pela primeira vez em 1994, a última edição da obra no Brasil data de 2012, editado pela Saraiva. 37 então, o autor desse enunciado pode, enfim, estar liberto de qualquer compromisso, seja com os outros, seja consigo mesmo. Em Kierkegaard, a ideia de que a ironia somente serve ao humor logo é superada por uma leitura e interpretação que advoga a tese de que a ironia pertence a um universo mais elaborado, associado a um território mais subjetivo: A ironia situa-se num terreno metafísico, e ao irônico só interessa parecer diferente do que é realmente; de modo que, assim como o irônico esconde sua brincadeira na seriedade, sua seriedade na brincadeira, assim também pode ocorrer-lhe a ideia de parecer mau, embora seja bom. Só que temos de lembrar que as determinações morais são, a rigor, demasiado concretas para a ironia (IDEM, 1991, p.223) O conceito de ironia em Kierkegaard, portanto, alcança, do ponto de vista da teoria, um estatuto de reflexão mais elaborada, segundo a qual estão em jogo elementos teóricos mais consistentes, como a dimensão filosófica da metafísica e a proposição de uma visão de mundo onde emana a subjetividade. O crítico cultural Arthur Nestrovski também recorreu à filosofia para discorrer sobre o conceito de ironia na apresentação de um de seus primeiros livros, “Ironias da Modernidade” (1996). Conforme ensina Nestrovski, o termo “ironia” vem do grego eironeia e quer dizer “dissimulação”. O autor explica que a estratégia da dissimulação é utilizada por Sócrates, de acordo com os diálogos de Platão, o que permite hoje dizer ironia socrática. A análise de Nestrovski é importante porque pontua esse conceito numa perspectiva contemporânea, como veremos a seguir: (...) No período moderno, essa ironia ganha outras conotações, tanto linguísticas quanto teológicas. O escritor irônico é autenticamente dissimulado, se é que isto faz sentido. Numa cultura tão tardia, o peso da linguagem parece cada vez maior e todo poeta luta, sem esperança, para 38 conciliar sua experiência da linguagem com a existência empírica. A luta é sem esperança porque, no mesmo movimento que cancela a mistificação do homem comum, o escritor só alcança, afinal, o conhecimento desta mistificação. A linguagem irônica divide o sujeito em homem autêntico e um outro homem, cuja existência só se dá pela linguagem – uma linguagem, porém, que reconhece sua própria inautenticidade. (NESTROVSKI, 1996, p.11.) Outro autor que investiga o conceito de ironia é Douglas C. Muecke, cuja obra “A Ironia e o Irônico” (1995) se propõe a compreender as aplicações confusas e até mesmo contraditórias do termo. Ecoando o trabalho de Kierkegaard, o pensador observa que, para destacar a importância do conceito para a literatura, basta tão somente enumerar os vários escritores cuja obra está permeada significativamente de ironia: do já citado filósofo Platão ao dramaturgo Bertold Bretch, passando, ainda, por nomes como Voltaire, Dostoievski, Kafka, Musil – e, cumpre aqui acrescentar, no caso brasileiro, o escritor Machado de Assis. Em Muecke (1995), a menção a esses autores cumpre um papel não somente referencial ou para buscar argumentos de autoridade, mas serve principalmente para que o pensador possa ecoá-los em vários momentos ao longo do texto, quando há necessidade mais específica, quando, por exemplo, da definição do conceito de ironia. Assim, na obra, Muecke investiga, num primeiro momento, as diferenças entre o irônico e o não-irônico, apontando que são opostos complementares, de maneira que, em vez de excludentes, ambas são necessárias para as necessidades humanas. Aqui, mais uma vez, a menção a Kierkegaard aparece, quando Muecke salienta a provocação do pensador dinamarquês: “não é possível a vida humana autêntica sem a ironia.” 39 Ao apresentar os conceitos iniciais de ironia, Muecke articula a crítica literária e o pensamento dos filósofos gregos, de modo a buscar um sentido ao propósito da ironia. Dessa maneira, o autor observa que o narrador irônico é forjado pela experiência da literatura, da mesma maneira que as suas características elementares são primeiramente concebidas na obra de autores como Sócrates e Aristóteles: Aristóteles, contudo, talvez porque tivesse Sócrates em mente, considerava a Eironeia, no sentido de dissimulação autodepreciativa, superior a seu posto, a alazoneia, ou dissimulação jactanciosa; a modéstia, ainda que apenas dissimulada, pelo menos parece melhor que a ostentação. Mais ou menos na mesma época, a palavra que a princípio denotava um modo de comportamento, chegou também a ser aplicada em uso de linguagem; eironeia é atualmente uma figura de retórica: censurar por meio de um elogio irônico ou elogiar mediante uma censura irônica (MUECKE, 1995, p.31) O ponto alto da argumentação de Muecke, no entanto, está no trecho em que o autor se propõe a estabelecer uma anatomia da ironia. Surge ali uma análise que serve de referência consistente para o presente trabalho, uma vez que as passagens extraídas de romances ajudam a sustentar o argumento em torno do uso da linguagem irônica. Assim é quando o pensador sustenta que o traço básico da ironia é um contraste existente entre a realidade e a aparência. Nesse sentido, pode-se citar como exemplo o conto “Pai contra mãe”, no qual o narrador de Machado de Assis pontua logo no primeiro parágrafo uma frase singular: “Não cuidemos de máscaras”23. Tomando o repertório oferecido por Muecke para a análise, observaque a frase do narrador de Machado de Assis confere à afirmação um caráter irônico, haja vista que as máscaras às quais o narrador se refere no 23 Importante frisar, aqui, que Muecke não cita o texto de Machado de Assis como exemplo. Todavia, a análise desse teórico pode ser aplicada na abordagem do conto machadiano, no que tange a questão da ironia como recurso de crítica. Outros autores, como os críticos literários Ivan Teixeira e Alfredo Bosi, destacam a presença da ironia na obra do escritor brasileiro. 40 enunciado são, em verdade, instrumentos de opressão que simbolizam um período de exceção no Brasil. Assim, no primeiro parágrafo o narrador destaca que: A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.(MACHADO DE ASSIS, 2007, p.203.) O que se observa no excerto acima é a descrição detalhada, e a princípio objetiva, de determinados materiais – as máscaras – que serviam de instrumentos de auxílio ao controle dos escravos durante aquele período. Adotando um tom que será norteador ao longo de toda a narrativa, observase já neste primeiro parágrafo uma espécie de lógica compensatória – que, em verdade, pode ser traduzida como a linguagem da ironia – pois, mesmo quando o narrador assume que tal máscara era grotesca, existe a conclusão de que não se alcança a ordem social sem apelar ao “grotesco e ao cruel”. O mecanismo da ironia aqui é exposto no momento em que o texto salienta a brutalidade, mas tenta diminuir o seu caráter reprovável ao mostrar que existe um fim que justifica esse meio. Em certa medida, o excerto de Machado de Assis pode ser justificado no texto de D.C. Muecke, pois este pensador destaca a existência de uma ironia que se dá pela justaposição. Nas palavras de Muecke: 41 Um sentido de ironia implica não só a capacidade de ver contrastes irônicos, mas também o poder de moldá-los na mente de alguém. Inclui a capacidade, quando confrontada de algum modo com alguma coisa, de imaginar ou lembrar ou observar alguma coisa que formaria o contraste irônico (MUECKE, 1995, p.62.) Essa permanência do contraste ainda se mostra notável na composição das personagens ao longo do texto, uma vez que, num conto que trata sobre escravidão, lê-se que os protagonistas da história são Candido Neves e Clara. Chama a atenção a esse respeito a leitura atenta do crítico Alfredo Bosi (2007, p.121) a esse respeito: “Cândido Neves, pobre mas branquíssimo até no nome, casa-se com Clara e, para sobreviver, ‘cede à pobreza’, tornando-se capturador de negros que reconduz aos senhores mediante boa gratificação”. A dinâmica dos nomes é dessas sutilezas que, numa leitura desatenta, passa sem ser notada pelos leitores. Não cabe aqui especular se havia ou não intenção por parte do autor, mas é certo que o efeito de sentido provocado foi captado pelos leitores mais argutos, do mesmo modo como o eixo perverso que predomina na história de “Pai contra Mãe”. Na avaliação do crítico Alfredo Bosi (2007), nota-se que o eixo de contos como “O Caso da Vara”, “A causa secreta” e em “Pai contra Mãe” se localiza exatamente em como essas histórias são articuladas pela manifestação do mal, justificado, no caso desta última história, numa lógica extremada de sobrevivência e autopreservação. Bosi analisa e compara dois desses textos, observando que: O caso da vara e Pai contra mãe dão testemunho tanto da vilania dos protagonistas quanto da lógica que rege seus 42 atos. As tendências da alma e os cálculos da vida somam-se na luta pela autoconservação. Ambos têm em comum a situação do homem juridicamente livre, mas pobre e dependente, que está a um degrau, mas só um degrau, do escravo. A essa condição ainda lhe resta usar do escravo, não diretamente, pois não pode comprá-lo, mas por vias transversas, entregando-o à fúria do senhor, delatando-o ou capturando-o quando se rebela e foge. O poder do senhor desdobra-se em duas frentes: ele não é só dono do cativo, é também dono do pobre livre na medida em que o reduz à polícia de escravo. (IDEM, 2007, p. 120.) Outros autores, estudiosos da obra de Machado de Assis, apontam para a questão da ironia na obra do escritor brasileiro levando em consideração as características estilísticas do autor, como é o caso do crítico literário Ivan Teixeira (1988), para quem a ironia em Machado de Assis obedece à lógica da ambivalência. Teixeira define a ironia na obra do autor de “Pai contra Mãe” como a “inadequação entre a forma e o conteúdo de um enunciado, isto é, um contraste entre a aparência e a essência do que se diz (...).Em sentido amplo, ironia é toda frase que provoca o riso pela fineza e acuidade da observação.” O crítico aponta, ainda, um desdobramento na ironia machadiana: “Outra forma de ambivalência elementar nesse autor encontra-se no sarcasmo, ou seja, a ironia que contém uma denúncia radical de um indivíduo ou da condição humana”. Como observado pela crítica especializada, a obra de Machado de Assis é permeada pelo uso da ironia como recurso – e, nesse caso, não como elemento supostamente frívolo para o humor; antes, trata-se de um elemento central para que o autor estabeleça sua crítica e apresente sua visão de mundo. Tomando como ponto de vista a ironia, a obra machadiana, sobretudo alguns contos, terminam por constituir uma teoria acerca do 43 universo que o cerca. Alfredo Bosi vê nisso a consolidação dos contos-teoria, como se vê no trecho a seguir: Vejo nos contos maduros de Machado, escritos depois de franqueada a casa dos quarenta anos, o risco arabesco de “teorias”, bizarras e paradoxais teorias, que, afinal, revelam o sentido das relações sociais mais comuns e atingem alguma coisa como a estrutura profunda das instituições.(...) O tom que penetra o conto-teoria não é o sarcasmo aberto ao satírico, nem a indignação, a santa ira do moralista, nem a impaciência do utópico. Diria, antes, que é o humor de quem observa a força de uma necessidade objetiva que prende a alma frouxa e velitária de cada homem ao corpo uno, sólido e manifesto das formas instituídas. (BOSI, 2007, p.122) Assim como em Machado de Assis, a obra do cineasta Sérgio Bianchi se utiliza do recurso da ironia de maneira bastante perceptível. Tal constatação poderia parecer óbvia, se fosse levado em consideração o fato de Bianchi se utilizar da obra machadiana na composição de seus filmes. O uso da ironia, nesse caso, está além da questão específica da adaptação – que, ademais, não está no escopo deste trabalho. O diretor de “Quanto Vale ou É Por Quilo” tem no recurso da ironia um dos instrumentos mais caros para a crítica que imprime em suas obras, a ponto de servir como uma espécie de marca autoral do cinema bianchiano. Nas páginas a seguir, este trabalho pretende identificar como a ironia se apresenta no cinema de Bianchi em geral, e em “Quanto Vale É Por Quilo?” em particular. Nas referências conceituais já citadas, nota-se que muito do que Bianchi concebe como discurso audiovisual da ironia também se articula aos autores estudados. De Kierkegaard, por exemplo, é possível tomar emprestado a ideia de que a linguagem irônica se estabelece como uma avaliação um tom acima, desejando ser percebida, mas não de maneira 44 escancarada, talvez, para utilizar aqui uma ilustração, como um olhar de soslaio, ou mesmo uma piscadela durante uma afirmação supostamente grave. Nos filmes de Bianchi, esse olhar de soslaio está presente em muitas cenas. No filme “Romance”, de 1982, a jornalista Maria Regina, interpretada pela atriz Imara Reis, que sai à procura de informações que desvendem um escândalo político, é recebida com desdém por sua amiga, Márcia, vivida pela atriz Cristina Mutarelli, quando vai visitá-la em uma galeria de arte. Regina pede dinheiro à Márcia, que, não contente em recusar, é firme em assinalar que não pretende servir de “fundo de auxílio ao intelectual desamparado”. A jornalista insiste, pedindo, então, que a amiga lhe dê dinheiro para o ônibus. É nesse momento que Márcia dá o golpe final, respondendo assim: - Nem que eu quisesse. Só tenho cheque. Agora, se você quiser, posso bater na sala do Paulinho. Ele está numa reunião importantíssima com o pessoal da Tate Gallery. Pedir para ele um dinheirinho para minha amiga pobrezinha voltar de ônibus para casa. Quer? Algumas cenas adiante, a mesma Maria Regina assiste a um trecho de filme publicitário que resume bem a estratégia da ironia em Sérgio Bianchi. Na peça publicitária, uma mansão é exibida, sendo apresentada por uma vendedora que anuncia as condições de vida da proprietária. 45 - Esta é a luxuosa mansão de dona Cecília. Ela nasceu aqui, cresceu aqui, cercada de conforto e tradição. Estes belíssimos gramados permearam de verde a sua vida. Dona Cecília jamais precisou trabalhar. Há 400 anos a família de Dona Cecília jamais precisou trabalhar. Ora, dona Cecília não sabe trabalhar. Seria perigoso, e até mesmo uma leviandade, forçar agora um trabalho para dona Cecília. Ela precisa continuar a viver de rendas! Portanto, Vivendas Verticais vão se alastrar por esses jardins. Elas recriam com fidelidade o velho, mas sempre novo estilo de dona Cecília: dignidade e nobreza. Venha você também tirar uma vantagem. Essa cena merece ser observada tanto pelo discurso da personagem, algo que seria um clássico das pérolas da retórica supostamente conservadora-reacionária, mas essencialmente pela utilização de outro recurso na sua apresentação: a paródia de um anúncio publicitário. À sua maneira, Sérgio Bianchi se apropria da estética dos filmes publicitários que vendem condomínios e imóveis de alto padrão. Nesse caso, no entanto, o autor emprega um tom paródico exatamente ao ironizar o discurso edulcorado de felicidade do consumo ao enunciar ali um texto provocativo e singular que rejeita a ética do trabalho ao abraçar o privilégio de alguns poucos em detrimento do sofrimento da maioria. Ao final, o autor encerra com as palavras: dignidade e nobreza, sem mencionar a alusão à lei de Gérson24. Funcionando como um tipo de atestado de sua assinatura, Sérgio Bianchi adota a ironia em seu cinema, aproveitando, para tanto, uma visão desencantada e desenganada da vida política nacional. Esse é um componente central do cinema desse autor em suas demais obras, conforme 24 Praticamente um clássico para análise sociológica do Brasil, a lei de Gérson, em verdade, se origina não na física, mas no truísmo, defendido num anúncio publicitário de cigarros, segundo o qual o brasileiro quer levar vantagem em tudo. O protagonista do anúncio é o ex-jogador da seleção brasileira Gérson. 46 se vê no filme “A Causa Secreta”, obra de 1994. Baseado no conto de mesmo nome do escritor Machado de Assis, Bianchi explora, em “A Causa Secreta”, a indiferença e a humilhação como condições elementares na vida de uma grande cidade. No primeiro caso, as pessoas parecem infensas à dor, não se importando com o que acontece com o outro, a não ser quando isso envolve uma questão de interesse imediato. É um retrato desencantado do fim da solidariedade como discurso político. Já no tocante à humilhação, de modo semelhante, nota-se certo prazer em tratar o outro com desdém, não se importando com as condições sociais, ainda que esse discurso seja levando em consideração como relevante nas vozes dos personagens. Em “A Causa Secreta”, o desencanto é percebido logo nas primeiras cenas do filme, quando um grupo de teatro se prepara para encenar uma peça – no caso, “A Causa Secreta”, o conto de Machado de Assis. Para tanto, o diretor da peça, interpretado por Renato Borghi, salienta a necessidade desse grupo experimentar um método de preparação e vivência, percebendo os elementos ligados à temática da peça que acontecem no cotidiano. Numa sequência de eventos aparentemente dispersa, mas bastante encadeada, os atores se portam como mesquinhos, intolerantes e mesmo rabugentos, ainda que, do ponto de vista do discurso, mantenham um tom nobre a seu próprio respeito. Exemplo disso se percebe quando, num bar, um dos atores, interpretado por Luiz Ramalho, comenta acerca de seus projetos sociais e é interpelado por uma criança pedindo esmola. Num primeiro momento, o ator, embevecido com a própria voz, sequer nota a criança; depois, a partir do momento em que sua presença é inevitável, o ator 47 não hesita em escorraçar a criança de sua frente, conforme reproduzido a seguir: O tio tá falando, você não tá vendo? Espera só um pouquinho, tá? O mesmo sujeito que, querendo impressionar a atriz com quem conversa comenta sobre seu trabalho numa comunidade da periferia, ignora o pedido de uma criança com fome. A ironia por justaposição ou por contraste está visível nessa cena do filme de Sérgio Bianchi. De modo semelhante, logo em seguida, desta vez num restaurante, dois atores da peça (respectivamente vividos por Claudia Mello e Renato Santiago) conversam sobre a necessidade de buscar uma forma de fase de sua vida, baseada na gentileza, no que realmente importa. De repente, duas crianças de rua aparecem ao lado da mesa - Menino de rua: Tia, a senhora não poderia me dar um pãozinho com patê, não? - Atriz: O que você quer? - Menino de rua: Um pãozinho com patê... - Ator: Você não está vendo o que ele quer? - Atriz: Ah, mas poxa vida, né? Que situação...Nem acabamos de sentar. Olha aqui, dois pães para vocês dividirem... - Menino de rua: A senhora não poderia arrumar também, o seu patê? Ator: Dá uma azeitona... 48 Atriz: Humpf. É demais, né? Não tem nem o que comer, vão ficar escolhendo? É problema de nutrição básica ou de couvert? No livro “Contingência, ironia e solidariedade”, o filósofo norteamericano Richard Rorty (2007) dedica todo um capítulo para comentar os aspectos conceituais da ironia na contemporaneidade, com vistas a relacionar esse recurso com a política, por exemplo. A apreciação de Richard Rorty direciona-se claramente contrária à visão de mundo neoliberal, direcionando a discussão, nesse caso, para o ambiente de guerra cultural vivido nos Estados Unidos nos últimos 30 anos25. Ainda assim, a observação que este pensador faz acerca da questão da ironia se relaciona com a maneira como Bianchi emprega esse recurso, como se nota pelo trecho a seguir: O ironista lhes diz que a linguagem que falam está aí para ser posta em questão por ele e por outros como ele. Há nessa afirmação algo de potencialmente muito cruel. É que a melhor maneira de causar um sofrimento duradouro às pessoas é humilhá-las, fazendo com que as coisas que lhes parecem mais importantes se afigurem fúteis, obsoletas e impotentes. (RORTY, 2007, p.159) A questão da ironia em Sérgio Bianchi passa a ser reconhecida como marca definitiva em 2000, quando o diretor lança o longa-metragem 25 Os principais analistas políticos e críticos culturais dos EUA acusam, há anos, uma reação conservadora baseada no surgimento, entre outros, de autores como Irving Kristol, cujo texto apontava para a retomada de princípios morais e na defesa política mais próxima à linhagem do Partido Republicano. Autores como Richard Rorty e Fredric Jameson, assim como mais recentemente Slavoj Zizek, se posicionam na contracorrente dessa ação conservadora. Daí o termo guerra cultural. 49 “Cronicamente Inviável26”. Bianchi aposta num gênero que se amarra a outro, tomando emprestado diversas referências estéticas e conceituais para construir um filme-ensaio sobre o Brasil. Aqui, vale a pena ressaltar a análise de autores como Ismail Xavier, para quem a obra apresenta um cinema de ressentimento, conforme visto no primeiro capítulo do presente trabalho. Bianchi (2002) concebe “Cronicamente Inviável” fundamentando-se, novamente, na matriz da ironia, investindo numa proposta que não enxerga o futuro como algo viável. Nesse filme, a ironia, para além de provocar um riso amargo e melancólico, desemboca numa visão distópica sobre o Brasil 27 e sobre o futuro deste país. O personagem que serve de âncora para a obra, o intelectual Alfredo Bur, vivido pelo ator Umberto Magnani, é a mais perfeita tradução de um homem de ideias subaproveitado cuja causa, a de explicar o Brasil, incorre numa perspectiva perversamente crítica sobre o seu objeto de estudo e, por fim, sobre si mesmo. De “Cronicamente Inviável”, diversas cenas poderiam ser mencionadas como asserções irônicas sobre a realidade, tomando emprestado aqui a tese do teórico Fernão Pessoa Ramos sobre o cinema documentário. Num primeiro momento, vale a pena chamar a atenção para a justaposição das formas, ora documentário, ora relato ficcional. O espectador não tem claro quando um e outro estão em curso. Como que propositalmente, sem querer aqui esboçar uma análise com vistas a interpretar as intenções do autor, Sérgio Bianchi mistura os gêneros, criando 26 Embora tenha sido um filme que estreou em poucas salas de cinema do País, “Cronicamente Inviável” gerou diversos debates e polêmicas nos suplementos culturais no período de seu lançamento. Na mesma época, o diretor foi convidado para debates em universidades, e o filme se tornou uma espécie de evento cult da cena cultural paulistana. Só no jornal Folha de S.Paulo foram doze textos a respeito do filme. 27 No ensaio “O cinema da distopia brasileira”, publicado pela revista Contracampo, o crítico Cléber Eduardo aponta “Cronicamente Inviável” como um exemplo de filmes em que “não há possibilidade de final feliz”. Para Cléber Eduardo, cineastas como Bianchi não enxergam razão para conceber o Brasil como país do futuro. http://www.contracampo.com.br/52/distopia.htm. Acesso em 29 de novembro de 2012. 50 uma espécie de tempestade, como se verá no capítulo a seguir, exatamente porque pretende lançar mão desse recurso irônico sobre a realidade. Dessa maneira, nota-se a presença do intelectual, a princípio viajando pelos diversos cantos do Brasil a fim de discorrer sobre a questão da “identidade nacional”. As cenas mostram imagens típicas desses lugares (como Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Mato Grosso), notadamente atreladas ao consenso audiovisual que o público possui dessas regiões. A presença da ironia se faz notar quando, logo após exibir essas imagens, a voz over do narrador começa a tecer considerações poucoabonadoras e bastante críticas sobre situações e condições do Brasil. Um bom exemplo disso se dá quando Alfredo Bur vai à praia do Arpoador no Rio de Janeiro. Lá, encontra um ongueiro, interpretado pelo ator Petrônio Gontijo. Ele diz: - Tem gente que me critica. Quero ver o que os outros fazem. Tirei essa moçadinha aí da rua, rapaz. Tô falando de dignidade, tá entendendo? Arrumei um emprego digno pra todos eles. A gente vai viajar muito, fazer muito show, ganhar muito dinheiro. O senhor acha que isso é ruim, né? Em seguida, um grupo de jovens começa a tocar instrumentos de percussão no palco improvisado na praia. A plateia se agita e começa a dançar junto. O ongueiro parece exultante: - Olha só, olha só! É só dar uma chance pra essa moçadinha que eles vão longe, rapaz! 51 Quando diz isso, tenta abraçar Alfredo Bur, que, contrariado, escapa do cumprimento. E o ongueiro prossegue: - Por que não tentar levar eles para Nova York? O Brasil realmente tem muito o que mostrar, viu! O senhor não acha? O ongueiro se vira para ouvir a reação de Alfredo Bur, mas ele não está mais ali. Alguns instantes depois, Bur saca o gravador e analisa o que acaba de ver: - Explorar a miséria como atração turística deve ser no mínimo perigoso. Assim, a miséria que deveria ser um problema passa a ser desejável, educativa. Se a criança não tem educação, você dá uma lata para ela bater. Melhor do que elas serem exterminadas. Estamos progredindo: da seleção natural da rua para a seleção do mercado. Enquanto termina seu discurso, Alfredo Bur passa por uma batida de policiais em que estes abusam do poder contra menores de rua. Adiante, em outra passagem da obra, logo após a ver seu filho ter sido vítima de um assalto, a mãe (a personagem de Betty Gofman), atônita, reage quando percebe que o ladrão está sendo espancado por banhistas na praia. Com algum remorso, ela implora para que eles parem com a violência. Numa reviravolta dos acontecimentos, o garoto começa a bater na própria mãe, afirmando que tinha sido assaltado e que, sim, ele (o filho) a detesta. Mais 52 uma vez, essa cena chama a atenção não somente pelos diálogos dos personagens, em si, notáveis pela presença da ironia. O que nos interessa nesse quesito é o fato de que Bianchi articula a imagem da praia, geralmente associada, no Rio de Janeiro, à bossa nova, à violência forjada no ressentimento e no complexo de culpa. Ademais, é importante destacar que o diretor produz essa cena com fundo musical que remete à bossa nova. Mais uma vez, um contraponto, como que sublinhando à questão da ironia. Já no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005, a ironia se faz presente de maneira ainda mais corrosiva e cáustica, muito embora a recepção da crítica tenha sido abaixo do que se viu cinco anos antes, por ocasião da obra “Cronicamente Inviável”. Não cabe aqui especular as (des)motivações para tanto. Isso porque “Quanto Vale ou É Por Quilo?” obedece precisamente ao projeto estético do autor, sobretudo porque esse elemento da ironia, tal qual visto ao longo do presente capítulo, não apenas se faz presente, como também é a tônica dominante do filme. Antes de tratar desse aspecto objetivamente, vale a pena discorrer sobre os elementos centrais desse filme de Sérgio Bianchi. O argumento do filme, como vimos no primeiro capítulo, baseia-se numa narrativa em paralelo sobre os instrumentos de manutenção de poder. De um lado, o diretor apresenta pequenos relatos sobre o período da escravidão, aparentemente documentados e registrados conforme o Arquivo Nacional. De outro, Bianchi traz a história ficcional, na qual uma empresa oferece suporte técnico para as Organizações Não-Governamentais desenvolverem seus projetos e, de quebra, obterem financiamento do Estado para a existência de suas instituições. Com altas doses de ironia, o filme de 53 Bianchi ataca as ONGs não somente por ocuparem um espaço que deveria ser preenchido pelo Estado (e, nesse caso, o Terceiro Setor não é o alvo prioritário, mas, sim, a administração pública que largou mão de suas atividades), como também porque têm como principal objetivo sua sobrevivência financeira a médio e longo prazo. A ironia de Bianchi tem como alvo o fato de as ONGs não servirem como modelo político do Estado, mas como escapadela para gestões que podem ser corruptas e fraudulentas. É dessa maneira que o espectador vê a Stinner, a empresa responsável por preparar os projetos das ONGs para a captação de recursos públicos e investimentos oriundos de grupos estrangeiros. Bianchi cria personagens que mais se assemelham a homens de negócio e não a pessoas ligadas a atividades sem fins lucrativos. Em dado momento do filme, um dos personagens (Ricardo, vivido por Caco Ciocler), responsável pela realização de projetos sociais, rechaça o pedido de uma agente social (Arminda, vivida por Ana Carbatti), enfatizando que o objetivo central da Stinner é o lucro. Cria-se, assim, o paradoxo: o grupo responsável pelos projetos das ONGs tem objetivos e interesses como uma empresa qualquer, sem perceber aí qualquer conflito de interesses nesse sentido. Já em outra passagem do filme, agora no segmento histórico da narrativa, Bianchi investe numa apresentação, em tese, isenta daqueles acontecimentos do Vice-Reinado. Ocorre que, nas entrelinhas do texto oficial, nota-se a lógica perversa que sustenta as relações entre os homens livres e os escravos. Extravasando o texto de base original, o já citado conto “Pai contra Mãe”, o cineasta reconstitui as negociações entre os escravos e os senhores. Estes buscavam comprar escravos e “recuperar o investimento”; 54 aqueles desejavam comprar sua liberdade. Bianchi mostra como essa relação entre as partes se baseava, para além da lógica do dinheiro, no instrumentalização do favor. Se o favor era a concessão de um pedido baseado no território da amizade, em Bianchi, ecoando Machado de Assis, o favor se transformaria numa moeda de troca tão ou mais valiosa, porque cria a dependência e sustenta a manutenção do poder, servindo, portanto, aos interesses de quem está em vantagem – e, no limite, de quem está no poder. E o favor, com efeito, é outro elemento que cimenta as duas histórias, sem esquecer aqui do texto de base que serve, inclusive, para nomear determinado núcleo de personagens da segunda história. Exceto por Mônica, personagem interpretada por Claudia Mello, este núcleo está à margem do universo das ONGs, isto é, não faz parte daquele grupo que é atendido por quem deseja fazer o bem. É importante frisar, no entanto, que a instrumentalização do favor, no filme de Bianchi, é mascarada pela utilização da ironia. Explica-se: a oferta de favores é manipulada, pelos gestos e pelo discurso, transformando-se numa doação legítima e com as melhores intenções possíveis. Só que, muitas vezes, esses mesmos gestos traem aqueles que prestam ajuda, mostrando as segundas intenções daqueles que oferecem favor. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, o cineasta denuncia isso, articulando as duas narrativas: de um lado, no caso do relato baseado em documentos históricos, as negociações que envolviam os escravos que desejavam ser livres e os mercadores de escravos tinham como objetivo central garantir dinheiro aos últimos, numa legítima ação comercial – dentro do que estava permitido pela lei. A narrativa contemporânea, por sua vez, mostra que as ONGs, embora defendam no plano do discurso a ação que 55 servirá de anteparo às classes desassistidas – oferecendo, entre outros, projetos de inclusão social e a possiblidade de realizar um último desejo, no caso de famílias com portadores de doenças terminais – , têm como grande causa a sua própria agenda, isto é, conquistar mais espaço e mais investimentos para expandir seus negócios e seus domínios. A certa altura, o filme de Bianchi chega mesmo a mostrar as ONGs como nova oportunidade de negócio, com direito a cursos de capacitação e discurso pré-elaborado a esse respeito. De volta à questão da ironia, vale a pena salientar que o filme de Sérgio Bianchi apresenta essa história como uma espécie de paródia do texto original. Aqui, é importante destacar que a paródia não é do texto de Machado de Assis, que serve de referência apenas para uma das histórias do filme; a paródia em questão é para com o discurso politicamente correto das Organizações Não-Governamentais, de suas boas intenções e de suas práticas cujo valor está acima de qualquer suspeita. A crítica de Bianchi às ONGs se constitui sob o signo da ironia, rejeitando o consenso existente sobre essas organizações e desacreditando seus princípios. Nesse ponto, a análise de Richard Rorty sobre o ironista pode servir como fundamento para a identificação dessa agenda crítica em Sérgio Bianchi: O ironista é o típico intelectual moderno, e as únicas sociedades que lhe dão a liberdade de articular sua alienação são as liberais. Assim, é tentador inferir que os ironistas são naturalmente antiliberais. Uma porção de pessoas, de Julien Benda a C.P. Snow, considerou quase evidente a ligação entre o ironismo e o antiliberalismo. Hoje em dia, muitos presumem que o gosto pela “desconstrução” – uma das atuais palavras de ordem dos ironistas – é um bom sinal de falta de responsabilidade moral. Presumem que a marca do intelectual moralmente fidedigno é uma espécie de prosa direta, desenvolta e transparente – exatamente o 56 tipo de prosa que nenhum ironista criador de si mesmo quer escrever. (RORTY, 2007, p.159) Ao apresentar um cinema deliberadamente irônico e contracorrente, Sérgio Bianchi se pauta por uma agenda temática que ora se confunde com seu projeto estético, tema a ser mais elaborado no capítulo seguinte, quando se refletirá mais e melhor a esse respeito. Por enquanto, o que se nota é a conformação da obra do cineasta à lógica da ironia, apropriando-se de outros textos e mesmo da obra de Machado de Assis para dar vazão à crítica que está contida na linguagem irônica, como escreveu Kierkegaard. Assim, mais do que a retórica ou sacada humorística, o recurso da ironia serve como um contundente instrumento de crítica social desse cineasta político. 57 3. Sérgio Bianchi e o cinema de tese Nos capítulos anteriores, a presente pesquisa trouxe, na primeira parte, uma visão panorâmica do cinema de Sérgio Bianchi e, na segunda, uma observação mais aprofundada sobre o conceito de ironia, recurso bastante utilizado pelo diretor em seus filmes. Com isso, esses dois capítulos forneceram as bases para que agora seja feita a análise mais consistente da obra que serve como objeto-referência para esse estudo, o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, de 2005. Assim, de maneira a dar prosseguimento ao estudo, a proposta deste capítulo é discorrer sobre a maneira como o cineasta, para além de apresentar uma história, concebe uma tese a propósito do tema de seus filmes. O fato de ser um cineasta político, conforme visto no primeiro capítulo, ajuda a pensar Sérgio Bianchi como um autor com uma agenda que é trabalhada ao longo de sua obra, porém nem sempre perceptível à primeira vista, dada a forma pouco convencional como o diretor estrutura seus filmes. É por esse motivo que neste capítulo pretende-se mostrar como essa tese é construída tanto no âmbito do conteúdo quanto no aspecto formal. Para tanto, utiliza-se como referência o texto de David Bordwell, cujo título é “Estudos de cinema hoje e as vicissitudes da grande teoria”. O ensaio é parte integrante do primeiro volume do livro “Teoria Contemporânea do Cinema”, organizado por Fernão Pessoa Ramos. Assim, o cinema pouco convencional de Bianchi será enfrentado não somente a partir da temática abordada pela obra, mas, essencialmente, pela maneira como o diretor se 58 utiliza de uma bricolagem de formas narrativas para defender o argumentochave em suas histórias. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, essa observação parece chave quando se nota a complexidade traduzida em imagens e sons que fazem escapar ao espectador a identificação sobre o gênero ao qual pertence aquela obra – voltaremos a esse assunto daqui a algumas páginas. À primeira vista, no entanto, a obra de Bianchi, em geral, e o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, em particular, obedeceriam às tendências estéticas da pós-modernidade. E tudo isso graças não só à sua forma fragmentada – articulada a partir de fragmentos que ora se contradizem, ora se complementam –, mas, principalmente, por apresentar um olhar desconfiado às causas da política, dos costumes e do comportamento. Os exemplos que comprovam essa hipótese são visíveis quando, de um lado, as histórias questionam determinado consenso – como é o caso das ONGs e do assistencialismo em filmes como “Cronicamente Inviável” e “Quanto Vale ou É Por Quilo?” – e também, de outro lado, quando os desfechos das obras indicam um cenário temerário e distópico – como é o caso de “Maldita Coincidência” (quando o personagem interpretado por Sérgio Mamberti ensina a fazer coquetel molotov) ou, ainda, em “Cronicamente Inviável” em que o intelectual que funciona como fio condutor da obra, interpretado pelo ator Umberto Magnani, é parte integrante do mesmo cenário corrupto que é acusado pelo filme – afinal, o professor pertence ao grupo que promove tráfico de órgãos. A possibilidade de um cinema concebido sob a noção de estética da pós-modernidade faz sentido aqui justamente porque Bianchi se afasta das 59 grandes narrativas propostas pela modernidade. Ou, por outra, nem a transformação pela política, nem o desejo absoluto em transformar a realidade, parecem atrair a obra do cineasta que se mostra, antes, empolgado em expor o incômodo desencanto e constante desengano das gerações. Em relação aos temas abordados, isso fica evidente quando o espectador passa em revista os temas trabalhados pelo cineasta: o caos provocado pela desigualdade social, a denúncia da fissura das relações humanas, o ressentimento da classe subalterna para com os desmandos da elite, que, por sua vez, não mostra capacidade para conduzir o país rumo a um projeto de sociedade mais sofisticado. Essas características estão expostas ao longo da obra de Bianchi, com destaque específico para “Cronicamente Inviável” e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, entre outros motivos, conforme visto anteriormente, porque esses filmes reúnem elementos trabalhados nas obras anteriores. Essas denúncias, no entanto, não possuem o efeito de indignação exatamente porque contêm a marca da ironia como marca definitiva, o que altera profundamente o seu sentido. Assim, o que seria indignação se transforma numa sátira de indignação, e o alvo da crítica com esse recurso passa a ser aqueles que detêm supostamente o discurso mais politizado e engajado, com vistas a salvar o restante da sociedade. O cinema de Bianchi desconfia desse “projeto”, operando, em verdade, como um anteprojeto, que é o de ridicularizar esse consenso utópico com uma abordagem paródica desse discurso engajado. Como referência teórica, a pós-modernidade, conforme explicam seus teóricos mais conceituados, como Fredric Jameson (1991), entre outros, atenta para o fato de que as grandes narrativas já não servem mais como 60 postulados absolutos. Nesse sentido, a política já não teria mais como resolver a dissolução e os conflitos existentes na sociedade. Em vez disso, existe uma desconfiança de que esses projetos possam efetivamente resolver tais problemas. O cinema de Bianchi, por sua vez, funciona como produto dessa ausência de sentido causada pela pós-modernidade. E é a partir dessa questão que podemos passar à análise específica de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. 3.1 Sobre a pesquisa nível-médio e o cinema de Bianchi Como foi visto ao longo do primeiro capítulo, o filme trabalha com a proposta de estabelecer um paralelo pouco ortodoxo: as relações sociais existentes durante o período da escravidão e os mecanismos de dominação subjacentes ao trabalho voluntário praticado pelo terceiro setor atualmente. De acordo com esse paralelo, a prática do terceiro setor guarda conexão perversa com a escravidão, pois enquanto esta operava com a mão-de-obra escrava para se fazer perpetuar no poder, aquela lida com o instrumento do favor para manter o status quo. A perversidade reside no fato de que, tal como naquela época o trabalho escravo era considerado algo natural, o voluntariado se exibe como uma saída legítima, a fim de dirimir as desigualdades e os possíveis conflitos que possam continuar a existir. Ocorre que o cinema de Sérgio Bianchi desconfia desses bons sentimentos. Assim, o autor lança mão da ironia para satirizar essa prática que se enquadra no discurso apaziguador e politicamente correto. Como já havia feito em “Cronicamente Inviável”, o polêmico filme de 2000, desta vez o cineasta aponta a crítica para aqueles que teoricamente estariam do lado de 61 quem está praticando o bem. A explicação dessa tese subjacente do filme parece óbvia a partir apenas dos diálogos ou, por outra, de uma interpretação de uma mensagem que seria revelada no desfecho da narrativa. Chama a atenção, no entanto, o fato de que essa tese em Bianchi esteja concebida não somente no conteúdo, mas, também, na forma, como se pretende demonstrar a seguir. Ao comentar o estado da arte dos estudos de cinema hoje, David Bordwell (2005) repara que a dicotomia entre as teorias da posição-subjetiva e o culturalismo, de alguma maneira, representou um impasse a partir do qual o cinema só poderia ser entendido graças a essas explicações. O autor, todavia, esboça uma alternativa a esses territórios pré-definidos quando lança a hipótese da pesquisa “nível-médio”. No trecho a seguir, Bordwell reflete a esse respeito: A teoria da posição subjetiva e o culturalismo são ambos “grandes teorias”, no sentido de que suas reflexões sobre o cinema são produzidas dentro de marcos teóricos que têm como objetivo a descrição ou a explicação de aspectos bastante amplos da sociedade, da história, da linguagem e da psique. Em contraste com essas correntes, aparece uma terceira, mais modesta, que investiga questões cinematográficas mais pontuais, sem se entregar a comprometimentos teóricos tão abrangentes. Eu concluo este ensaio com uma discussão desta pesquisa “nível-médio”. (BORDWELL, 2005, p.26) Com efeito, ao longo do texto Bordwell não só explicita o que chama de “doutrinas” dessas grandes teorias, como, mais ao final do artigo, desenvolve essa espécie de terceira via da linhagem analítica. Nas palavras do autor, a pesquisa nível-médio pode ser definida como uma abordagem que possui lastro tanto na perspectiva empírica quanto na linhagem teórica. Conforme observa Bordwell, essa leitura nível-médio é pautada por 62 problemas, e não por doutrinas, o que acaba tornando suas possibilidades mais amplas, uma vez que redimensionam os limites outrora estabelecidos entre “estética, instituições e recepção cinematográfica”. A proposta teórica oferecida por Bordwell, exatamente por não tomar de forma absoluta os elementos da posição-subjetiva e do culturalismo, consegue tornar mais viável a análise do cinema atípico de Bianchi, mais especificamente para compreender a forma com que o autor desenvolve seu cinema de tese no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Em outras palavras, a pesquisa nível-médio ajuda a investigar e a decifrar o sentido do cinema de Sérgio Bianchi recuperando os elementos-chave de sua obra e, dessa maneira, atacando o seu eixo fundamental, a saber: o filme que o autor elabora ao justapor as imagens e ao conceber um discurso irônico, uma contra-interpretação, acerca dos fenômenos sociais no País. Passemos, então, à análise. No conto “Pai contra Mãe”, o escritor Machado de Assis apresenta em forma de dilema moral o problema da escravidão no Brasil. A narrativa dá conta da história de Candinho (interpretado no filme pelo ator Silvio Guindane), um remediado que vive sem dinheiro e às custas de pequenos trabalhos. O personagem tem dificuldade em encontrar ocupação fixa, de maneira que acaba por se encontrar apenas em trabalhos temporários ou de baixos prestígios. Essa condição muda quando Candinho se torna capitão do mato, ocupação que, nas palavras do narrador do conto, é um ofício daquele tempo (assim como as máscaras que impediam os escravos de beber e demais instrumentos que faziam parte do aparato do período da escravidão). Como capitão do mato, Candinho consegue sustentar sua família – 63 composta, basicamente, pela esposa, Clara (interpretada no filme pela atriz Leona Cavalli), e por Mônica (interpretada no filme pela atriz Cláudia Mello), a tia de Clara. A condição de vida de Candinho, que a certa altura do conto parece estável, muda de perspectiva à medida que a escravidão vai perdendo o fôlego (em verdade, o autor articula os dados históricos do período, como o fim do tráfico negreiro e a lei do ventre livre, e, com isso, acaba por tensionar as possibilidades de subsistência daquele personagem). Como consequência, à medida que o tempo passa, o dinheiro passa a rarear e, com isso, o protagonista se vê na iminência de ter de entregar o filho à roda dos enjeitados, a fim de que não seja criado em condições precárias. Resignado, toma o filho nos braços e segue para o que parece ser o destino trágico (ou desfecho infeliz). O salto da narrativa se dá, no entanto, quando Candinho encontra no caminho uma escrava-fugida, Arminda (interpretada no filme pela atriz Ana Carbatti). Ele não hesita. Entrega o filho a um farmacêutico e parte para capturar a escrava. Ao encontrá-la, ela suplica para que ele não a entregue, argumentando que está grávida. Nesse embate pai contra mãe, Candinho não hesita e entrega Arminda para o senhor do escravo, que lhe dá retribuição necessária para que ele possa manter o filho longe das rodas dos enjeitados. No comentário que traz o desfecho do conto, o personagem criado por Machado de Assis afirma: “Nem todas as crianças vingam, bateulhe o coração”. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Sérgio Bianchi toma emprestado alguns elementos da narrativa machadiana para defender sua tese sobre o papel atual do terceiro setor na lógica da manutenção de poder. Como já dito 64 tanto na introdução quanto no capítulo inicial dessa dissertação, o filme de Bianchi não é uma adaptação que trabalha com os mesmos elementos do livro de Machado de Assis, tampouco se objetiva aqui estabelecer um estudo de modo a perceber quais os recursos utilizados pelo diretor na transposição ou transcriação do texto do escritor brasileiro. Ainda assim, a menção é importante porque permite enfatizar a maneira como o cineasta se apropria de um texto de matriz literária para acusar outro problema tão grave quanto a ausência de solidariedade entre aquele remediado e a escrava fugida. Tudo está no seu lugar exato. Bianchi precisa do conto a fim de construir um paralelo que, à primeira vista, poderá parecer esdrúxulo ou mesmo sem sentido, porém que está perfeitamente adequado quando se entende a natureza dessa tese. Sobre isso, é importante destacar o já citado estudo de Pedro Vinícius Asterito Lapera (2007) “Brasis imaginados: a experiência do cinema brasileiro contemporâneo”. No trabalho, o autor aborda a ilação estabelecida de Bianchi sobre a escravidão e o trabalho voluntário, como no trecho que segue: Finalmente, em 2005, ‘Quanto Vale ou É Por Quilo?’ é lançado comercialmente e exibido em vários festivais. Reiterando sua posição como agente formulador de contra-narrativas às representações de Brasil, Bianchi se insere na disputa pelo capital simbólico através de mais uma ficção recorrente à ironia e ao trágico. No entanto, dessa vez o embate crítico reforçará a ligação estabelecida na diegese entre passado e presente e a crítica ao papel das ONGs. (LAPERA, 2007, p.91) Para que se possa entender o efeito de sentido provocado pela apropriação de Bianchi do conto machadiano, vale a pena observar, antes, como o próprio Machado de Assis fez de um relato aparentemente banal 65 sobre a escravidão em um drama com um dilema moral bastante agudo. Como indica Sidney Chalhoub, no livro “Machado de Assis, historiador”: Ao contar suas histórias, Machado de Assis escreveu e reescreveu a história do Brasil no século XIX. Essa hipótese vem sendo defendida, a meu ver de forma bastante convincente, por críticos literários como Roberto Schwarz e John Gledson, e tem se revelado importante para desvendar e potencializar significados nos textos machadianos. (CHALHOUB, 2003, p.17) Ocorre que, para determinados temas, é certo que Machado de Assis desenvolveu uma técnica que era importante não apenas pela sofisticação de estilo, mas também porque se fazia necessário tratar dos temas mais espinhosos com uma abordagem não tão direta. E esse parece ser o caso de “Pai contra Mãe”, que, curiosamente, só foi aparecer como conto publicado em livro de Machado de Assis em 1906, segundo informa John Gledson (2007) no prefácio da coletânea “50 contos de Machado de Assis”. É nesse texto, importante para que se possa compreender o contexto de alguns contos do escritor, que Gledson revela as motivações de algumas escolhas do escritor brasileiro para a sua obra, como fica evidente no trecho a seguir: Uma coisa é certa: a expansão do material possível de Machado e o tom, o distanciamento irônico que ele adota, são completamente inseparáveis. Digamos assim: se ele não houvesse encontrado modos dos mais variados (irônicos, sarcásticos, mas sempre semiocultos) de se expressar a respeito de coisas sobre as quais não deveria falar, ou às quais só podia se referir de soslaio, tais histórias jamais teriam existido; podemos sentir sua satisfação quando se aproxima de outra questão espinhosa e acaba encontrando novas maneiras de falar sobre coisas demasiado embaraçosas para mencionar diretamente. Na minha opinião, isso ajuda a explicar o êxito desses contos – Machado caminhava no fio da navalha, o que lhe deve ter dado, e a seus leitores, uma espécie de excitação; algo que, por incrível que pareça, podemos sentir num mundo bem diverso, o nosso, pois essa sensação está aqui, na linguagem e suas negaças, nos pormenores, nos atos, nas situações e nos personagens. (GLEDSON, 2007, p.13) 66 Como indica o crítico literário, portanto, quando tratava de assuntos mais delicados, Machado não hesitava em utilizar como recurso a máscara da ironia, não apenas por um detalhe de estilo, mas também por se tratar de uma necessidade, uma vez que determinadas questões poderiam soar por demais contundentes. Desse modo, é correto afirmar que Machado de Assis manipulava a chave da ironia para estabelecer uma crítica – tomando como referência o conceito estudado no capítulo anterior. De sua parte, Sérgio Bianchi na sua adaptação também se utiliza do recurso da ironia, todavia, o elemento chave aqui está exatamente na impureza de sua adaptação – motivo pelo qual se prefere pensar na ideia de apropriação. Pois, em sua apropriação, Bianchi toma a ironia de Machado de Assis de forma impura 28 , já que o cineasta a retoma a partir de outro pressuposto, aprofundando o seu efeito com o objetivo de criticar a manutenção do poder por determinadas classes a partir de uma prática, o voluntariado, à primeira vista bem intencionada. Nesse sentido, a ironia de Bianchi remete, sim, ao recurso utilizado por Machado de Assis, mas de maneira alguma trata-se da mesma crítica. Isso porque a ironia, em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, conforme visto no capítulo anterior, tem endereço mais contundente, como sói ao cinema de Sérgio Bianchi. Em outras palavras, o diretor mira no fundamento, na ideia, no princípio elementar que sustenta as ONGs como prática legítima na sociedade contemporânea. É contra esse consenso que a ironia do diretor 28 No livro “O Cinema – Ensaios”, o crítico francês Andre Bazin desenvolve uma análise acerca das adaptações, defendendo o que seria um “cinema impuro”. A análise de Bazin sustenta que “quanto mais as qualidades da obra são importantes e decisivas, mais a adaptação perturba seu equilíbrio, mais também ela exige um talento criador para reconstruir de acordo com um novo equilíbrio, de modo algum idêntico, mas equivalente ao antigo”. 67 se faz mais evidente, ridicularizando, como escreveu Pedro Lapera em “Brasis imaginados”: (...) o diretor contesta uma imagem construída na imprensa pela ação nas ONGs (na verdade, isso já foi iniciado em “Cronicamente Inviável” ao ironizar a ONG Viva Rio e o uso de entidades assistencialistas para obliterar o tráfico de bebês e órgãos), objeto até então ausente na cinematografia brasileira (o que poderia ser interpretado como uma patrimonialização, na medida em que esta imagem se incorpora ao panorama do cinema atual (...) (LAPERA, 2007, p.91) Uma vez entendido o dado da apropriação, é importante demonstrar como se dá o seu funcionamento. Se em “Cronicamente Inviável”, o concerto do ressentimento se dá a partir de fragmentos do cotidiano das locações visitadas pelo personagem que serve de fio condutor da história (e é a partir desses excertos que a história se constitui), em “Quanto Vale ou É Por Quilo?” são duas histórias que se desenvolvem em paralelo, sem conexão temática aparente entre si (esse eixo é desenvolvido à medida que o filme se desenrola, como veremos a seguir), sendo a primeira narrativa um conjunto de cenas sobre a escravidão no Brasil, desenvolvidos como se fossem pequenos documentários, e a segunda é a história que se passa em tempo presente, com personagens cujas vidas são entrelaçadas pelo tema das ONGs e sua ação junto à sociedade. A título de organização, convém desenvolver essas duas histórias em trechos distintos nesse capítulo. 3.2 Sobre a composição de “Quanto Vale ou É Por Quilo?” A história que se passa no período histórico da escravidão, época do Brasil Colônia, está sedimentada numa forma que efetivamente remete à linguagem do documentário mais tradicional. Assim, ao mesmo tempo em que existe a reconstituição de alguns eventos, uma voz over narra esses 68 eventos, como que construindo um sentido ao que aconteceu. É interessante observar aqui, que, como consta no roteiro oficial do filme, a intenção era exatamente traçar um paralelo entre as duas situações. No roteiro oficial, existe um trecho explicativo dessa intenção: “O roteiro faz um paralelo com fatos reais, tirados de arquivos, mostrando também como no passado, durante a escravidão, no século 18, conseguia-se também explorar de uma maneira ou outra os mais frágeis, no caso a população negra, quando alforriada” (BIANCHI et al. 2006). Como se verá ao longo do texto, mais parece uma estratégia para o desenvolvimento da narrativa do que uma fonte a partir da qual essas histórias foram extraídas. Nesse caso, uma hipótese possível é a de que o diretor se apropriou de alguns documentos para conceber esses relatos protodocumentais. Cumpre observar, ainda, que, logo após uma epígrafe, o filme se inicia com cenas que remetem a outro documento, desta vez ficcional, que é o primeiro parágrafo do conto “Pai contra Mãe”, de Machado de Assis. Abaixo, segue esse fragmento: A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro, o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.29 29 O conto “Pai contra Mãe” existe em diversas edições, sendo uma das mais recentes a que foi publicada pela editora Companhia das Letras, em 2007, no livro “50 contos de Machado de Assis”, cuja organização e prefácio têm 69 A epígrafe em questão é exatamente da parte histórica do filme. A narração dá conta de um caso de briga judicial por um escravo. Quem vai levar o escravo de uma propriedade à outra são os Capitães-do-Mato, que não falam durante as cenas, apenas agindo como autômatos. Quem se manifesta é a proprietária de quem tinha sido tirado um escravo. Ao final dessa primeira citação, aprendemos que ela havia sido condenada pela justiça da época por causar distúrbios à ordem vigente. Ela não conseguiu recuperar o escravo, mas enquanto a narração dá conta de sua desventura, a cena mostra a personagem reunindo seus escravos para registrar numa fotografia, como exibição de suas posses. No roteiro oficial de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, os realizadores afirmam que muito do filme está sintetizado nesta cena. Na apropriação de Bianchi, mesmo esse trecho é apresentado de forma pouco convencional. Isto é, o narrador (cuja voz no filme é do ator Milton Gonçalves) “enxuga” esse fragmento do conto machadiano, apresentando outra versão, condensada e com incrementos originais. Com base no roteiro, entende-se que desde o início a proposta do trabalho foi escapar às regras tradicionais de concepção de roteiro. Nas palavras de Newton Cannito, um dos autores, isso se justifica pelas seguintes motivações: Nem sempre é necessário dar as informações para que o público entenda o filme. Quem se preocupa tanto com isso costuma ser o roteirista, que está lendo o mesmo roteiro há meses e fica sempre se perguntando: mas qual a motivação desse personagem para fazer isso? O autoria de John Gledson, especialista na obra do escritor brasileiro. Para a realização desse trabalho, foram consultadas, ainda, outras edições, como a publicada pela editora Martins Fontes, com organização e prefácio de Ivan Teixeira, que já assinou diversos ensaios sobre Machado de Assis. Para esta referência, utilizo o texto organizado por Gledson, editado a partir de cotejo com a primeira edição. 70 público, ao contrário, vai ver o filme durante 2 horas e ponto. (BIANCHI et al, 2008, p.22) É dessa maneira que, numa das primeiras cenas do filme, a senzala aparece como cenário, e os escravos estão ali em posição de punição. À medida que essa cena se desenvolve, o espectador conhece os instrumentos de tortura dos escravos, além de uma personagem que fará parte da outra seção do filme, Arminda (interpretada pela atriz Ana Carbatti). Ela está no tronco, e é quando o enquadramento da câmera a visualiza que esse relato se dá por encerrado e a outra história aparece em cena. Da senzala para a laje de uma casa de periferia, onde a mesma Arminda desperta de um cochilo. Nesse momento, a música ambiente (“As Rosas Não Falam”, do compositor Cartola) já serve de acompanhamento para os diálogos que ali vão acontecer. A câmera passeia por toda a extensão da laje, dando conta da festa que acontece ali, e Arminda se levanta, depois de ser despertada por Lurdes (vivida pela atriz Lena Roque) , e segue até aquela que faz os preparativos, a personagem de Tia Judite (vivida pela atriz Myriam Pires). Arminda: Deixa eu te ajudar, tia, se não você não acaba isso nunca. Tem de se divertir um pouco, tia. Tia Judite: Alguém tem que se mexer, né. Essas duas [referindo-se a duas personagens, figurantes no filme, que estão sentadas à mesa] não tiram a bunda da cadeira. Nesse momento, Lurdes interrompe a todos e dá início à festa. Ela anuncia a comemoração do aniversário de sua mãe (interpretada aqui por uma figurante). Antes de cantar os parabéns, no entanto, nota-se que duas mulheres, as duas que Judite (vivida pela atriz Myriam Pires) se referia, se esbaldam com a comida disponível na mesa e, entrementes, ordenam à criança que está ali, visivelmente deslocada, para que ela busque um 71 refrigerante. Esse excerto do filme não merece comentários especiais no roteiro oficial, mas é importante destacar que esse trecho se insere como um elemento mais delicado da obra, isto é, que revela a maneira como se organizam as relações sociais na trama. Nesse sentido, é interessante observar o comentário de Newton Cannito a propósito da confecção do roteiro: Na prática desse roteiro, nós não fazíamos fichas dos personagens. Despreocupados com a continuidade psicológica e com o jeito de falar de cada pessoa, nós deixávamos que as boas falas criadas circulassem por vários personagens até escolher qual daria o melhor conflito dramático à cena criada (BIANCHI et al., 2008, p.18) O resultado disso foi o estabelecimento de certa independência na elaboração das cenas, de maneira que cada passagem do filme pudesse ter seu próprio conflito interno. Assim, mesmo no começo do filme, essa tensão fica explicitada na relação de dominação e poder que está sugerida na fala das personagens para com a criança deslocada e, como complemento, na própria encenação disso, uma vez que a criança está no canto, como que de castigo, e as moças à mesa se comportam como se fossem senhoras daquele espaço, ainda que não tenham condições financeiras para tanto. Afora isso, na fala de uma das personagens está claro uma relação de condescendência30 para com a menina em questão: Queridinha, vai buscar o refrigerante pra mamãe, vai? Essa condescendência, na verdade, revela, na proposta cinematográfica de Sérgio Bianchi, a fissura existente entre esses dois 30 A expressão condescendência talvez não seja a melhor tradução para o termo que resume de forma mais definitiva essa situação. Isso porque o termo “patronizing” em inglês dá conta de forma mais consistente desse olhar superior, mais sugestionado, que envolve a fala da mulher para a criança. O que o filme escancara é essa relação de poder implícita de um determinado grupo para com outro. 72 grupos que, em tese, seriam apenas um só. Afinal, ao menos naquela cena, todos se confraternizam, e não há espaço para disputas de qualquer tipo. Ocorre que, como lembrou Newton Cannito, o objetivo era não só criar independência nas cenas, mas estabelecer uma tensão. A tensão nesse caso está na maneira como duas personagens, em condições sociais igualmente frágeis do ponto de vista econômico, se identificam e se diferenciam daquela garota, tendo esta que obedecer àquelas duas não necessariamente por uma questão de hierarquia, mas essencialmente porque está ali de favor. O que esta cena especificamente denuncia é a perversidade subjacente à prática do favor, sempre acima de qualquer suspeita. Na cena, ao pedirem um favor, as duas mulheres dão ordem à empregada. É o que se pode ver na cena seguinte à da festa de aniversário. Importante notar que, até aqui, não há na narrativa nada que estabeleça conexão entre as cenas já exibidas. Ainda assim, na sequência da cena da festa, a câmera focaliza o alto daquela laje e o tom em cores dá lugar ao preto e branco, com planos realistas de crianças de ruas, miseráveis e abandonadas, algumas com latas nas mãos e rosto. A música de fundo reforça o impacto da cena, servindo como deixa para o discurso que está por vir. É o que de fato acontece, com uma voz que anuncia o seguinte texto: LOCUÇÃO (VOZ OVER) São milhares de crianças abandonadas. Ajude a Sorriso de Criança a ajudar quem necessita. Não dê esmolas nas ruas! Faça as suas doações em dinheiro a entidades idôneas. Sorriso de Criança: Teledoação: 0800-143276. A cena, que se assemelha a um dos muitos filmes de instituições de caridade veiculados nas emissoras de TV aberta, logo sai de cena, e o que o espectador visualiza na tela é outra encenação. Nela, em volta de uma mesa de reunião, os presentes discutem sobre novas estratégias para angariar 73 fundos para as instituições de caridade. Logo, Marco Aurélio, personagem vivido por Herson Capri, apresenta ao responsável da ONG seu diagnóstico sobre o vídeo que acaba de ser exibido: MARCO AURÉLIO: Pois é, a Sorriso de Criança está com sua estratégia... um pouco ultrapassada. Neste vídeo, por exemplo, só tem criança sofrendo. A nossa postura tem que ser outra, diante do investidor. Nós temos que ter uma postura muito mais... positiva. Quem financia a solidariedade, hoje... está preocupado com o retorno. Por isso, a imagem do seu produto deve estar vinculada... ao êxito. Mas fique tranqüilo, Dom Elísio. Nós vamos refazer seu vídeo. Vamos sair às ruas e vamos colher depoimentos... otimistas, depoimentos emocionados. Logo em seguida, o braço direito de Marco Aurélio, Ricardo (personagem vivido pelo ator Caco Ciocler), passa um contrato a Dom Elísio. Este, resignado, se limita a dizer: DOM ELÍSIO: Eu imagino que vocês estejam bem atualizados nisso. Nos comentários que acompanham o roteiro do filme, os autores observam que, como referência para a concepção da cena, foram utilizados diversos livros e conceitos oriundos do tema marketing social. Philip Kotler, Marjorie Thompson e Hamish Pringle são alguns dos nomes citados. Entende-se que deles foram tomadas emprestadas as palavras-chave para forjar o vocabulário próprio desse tipo de reunião. Todavia, para além desses comentários do roteiro, o que a cena ataca é a concepção falsa das ações do Terceiro Setor. Isto é, se, para o senso comum são realizações que se pautam tão somente pela livre-iniciativa de seus principais agentes, sem buscar retorno de seus investimentos ou algo semelhante, o que a cena do filme de Bianchi mostra é como existe a procura por um “retorno do investimento”, utilizando as expressões e termos, compartilhados do jargão do mundo dos negócios, que não deixam dúvida de que se trata de um empreendimento com fins lucrativos, ainda que o discurso apregoado indique 74 o caminho contrário. Sérgio Bianchi utiliza, assim, uma tática inversa para mostrar essa contradição, isto é, encena uma reunião de negócios para apontar as melhores estratégias para captar fundos de investimento para o Terceiro Setor. Em nenhum momento, as crianças desassistidas, que deveriam ser o alvo principal dessa ação, aparecem na fala dos personagens envolvidos, a não ser como peças que servem para compor um cenário que ofereça retorno aos envolvidos. As crianças, sugere o gestor que preside aquela reunião, não podem aparecer daquela forma, tristes e abatidas. É preciso “depoimentos otimistas, depoimentos emocionados”. A ironia na cena está exatamente no fato de que Bianchi decompõe o discurso das ONGs, transformando-o em um diálogo cujo objetivo central é a busca pelo retorno, a fim de que a instituição ali representada pelo personagem Dom Elísio possa continuar a receber tais investimentos. Aos poucos, as cenas do filme vão compondo o grande painel idealizado pelo diretor. Para tanto, a cena seguinte é fundamental. Marta Figueiredo, personagem vivida pela atriz Ariclê Perez, reúne crianças no alto de um morro, na periferia de São Paulo31. De forma bastante ágil, ela dá ordens para que os brinquedos sejam distribuídos e para que as crianças se juntem para uma foto. Há um nítido contraste aqui: as crianças estão resignadas e bestializadas 32 , sem entender muito bem o papel que cumprem ali. Mesmo assim, Marta Figueiredo parece à vontade e se localiza no centro da cena. Nesse momento, uma voz em over interpreta o significado daquela imagem que está sendo registrada: 31 Supõe-se que seja a periferia de São Paulo porque o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo” (2005) traz no seu registro imagético elementos da capital paulista; poderia, no entanto, ser qualquer grande capital brasileira. 32 Tomo emprestado o termo “bestializado” do livro do historiador José Murilo de Carvalho (1988), “Os Bestializados”, que, por sua vez, problematiza a expressão que teria sido usada pelo defensor do movimento republicano no Brasil, Aristides Lobo. Para Lobo, a população brasileira assistiu “bestializada” à proclamação da República, não tendo participação ativa nesse importante processo político em 15 de novembro de 1889. 75 LOCUÇÃO (VOZ OVER) Doar é um instrumento de poder. A superexposição de seres humanos em degradantes condições de vida... faz extravasar sentimentos e emoções. Sente-se nojo, espanto, piedade, carinho, felicidade... e, por fim, alívio. E ainda faz uma boa dieta na consciência. Com efeito, o que se tem nesse trecho não é apenas o contraste entre o o discurso e a imagem (a efetivação, portanto, da ironia do ponto de vista da realização audiovisual), mas, também, a demonstração de uma das teses de Sérgio Bianchi sobre o verdadeiro objetivo do voluntariado. Interessante observar que essa voz over se distancia das ouvidas anteriormente. Logo, existe essa preocupação em destacar outra voz para enunciar esta asserção sobre o mundo. A tese aqui é apresentada como revelação resultante dos fragmentos anteriores; nesse sentido, em vez de parecerem descolados, esses trechos se articulam porque concorrem para o mesmo objetivo, a saber: demonstrar o quão perverso pode ser a prática assistencialista. Do ponto de vista da imagem, esse discurso se articula na maneira que o realizador compõe a cena. Note-se que Marta Figueiredo ajusta as crianças para a foto a fim de que elas sirvam ao propósito de figurar como elementos de outra maquinação – numa cena que remete à passagem inicial de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Outro ponto interessante: quando a voz em off assinala que “doar faz uma boa dieta na consciência”, Marta Figueiredo dá um suspiro de alívio. Em seguida, Marta Figueiredo aparece em outra cena, agora na empresa de Marco Aurélio, a Stiner, onde é recepcionada pelo gestor que anuncia boas notícias das campanhas sociais. Marta Figueiredo, então, reafirma seu compromisso e seu engajamento para com a causa social. E nesse momento ela observa: 76 MARTA FIGUEIREDO: Uma vez por semana, eu acordo às 5 horas da manhã... pego meu motorista e recolho donativos para as crianças pobres. Sim, porque se os que têm fizessem um pouco pelos que não tem... Não é verdade? É interessante atentar para o fato de que nessa breve conversa existe um eco de uma fala que se tornou consenso por aqueles que advogam o auxílio aos mais desassistidos (“se os que têm fizessem um pouco pelos que não têm...”). E, com efeito, Marta Figueiredo não se sente incomodada com essa ação e parece realmente acreditar na sua ação de boa vontade; a concepção da cena por Bianchi, todavia, evidencia a perversidade subjacente nesse discurso – e isso desde o fato de o motorista de Marta Figueiredo se colocar atrás dela como um serviçal, carregando as doações até as expressões de Marco Aurélio, que ouve aquele discurso “politicamente correto” sem reagir à altura, ficando insensível à suposta profundidade daquelas declarações. Para ele, trata-se de mais uma encenação; o trâmite que realmente interessa é o que envolve a arrecadação de recursos ou a de conquistas de novos clientes. Marta Figueiredo é interessante para ele e para a Stiner não pelo que ela fala, mas, essencialmente, pela visibilidade que sua participação – enquanto esposa de um empresário rico e importante – traz à Stiner. Marta Figueiredo ainda aparece em outra cena do filme, desta vez lamentando a não-participação de seu marido, João Paulo (que é apenas citado no filme), nas iniciativas do voluntariado. Mais uma vez, seu discurso é ilustrativo acerca do que realmente significa, na lógica de Bianchi, o instrumento de doar, uma vez que ela afirma que a prática eleva o espírito. Nessa cena, a representante da ONG “Projeto Alegria”, personagem vivida pela atriz Joana Fomm, reitera as vantagens desse projeto, cujo objetivo é 77 oferecer aos doentes de câncer a oportunidade de realizar seu último desejo – hospedando-se em hotéis de luxo, com direitos a três refeições ao dia e a passeio33. O que chama a atenção nesta cena é o fato de, mais uma vez, os miseráveis, que são alvos dessa iniciativa, estarem visivelmente constrangidos, não sabendo sequer, como o filme indica, o momento ou a maneira como devem pegar nos talheres naquele restaurante tão sofisticado. Num local à parte daquele mesmo restaurante, um jornalista faz uma denúncia grave: o dinheiro que Marta Figueiredo utiliza para as ações do voluntariado, na verdade, têm como objetivo “lavar o dinheiro” e ainda servir para isenção fiscal. Porque se trata de um discurso engajado, surge aqui um resquício de embate ideológico à moda antiga na fala do amigo de Arminda, vivida por Ana Carbatti: “é a direita faturando em cima da permanência da miséria”. 3.3 O ressentimento como motor para o sucesso Marta Figueiredo é uma das personagens que pertencem a esse mosaico que se relaciona a partir do universo do voluntariado. Todavia, em que pese o espaço dado a ela até aqui, sua participação não é tão destacada assim na trama do filme. Pode-se mesmo afirmar que se trata de personagem secundária. Mais em evidência do que ela está Mônica (personagem de Cláudia Mello), mesmo nome da personagem de Machado de Assis no conto “Pai contra Mãe”34. Mônica vai aparecer no filme numa 33 Menciono essa cena em especial porque de fato existe uma ONG, a Make-A-Wish, cuja “missão é a de realizar os desejos de crianças que têm suas vidas ameaçadas por doenças graves”, conforme texto disponível no site da instituição - http://makeawish.org.br/quem-somos/missao/, acesso em 15 de novembro de 2012 . A despeito da semelhança entre as duas instituições, no roteiro oficial do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, não existe qualquer informação a respeito. 34 Como se verá adiante, Sérgio Bianchi utilizará os nomes dos personagens principais do conto em sua apropriação. Assim, tal como na narrativa de Machado de Assis, em “Quanto Vale ou É Por Quilo?” o espectador vê, além de Arminda e Mônica, Candinho e Clara. 78 cena em que as ações para o voluntariado estão acontecendo em alta madrugada na cidade de São Paulo. Ela é comandada por Noêmia, responsável por uma instituição cuja ação, empreendida naquele instante, é a de oferecer comida aos moradores de rua35. Na sequência da cena, Mônica avista Candinho, que será seu futuro genro. Candinho está trabalhando como catador de lixo, mas não demonstra tanta habilidade assim com a ocupação, pois, no momento em que o espectador o vê trabalhar, ele não consegue lançar um saco de lixo no caminhão sem que todos os dejetos caiam na rua, e o saco plástico fique em sua mão. A cena é ilustrativa e, em certa medida, resume o caráter e a personalidade de Candinho, em outra apropriação do conto de Machado de Assis36. Ao lado de Mônica, outra personagem chama a atenção desta para o fato de Candinho não dispor de recursos para poder sustentar a família, muito menos dar a festa de casamento. Mônica retruca, áspera, lembrando que a interlocutora era doméstica. Esta, por sua vez, diz que essa condição durará pouco tempo. Mônica, então, rebate a colega de trabalho voluntário de forma enfática: MÔNICA: Pois saiba que o Candinho é um cara muito do legal, viu? E vai ter festa, sim. E vai ser uma festa alegre e bonita. Nós vamos ser uma família alegre. Você vai ser convidada. E Dona Noêmia com os filhos. E nesse momento a cena dá lugar para outra cena, que se faz reparar já pelos letreiros que ganham a tela: “Vencendo com o social”. Logo após o aparecimento desse letreiro, uma locução (voz over) apresenta a 35 Nesta cena em particular, a personagem Noêmia disputa espaço com outros interessados em praticar o voluntariado. Ao ver que outro automóvel encosta próximo de onde sua equipe pretende fazer a distribuição de comida, ela rechaça a presença deles ali: “Ei, ei, ei, eu cheguei primeiro, esse pedaço é meu! Você quer fazer o favor de ir embora? Embora?!” Ainda que soe exagerado, a cena em questão guarda relação com dados do nosso tempo. Explica-se: reportagem publicada em setembro de 2010 pela “Revista São Paulo”, encartada no jornal Folha de S.Paulo, noticiava que existem ONGs em São Paulo que promovem concorridos processos de seleção e realizam, inclusive, treinamento para os interessados. 36 Em “Pai contra Mãe”, o narrador mostra que Candinho tinha um defeito grave: “não aguentava nem emprego, nem ofício, carecia de estabilidade; é o que ele chamava de caiporismo”. 79 personagem de Mônica em outro contexto. O trecho está reproduzido a seguir: LOCUÇÃO (VOZ OVER) Mônica Silveira, paulista, 47 anos... Vivia angustiada. Trabalhava em dois empregos e mesmo assim, ganhava pouco. Mas o drama de Mônica não era apenas o bolso vazio. Era a dignidade esvaziada. O estalo de consciência ocorreu... Quando a miséria gritante a encarou frente a frente. Nesse momento, percebeu a missão que teria de cumprir. E ela seguiu, patrocinada apenas por sua própria vontade. Mônica não desistiu. Tanto batalhou que conseguiu fundar sua própria associação. Hoje, graças ao seu trabalho...Muita gente que antes era desocupada... Agora tem razão para viver. Os desempregados abandonam o ócio em prol da comunidade. Mônica sempre ouviu dizer que a vingança... é um prato que se come frio. Mas com o trabalho na associação... Descobriu que o altruísmo é um prato muito mais saboroso. Enfim, Mônica conseguiu provar que com energia e coragem... Tudo é possível. Para Mônica, viver de solidariedade... é o maior aprendizado que a vida pode dar. Importante frisar que a referida passagem acima é acrescida de alguns depoimentos que Mônica concede olhando diretamente para a câmera, como se tratasse de uma reconstituição em formato de reportagem institucional. Além disso, o roteiro destaca que esse trecho é um tipo de sonho que Mônica tem acerca de seu próprio futuro, uma espécie de epifania ou visão do que está guardado para ela no futuro. Nesse cenário, ela aparece como uma empreendedora de sucesso, que venceu com o social, superando não somente a sua antiga patroa (Noêmia aparece nesse breve sonho concedendo um depoimento abonador a respeito de Mônica), como a excolega que aparece sendo uma das auxiliadas pela associação comandada por Mônica. Na cena em que essa ex-colega aparece, a voz do narrador enfatiza, após uma pausa grave: “Mônica sempre ouviu dizer que a vingança... é um prato que se come frio. Mas com o trabalho na associação... Descobriu que o altruísmo é um prato muito mais saboroso”. O sabor do prato em questão é a ex-colega sendo ajudada por Mônica a tomar sopa, 80 pois está com dificuldades motoras – talvez fruto de um derrame ou doença mais grave – e não consegue fazer nada sozinha. Entre os vários aspectos que poderiam ser comentados a respeito dessa cena, dois são elementares a propósito do efeito de sentido provocado pelo filme. De um lado, como o próprio texto da locução sugere, existe a ideia de ressentimento atrelada ao sonho de ascensão social de Mônica. Isto é, a personagem deseja, sim, melhorar de vida, mas acima de tudo anseia pelo dia de sua redenção, que significa, em termos claros a partir do sonho, em poder mostrar que também é capaz de subir na vida, exibir seu sucesso e servir de exemplo para os demais membros da comunidade. Em síntese, Mônica, como produto de um meio marcado pela imagem e pela sociedade do espetáculo, quer parecer-ter. A propósito disso, em livro memorável, porém pouco lembrado hoje em dia, o pensador Gilberto Dupas escreveu a respeito da ansiedade provocada por essa necessidade de status. Publicado em 2003 “Tensões Contemporâneas entre o Público e o Privado” reforça o papel da sociedade do espetáculo no imaginário da sociedade global. Mais recentemente, o escritor peruano Mario Vargas Llosa articula postulado semelhante, ao comentar a presença do entretenimento e de certa histeria em torno das celebridades no livro “La Civilización del espetáculo”, publicado ainda em 2010 – e sem tradução no Brasil. Nesse sentido, seus gestos, seu discurso e seu desejo de ascensão revelam o ressentimento inerente à sua condição, algo que efetivamente só pode ser extravasado por um sonho37. De outra parte, também é possível ressaltar o modo como o diretor 37 No material extra do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, a psicanalista Maria Rita Kehl, autora de um livro sobre o tema (“Ressentimento”, 2011), lança hipóteses para revelar o significado desse ressentimento. Segundo a autora, trata-se de uma reação à condição social percebida como imutável pelas classes subalternas, de modo que a única forma de superação passa a ser a exposição daqueles que estão aparentemente a salvo dessas condições precárias a um contexto de igual ou pior perversidade. Adiante, voltarei a esse depoimento, que ainda tem algo a dizer a respeito do filme. 81 estrutura essa epifania. Trata-se, nesse caso, de uma construção que atende a um objetivo específico deste filme. Assim, como que para dar espaço à imaginação fértil de Mônica para escapar de sua condição subalterna, o realizador desenvolve um filme protodocumental dentro de um filme de ficção. Para o espectador, é preciso salientar, esse trecho em que Mônica aparece como protagonista lembra muito as narrativas triunfalistas que destacavam as ações de empreendedores sociais, aos moldes do “Gente que faz”, que durante anos esteve em cartaz na TV Globo antes do “Jornal Nacional”, sempre aos sábados. Sobre essa troca de gêneros no meio do filme, João Luiz Vieira, estudioso da obra de Sérgio Bianchi, atenta para o fato de que o realizador mostra para o público como esses gêneros são, conforme palavras do pesquisador, “artificialmente divididos” (VIEIRA, 2010). Sendo assim, sustenta Luiz Vieira, é possível ver o filme como documentário e ver esse documentário como uma ficção. O pesquisador acrescenta, ademais, que nesta cena em especial é possível ver os personagens olhando para a câmera, reproduzindo a estética documental canônica, simbolizada, afinal, pela voz over masculina, a voz de Deus. Em seu comentário, João Luiz Vieira observa que o próprio cinema de Bianchi, nesse contexto, está sob a mira de sua crítica, uma vez que o autor decompõe a encenação, evidenciando as muitas formas do falso nesse protodocumentário. Já no roteiro oficial do filme, os autores assinalam a singularidade da cena a partir de sua explicação: A apresentação do personagem de Mônica é reforçada através de seu sonho de futuro, seu imaginário de ascensão social. É um dos trechos do filme que incorpora outras 82 linguagens para, através da paródia, criar distanciamento e despertar reflexão. No caso é a linguagem de um institucional na linha ‘Gente que Faz’. (BIANCHI et al., 2008, p.73) Ao mesclar gêneros e formas possíveis, destacando a epifania de personagens como manifestações audiovisuais consagradas (no caso, de documentários), Bianchi estabelece um formato sui generis que não somente demarca seu estilo, como também ajuda a reforçar sua tese sobre o tema retratado em seu filme. Essa mescla de formatos pode ser classificada como tempestade de gêneros e, com efeito, não aparece apenas uma vez neste filme de Sérgio Bianchi38. O elemento-chave aqui é que essa tempestade de gêneros não é um desdobramento da estética cinematográfica pós-moderna, como que uma piscadela do diretor para a suscetibilidade das formas na contemporaneidade. Serve, antes, ao propósito do autor para reafirmar seu ponto de vista e sua tese do ponto de vista audiovisual. E isso fica tão ou mais evidente no segmento histórico do filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. 3.4 Relatos do Arquivo Nacional Em paralelo à história sobre as ONGs, outra narrativa emerge em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Em verdade, uma definição possível para esse segmento do filme é a de um conjunto de relatos baseados em documentos oficiais extraídos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro 39. Tudo isso porque esse segmento não dispõe de uma história com desenvolvimento 38 A expressão “tempestade de gêneros” apareceu, pela primeira vez, em trabalho desenvolvido na exposição de um seminário para a disciplina Tendências das Formas nos Meios de Comunicação Contemporâneos, ministrada pela profa. Dra. Bernadette Lyra, no segundo semestre de 2011. Na ocasião, utilizei como referência essa mesma cena comentada aqui nesse trabalho. Em outubro de 2011, apresentei, no VII Encontro Científico da Universidade Anhembi Morumbi, um trabalho sobre essa ideia de “tempestade dos gêneros”. 39 Mas também esses documentos sofreram alguma adaptação, especialmente no tocante à sua extensão para que coubessem nos filmes. No roteiro oficial do filme, os textos originais estão disponíveis na íntegra. 83 contínuo ou linear. Aprofundando um modo de composição já esboçado no outro segmento do filme, nesse período histórico o espectador conhece algumas histórias da escravidão em relatos pormenorizados que davam conta, essencialmente, das negociações envolvendo escravos. Aqui, não há máscaras ou mistérios: o objetivo é demonstrar como se dava o lucro com esse tipo de comércio no século XVIII40. O dado curioso do ponto de vista da concepção desses trechos é o fato de que Bianchi, de certa maneira, amarra essas dois momentos do filme sem que haja conexão do enredo para tanto. Ou, por outra, o enredo em questão ganha fôlego graças ao fato de que a mesma atriz que atua como administradora de uma das associações filantrópicas (Noêmia) é a mesma que, no século XVIII, será mercadora de escravos. Sua atuação, no filme, conquista um lastro histórico, capaz de forjar no imaginário do espectador um paralelo entre as ações de mercador de escravos e de representante das Organizações Não-Governamentais. Importante: nos dois períodos, ambas as funções estão dentro da permissividade legal, ou seja, não há crime por essas atuações – são usos e costumes de cada época, escreveria Machado de Assis –, todavia, o cineasta organiza as encenações de modo a que elas tenham não somente conexão histórica, mas que essa combinação seja fundada na amoralidade dessas duas atuações. Em síntese, Noêmia e Lucrécia, ambas interpretadas pela atriz Ana Lúcia Torre, simbolizam a tese que o autor defende ao longo do filme – esse argumento será retomado na conclusão deste capítulo. Desse modo, esses breves relatos históricos funcionam não apenas como variações de estilo sobre o conto de Machado de Assis, uma vez que 40 Na apresentação do filme, disponível em um dos textos de divulgação da época de seu lançamento e na contracapa do DVD da coleção Sérgio Bianchi, o texto anuncia que o objetivo central dos senhores para com os escravos era um só: o lucro. 84 dão continuidade à abordagem do escritor brasileiro a propósito do tema da escravidão, mas dão conta de um olhar mais tenaz acerca desse fenômeno social, tentando ilustrar seus usos e costumes, assim como sua contradição com os ideias políticos propagandeados naquele tempo. A esse respeito, vale a pena citar a análise de um importante estudioso da obra de Machado de Assis, o crítico literário e ensaísta Roberto Schwarz, que assina uma das interpretações mais relevantes sobre o autor de “Pai contra Mãe”. Exemplos destacáveis dessa contribuição crítica à interpretação da literatura de Machado de Assis podem ser vistas em “Machado de Assis, um mestre na periferia do capitalismo” e “Ao vencedor, as batatas”. Na década de 1970, o ensaísta publicou na revista “Novos Estudos”, o texto “As ideias fora do lugar”, no qual desenvolve uma análise que enxerga a contradição gritante existente em meados do século XIX no Brasil, a saber: a mesma elite que defendia o discurso liberal – e, portanto, rechaçava a monarquia e a presença do Estado na vida econômica brasileira – silenciava quando o assunto era falar do trabalho livre. Esse texto de Schwarz abre um dos livros do autor sobre Machado de Assis, exatamente porque é com as obras do romancista brasileiro que o crítico ilustra sua tese acerca das contradições da sociedade brasileira do século XIX. Nesse sentido, já por esse motivo, seria um autor relevante para observar no tocante às relações do trabalho escravo na História do Brasil. Todavia, não é (apenas) por esse motivo que a obra de Schwarz merece olhar atento na análise de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. No roteiro oficial do filme, Newton Cannito menciona Schwarz como leitura essencial para a apropriação que seria feita da obra de Machado de Assis, como 85 consta no trecho a seguir: Achei importante entrar no universo intelectual do diretor. Compreender Machado de Assis era fundamental e para isso muito me ajudou a leitura de Roberto Schwarz. Também entender melhor a escravidão brasileira e a continuidade do apartheid no Brasil de hoje era fundamental. É esse o tema que unifica nosso filme: ver como a escravidão permanece até hoje e é imposta pela lógica da mercadoria e da reificação do homem. (BIANCHI et al., 2008, p.27.) Em outras palavras, os roteiristas tomam como base não apenas a obra de Machado de Assis, mas certa leitura da obra de Machado de Assis, exatamente aquela que analisa os mecanismos internos da escravidão, de maniera que isso se torna uma referência conceitual a ser desenvolvida ao longo de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. As pistas para a tese que seria construída acerca do filme estavam, a um só tempo, já elaboradas e também constavam como repertório oriundo de relevantes debates intelectuais. Com isso, nas cenas subsquentes desse segmento histórico, observase a reconstituição dos relatos dos documentos do Arquivo Nacional, sempre com narração em voz over, feita pela voz de Milton Gonçalves. Nessas reconstituições, há poucos diálogos e a encenação, do ponto de vista fílmico, pode ser considerada “conservadora”, sem qualquer elemento novo ou de vanguarda no tocante à sua feitura. Ainda assim, cumpre destacar o quanto o filme consegue aliar essas duas narrativas de modo que as histórias caminhem em paralelo concorrendo para o mesmo fim, ou melhor, funcionando em prol da tese a ser estabelecida pelo diretor, a de que ambas as práticas, a da escravidão no século XVIII e a da filantropia/voluntariado no século XXI, existem com o objetivo de auferir o lucro e, subjacente a isso, são maneiras de manutenção do status quo. 86 3.5 Entendendo a tese de Bianchi Para discorrer um pouco mais a esse respeito, vale a pena resgatar a cena em que a personagem Arminda conversa com o amigo jornalista, e este revela como se dá o funcionamento da ONG como “lavanderia de dinheiro” da empresa do marido, que é um rico empresário. Quase no final de sua explanação, o jornalista afirma que: É a direita faturando com a permanência da miséria. Alguns anos antes de o filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?” ser produzido, o diretor Sérgio Bianchi concedeu um depoimento importante que, como vimos, consta no livro “O Cinema da Retomada: Depoimentos de 90 cineastas dos anos 90”, de Lúcia Nagib, publicado em 2002. Nele, Bianchi comenta sobre seu perfil intelectual e, nas entrelinhas, deixa escapar a origem dessa crítica mordaz em relação à prática política (embora esteja falando objetivamente de cinema), como consta no trecho a seguir: Cada vez mais vejo as coisas como classe social mesmo. Vejo gente de esquerda tendo atitudes que seriam profundamente de direita. São classes sociais defendendo seus interesses. (...) São leis que levam a isso, que foram redigidas para liberar essa atitude. O negócio é montar uma estrutura e superfaturar seu filme. E daí vai-se aos diretores de marketing das empresas, às classes altas, e procura-se limpar, lavar o dinheiro dessas pessoas com dedução no imposto de renda. (NAGIB, 2002, p.116.) A partir desse depoimento, fica um tanto mais claro algumas escolhas temáticas por parte do autor, que tem como alvo certa visão condenscendente que a elite do País faz acerca dos pobres, algo que foi elaborado de forma bastante aguda em “Cronicamente Inviável”. Já em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Bianchi direciona sua crítica ao fato de que 87 essas ações ajudam, de um lado, a perpetuar as condicões de vida subalternas (os pobres e necessitados ajudados pelas ONGs jamais conseguem superar seu estado de pobreza; e a elite que presta esse serviço se encastela no poder de vez, como é o caso da personagem Noêmia, que, assim como Lucrécia enxergava a escravidão como negócio, vê o voluntariado como forma de expandir seus domínios e obter mais lucro). A construção dessa tese, no entanto, não estaria completa se não houvesse espaço para o desenvolvimento do núcleo da narrativa original de Machado de Assis, o núcleo que envolve Candinho, Clara, Mônica e Arminda. No segmento histórico da narrativa, esse núcleo é representado por Arminda, a escrava grávida que fugiu de seu senhor. A sua passagem se desenvolve durante a tentativa de fuga e captura pelo capitão do mato. No roteiro oficial do filme, os autores observam que a narração over que acompanha a cena tem, sim, o texto de Machado de Assis como base, porém com algumas adaptações. Nessa reconstituição, Arminda é capturada e perde o filho, enquanto o capitão do mato é gratificado pelo senhor de escravos pelo seus serviços. Na narrativa que se passa no século XXI, o capitão-do-mato se torna o matador de aluguel. Ele é o responsável por capturar aqueles que são marcados seja por incomodarem a comunidade local com seus roubos, seja por representarem um perigo à ordem das coisas vigente. Candinho, o mesmo que se mostrara inapto para o trabalho manual, agora sente a necessidade de sustentar a família que estava por aumentar41. Com efeito, sua participação no filme ganha fôlego à medida que ele assume esse papel 41 De fato, existe uma cena em que Mônica alerta Candinho para a necessidade de procurar um trabalho para sustentar o filho que está para nascer. A condição da família piorou depois que Mônica, ao contrário de sua epifania inicial, foi afastada da Associação liderada por Noêmia e agora precisa preparar comida para fora para manter a casa. O desfecho dessa tensão acontece quando Candinho assume a responsabilidade e se torna um matador de aluguel, garantindo o futuro da família. 88 de matador de aluguel e, ao contrário das demais ocupações, não parece hesitar na hora de matar. Candinho representa a versão menos tensionada de outro personagem do filme, Dido, interpretado pelo ator Lázaro Ramos. Dido vai aparecer, num primeiro momento, na cadeia, sendo visitado pela Tia Judite. Ali, ela se interessa em saber por suas condições de vida, sobre as quais ele desconversa, dizendo estar bem 42. O interessante a ser observado aqui é que Judite só consegue fazer visita ao presídio porque obtém autorização de seus patrões – e esta, a propósito, é uma das mais formidáveis passagens de ironia de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, uma vez que Ricardo pergunta a Marco Aurélio, de forma retórica e mordaz, se ele se incomoda em ver uma velha visivelmente debilitada trabalhar como servente para a Stiner. Mencionar a autorização é importante porque a relação entre a Stiner e Dido logo se tornará mais estreita. Isso porque ele planeja e executa o sequestro de Marco Aurélio, o gestor da Stiner. E a cena que mostra o planejamento sinaliza, desde o seu início, a concepção de um crime também como se fosse um negócio. Como observa Maria Rita Kehl, em sua análise sobre o filme, o personagem de Lázaro Ramos utiliza do mesmo discurso e léxico do ramo empresarial, e lida com a prática criminosa como se fosse efetivamente um empreendimento43. Assim, no filme, a preparação de um sequestro se transforma em uma reunião de negócios, com o seu principal artífice (Dido) agindo como se fosse um gestor. Na outra ponta do filme, os líderes de associações e de 42 Dido diz que está tudo bem, mas tia Judite o repreende. Ela, então, afirma que ele tem de cuidar de suas coisas. Esse pequeno diálogo, assim como a segunda cena em que Dido aparece, é retomado por Maria Rita Kehl, nos extras do DVD, como ilustração para análise do sentido do filme. 43 Maria Rita Kehl desenvolve essa análise no material Extra do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo?” 89 instituições que trabalham em nome da filantropia são pessoas que atuam como no mundo dos negócios. E na narrativa histórica os mercadores de escravos são retratados como negociantes. Na percepção de Sérgio Bianchi (tese que se consolida à medida que o filme avança), o interesse pelo lucro associa-se aos interesses de manutenção de poder, a despeito do que dizem os discursos – e aqui a referência à análise de Roberto Schwarz ajuda a enfatizar a percepção entre a disparidade entre a prática e o discurso. 3.6 Como se faz uma tese Sérgio Bianchi não é o único cineasta a desenvolver o que se pode chamar de cinema de tese. No caso do cinema norte-americano, por exemplo, é possível lembrar do diretor Oliver Stone. Entre seus filmes, marcados pela abordagem polêmica a temas sensíveis 44 , é possível mencionar “JFK: a pergunta que não quer calar” (“JFK”), de 1991; “Nixon” (“Nixon”), de 1995; e “Ao Sul da Fronteira” (“South of the border), de 2008. O que esses filmes têm em comum, para além de contarem com a assinatura do mesmo cineasta, é o fato de apresentarem retratos de lideranças políticas e lançarem um novo olhar para as administrações dessas lideranças, assim como para seus momentos mais controversos. Nesse sentido, chama a atenção o fato de que Oliver Stone não busca construir um retrato necessariamente histórico sobre esses políticos, baseados em documentos ou textos vários. Antes, o diretor trabalha com uma visão de mundo préestabelecida sobre esses líderes, de maneira que seus filmes tão-somente 44 Pouco antes do fim da administração de George W. Bush à frente da Casa Branca, ainda em 2008, Oliver Stone lançou o controverso “W”, filme que obteve pouca repercussão da crítica especializada e pouca aderência do público. Pode-se dizer que o fato de ter lançado o filme sobre Bush mostra sua disposição de produzir obras sobre temas espinhosos. 90 servem como manifestações dessas teses previamente já estabelecidas. O cineasta norte-americano, com isso, traz nesses filmes políticos uma concepção já acabada, ainda que essa visão soe como conspiratória ou, no mínimo, bastante controversa. É o caso de “JFK: a pergunta que não quer calar”, filme que apresenta um entendimento peculiar acerca das motivações que levaram a cabo a execução do presidente John F. Kennedy em 1963. À época do lançamento do filme, o crítico norte-americano Robert Hughes escreveu um ensaio45 no qual se insurgia contra o fato de a obra de Oliver Stone forjar tal consenso sobre aqueles acontecimentos históricos fazendo com que muitas pessoas passassem a citar o filme como referência acerca daquele acontecimento. Indiretamente, Hughes contestava a “verdade” apresentada por Stone nesse filme por considerá-la insuficiente como relato que efetivamente informa o público sobre o que realmente houve em 22 de novembro de 1963. Com outras palavras, o crítico atenta para o fato de o cineasta norteamericano condicionar os acontecimentos daquele dia à sua própria interpretação. Pode-se afirmar que isso não se dá apenas neste filme e, mais do que isso, o estratagema é semelhante nas outras obras de Oliver Stone citadas acima46. O cineasta utiliza todo seu repertório audiovisual para fazer valer sua tese a respeito desses temas. Guardadas as diferenças entre os cineastas, é possível afirmar que Sérgio Bianchi, em especial no filme “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, faz uso de estratégia semelhante com o propósito de fazer valer sua leitura acerca do 45 Publicado no Brasil em 1993, o ensaio fez parte da coletânea de textos “A Cultura da Reclamação” (HUGHES, 1993); Robert Hughes morreu em agosto de 2012. 46 A propósito dessa discussão, escrevi o artigo “Algumas teses à procura de um autor, ou: certo cinema de Oliver Stone” como trabalho de conclusão da disciplina Estética dos Meios Audiovisuais, ministrada pelo Prof. Doutor Luiz Vadico, no primeiro semestre de 2011. 91 fenômeno da emergência do voluntariado na contemporaneidade. Para tanto, não basta a intenção; o discurso cinematográfico a ser forjado embaralha formas e gêneros: o documentário e a ficção, aqui, se misturam, operando com o objetivo de levar ao espectador um discurso a um só tempo verossímil e convincente. Afinal, pode-se perguntar o espectador, onde é que termina a ficção e começa o documentário. Bianchi constroi sua tese a partir de uma percepção política desencantada, o que talvez não seja original, mas, como cineasta concebe uma obra que percorre um caminho singular, uma vez que articula dois gêneros no mesmo filme, gerando uma obra que, embora soe como fragmentada, possui uma unidade interna capaz de se autoexplicar, obedecendo a um princípio pré-estabelecido. Se, inicialmente, o filme se apresenta como uma obra livremente adaptada a partir de um conto de Machado de Assis, torna-se, ao fim, uma obra mais complexa, tendo em vista que articula uma visão peculiar a respeito da escravidão à interpretação a respeito da (verdadeira, segundo Bianchi) intenção do Terceiro Setor nos dias de hoje. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, seja nos momentos em que a narrativa se passa no século XVIII, seja nos momentos em que o filme se passa no século XXI, Sérgio Bianchi manobra os recursos à sua disposição para construir um filme que, desde o início, enuncia sua tese – e é a respeito de seu desenvolvimento que a narrativa gira em torno ao longo da sua exposição. Já no encerramento deste capítulo, vale a pena mencionar a cena final de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, em que o o destino de Candinho, o mesmo personagem que não era capaz de exercer outra atividade a não ser 92 a de matador de aluguel, é incumbido de ir atrás de Arminda, que agora faz denúncias contra o esquema feito pela Stiner. Na cena em que esse desfecho é sugerido, Ricardo é aconselhado por um colaborador a silenciar a voz que tenta denunciar os esquemas de superfaturamento da Stiner sob o escudo de auxiliar os mais pobres. Candinho aparece, ao fim, escondido, aguardando Arminda entrar em casa. Assim que isso acontece, ele invade o local e atira duas vezes. E a cena final mostra a redenção de Candinho, finalmente com dinheiro para sustentar a família 47 . Logo após essa comemoração, a imagem congela com uma foto e a voz over do narrador aparece, com os dizeres que ecoam o texto do conto de Machado de Assis: LOCUÇÃO (VOZ OVER) Como recompensa pela escrava fugida o capitão do mato pode agora criar seu filho. Alimentá-lo e educá-lo com dignidade e liberdade. Há, todavia, uma versão alternativa para o desfecho do filme – cena que consta no DVD e que também existia na versão para o cinema. O trecho traz o mesmo Candinho invadindo a casa de Arminda, com o objetivo de assassiná-la, até que ela o desafia e questiona o que ele deseja. O diálogo é ilustrativo dessa visão desencantada sobre o ambiente que serve como tema para o filme. De acordo com o roteiro oficial, a cena seria a seguinte: ARMINDA O que é que você quer? Grana? Por que se é grana, eu sei como conseguir. O dinheiro do Ricardo eu sei como conseguir. Eu posso conseguir os códigos das contas dele. A gente divide. Eu sei como pegar ou é só violência? Porque se é só violência, tudo bem também. Você mata, arrebenta a cara aquele filho da puta. Arranca uma orelha, arranca um dedo também. Candinho abaixa a arma, e Arminda prossegue: ARMINDA 47 Na continuidade dessa cena, enquanto Mônica celebra o dinheiro recebido por Candinho, Clara se regojiza e assevera: “Aí, sim, Candinho, agora, sim, você é o homem que eu queria!” 93 A gente pega o dinheiro do Ricardo e só pra começar monta uma central de sequestro, assim, tipo filme americano. Não é só pelo dinheiro, não. Não. A gente acaba com tudo que é filho da puta que rouba do Estado. O trecho em questão não guarda qualquer relação direta, a não ser pelo nome dos personagens, com o conto de Machado de Assis. Todavia, é justo estabelecer um diálogo possível entre esse desfecho e o encerramento de outro texto sobre violência, o conto “O Cobrador”, de Rubem Fonseca. Publicado em 1979, a obra de Fonseca guarda para o final um desfecho onde o ressentimento surge como espécie de alternativa ideal para os que têm sede de justiça e acusam o outro como culpado de suas mazelas. No caso de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, o fato de o autor conceber um final alternativo 48 mostra, de um lado, que a outra saída pode ser mais ainda desastrosa do ponto de vista social e, de outro, que a versão oficial corrobora a tese política – pessimista – do autor. Desse modo, o projeto cinematográfico de Sérgio Bianchi – por vezes fragmentado, mas esteticamente bem elaborado – se articula à visão de mundo proposta em seus filmes. A tese, assim, consegue sobressair exatamente porque o autor concilia esse argumento a um formato envolve seus filmes de maneira consistente. 48 No roteiro oficial, os autores informam que um terceiro final, ainda mais “irônico”, foi pensado, no qual os responsáveis pelas ONGs e associações eram premiados; Judite, a funcionaria da Stiner, aparecia sacando uma quantia de 500 mil reais em seu nome durante a passeata do Fórum Social Mundial; a socialite Marta Figueiredo aparecia sangrando, sob a mira de armas. De acordo com os autores, esse final não foi produzido por falta de recursos. 94 4. Considerações finais Quando, há dois anos, este trabalho começou a ser elaborado, ainda nos trâmites de um esboço de projeto de pesquisa, o objetivo era tão somente buscar interpretação que fosse coerente no tocante à crítica produzida pelo cinema de Sérgio Bianchi, enfrentando, especificamente, a obra “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. Havia, ali, o interesse genuíno em observar mais de perto a maneira como Bianchi estabelecia uma crítica à sociedade ao atacar o consenso poderoso das Organizações NãoGovernamentais, que, com o auxílio do governo, operavam em áreas que o Estado havia deixado de atuar. Naquele primeiro momento, portanto, meu objeto de pesquisa – a obra de Bianchi – servia apenas como um escape para o que me parecia a grande questão a ser tratada, a crítica social pelo viés que acusava os agentes do bem de atuar em benefício próprio, sem verdadeiramente se importar em melhorar as condições de vida daqueles necessitados. Na desesperança audiovisual de Sérgio Bianchi, eu observava uma crítica legítima ao status quo e ao establishment politicamente correto. Ao longo da pesquisa, no entanto, fui envolvido por outra discussão. Na verdade, à medida que pude pesquisar acerca da obra de Sérgio Bianchi, percebi que a questão que se apresentava como primeira – no caso, a crítica política – ficou em segundo plano, perdendo espaço para o discurso cinematográfico desse diretor. Pude, com isso, perceber o quanto os elementos centrais do filme de Bianchi já estavam, de certa maneira, ensaiados em suas outras obras – tanto do ponto de vista formal (da mistura dos vários fragmentos e alguma experimentação dos primeiros filmes à 95 estruturação mais consciente dos efeitos de sentido que o diretor pretendia causar, passando, amiúde, pelas adaptações, como em “A Causa Secreta” e “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, ambos os filmes livremente inspirados na obra de Machado de Assis) quanto do ponto de vista do conteúdo dos filmes (nesse caso, vale a pena mencionar que, em filmes como “Maldita Coincidência”, a indignação por vezes atinge o extremo de o personagem sugerir que a saída é o terrorismo49). Aos poucos, a questão da crítica social perdeu espaço, assim, para a ideia de um cinema de tese. Tal concepção ganhou força à medida que as leituras a propósito da obra de Bianchi foram sendo realizadas. As pesquisas citadas ao longo dessa dissertação contribuíram não somente porque serviram como referência de trabalhos já elaborados sobre o diretor, mas, essencialmente, porque efetivamente agregaram um entendimento mais complexo da obra de Bianchi50. Ao contrário do que imaginava incialmente, foi a partir da discussão desse discurso cinematográfico que se tornou possível entender a tese de Sérgio Bianchi. E aqui chegamos ao ponto-chave: o discurso cinematográfico de Sérgio Bianchi articula uma tese que serve como leitura às avessas do sentido de Brasil. Essa interpretação é possível porque o autor organiza “Quanto Vale ou É Por Quilo?” não com o propósito de buscar acomodação ou apaziguamento entre as diferentes classes sociais; em vez disso, retomando elementos ou mesmo tópicos desenvolvidos em outros filmes – como a crítica ao 49 Em “Maldita Coincidência”, o personagem interpretado por Sérgio Mamberti sugere uma espécie de solução final; assim, o personagem ensina a produzir coquetel molotov. 50 A propósito, vale a pena ressaltar, e lamentar, o fato de não ter conseguido acesso à dissertação de Cezar Migliorin, “Cronicamente Inviável, um cinema terrorista” (2001). Quando contatado, o autor do trabalho afirmou não contar com uma cópia eletrônica da dissertação, de maneira que ela só estava disponível, impressa, na UFRJ. Infelizmente, não foi possível realizar, em tempo hábil, a visita in loco à UFRJ para conseguir acesso ao texto. 96 assistencialismo, o discurso dominante da esquerda e a falta de sensibilidade e de solidariedade da elite para com as classes sociais mais baixas –, Bianchi investe num contraponto ao comentário pré-fabricado acerca dos problemas brasileiros. Seu alvo não se restringe apenas à classe média burguesa, à elite econômica e aos donos de poder. Em seus filmes, também as classes subalternas são golpeadas pelo seu “cinema-faca”, para utilizar a expressão de João Luiz Vieira (2004), uma vez que o cineasta disseca os instintos primitivos do ressentimento dessa classe subalterna, que muitas vezes se sujeita aos desmandos de uma elite sem consciência e aproveitadora para, quem sabe um dia, poder aproveitar das possibilidades de ela mesma pertencer a essa classe dominante. Bianchi observa os mecanismos internos dessas formas de dominação de maneira mais consistente nos filmes “Cronicamente Inviável” e em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”. É interessante observar o quanto do segundo já existe no primeiro: desde a fragmentação das histórias, acontecendo quase de maneira independente de uma história linear, com começo-meio-efim, até o uso acentuado do recurso da ironia. Sobre isso, em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, a ironia é parte integrante do discurso que critica as ONGs. Num cenário em que a premissa é a do auxílio ao próximo, na percepção de Bianchi os pobres servem como inocentes úteis, como mercadoria de troca possível para a manutenção da ordem política e, principalmente, da condição econômica daqueles que prometem auxiliá-los. Essa classe subalterna, por sua vez, tenta escapar a essa condição pelo uso da violência – e no filme isso fica claro pelo personagem de Lázaro Ramos, Dido, que planeja e executa um sequestro, utilizando a mesma linguagem de um empresário ao 97 prospectar um novo negócio. É aqui que a chave da ironia como instrumento de crítica ganha força, uma vez que, na percepção de Bianchi, existe equivalência entre o comércio de escravos, a ação do Terceiro Setor e, no limite, a ação criminal, cuja abordagem no filme é a do sequestrador e a do matador de aluguel. Em “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, Sérgio Bianchi não apenas corrobora sua tese num sofisticado mosaico de gêneros – ora remetendo ao documental, ora pendendo para a narrativa histórica, ora na encenação, ora na narrativa de bastidores de um filme publicitário 51 . Ao mesclar essas formas, em uma espécie de tempestade de gêneros, Bianchi concebe a tese, a um só tempo iconoclasta, crítica e distópica, sobre o Brasil. Uma interpretação que atinge a visão idílica e supostamente cordial da sociedade brasileira, contrastando com o discurso do senso comum sobre o clima de apaziguamento e de ausência de conflitos da população. Bianchi procura demonstrar, assim, que o “concerto do ressentimento”, conforme observou Ismail Xavier (2002) em artigo sobre “Cronicamente Inviável”, resultou numa sinfonia cujo final feliz não é possível, haja vista que os desfechos aparecem como alternativas que referendam esse futuro sem utopia, um não-lugar para as narrativas redentoras da modernidade. Nesse sentido, a pós-modernidade a princípio seria o esteio teórico fundamental da obra do diretor; todavia, para além dessa referência conceitual, existe a manifestação desse discurso cinematográfico. Em outras palavras, tão ou mais importante do que Sérgio Bianchi tem a dizer, interessa do ponto de 51 Vale a pena mencionar, aqui, o comentário de João Luiz Vieira, nos extras do DVD de “Quanto Vale ou É Por Quilo?”, quando o autor observa que Bianchi estabelece um tipo de filme que desmonta a própria encenação, quando apresenta os bastidores de uma filmagem. Esta cena em questão mostra uma espécie de sonho acordado da personagem de Mônica, interpretada por Cláudia Mello, que imagina o dia em que será rica e alcançará sucesso. 98 vista autoral a forma da qual ele se utiliza para enunciar seu discurso. E mais: tal discurso não teria a mesma contundência não fosse o recurso sistemático da ironia e a tempestade de gêneros utilizados pelo autor para manifestá-lo. Um cinema de tese, enfim, mas cuja mensagem se confunde com a forma: não há certezas no discurso do prodocumentário; desconfia-se dos reais motivos daqueles que agem em nome dos necessitados; o relato histórico mostra a perversidade da relação do comércio de escravos; num mundo em que o grande projeto é a busca pelo status, matador de aluguel e sequestrador se transformam em ocupações do seu tempo, assim como o capitão do mato era o ofício do período da escravidão. Os tempos são outros, e o que mudou foram os instrumentos de dominação. Disso trata o cinema de tese de Sérgio Bianchi. 99 5. Referências BAZIN, Andre. “O Cinema – Ensaios”. São Paulo: Brasiliense, 1991. BERNADET, Jean Claude. Maldita Coincidência/Eles não usam Black Tie. Em BIANCHI, Sérgio. “Maldita Coincidência”. São Paulo: Versátil, 2010. BIANCHI et. al. “Quanto Vale ou É Por Quilo? – roteiro do filme de Sérgio Bianchi”. São Paulo: Imesp, 2008. BORDWELL, David. 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