ORDEM DA OITIVA DAS TESTEMUNHAS NA PRIMEIRA FASE DO PROCEDIMENTO ESCALONADO DO TRIBUNAL DO JÚRI – DEVIDA OBSERVÂNCIA DO DISPOSTO NO ARTIGO 411, §8º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL Felipe Lamarão de Paula Soares 1.) JUSTIFICATIVA O dia-a-dia forense perante a Vara Privativa do 1º Tribunal do Júri do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba vem demonstrando que, no mais vezes, trata-se a fase do iudicium accusationis como se fosse ela idêntica à instrução do rito ordinário, sem se observar as diferenças previstas em lei, que decorrem da função desta primeira fase judicial. Não se recorda, geralmente, sua verdadeira função, qual seja, a de obter prova da materialidade e indícios suficiente da autoria para julgamento perante o Tribunal do Júri, no qual a instrução será novamente realizada. Em razão disso a primeira fase do rito escalonado acaba por demorar mais tempo do que deveria, com claro prejuízo a prestação jurisdicional, que tem sua efetividade diminuída. Dentro deste contexto insere-se a presente tese, tem como escopo tentar conferir a devida interpretação e aplicabilidade ao §8º, do artigo 411 do Código de Processo Penal, o qual, a par de sua alteração em 2008 (Lei nº 11.689/08), não vem recebendo o devido tratamento. 2.) EXPOSIÇÃO O artigo 411, §8º do Código de Processo Penal determina que: “Art. 411. Na audiência de instrução, proceder-se-á à tomada de declarações do ofendido, se possível, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, nesta ordem, bem como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado e procedendo-se o debate (...) § 8o A testemunha que comparecer será inquirida, independentemente da suspensão da audiência, observada em qualquer caso a ordem estabelecida no caput deste artigo.” Designada audiência de instrução e julgamento há intimação ou tentativa de intimação de ambas as partes. No dia designado comparecem as testemunhas que, nos termos do §8º, deveriam obrigatoriamente ser ouvidas. Não raro ocorre de alguma testemunha arrolada pelo Ministério Público não ser intimada ou, intimada, não comparecer para o ato. Nesta situação, geralmente, são ouvidas as testemunhas do Ministério Público que estejam presentes e, caso haja insistência pelo Promotor de Justiça para oitiva da testemunha não ouvida, o ato é suspenso e, ainda que as testemunhas arroladas pela defesa estejam no átrio do Forum, é designada nova data para oitiva da testemunha do Ministério Público e posterior oitiva das testemunhas de defesa. Tal ocorre porque compreende-se que a oitiva das testemunhas de defesa presentes, antes da oitiva de todas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público, levaria a inversão na colheita das provas, com prejuízo ao primado da ampla defesa. A oitiva das testemunhas de defesa nestas situações somente ocorre se houver a concordância dos nobres defensores, os quais, no mais das vezes, pelos mais variados motivos, não concordam com a oitiva. Ou seja, continua-se a aplicar a regra geral prevista nos procedimentos ordinário e sumário no rito especial do Tribunal do Júri. Ocorre que o §8º do artigo 411 do Código de Processo Penal determina a oitiva de todas as testemunhas que estiveram presentes, não havendo nesta forma de agir qualquer inversão na colheita da prova (já que ela é feita de acordo com o determinado em lei) e qualquer prejuízo à ampla defesa (lembre-se que se está diante do rito escalonado do Tribunal do Júri, em que a instrução será novamente realizada em plenário, quando aí sim, necessariamente, as testemunhas de defesa somente poderão ser ouvidas após a oitiva de todas as testemunhas arroladas pelo Ministério Público). Apontar-se-á, então, as razões que permitem que as testemunhas de defesa presentes sejam imediatamente ouvidas, a par de ainda haverem testemunhas de acusação não ouvidas. A tese, em verdade, não é inédita. Acreditamos, porém, poder contribuir com argumentos diferentes que levam a mesma conclusão. 2.1) DA INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL O mencionado §8º, já transcrito, é claro quanto a oitiva imediata das testemunhas presentes, diferenciando-se neste aspecto da regra geral prevista no artigo 400 do Código de Processo Penal. Desnecessário dizer que havendo regra especial em procedimento diferenciado deve ela prevalecer sobre a regra geral, o que, inclusive, é determinado no artigo 394, §§2º e 3º do Código de Processo Penal. Segundo a regra em análise, quando da realização da audiência de instrução e julgamento a testemunha que comparecer será inquirida. Ou seja, há regra cogente, há um mandamento (exteriorizado pelo tempo verbal adotado pelo legislador: “será inquirida”) que determina que estando presente a testemunha, deverá o Juiz ouvi-la. Como se tal expressão não fosse suficiente, deixando clara sua intenção e como que prevendo que interpretações equívocas pudessem ser realizadas, o legislador ainda acrescentou à oração “independentemente da suspensão da audiência”, após a regra cogente. Claro, assim, que mesmo nos casos em que seja necessária a suspensão da audiência as testemunhas presentes deverão ser ouvidas. Ao final, o §8º explicita que será observada a ordem do caput1 quando da oitiva das testemunhas, sendo que esta parte final é geralmente utilizada para não se proceder a oitiva das testemunhas de defesa. Esta parte final é que mais corriqueiramente leva ao equívoco hermenêutico, sendo que este entendimento leva em consideração apenas a última oração contida no parágrafo oitavo, olvidando das duas orações anteriores e, mais grave, olvidando que a última oração é mero complemento das orações anteriores, as quais configuram o mandamento principal da norma legal. Em verdade, tem-se desta interpretação gramatical que toda e qualquer testemunha que estiver presente para o ato sempre será ouvida. Caso estejam presentes testemunhas de acusação e de defesa, aquelas serão ouvidas antes destas, a quais serão sim ouvidas, mesmo que ausente alguma testemunha de acusação cuja oitiva seja insistida pelo Ministério Público e se faça necessária a suspensão do feito2. Caso estejam presentes apenas testemunhas arroladas pela defesa estas serão ouvidas, ainda que designada data posterior para oitiva das testemunhas arroladas pela acusação. Neste sentido, vide os seguintes ensinamentos de Andrey Borges de i Mendonça : “Em razão da unidade da audiência, uma questão prática deve ser enfrentada, pois acontecerá com grande frequência, a partir da entrada em vigor da nova legislação. Se estiverem presentes as testemunhas de acusação e de defesa, exceto uma testemunha arrolada pela acusação, deverá o magistrado, em princípio, determinar a condução coercitiva da testemunha de acusação faltante. Encontrada e conduzida ‘sob vara’, deve ser ouvida antes das testemunhas de defesa. Caso, porém, não seja possível a condução imediata da testemunha – como, em regra, não o é, especialmente nas grandes metrópoles , entendemos possível ao magistrado ouvir todas as testemunhas presentes – primeiro as de acusação e depois as de defesa – na mesma data. Posteriormente, deve-se ouvir a testemunha de acusação faltante”. No mesmo sentido é o entendimento de Luiz Flávio Gomesii: “Já o § 8º do art. 411 afirma que a testemunha que comparecer será ouvida, obedecida a ordem do caput do mesmo artigo. Essa ordem impõe que, primeiro, sejam ouvidas testemunhas de acusação e, depois, de defesa. Trata-se, assim, de dispositivo aparentemente inútil, pois é óbvio que a testemunha, comparecendo, deva ser ouvida, sem que haja qualquer motivo para o adiamento da audiência. O que se depreende dele é o seguinte: a ausência de uma testemunha de acusação não impedirá a oitiva de todas as testemunhas de defesa presentes. Essa é uma novidade, porque o dispositivo admite a inversão das provas. Se considerarmos que as testemunhas não são da acusação ou da defesa, sim, do processo e, de outro lado, a vigência do princípio da comunhão das provas, parece evidente a necessidade de uma releitura de tudo quanto já vimos e ouvimos antes (nesse tema de inversão de provas). O absurdo maior é uma pessoa estar presente na audiência e não ser ouvida. É isso que o novo dispositivo legal quer evitar. Os presentes, todos, serão ouvidos 1 2 Oitiva das testemunhas de defesa após a oitiva das testemunhas de acusação. Este o verdadeiro sentido. sempre (observando-se a ordem legal: as arroladas pela acusação em primeiro lugar; as arroladas pela defesa depois).” (grifos nossos) Ao assim proceder-se estar-se-á, apenas, conferindo aplicabilidade ao texto de lei, mediante a única interpretação possível a ele. Entendimento diverso importaria simplesmente ignorar o §8º do artigo 411, afrontando-se regra elementar de hermenêutica de que a lei não contem palavras inúteis. 2.2) DA INTERPRETAÇÃO TELOLÓGICA Mas não apenas a interpretação gramatical leva ao entendimento ora externado. Interpretação teleológica do mencionado parágrafo leva (não por acaso) a mesma conclusão. A lei que inseriu o parágrafo 8º (já indicada) alterou profundamente o rito referente aos processos que tramitam perante o Tribunal do Júri. Atendendo anseio popular, o principal mote desta lei foi conferir maior celeridade aos feitos, sem, evidentemente, descuidar-se dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Tal ficou bastante evidenciado no parecer do relator do projeto de Lei nº 4.203/01, o qual deu origem a Lei nº 11.689/08, deputado Flávio Dino, quando da análise das emendas sugeridas ao então projeto: “(...) O Projeto de Lei nº 4.203, de 2001, versa sobre importantes modificações no Código de Processo Penal, com o objetivo de tornar o processo no Tribunal do Júri mais célere e mais eficaz. Vale mencionar que este projeto foi inserido no ‘Pacto de Estado em Favor de um Judiciário mais Rápido e Republicano”, firmado pelos Chefes dos Três Poderes em 12 de dezembro de 2004. Com o Pacto, foram enviados ao Congresso 23 projetos de lei destinados a simplificar a tramitação dos processos civil, penal e trabalhista, aos quais se juntaram outros três projetos previamente enviados pelo Executivo, dentre os quais essa proposição. (...) As alterações que o Projeto de Lei nº 4.203/01 introduz na legislação processual penal atendem a quatro principais objetivos: celeridade, eficiência, simplicidade e segurança ao processo penal. Passamos a apontar, em linhas gerais, as principais inovações trazidas pelo projeto, com as alterações propostas no presente substitutivo. Na primeira fase do procedimento do Júri, todos os atos são concentrados em uma única audiência, diferentemente do sistema atual, em que há diferentes audiências para o interrogatório do acusado e para ouvir as testemunhas da acusação e da defesa. (...). O projeto dispõe, expressamente, que nenhum ato será adiado, salvo quando imprescindível à prova. (...) Em resumo, as inovações consistem na simplificação do procedimento, concentração dos atos e coibição de medidas procrastinatórias, o que implicará em um significativo encurtamento do tempo do processo. (...)” Seguindo este norte principal o legislador determinou que haveria apenas uma audiência de instrução e julgamento, salvo casos excepcionais (artigo 411, §§ 2º e 7º). Com base nesta vontade do legislador, deve o Juízo sempre buscar encerrar a instrução processual com o menor número possível de audiências e de forma sempre mais célere. Ao não se proceder a oitiva das testemunhas de defesa que estejam presentes, contraria-se a vontade da lei, pois segue em sentido oposto. A vingar o entendimento ora combatido, a instrução deveria ser realizada sempre com várias audiências, tal como ocorria antes da Lei nº 11.689/08, em que deveria haver no mínimo três audiências (uma para interrogar o acusado, outra para oitiva das testemunhas de acusação e mais uma para oitiva das testemunhas arroladas pela defesa). Ter-se-ia, assim, a curiosa situação em que uma lei reformaria o rito processual, mas a nova lei seria inócua, pois, em razão de interpretação da legislação, continuaríamos a adotar o rito antigo. Por óbvio, que tal forma de proceder não pode prosperar. Quanto a este tópico, socorremo-nos novamente da lições de Andrey Borges Mendonça, na obra já citada: “(...) Na hipótese mencionada, caso não se admita a oitiva das testemunhas de defesa, haverá cisão com tamanha frequência das audiências que a reforma praticamente não trará nenhum fruto prático, especialmente no tocante à economia processual e à oralidade. Imagine dispensar todas as testemunhas de defesa que já se encontram presentes, apenas porque uma de acusação não compareceu. Além de ser um desrespeito às testemunhas que compareceram, entendemos que haveria um desperdício enorme dos escassos recursos existentes, a par de contribuir para delongas desnecessárias do processo. Ademais, os magistrados, caso tenham que adiar todas as audiências em que estiver ausente qualquer testemunhas de acusação, passarão a sempre cindi-las, marcando uma para as testemunhas de acusação e outra para as defesa, em face do simples risco de ausência de uma testemunha de acusação. Em síntese, retroceder-se-ia à sistemática anterior.” Há que se atentar, também, que a não oitiva das testemunhas de defesa presentes no átrio do Forum leva ao desprestígio da Justiça, algo que o Poder Judiciário deve zelar para que não haja. As testemunhas de defesa são intimadas para comparecerem perante o Fórum do Tribunal do Júri local. Deixam seus afazeres, faltam aos seus trabalhos3, dirigem-se ao Fórum (às suas próprias expensas), permanecem horas no átrio do Fórum aguardando sua vez de serem inquiridas e então o servidor do cartório, sem maiores explicações (ou com explicação de cunho processual, pouco inteligível a leigos), diz que naquela data elas não serão ouvidas, mas já estão intimadas a retornarem ao Fórum em determinada data, quando então o périplo recomeçará. 3 Em que pesem as determinações legais, não há como negar que nem todos os empregadores são compreensíveis com a falta do empregado. Não é difícil imaginar a indignação de tais pessoas perante esta situação. Não é difícil concluir que para tais testemunhas parecerá que o Poder Judiciário pouco se importa com as dificuldades delas e que se trata de instituição arrogante e encastelada em seus próprios interesses. Acrescente-se que há casos em que não é possível ao Magistrado designar nova data para oitiva das testemunhas já naquele momento, de forma que as testemunhas de defesa deverão ser novamente intimadas pelos Senhores Oficiais de Justiça, ocasionando novos custos à administração e trazendo lentidão aos feitos, posto que os meirinhos poderiam estar cumprindo outros mandados ao invés de estarem intimando pessoas que estavam, alguns dias antes, à poucos metros da sala de audiência e prontos para serem inquiridos. Nada disso precisaria acontecer com a simples aplicação correta do §8º analisado. 2.3) DA INTERPRETAÇÃO SISTÊMICA Interpretação sistêmica do Código de Processo Penal também demonstra que da aplicação ora defendida do §8º não decorre qualquer prejuízo à defesa. Neste aspecto, a primeira e mais importante observação a ser feita, por mais óbvia que seja, e que não se está diante do procedimento ordinário regulado nos artigos 394 e seguintes do Código de Processo Penal. Aqui se está diante do procedimento especial e dúplice do Tribunal do Júri. As testemunhas poderão ser novamente inquiridas pelas partes, caso assim o desejem, perante o Conselho de Sentença, quando então as testemunhas de defesa serão ouvidas por último e qualquer esclarecimento poderá ser feito. Se assim o é e se os Juízes leigos são os verdadeiros Juízes da causa, pergunta-se de onde advirá o prejuízo à defesa com a correta aplicação do §8º. Talvez exatamente por este motivo é que o §8º foi redigido da forma atual. Lembre-se que o “prejuízo” para defesa somente poderá haver se houver decisão de pronúncia. Se esta ocorrer a situação será aclarada perante o Tribunal do Júri. Se esta decisão não ocorrer, não há que se falar em prejuízo palpável para a defesa, posto que seus argumentos foram acatados pelo Magistrado e houve decisão de absolvição, de impronúncia ou de desclassificação. Desta forma a ordem na oitiva das testemunhas não terá causado qualquer prejuízo para defesa, muito pelo contrário. A segunda observação a ser feita é quanto a regra contida nos parágrafos do artigo 222 do Código de Processo Penal. Segundo tais regras, não há qualquer vedação em que uma testemunha de defesa que será inquirida através de carta precatória seja ouvida antes de uma testemunha arrolada pela acusação, já que a expedição da carta precatória “não suspenderá a instrução criminal” (§1º). Realizando interpretação sistêmica, conclui-se que a Lei Adjetiva penal não veda, de forma total e absoluta, que as testemunhas de defesa sejam ouvidas antes do que as testemunhas arroladas pelo Ministério Público. Antes autoriza e permite que tal ocorra. Interessante observar, também, que o §1º do artigo 222, para demonstrar que a instrução deverá ser realizada independente da ordem da oitiva das testemunhas, vale-se de semelhante expressão (“não suspenderá”) que é usada no §8º do artigo 411 (“da suspensão da audiência”), indicando que mesma interpretação deve ser dada a ambos os mandamentos. Além do artigo 222, há ainda os artigos 156, inciso I e 536, ambos do Código de Processo Penal, que permitem o mesmo raciocínio. 2.4) DO PRINCÍPIO DA COMUNHÃO DAS PROVAS A interpretação sistêmica deve ser temperada com os princípios aplicáveis ao processo penal, em especial ao princípio da comunhão das provas, o qual bem demonstra que na realidade se está aqui diante de uma falsa problemática. Segundo tal princípio as provas não são do Ministério Público ou da defesa. As provas formam um conjunto único e indivisível e uma vez no processo são do Juízo. A aplicabilidade de tal princípio do processo penal brasileiro é reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal: “(...) Cabe assinalar, neste ponto, um outro aspecto relevante do tema ora em análise, considerados os diversos elementos probatórios já produzidos nos autos da persecução penal e, portanto, a estes já formalmente incorporados. Refiro-me ao postulado da comunhão da prova, cuja eficácia projeta-se e incide sobre todos os dados informativos, que, concernentes à informatio delicti, compõem o acervo probatório coligido pelas autoridades e agentes estatais. Esse postulado assume inegável importância no plano das garantias de ordem jurídica reconhecidas ao investigado e ao réu, pois, como se sabe, o princípio da comunhão (ou da aquisição) da prova assegura, ao que sofre persecução penal - ainda que submetida esta ao regime de sigilo -, o direito de conhecer os elementos de informação já existentes nos autos e cujo teor possa ser, eventualmente, de seu interesse, quer para efeito de exercício da auto-defesa, quer para desempenho da defesa técnica. É que a prova penal, uma vez regularmente introduzida no procedimento persecutório, não pertence a ninguém, mas integra os autos do respectivo inquérito ou processo, constituindo, desse modo, acervo plenamente acessível, a todos quantos sofram, em referido procedimento sigiloso, atos de persecução penal por parte do Estado. Essa compreensão do tema - cabe ressaltar - é revelada por autorizado magistério doutrinário (Adalberto José Q. T. de Camargo Aranha, Da prova no processo penal, 3. ed., São Paulo: Saraiva, 1994, item 3, p. 31; Daniel Amorim Assumpção Neves, O princípio de comunhão da prova, Revista Dialética de Direito Processual (RDPP), vol. 31/19-33, 2005; Fernando Capez, Curso de processo penal, 7. ed., São Paulo: Saraiva, 2001, item 17.7, p. 259; Marcellus Polastri Lima, A prova penal, 2. ed., Lumen Juris, 2003, item 2, p. 31, v.g.), valendo referir, por extremamente relevante, a lição expendida por José Carlos Barbosa Moreira (O juiz e a prova, RePro, n. 35, ano IX, p. 178-184, abr.-jun.-1984): ‘E basta pensar no seguinte: se a prova for feita, pouco importa á sua origem. (...). A prova do fato não aumenta nem diminui de valor segundo haja sido trazida por aquele a quem cabia o ônus, ou pelo adversário. A isso se chama o 'princípio da comunhão da prova: a prova, depois de feita, é comum, não pertence a quem a faz, pertence ao processo; pouco importa sua fonte, pouco importa sua proveniência. (...)’ (grifei). Cumpre rememorar, ainda, ante a sua inteira pertinência, o magistério de Paulo Rangel ( Direito processual penal, 8. ed., Lumen Juris, 2004, item 7.5.1, p. 411-412): ‘A palavra comunhão vem do latim communione, que significa ato ou efeito de comungar, participação em comum em crenças, ideias ou interesses. Referindo-se à prova, portanto, quer-se dizer que a mesma, uma vez no processo, pertence a todos os sujeitos processuais (partes e juiz), não obstante ter sido levada apenas por um deles. (...). O princípio da comunhão da prova é um consectário lógico dos princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico processual, pois as partes, a fim de estabelecer a verdade histórica nos autos do processo, não abrem mão do meio de prova levado para os autos. (...) Por conclusão, os princípios da verdade real e da igualdade das partes na relação jurídico-processual fazem com que as provas carreadas para os autos pertençam a todos os sujeitos processuais, ou seja, dão origem ao princípio da comunhão da prova’ (grifei)”. (STF - HC 89.837 - 2.ª Turma j. 20/10/2009 - v.u. - rel. José Celso de Mello Filho - DJe 20/11/2009) No mesmo sentido é o entendimento do já multi-citado doutrinador: “(...) Não bastasse, cumpre relembrar que a testemunha, embora arrolada por uma das partes, busca esclarecer a verdade, contribuindo para que o juiz alcance a verdade dos fatos. Justamente neste sentido é o princípio é o princípio da comunhão da prova (a prova, depois de produzida, é do processo, e não desta ou daquela parte). Se a testemunha deve dizer a verdade, independentemente de quem a arrolou ou de quais foram as provas já produzidas nos autos, não vislumbramos prejuízo presumido na sua oitiva neste ou naquela ordem. É verdade que, em determinadas situações, a prova será produzida para contrariar o quanto foi dito pela outra testemunha. Mas isto é a exceção, especialmente porque a atual audiência de instrução é uma e as testemunhas devem ficar incomunicáveis durante as oitivas, não podendo ter contato com o que foi dito pela outra testemunha (art. 210 do CPP). (...) “ Portanto, face tal princípio, a ordem da produção das provas terá menor importância pois todas elas são, em última instância, do Juízo. Claro, assim, que sob qualquer ponto de vista que se olhe a questão houve interpretação errônea do parágrafo oitavo em questão. 3.) CONCLUSÃO Urge passar a aplicar corretamente o §8º do artigo 411 do Código de Processo Penal, não havendo qualquer razão para que a testemunha presente no átrio do Forum não seja ouvida, ainda que posteriormente sejam ouvidas outras testemunhas arroladas pela acusação. Disto não decorrerá qualquer prejuízo à defesa. Compete ao Ministério Público como dominus litis e como fiscal da lei, buscar conferir a devida celeridade aos feitos criminais e a devida interpretação legislativa. Felipe Lamarão de Paula Soares i MENDONÇA, Andrey Borges, “Nova Reforma do Código de Processo Penal – comentada artigo por artigo”, 2ªedição. São Paulo: Editora Método, 2009. ii GOMES, Luiz Flávio. Comentários às reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito: novo procedimento do Júri (Lei 11.689/08). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 57