Capı́tulo 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica No final do século XIX, como discutido no capı́tulo anterior, havia um enorme otimismo com relação à Fı́sica, devido aos desenvolvimentos tecnológicos provenientes da mesma. Havia, no entanto, três questões ainda não resolvidas, embora alguns cientistas acreditassem que resolvê-las seria uma mera questão de acertar detalhes. Lord Kelvin era um desses cientistas, por exemplo. A primeira questão relacionava-se a compreender a propagação da luz. A propagação do som e de outras ondas conhecidas se dá através de um meio material. No entanto era difı́cil explicar como o calor do Sol podia chegar à Terra, atravessando um espaço vazio. A hipótese vigente era que esse espaço era preenchido por um meio, ainda não detectado, a que se dava o nome de éter. A transmissão de calor é feita por ondas eletromagnéticas. Como vimos no capı́tulo passado, acerca da experiência de Thomson, era possı́vel produzir excelente vácuo em laboratório. Mas era igualmente possı́vel fazer a luz atravessar o vácuo dentro desse tubo. Os cientistas acreditavam que ali, na porção evacuada do tubo, ainda restava o éter, por onde a luz se propagava. Esse “pequeno” problema não era apenas um detalhe. Sua solução viria revolucionar as noções vigentes de espaço e tempo, pois daria origem à relatividade e à questão de unificar a Mecânica e a Eletrodinâmica. O segundo “detalhe” referia-se à descrição teórica da radiação emitida por corpos aquecidos, em particular, o radiador “ideal”, chamado de corpo negro. A solução desse problema deu origem à Fı́sica Quântica. E o terceiro referia23 24 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica se ao calor especı́fico dos sólidos a baixas temperaturas. A teoria cinética prevê uma constante. No entanto, a natureza mostra outra coisa. A temperaturas baixas o calor especı́fico dos sólidos vai a zero! Faz-se necessário, neste ponto, um esclarecimento sobre dois conceitos muito importantes, devido a acontecimentos históricos anteriores, que estavam bastante arraigados ao dia-a-dia das pessoas na época. O primeiro deles, o Determinismo. Como afirmado por Laplace, em 1814, “todos os eventos, mesmo aqueles que por serem muito pequenos parecem desconectados das leis da natureza, são na verdade uma seqüência tão necessária como as revoluções do sol. Devemos olhar o estágio presente do universo como efeito de seu estágio anterior e como causa daquele que seguirá.” Suas palavras expressavam o fato de que o movimento de todos os corpos do universo eram pré-determinados, isto é, eram regidos por leis determinı́sticas. Na época áurea da Mecânica Newtoniana, a concepção mecanicista levava a crer na possibilidade de que todos os fenômenos naturais (fı́sicos ou não) podiam ser previstos pelo esquema determinı́stico da Mecânica Newtoniana. O outro conceito é o de Causalidade. Na Antiguidade, a palavra causa possuı́a um significado bem mais geral do que hoje. Referindo-se a Aristóteles, por exemplo, a “Escolástica” falava de quatro formas de “causa”: “causa formalis”, que hoje em dia chamarı́amos de conteúdo formal de uma coisa; a “causa material”, a matéria da qual a coisa é feita; a “causa final”, que é o objetivo de uma coisa; e “causa efficiens”, que é o significado mais parecido com o que temos hoje. Feita essa breve digressão, voltemos, então, aos eventos que levaram ao surgimento da Fı́sica Quântica. 2.1 2.1.1 Radiação de um corpo negro Definição de um corpo negro As primeiras pistas sobre a natureza da radiação vieram do estudo da radiação térmica emitida por corpos opacos. Quando a radiação incide sobre um corpo opaco, parte dela é refletida e o restante é absorvido. Corpos que são coloridos refletem a maior parte da radiação visı́vel, ao passo que corpos escuros absorvem a maior parte dessa radiação. O processo de absorção ocorre da seguinte maneira: a radiação absorvida aumenta a energia cinética dos átomos constituintes do corpo, os quais oscilam em torno de suas posições de equilı́brio. Lembrando que a energia cinética média dos átomos determina 2.1 Radiação de um corpo negro 25 a temperatura média do corpo, absorver radiação aumenta a temperatura do corpo. Entretanto, os átomos contêm elétrons que são oscilados por essa radiação. Conseqüentemente, como previsto pela teoria eletromagnética, os átomos emitem radiação eletromagnética, o que reduz a energia cinética das oscilações e tende a reduzir a temperatura. Quando a taxa de absorção for igua à taxa de emissão, a temperatura fica constante e dizemos que o corpo está em equilı́brio térmico com o seu ambiente. Portanto, um bom absorvedor é também um bom emissor de radiação. A radiação eletromagnética emitida nestas circunstâncias é chamada radiação térmica. A temperaturas usuais, a radiação térmica emitida por um corpo não é visı́vel e a maior parte da radiação está concentrada em comprimentos de onda muito maiores do que aqueles correspondentes à luz visı́vel. Quando o corpo é aquecido, a quantidade de radiação térmica aumenta e a energia emitida, em sua maior parte, será em comprimentos de onda cada vez menores. Em torno de 600-700◦C, há energia suficiente no espectro visı́vel, tal que o corpo brilha. Um dos pioneiros a estudar o problema da emissão térmica foi o fı́sico alemão Gustav R. Kirchhoff (1824-1887), que se interessava pela emissão térmica do Sol e de outros corpos quentes. Kirchhoff descobriu que: o poder de absorção e o poder de emissão dos corpos são diretamente proporcionais. Kirchhoff então imaginou um corpo ideal e que absorvesse 100% da radiação incidente. Esse corpo, para ter tal poder de absorção, deveria ser negro. Mas pela proporcionalidade deveria também emitir 100%. Assim, introduziu a definição de Corpo Negro, como todo corpo capaz de absorver toda radiação nele incidente para cada freqüência, bem como emitir toda radiação térmica que produz. 2.1.2 Primeiras experiências Como conseguir um corpo negro na prática? Foi o próprio Kirchhoff que sugeriu que, para estudar a emissão térmica de um corpo negro ideal, poderiase usar uma cavidade com um pequeno orifı́cio, por onde a radiação externa entrasse, e, depois, ficasse “presa”, pois era pouco provável que a radiação escapasse pelo pequeno orifı́cio sem ter sofrido absorção (ver Fig. 8). Outro fato experimental importante, descoberto por ele, em 1859, foi o seguinte: a emissão da radiação é a mesma para vários corpos em equilı́brio 26 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica FIGURA 8 - Cavidade com orifı́cio para estudo da emissão térmica. térmico, independentemente do material constituinte, da massa, do volume, forma etc; depende apenas da temperatura do corpo. Em 1865, John Tyndall (1820-1893) fez experimentos com fios de platina aquecidos e descobriu que a emissão a 1200◦ C era 11,7 vezes maior do que a emissão a 525◦ C. Josef Stefan (1835-1893), analisando apenas este experimento e os únicos dois dados, percebeu que essa relação era a mesma que a quarta potência da razão entre as duas temperaturas (em Kelvin), isto é, 4 = 11, 7, a mesma proporção 1200◦ C = 1473 K e 525◦ C = 798 K, então, 1473 798 por ele observada relativa à emissão. Com base apenas nesse experimento e por achar a coincidência extremamente significativa, concluiu que a emissão de qualquer corpo é proporcional a T 4 . Em 1884, Ludwig Boltzmann (1844-1906), aluno de Stefan, usando argumentos termodinâmicos, demonstrou que a radiância, ou poder emissivo de um corpo, definida como a potência irradiada por unidade de área, é dada pela equação R = εσT 4 , (Lei de Stefan-Boltzmann) (2.1) onde σ = 5, 67 × 10−8 W/m2 K4 , e ε é uma caracterı́stica de cada corpo, chamada emissividade. Para um radiador ideal (corpo negro), ε = 1, mas para outras superfı́cies de objetos comuns, a emissividade é sempre menor do que a unidade e quase sempre uma função da temperatura. Exemplo 2.1 : Estime a potência irradiada, à temperatura ambiente, por um objeto cuja superfı́cie é 1 m 2 . Pela definição de radiância, temos que a potência irradiada é P = R · A = σT 4 A, onde A é área do objeto e consideramos a emissividade igual a 1. Logo, 27 2.1 Radiação de um corpo negro temos P = 5, 67 × 10−8 W/m2 K4 (297 K)4 1 m2 = 441W. A próxima descoberta importante foi a determinação experimental de como o tipo de radiação se altera com a temperatura. A radiação térmica pode ser separada em faixas de freqüências (ou comprimentos de onda). Assim, foi obtida a chamada curva espectral , isto é, um gráfico relacionando a intensidade da radiação com o comprimento de onda da mesma para temperaturas fixas. Em 1894, o fı́sico alemão Wilhelm Wien (1864-1928) fez uma demonstração teórica extremamente elegante, na qual prova que, se soubermos a forma da curva espectral da radiação térmica a uma dada temperatura, podemos encontrar as curvas para qualquer outra temperatura. Segundo Wien, é verificado empiricamente também que, 1. o máximo do gráfico depende da temperatura da cavidade; 2. as curvas obtidas têm sempre a mesma forma, independentemente do material que constitui a cavidade. 70 2200 K dR/dλ (W/cm2 · µm) 60 50 2000 K 40 30 1800 K 20 1600 K 10 0 0.0 1.0 2.0 3.0 4.0 5.0 λ (µm) FIGURA 9 - Curvas espectrais para a radiação de uma cavidade a diferentes temperaturas. Note que à medida que a temperatura aumenta, o comprimento de onda correspondente ao máximo da radiância se desloca para os valores menores. 28 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica Verificou-se que λmax T = 2898 µm·K. (Lei do deslocamento de Wien) (2.2) A Lei de Stefan-Boltzmann nos mostra que a quantidade de radiação emitida por um corpo aumenta muito rapidamente à medida que a temperatura se eleva. Verifica-se também que o tipo de radiação se altera: a temperaturas até às proximidades de 1000 K, a maior parte das radiações emitidas são invisı́veis; quando a temperatura atinge cerca de 2000 K, a radiação já é visı́vel, e a tonalidade da emissão é avermelhada; perto dos 3000 K (temperatura de um filamento incandescente), a cor é amarelada; a 5500 K (temperatura da superfı́cie do Sol), o corpo emite luz com tonalidade do branco intenso; e acima de 104 K (temperatura de algumas estrelas muito quentes), a cor do corpo emissor torna-se azulada. Exemplo 2.2 : Fazendo-se a luz do Sol passar por um prisma e medindo a intensidade da energia para diversas freqüências, obtemos uma curva espectral. O pico da curva corresponde à freqüência de 5, 6 × 1014 Hz. Qual deve ser a temperatura da superfı́cie do Sol? Usando a expressão (2.2), temos que λmax T = 2898 µm·K νmax 2898 µm·K = 2898 µm·K T = λmax c T = 5.500 K. Exemplo 2.3 : A taxa na qual a energia que vem do Sol atinge uma unidade de área na superfı́cie da Terra é chamada de constante solar e vale S = 1350 W/m2 . Sabendo-se que a distância Terra-Sol é D = 1, 50×1011 m e que o raio do Sol é RS = 6, 96×108 m, determine a temperatura na superfı́cie do Sol. A potência total produzida pelo Sol, ou luminosidade solar L S , é calculada a partir da constante solar e da distância Terra-Sol: LS = 4πD 2 S = 3, 83 × 1026 W. Se fizermos a hipótese muito simples de que o Sol é um radiador térmico ideal, então podemos usar a lei de Stefan-Boltzmann para calcular a temperatura na superfı́cie do Sol. A potência total por unidade de área, R, irradiada pelo Sol é a luminosidade dividida pela área da superfı́cie do Sol: LS D 2 R= = 6, 27 × 107 W/m2 . =S RS 4πRS2 2.1 Radiação de um corpo negro 29 Por fim, usando a Lei de Stefan-Boltzmann, obtemos 1/4 R ≈ 5800 K. T = σ Como essa energia é irradiada a partir da superfı́cie do Sol, a temperatura estimada acima é a temperatura da superfı́cie do Sol – a temperatura no seu interior é muito maior. A radiação que atinge a Terra vem de aproximadamente um intervalo de 500 km da superfı́cie solar. Nessa região, a temperatura varia de 4300 K a 6600 K. A figura 10 mostra o espectro solar medido sobre a estratosfera e ao nı́vel do mar. Nela, podemos ver que o espectro solar se assemelha muito ao espectro de um corpo negro a 5900 K. A radiação que atinge a superfı́cie da Terra não tem um espectro liso devido à absorção na atmosfera terrestre, especialmente por moléculas de água – a água é especialmente eficaz na absorção da radiação solar exceto na região do visı́vel. O espectro solar tem um máximo de potência irradiada para um comprimento de onda em torno de 500 nm, que fica na região do visı́vel. Isto significa, na verdade, que os nossos olhos se adaptaram a esse comprimento de onda no curso de nossa evolução, para obter a máxima eficiência de visão diurna. 2.1.3 Descrição clássica Vamos considerar uma cavidade com um pequeno orifı́cio como aquela imagina por Kirchoff. Quando a radiação atinge um equilı́brio térmico, então o campo eletromagnético dentro da cavidade não varia e a radiância por unidade de freqüência, dR/dν, independe da direção dos raios de luz. O campo de radiação torna-se isotrópico e independente da forma da cavidade ou do material das paredes. Se isto não fosse verdade, poderı́amos violar a segunda da lei da termodinâmica! Imagine que introduzimos um pequeno disco na cavidade, à mesma temperatura que as paredes da cavidade. Este disco aqueceria se o plano do disco fosse colocado perpendicularmente à direção na qual dR/dν for maior. Também podemos concluir, baseados apenas na segunda lei da Termodinâmica, que o campo de radiação é independente das coordenadas espaciais. Se não fosse esse o caso, pequenos objetos colocados em pontos diferentes da cavidade se termalizariam a temperaturas diferentes. Novamente, isto contradiz a segunda lei da Termodinâmica. Suponhamos, então, um corpo negro mergulhado numa fonte à temperatura T . Como é o processo de absorção e emissão da radiação pela matéria das 30 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica FIGURA 10 - Espectro solar – Fonte: Ciência Hoje. 2.1 Radiação de um corpo negro 31 paredes da cavidade? Vamos supor que os átomos que constituem o material sejam osciladores harmônicos carregados. A radiação eletromagnética estacionária está em equilı́brio com esses osciladores que, uma vez atingidos por uma onda eletromagnética, vão receber energia da mesma e oscilar na mesma freqüência. O processo de emissão ocorre de forma semelhante. Sabemos que toda carga acelerada irradia e, portanto, essa energia será devolvida ao campo. Vamos, então, calcular a potência irradiada a uma dada freqüência pelo corpo negro. Dentro do contexto de nosso modelo, essa potência deve ser proporcional ao número de ondas ou osciladores com essa freqüência. Como as dimensões da cavidade são muito maiores do que os comprimentos de onda envolvidos, as freqüências harmônicas no seu interior estão muito próximas e podemos supor que haja um contı́nuo de freqüências. O número de ondas possı́veis num intervalo de freqüência ν e ν + dν é proporcional ao volume de uma camada esférica 4πν 2 dν. Teremos, portanto, que o número de osciladores com uma freqüência entre ν e ν + dν é n(ν)dν ∼ ν 2 dν . (2.3) Pelo princı́pio de equipartição, por sua vez, a energia média de cada onda é kB T – kB é constante de Boltzmann e T a temperatura absoluta – e, portanto, independente da freqüência (depende apenas da amplitude da onda, asim como a energia de um oscilador harmônico 1 ). Assim, a radiância a uma certa freqüência é proporcional ao produto do número de ondas vezes a energia de cada onda, isto é, dR dν ∝ kB T ν 2 dν . dν (2.4) Em termos de comprimento de onda, temos kB T dR dλ ∝ 4 dλ , dλ λ (2.5) onde usamos que λν = c. 1 Considere um oscilador harmônico clássico. Sua coordenada será dada por x(t) = A cos(ωt + δ) e, por conseguinte, seu momento, por p(t) = mẋ(t) = −mωA sin(ωt + δ). A energia será, então E= 1 1 1 p2 + kx2 = mω 2 A2 sin2 (ωt + δ) + kA2 cos2 (ωt + δ) . 2m 2 2 2 p Mas ω = k/m, e portanto E = A2 . Este resultado também é válido para energia das ondas eletromagnéticas clássicas. 32 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica Esse espectro, descrito em termos de freqüências por dR/dν ou em termos de comprimentos de onda por dR/dλ, corresponde à lei de Rayleigh-Jeans, e concorda perfeitamente com toda a teoria do eletromagnetismo e termodinâmica, tendo sido deduzida usando apenas argumentos muito gerais de ambas. Aqui aparece a “pequena dificuldade” mencionada por ilustres fı́sicos no final do século XIX: quando λ → 0, a radiância (e portanto a energia do corpo negro) diverge, vai para o infinito. Esta é a famosa “catástrofe do ultravioleta”. Experimentalmente, a energia é finita, e portanto, chegamos a um absurdo. A Fı́sica é uma ciência empı́rica por definição e, então, chega-se a um ponto onde uma das duas (ou talvez ambas!) teorias mais consagradas até então tem de ser profundamente alterada. 2.1.4 Planck e a quantização da energia Max Planck (1858-1947), em 1900, descobriu matematicamente como evitar essa catástrofe. Ao contrário de Einstein, Plack era um fı́sico muito conservador (até para a época!) e buscou, de um ponto de vista puramente formal, quais seriam as modificações necessárias à teoria vigente para conseguir acordo com a experiência. Vimos que, classicamente, para uma dada freqüência ν, a energia das ondas estacionárias (ou dos osciladores) variava de modo contı́nuo e dependia apenas da intensidade da onda (ou da amplitude dos osciladores). Planck notou imediatamente que era necessário encontrar um mecanismo para reduzir a contribuição de freqüências elevadas (comprimentos de onda pequenos) e, assim, evitar a “catástrofe do ultravioleta”. A proposta de Planck, então, foi que a energia de osciladores no mundo microscópico tinha que ser proporcional à freqüência, = hν , (2.6) onde h é uma constante, o que faria diminuir o peso das grandes freqüências pelo seguinte motivo. Um dos argumentos que usamos para deduzir a expressão (2.5) foi que cada freqüência deveria contribuir com uma energia média kB T . Vamos mergulhar um pouco mais profundamente neste resultado. Como ele é obtido? Da termodinâmica, temos que a probabilidade de encontrar algum sistema com energia , estando este último em equilı́brio com um ambiente à tem- 33 2.1 Radiação de um corpo negro peratura T é2 P () = R e−/kB T e−/kB T = . kB T e−/kB T d (2.7) A dedução da Equação de Boltzmann pode ser encontrada em qualquer bom livro de Termodinâmica3 e seu conteúdo fı́sico é o seguinte: energias de configurações do sistema de muitas partı́culas que são pequenas comparadas com kB T são favorecidas e aquelas muito maiores do que kB T são suprimidas, pois a energia média dessa distribuição é kB T , hi = R∞ 0 e−/kB T d = kB T , kB T (2.8) que foi precisamente o resultado usado na dedução da radiância por unidade de freqüência. Planck notou também, imediatamente, que se a energia média for medida por uma integral (i.e., energias contı́nuas) nada seria modificado. Para suprimir as freqüências altas, ele supôs, então, que, para uma dada freqüência, a variação da energia seria feita em saltos diretamente proporcionais à freqüência, = nhν , n ∈ N, (2.9) onde h é a famosa constante de Planck, obtida pelo ajuste de sua expressão final aos dados experimentais (h = 6, 63 × 10−34 J · s). Quais as conseqüências dessa hipótese para o valor médio da energia? O peso estatı́stico relativo a uma configuração de osciladores seria proporcional a P () ∼ e−nhν/kB T , (2.10) suprimindo assim, automaticamente, as freqüências altas. O raciocı́nio seguido por Planck foi, então, o seguinte: no caso clássico devemos considerar uma infinidade de osciladores excitados. No modelo de Planck há cada vez menos osciladores excitados a considerar à medida que cresce a freqüência. Isto faz diminuir a energia média dos osciladores e elimina a divergência, como veremos. 2 A dedução da Lei de Boltzmann encontra-se no Ap. A, e a dedução clássica rigorosa no Ap. B. 3 Por exemplo: Herbert B. Callen, Termodynamics and an introduction to thermostatistics, New York:John Willey, 1985 34 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica Discussão sobre as conseqüências desse resultado 1. Note que para deduzir a expressão (B.20) apenas usamos resultados completamente gerais do eletromagnetismo e da termodinâmica: a equação de onda, conseqüência direta das equações de Maxwell, e a consideração geral de que a energia média emitida ou irradiada é kB T , resultado geral da termodinâmica. Esse fato faz que qualquer discrepância entre a observação e a teoria se torne grave e não seja um mero detalhe de modelos especı́ficos, até porque, como vimos na seção anterior, os resultados experimentais também apontam na direção de um fenômeno universal, independente de aspectos especı́ficos do material, forma do corpo etc. 2. Sobre a discrepância conhecida como “catástrofe do ultravioleta” (veja a figura 11) note que, a partir de comprimentos de onda da ordem do visı́vel, a diferença entre os dados experimentais e a predição teórica aumenta radicalmente. Além disso, a teoria prevê uma energia total (área sob a curva ou integral de dR/dλ sobre todo o espectro) infinita! Sabemos que isto não é verdade, e, portanto, existe algo errado no modelo que fizemos, que é completamente geral e compatı́vel com Fı́sica Clássica. O quê? Ajustes empı́ricos à forma das curvas experimentais mostram que estas, para comprimentos de onda pequenos, se comportam da seguinte forma: dR a e−b/λT = , dλ λ5 (Fórmula empı́rica de Wien) (2.11) em que a e b são constantes. A figura 11 mostra uma comparação entre os dados experimentais obtidos e a fórmula clássica de Rayleigh-Jeans e a equação empı́rica de Wien. Vemos que na região de comprimentos de onda pequenos – menores que o visı́vel –, a fórmula de Wien ajusta-se perfeitamente aos dados, enquanto a de RayleighJeans diverge radicalmente da experiência, levando inclusive à previsão de uma quantidade infinita de energia dentro da cavidade, obtida por integração em λ (área sob o gráfico). Esta é a chamada catástrofe do ultravioleta. No entanto, podemos observar no quadro menor que, para comprimentos de onda maiores, a fórmula de Rayleigh-Jeans se ajusta melhor aos dados experimentais do que a equação de Wien. A situação antes de Planck, então, era a seguinte: a Fı́sica clássica dá uma excelente descrição da radiação para grandes comprimentos de onda; existia 35 2.1 Radiação de um corpo negro 45 dR/dλ (W/cm2 µm) 40 T = 2000K 35 30 25 20 15 10 5 00 2.0 4.0 λ (µm) 6.0 8.0 10 FIGURA 11 - Comparação entre os dados experimentais (pontos) e os ajustes feitos pela fórmula empı́rica de Wien (linha cheia) e a de Rayleigh-Jeans (linha pontilhada). O quadro em destaque mostra uma ampliação da curva no limite de grandes comprimentos de onda, onde notamos a validade da fórmula de Rayleigh-Jeans. 36 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica uma fórmula empı́rica (sem respaldo teórico) para os comprimentos de onda pequenos; mas não havia uma descrição completa da curva – por falta de Fı́sica. O cálculo de Planck Vamos reproduzir o cálculo de Planck. Para isso, alteramos a hipótese de Boltzmann, supondo, então, que a função de distribuição para os osciladores seja discreta pn = C e−n /kB T = C e−nhc/λkB T , (2.12) com n inteiro não negativo. A energia média é hi = ∞ X p n n n=0 ∞ X = ∞ X (nhc/λ) e−nhc/λkB T n=0 pn n=0 ∞ X . (2.13) e−nhc/λkB T n=0 Façamos a seguinte transformação de variáveis x≡ hc λkB T e y ≡ e−x . Então, o denominador da expressão acima pode ser facilmente calculado: ∞ X e−nhc/λkB T = n=0 ∞ X e−nx = 1 + y + y 2 + · · · = n=0 1 . 1−y (2.14) Para calcular o numerador, note que d −nx e = −n e−nx , dx e assim, o numerador pode ser escrito como ∞ X nhc n=0 λ ∞ e −nhc/λkB T hc d X −nx hc d =− e =− λ dx n=0 λ dx # " hc e−x = 2 . λ 1 − e−x 1 1 − e−x (2.15) Combinando os resultados obtidos para o numerador e denominador, obtemos finalmente hc 1 hi = . (2.16) λ ehc/λkB T −1 37 2.1 Radiação de um corpo negro Então, a potência irradiada por área e comprimento de onda pode ser obtida pela fórmula de Rayleigh-Jeans (vide Eq. (B.20) do Ap. B), introduzindo a expressão nova de Planck para a energia média: 2πhc2 dR = 5 hc/λk T . B dλ λ (e −1) (2.17) Esta é a fórmula descoberta por Planck. Ela contém o resultado clássico no limite de grandes comprimentos de onda. Nesse limite (hc/λ kB T ), podemos expandir a exponencial da forma ehc/λkB T ≈ 1 + hc , λkB T e obtemos, da fórmula de Planck, dR 2πc = 4 kB T, dλ λ que é simplesmente a fórmula de Rayleigh-Jeans. Já para pequenos comprimentos de onda, a exponencial domina o denominador, e podemos fazer a aproximação ehc/λkB T −1 ≈ ehc/λkB T , com o que obteremos 2πhc2 −hc/λkB T dR = e . (2.18) dλ λ5 Se compararmos com a expressão empı́rica obtida por Wien, obtemos um valor para a constante h, que ficou conhecida como constante de Planck: b= hc k ⇒ h = 6, 63 × 10−34 J·s = 4, 14 × 10−15 eV·s. (2.19) Em termos de freqüência, a fórmula de Planck se escreve como dR dR dλ =− . (2.20) dν dλ dν (O sinal negativo é apenas para que a integração seja feita de 0 a ∞, como para dR/dλ.) Lembrando que λ = c/ν, temos dR 2πhc2 c = 5 hν/k T B dν (c/ν) (e −1) ν 2 2π hν 3 = 2 hν/k T . B c e −1 (2.21) 38 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica A fórmula obtida por Planck, portanto, interpola com sucesso entre a distribuição de Rayleigh-Jeans – que funciona para comprimentos de onda grandes – e a expressão empı́rica de Wien – adequada para comprimentos de onda pequenos. Podemos também, a partir das equações (2.17) e (2.21), obter as leis de Stefan-Boltzmann (Eq. (2.1)) e do deslocamento de Wien (Eq. (2.2)), como segue. Primeiramente, integrando (2.21), temos a radiância total dada por Z ∞ Z dR ν3 2πh ∞ R= dν = 2 dν. dν c ehν/kB T −1 0 0 Fazendo a substituição x = hν/kB T , e usando o resultado conhecido para a integral Z ∞ x3 π4 dx = , ex −1 15 0 temos Z 2π 5 k 4 T 4 2πk 4 T 4 ∞ x3 dx = R= h3 c 2 ex −1 15h3 c2 0 ≡ σT 4 , onde σ = (2π 5 k 4 )/(15h3 c2 ) = 5, 67 × 10−8 W/m2 K4 . Para encontrar o máximo da curva de radiação, devemos derivar (2.17) em relação a λ e igualar a zero. Fazendo isso, encontramos 2πhc2 hc ehc/λkB T 5 − + 2 = 0. λ5 (ehc/λkB T −1) λ λ kB T ehc/λkB T −1 Temos duas soluções triviais correspondendo a λ = 0, ∞. A solução não trivial corresponde ao termo entre parênteses igual a zero. Fazendo novamente a substituição x = hc/λkB T , encontramos x ex =5 ex −1 ou (5 − x) ex = 5, que é uma equação transcendental. A solução numérica para essa equação é x0 = 4, 965. Daı́ encontramos que λmáx T = hc = 2898 µm·K . x0 k Chamamos a atenção neste ponto que o máximo da curva dR/dλ corresponde a uma freqüência (ou comprimento de onda) diferente daquele correspondente ao máximo da curva dR/dν. Isso se deve ao fato de λ e ν não serem diretamente proporcionais (veja exercı́cio 2.5). 2.1 Radiação de um corpo negro 39 Como conseqüência importante desse desenvolvimento, lembremos que a expressão extremamente precisa obtida por Planck foi deduzida a partir de uma hipótese que não cabe dentro da teoria clássica, isto é, uma relação entre energia e freqüência. Exemplo 2.4 : Calcule a proporção de energia emitida por um corpo negro a T = 2.000K em duas faixas de largura 100 Å, uma centrada em 5.000Å (visı́vel) e a outra em 50.000Å. Sejam λ1 = 5.000Å, λ2 = 50.000Å e ∆λ = 50Å. Então, queremos calcular , Z λ1 +∆λ Z dE 1 1 λ2 +∆λ dE ∆Eλ2 dλ dλ = W = ∆Eλ1 V λ2 −∆λ dλ V λ1 −∆λ dλ , dE dE ' dλ λ=λ2 dλ λ=λ1 Como dR/dλ é proporcional a dE/dλ a menos de constantes, temos que λ5 (ehc/λ1 kB T −1) dR/dλ|λ=λ2 = 15 hc/λ k T = 5.66 . W = 2 B dR/dλ|λ=λ1 λ2 (e −1) 2.1.5 Radiação de corpo negro cósmica Recentemente, a radiação de corpo negro ganhou importância especial. No final dos anos 1940, George Gamow (seguido por R. Alpher e H. Bethe) investigou algumas conseqüências do modelo “Big-Bang” da criação do Universo. Uma dessas conseqüências foi que a radiação remanescente da intensa radiação inicial deveria estar presente até hoje na forma de radiação de corpo negro. Cálculos prevendo tal campo de radiação numa temperatura de 25 K se mostraram inadequados. Até 1964, não havia sido feita nenhuma tentativa para medir essa radiação. Então, A. A. Penzia e R. W. Wilson descobriram um ruı́do térmico forte usando um detector rádio-astronômico, e a partir daı́ cresceu o interesse nessas medidas. Um grupo liderado por R. H. Dicke efetuou essas medidas e percebeu imediatamente o significado do ruı́do térmico: corresponde à radiação de corpo negro proveniente de uma temperatura de 2, 65 ± 0, 09 K. Essas medidas não têm nada de simples, devido a outros sinais que se superpõem a este. Em 1945, Dicke teve a idéia de construir um receptor de rádio que oscilava entre o céu e um banho de hélio lı́quido 100 vezes por segundo. O sinal do receptor é assim filtrado – apenas sinais que variem com a freqüência de 100 Hz 40 2 Fenômenos que deram origem à mecânica quântica placa de metal Luz ultravioleta FIGURA 12 - Eletroscópio de folhas sendo carregado via interação com a luz. são medidos. Eles representam a diferença entre a radiação proveniente do espaço e do hélio lı́quido. A componente atmosférica da radiação pode ser separada variando a posição do aparelho de medida. A verificação experimental da radiação à temperatura prevista pelos cálculos de Dicke e colaboradores é hoje um dos argumento mais fortes a favor da teoria do Big-Bang. 2.2 Efeito fotoelétrico Ao final do século XIX já se conhecia o fenômeno de que alguns eletroscópios podiam ser descarregados quando iluminados por luz, especialmente luz ultravioleta. No entanto, não havia explicação clássica para o fenômeno, denominado efeito fotoelétrico – da mesma forma, um eletroscópio poderia ser carregado quanto iluminado por luz ultravioleta (veja Fig. 12). Quando Heinrich Hertz (1857-1894) conseguiu gerar e captar ondas eletromagnéticas previstas por Maxwell, ele percebeu que o aparecimento de faı́scas no transmissor aumentava a sensibilidade do detector. Hertz verificou que uma descarga entre dois eletrodos ocorre mais facilmente quando se faz incidir