COCANHA & SWISS PARK: A UTOPIA COMO UMA PROPOSTA DE CONVENCIMENTO. DIEGO CARVALHO DE OLIVEIRA (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS UNICAMP). Resumo O trabalho tem, como intuito, discorrer acerca da ressurgência/permanência no imaginário humano de alguns anseios que perpassam épocas e que, ao nos depararmos com as construções imagéticas contemporâneas, percebemos que estão presentes no ser humano as inquietações e imaginações de outros tempos e lugares. Consideramos, então, que permanece a vontade do homem de divagar acerca do amanhã, buscá–lo e torná–lo possível, ainda que impossível de ser construído em efetividade: a utopia. Em torno dessa discussão, tomamos como base de nosso argumento Cocanha, que vem a ser um país imaginário onde a abundância, em todos os sentidos, torna–se realidade. Vimos que as vontades e pressões de uma época são representadas de diversas formas, principalmente na forma do impossível narrativo e que vem a confortar aqueles a que a realidade presente é insuportável. Diante disso e, principalmente, das alegorias lançadas pela propaganda imobiliária contemporânea, escolhemos um lugar que se faz em narrativa para se fazer vender. Esse lugar, foco de nossos estudos, denomina–se Swiss Park Campinas, um condomínio fechado que, para se fazer melhor e mais rentável, criou em suas imagens propagandísticas um u–topos. São essas questões que fazem parte do trabalho construído, nos revelando a ressurgência de Cocanha no homem contemporâneo e da utilização de uma linguagem em direção ao futuro para tocar os homens de hoje: simples consumidores. Palavras-chave: Utopia, Educação Visual, Geografia. Introdução Um lugar, criado por volta do século XII, XIII, outro no século XXI. Um utiliza-se de imagens narradas através da oralidade e das letras, outro através da fotografia entremeada a slogans escritos e textos impressos, das imagens em televisão, de outdoors, panfletos, site, enfim, toda a gama narrativa de massa em que possuímos hoje. Um utiliza-se de imagens que dentro de uma narrativa racional o torna irreal, o outro real. Porém ambos tem o mesmo destino e papel: fazer-se interessante e desejável a qualquer indivíduo que o (re)conheça em suas mais diversas formas de narrativas. Falamos, pois, do país imaginário da Cocanha, em que a característica da abundância e da realização do indivíduo em seu deleite aproxima-se, ao nosso ver, das narrativas propagandísticas do chamado complexo urbanístico Swiss Park Campinas, que vem a ser o lugar da abundância às ditas carências contemporâneas, tal como Cocanha satisf(e)az as carências de seu espaço/tempo. Nos preocupamos, neste artigo, em analisar as formas narrativas, as imagens narradas e as narrações das imagens, bem como auferir ao pensamento utópico a intrínseca capacidade de guiar o homem na construção de espaços, seja nas mais diversas formas em que possamos nos utilizar da palavra construção. Temos, como intuito, abrir à discussão questões que nos são colocadas quando observamos lugares criados, imaginados, narrados em suas mais diversas temporalidades e origens, quer seja no que chamamos hoje de Idade Média, quer seja na chamada Idade Contemporânea (épocas em que se “situam” esses dois lugares estudados). Porém, torna-se lugar comum falar que cada época, impelida pelas suas possibilidades técnicas, tem sua maneira própria de narrar os lugares – de criá-los –, utilizando-se, através de diversas formas, meios imagéticos que tornam aquele lugar narrado vivo para o espectador que o ouve/lê/vê. Forças colocadas por argumentos, ora alegóricos, ora concretos fazem com que, em determinado tempo/lugar, as narrativas tornem-se atraentes e, por que não assim dizer, compradas através das imagens que cada uma, de sua maneira, torna-se real para aquele que é consumido/afetado pela pela narrativa em palavras ou imagens. Através dessa discussão posta, outra questão pertinente ao trabalho é a idéia de utopia e as decorrências desse pensamento utópico, que ora pode ser colocado como gênero literário, ora como um desabrochar de idéias acerca de um lugar diferente, quer seja colocado no passado, no presente ou no futuro. Portanto, nos entretemos com a criação desse topos, ou como iremos tratar, dessa narrativa utópica que perpassa épocas, territórios e homens em seu descontentamento constante com a realidade do hoje em cada época/lugar. Assim, os lugares nos são narrados e, na nossa tentativa de argumentação para fomentar tal discussão, nos apegamos a dois lugares que, em primeira instância são muito diferentes entre si, mas que numa análise mais aprofundada, vemos que as semelhanças argumentativas fazem desses lugares imagens que perpassam épocas, através das narrativas de seu tempo/espaço. Lugares esperados e imaginados – a utopia É vasto saber que o mundo não está bom, quer comparativamente (no imaginário, na memória) ele foi melhor ou que o seu futuro possa ser melhor, mas é fato que ele não agrada. O hoje não agrada, pois a realidade àquele que o vive não está de acordo com seus anseios e desejos. Lança-se, então, mão à narrativa do impossível, às imagens criadas pelo desconhecido, sob a intenção de se movimentar nesse espaço/tempo em que o peso da realidade não fascina, mas que pode ser aliviado através da busca, mesmo que seja ela estritamente imaginativa: pelo outro lugar, pela outra época, pelo outro ser e estar no mundo. Como nos fala CIORAN (CIORAN, 1994): só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se a ela está ameaçada de esclerose e de ruína. A sensatez, à qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o homem recusa esta felicidade, e essa simples recusa faz dele um animal histórico, isto é, um amante da felicidade imaginada (p. 101). E é pela ótica desse pensamento utópico que criam-se as mais diversas formas no espaço e que através dele transfiguram-se políticas e modos de viver entre esses sujeitos históricos, cambiando seus desejos e limites para essa forma de pensamento. Mas antes de falarmos desse pensamento e suas implicações apontadas no presente trabalho, afinal, o que vem a ser utopia? Difícil entrar em tal discussão, pois doutos no assunto não entram em acordo para uma definição crassa acerca de seu significado, de seu conceito propriamente dito, seja ela classificada como gênero literário ou como forma de pensamento. Portanto, nos inclinamos a definir o substantivo “utopia”, pois parece que tal definição tem mais acordo entre os estudiosos do assunto e, a partir dessa definição, tomamos a liberdade em nos fazer pensantes acerca desse. Esse substantivo vem significar, ao mesmo tempo, um lugar bom e um não lugar, ou seja, um lugar tão bom que não existe em lugar algum . Porém, esse lugar sempre está construído num bojo social totalizante, em sua maioria. Isso quer dizer que há, em diversas utopias, uma preocupação em abarcar uma sociedade, que ela faça parte dessa utopia, que ela, através da sua inserção nesse magnífico lugar, participe das ações, leis, regras e normas sociais que instituem esses lugares, e é isso que faz esses lugares serem considerados utópicos, além, é claro, de seu cercamento e/ou distanciamento geográfico. Todo lugar maravilhoso, toda façanha está sempre distante das mãos daqueles que os desejam, principalmente quando se pensa numa sociedade, em que todos estão dispostos a viver sob determinadas formulações de um convívio social em virtude de que essa sociedade seja mais agradável e, doravante, melhor. Fato é que toda utopia é narrada e aquele que narra esteve ou conhece alguém que lá esteve, em carne e osso, tornando, dentro de uma argumentação plausível, carregada de imagens acerca desse lugar, mais factual possível a narrativa e, assim, prende a atenção do espectador para as maravilhas de um lugar que este desconhece, mas como se esteve lá, aquele que o recebe também pode estar lá – é só encontrá-lo. Outro fato interessante anotar é que, em todos esses lugares imaginados, a mudança nunca é bem vinda, na verdade, mudar seria a ruína de qualquer utopia, pois todo lugar utópico é totalmente previsível e dentro de um padrão comportamental que está amarrado em sua própria existência (por isso seu distanciamento) e, além do mais, não haveria a necessidade de mudar um lugar onde se encontra a perfeição e a felicidade. Antes de continuar essa discussão, vale salientar que o que chamamos hoje de Humanismo, este calcado da sabedoria e dos estudos provenientes da Antigüidade e de valores que colocam o homem como o centro e o ator no mundo, vai ser melhor compreendido após o “Discurso sobre a dignidade do homem”, de Pico della Mirandola (1463 – 1494), em que citando as palavras de Deus dirigidas à Adão, faz a seguinte consideração: “Ó suma liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem! ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer” (PICO DELLA MIRANDOLA, 1989: 52). Este autor lança mão, através da sua argumentação, que somente os seres humanos podem mudar a si mesmos pelo seu livre-arbítrio e essa é a base teórico/filosófica de boa parte da criação deste período, ao qual conhecemos hoje como Renascimento. Segundo HELLER: “com o Renascimento surge o conceito dinâmico de homem. O indivíduo passa a ter a sua própria história de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire também a sua história de desenvolvimento” (HELLER, 1982: 09). É nesse mesmo período que surge o livro “Utopia”, de Thomas Morus (1478 – 1535), influenciado por todo pensamento de seu tempo e criando, por assim dizer, um gênero literário que veio, também, influenciar todo um pensamento posterior, mas que não elimina, ao nosso ver, criações anteriores à obra de Morus, de lugares imaginários tão mágicos quanto a Ilha de Utopia – às quais, como Cocanha, também chamaremos de utopia. Seguimos, a partir dessas constatações, com um trecho pertinente de BERLIN sobre o pensamento utópico (BERLIN, 1991): de modo geral, as utopias ocidentais tendem a conter os mesmos elementos: uma sociedade vive em estado de pura harmonia, no qual todos os membros vivem em paz, amam uns aos outros, encontram-se livres de perigo físico, de carências de qualquer tipo, de frustração, desconhecem a violência ou a injustiça, vivem sob uma luz perpétua e uniforme, em um clima temperado, em meio a uma natureza infinitamente generosa. A principal característica da maioria das utopias (ou talvez de todas) é o fato de serem estáticas. Nada se altera nelas, pois alcançaram a perfeição: não há nenhuma necessidade de novidade ou mudança; ninguém pode desejar alterar uma condição em que todos os desejos humanos naturais são realizados (p. 29). Note-se que a própria condição de estabilidade nessas utopias contradiz a idéia de livre-arbítrio posta por Pico della Mirandola, mas a criação desses lugares não, e é sob essa ótica que se faz o objeto de nossa investigação, pois através do posto acima, torna-se impossível de concretude qualquer criação desse tipo, a não ser que a criação seja o elemento discursivo primeiro e não a sua materialização. Nesse ponto, apegamo-nos ao Swiss Park Campinas e na sua relação com Cocanha, pois nela vemos que a busca incessante pela “perfeição” dos lugares faz-se cada vez mais freqüente nos dias atuais, o que nos faz crer que a idéia é que esse lugar utópico exista “de fato”, ao menos como proposta imagética. Eis, então, nossa argumentação e as diversas formas observadas do que tomaríamos a liberdade de chamar de “discurso utópico contemporâneo”. Porém, o que notamos é que esse discurso é prioritariamente pautado na saciedade individual, levado às exigências do indivíduo e não de um corpo social, tão comum às classificadas utopias. No entanto, sua lógica é totalizante, pois atinge um pensamento não apenas individual, mas social – como haveremos de mostrar mais adiante. Cocanha & Swiss Park Campinas – leituras aproximadas Escute agora quem está aqui. Todos devem ser meus amigos E me honrar como seu pai, Pois é correto e lógico que apareça A grande sabedoria que Deus me deu, Antes de contar O que vocês escutarão e Muito os alegrará. Não tenho muita idade, mas Nem por isso sou menos sábio. Uma coisa vocês devem saber: Barba grande não significa sabedoria; Se os barbados fossem sábios Bodes e cabras também o seriam. Não valorizem a barba, Pois muitos a têm grande, mas a inteligência pequena: O jovem é muito sensato. ANEXO 1] (trecho do fabliau de Cocanha) [Ver Assim começa o fabliau de Cocanha, em que o interlocutor tenta, por meio de uma ironia carregada de crítica, se legitimar e tornar aquilo que vai ser relatado por ele como passível de credibilidade e sensatez, pois sabe que o mundo a ser apresentado pode ser ridicularizado, desacreditado e, por isso, das primeiras estrofes serem um apelo aos ouvidos ouvintes de que aquela estória a ser narrada é legítima de confiança. Como Cocanha, a todo o momento, o Swiss Park Campinas tenta nos mostrar, através dos vários links contidos em todos os seus veículos de divulgação – site, televisão, revistas, outdoors etc – a credibilidade em que se apóia o empreendimento. Sejam os parceiros ou os empreendedores, todos fazem questão de se mostrar através daquilo que por eles foi feito anteriormente, pela tradição de seus negócios e, principalmente, pelo sucesso de seus feitos anteriores. Porém, diferentemente de Cocanha, o passado daqueles que nos narram o Swiss Park Campinas serve como a estrutura primeira de todo o discurso implementado pelo lugar, porque nesse caso a “barba grande” é de grande validade, pois atrai a confiança daqueles que vêem/lêem e ali querem/podem morar – característica da credibilidade de instituições/empresas que realizam algum empreendimento qualquer (ver ANEXO 2). No caso de Cocanha, a experiência pela idade é tida como querela, pois cabe a um indivíduo narrar a estória e esse se utiliza de exemplos que se fazem averiguar que, através da idade não se pode zelar pela credibilidade, mas sim pela sabedoria, sensatez e, no decorrer da narrativa, temos também que a experiência de ter vivido, visto esse lugar é o que lhe dá autoridade de autenticidade, pela via do testemunho pessoal. Há várias estrofes em que o interlocutor se refere a ele; estes são momentos cruciais de afirmação de que sua narrativa não é nenhum delírio, mas sim o que ele presenciou e viveu. Ainda em relação a essa análise, poderíamos, também, falar do advento do novo (ou de uma valorização do novo) e uma certa dada negação ao velho (lembre-se que esse país possui uma fonte da juventude). Vale discorrer que o período é de transição de uma maneira de pensar para outro, de um advento de uma burguesia que vai se concretizar séculos depois, de mudanças estruturais dentro do pensamento acerca dos preceitos da Igreja, enfim, toda uma mudança espacial que pode já ser encontrada em Cocanha, ou que ela seja uma “preparação” de um porvir – porém essa discussão será travada em um trabalho futuro. O Swiss Park Campinas, devido à forte utilização de imagens fotográficas e de televisão, além da utilização constante, através de imagens em seu site e em sua revista (que também pode ser vista online), de um acompanhamento das etapas de efetivação, cronogramas de construção e toda uma gama de recursos narrativos, faz com que ele tenha um caráter de realidade, hoje, muito maior que aquele posto por Cocanha, pois as imagens que temos desse país imaginário são exclusivamente através de seu texto, de pinturas e de cartas cartográficas antigas, sendo dignas de contestação a uma visão racional atual de realidade (ver ANEXO 3). Mesmo porque a realidade almejada pelos poetas e narradores de Cocanha não era a mesma almejada pelos empreendedores do Swiss Park Campinas. Os primeiros buscavam provocar nos ouvintes um percurso imaginativo, com ações projetadas no futuro temporal. Os últimos buscam provocar nos espectadores e leitores um percurso efetivo de compra, ações atuais conjugadas a projetos de futuro de moradia. Como aponta Milton José de Almeida (ALMEIDA, 1999: 10), acerca do discurso narrativo pautado nas imagens de televisão e do cinema: “são narrações que tomam forma estética na representação visual que se movimenta em sequências sustentadas pela razão cronológica, aproximando-se, pela sua verossimilhança naturalista espacial e temporal, à exposição de uma verdade”. É nessa forma de narrativa cronológica que, como nos diz o mesmo ALMEIDA, se alcança o grau máximo do naturalismo no tempo, que se torna de mais fácil apreensão/aceitação o narrado e muito mais próximo da idéia de veracidade. Ainda segundo o mesmo autor , essa linguagem narrativa faz com que (ALMEIDA, 1999): “lugares, homens e mulheres reais [sejam] transcritos pela linguagem da televisão em signos da realidade. Dessa linguagem, que expressa a realidade com signos da própria realidade, decorre a credibilidade quase total do espectador naquilo que vê nas telas e que acredita ser real e verdade” (p. 12). Não é à toa que, em várias imagens do complexo urbanístico, vemos pessoas inseridas, carregadas de felicidade, quer pelos braços abertos, quer pelo sorriso estampado no rosto – signos da realidade que retratam o prazer que aqueles que vemos estão sentindo por estarem naquele lugar (ANEXO 4). Vale dizer que, toda a apresentação feita da Cocanha e do Swiss Park Campinas se faz valer pela expectativa, pois não só se pretende prender a atenção do espectador, como também mostrar que o lugar a ser narrado é único, que só existe aquele e que, encontrado o caminho para esses dois lugares, a felicidade fará parte de um enredo cotidiano. Ao apóstolo de Roma/ Fui pedir penitência,/ Ele me enviou a uma terra/ Onde vi muitas maravilhas:/ Agora ouçam como são/ Os habitantes daquele país./ Creio que Deus e todos os seus santos/ Abençoaram-na e sagraram-na mais/ Que qualquer outra região./ O nome do país é Cocanha (trecho do fabliau de Cocanha). Respire fundo/ você não perde por esperar/ fique atento aos detalhes/ prepare-se/ você vai achar demais viver aqui/ você nunca viu nada igual/ relaxe/ você vai se surpreender (trecho retirado da imagem de abertura do site do Swiss Park Campinas). A semelhança das duas apresentações é notável. Ela permanecerá ao longo do texto de Cocanha e das propagandas do Swiss Park Campinas. Por se tratar de um artigo, faremos uma ponderação breve destas demais semelhanças. De um lado, as pessoas em Cocanha irão se fartar na comilança, nos prazeres carnais, na juventude eterna, na riqueza universal, sem obrigações e nem exigências; de outro, as pessoas no Swiss Park irão se deitar na PRESERVAÇÃO da sua tranqüilidade, do seu ambiente, da sua comodidade, do seu tempo e, principalmente, da sua natureza. Em ambos lugares percebemos que a intenção da narrativa se faz em tratar da não carência nesses lugares, no todo individual saciado – cada qual com as especificidades de seu tempo/espaço. Uma outra questão que se faz pertinente é em relação à idéia de natureza que esses lugares carregam em si. De um lado, tudo é natural, tudo é divino; de outro, tudo é natureza, tudo é tecnologia. Cada lugar se utiliza daquilo que lhe averigua veracidade em seu tempo/espaço e nos mostra que tudo que eles possuem faz parte deles. Portanto, a sua natureza está posta pela diferença de ali ter e os outros lugares, diferentes, distantes, não possuírem natureza tão bela quanto. A estratégia narrativa de uma realidade, posta em diversos meios de comunicação, mostrada esfacelada, rápida, sob fragmentos, acompanhada sempre de frases, quer sejam orais ou escritas, fazem com que se fixe nas mentes aquela realidade narrada (OLIVEIRA JR., 2000), tornando a escassez, ou sua idéia, comum perante diversos atores do corpo social. Por exemplo, como pudemos constatar em trabalhos feitos com alunos das mais diversas idades da rede pública de ensino do Estado de São Paulo (nos anos 2008 e 2009), quando pedi a eles descreverem, através de uma narrativa, o lugar perfeito, ideal, para eles viverem, foi encontrado um “mundo outro” muito parecido em muitas das narrativas. Quase todos esses lugares, descritos pelos alunos, tratavam da abundância diante a uma escassez presente e, mais interessante avaliar que, a questão da segurança, da natureza, da tranqüilidade, da liberalidade, sempre permearam o ideário narrativo de muitos deles (portanto, a idéia de escassez é parecida para muitos). E, ao final da atividade, quando eu narrava o Swiss Park Campinas (sem mencioná-lo), utilizando-me da oralidade para tratar das imagens acerca desse, muitos falaram que adorariam viver nesse lugar ou que esse lugar não existia. Partindo desse movimento, vale um outro apontamento interessante acerca de Cocanha, pois essa transpassou épocas e lugares, percorreu onde hoje reconhecemos como França, Inglaterra, Bélgica, Holanda, Alemanha e, posteriormente, veio desembarcar no Brasil com a “Viagem a São Saruê” de Manoel Camilo dos Santos (FRANCO JR., 1998 [b]). Assim, Cocanha se apresenta/mostra aos anseios desses sujeitos que a imaginaram, que a almejaram, que a quiseram real e tornaram-na real, pois como nos fala LE GOFF , acerca desse país imaginário: sua longevidade na literatura, na arte e no imaginário, que chega até o Brasil de meados do século XX e até sua ressurgência inconsciente no movimento estudantil de maio de 68, é testemunha de sua sedução e sua atualidade na cultura da Europa ocidental e do Brasil (p. 13). Portanto, vale dizer que Cocanha, através de suas imagens, seduziu pessoas nos mais diversos lugares e épocas, sendo que sua busca hoje pode ser realocada à sua compra, pois esse lugar agora existe, porém continua para poucos – somente para aqueles que sabem o seu “caminho”. Segundo SZACHI (1972: 21), “certos motivos do pensamento utópico mostram impressionante constância, acompanhando fielmente a humanidade praticamente desde o início dos tempos históricos até o mundo de hoje” e, ao nosso ver, é nesse ponto que afirmamos que as imagens das construções de lugares tem cada vez mais a presença de elementos (signos) que satisfazem através da abundância os desejos dos homens de hoje, cada vez mais cerc(e)ados pelas imagens da realidade posta pelos mesmos meios de comunicação que nos falam que esses “lugares perfeitos” existem, amparados nos fortes efeitos de verdade que tem as fotografias e as imagens audiovisuais em nossa cultura. A mesma forma narrativa é usada e a edificação dessa no espaço faz com que as formas que encontramos materializadas em muito devem a esses lugares imaginados. Considerações Finais Como afirmamos, a ressurgência do pensamento de Cocanha pode ser analisado hoje através de imagens de lugares a serem construídos com o intuito de “substituírem” uma realidade espacial não agradável à grande parte das pessoas e que, através do todo individual saciado, se fazem reais em seu discurso imagético – que viemos chamar a isso de “discurso utópico contemporâneo”. Temos também que, em grande parte das narrativas são utilizados signos da realidade que confortam o espectador, pois esse se sente mais próximo e desejoso ao lugar narrado e esse mais real àquele que o ouve/lê/vê. A partir disso, justificam-se políticas, construções de lugares, enfim, toda uma gama de relações que vão implicar diretamente em nosso espaço/tempo e em sua leitura como realidade. Para finalizar, gostaria de frisar que muitas das questões colocadas ficaram sem uma análise mais contundente, sendo melhor discutidas em minha monografia de conclusão de curso do Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas, a ser concluída no final do ano de 2009. Enfim, todo um trabalho começa em virtude das indagações do hoje, em busca de outras indagações no amanhã. Referências Bibliográficas ALMEIDA, Milton José de. “A Educação Visual da Memória - Imagens Agentes do Cinema e da Televisão”. In: Pro-posições. vol. 10, n. 2 (29). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 1999. BERLIN, Isaiah. Limites da utopia: Capítulos da história das idéias; organização Henry Hardy; tradução Valter Lellis Siqueira. – São Paulo: Companhia das Letras, 1991. CIORAN, E. M. História e utopia - tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. HELLER, Agnes. “O Homem do Renascimento” – Lisboa: Editorial Presença, 1982. FRANCO JR., Hilário. “Cocanha: a história de um país imaginário”. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [a]. FRANCO JÚNIOR, Hilário. “Cocanha: várias faces de uma utopia”. – Cotia: Ateliê, 1998 [b]. OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao Machado de. “ Realidades Ficcionadas: palavras e imagens de um telejornal brasileiro. Anais em cd-rom da 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de PósGraduação em Educação. Caxambu: GT Educação e Comunicação, Caxambu-MG. 2000. p. 1–20. PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. “Discurso sobre a Dignidade do Homem” – Lisboa: edições 70, 1989. SZACHI, Jerzi. “As Utopias” – São Paulo: Paz e Terra, 1972. Sites Pesquisados (agosto/2009) www.swissparkcampinas.com.br www.revistaswisspark.com.br www.ricci-arte.biz/pt/Pieter-Bruegel-the-Elder-3.htm www.raremaps.com/gallery/enlarge/17343 Cocanha A Cocanha (trad. Hilário Franco Júnior) Escute agora quem está aqui. Todos devem ser meus amigos E me honrar como seu pai, Pois é correto e lógico que apareça A grande sabedoria que Deus me deu, Antes de contar O que vocês escutarão e Muito os alegrará. Não tenho muita idade, mas Nem por isso sou menos sábio. Uma coisa vocês devem saber: Barba grande não significa sabedoria; Se os barbados fossem sábios Bodes e cabras também o seriam. Não valorizem a barba, Pois muitos a têm grande, mas a inteligência pequena: O jovem é muito sensato. Ao apóstolo de Roma Fui pedir penitência, Ele me enviou a uma terra Onde vi muitas maravilhas: Agora ouçam como são Os habitantes daquele país. Creio que Deus e todos os seus santos Abençoaram-na e sagraram-na mais Que qualquer outra região. O nome do país é Cocanha; Lá, quem mais dorme mais ganha: Quem dorme até ao meio-dia Ganha cinco soldos e meio. De barbos, salmões e sáveis São os muros de todas as casas; Os caibros lá são esturjões, Os telhados de toicinho, As cercas são de salsichas. Existe muito mais naquela terra de delícias, Pois de carne assada e presunto São cercados os campos de trigo; Pelas ruas vão se assando Gordos gansos que giram Sozinhos, regados Com branco molho de alho. Digo ainda a vocês que por toda parte, Pelos caminhos e pelas ruas, Encontram-se mesas postas Com toalhas brancas, Onde se pode beber e comer Tudo o que se quiser sem problema; Sem oposição e sem proibição Cada um pega tudo o que seu coração deseja, Uns, peixe, outros, carne; Se alguém quer carne Basta pegar a seu bel-prazer; Carne de cervo ou de ave, Assada ou ensopada, Sem pagar nada Mesmo após a refeição. É assim nesse país. É pura e comprovada verdade Que na terra abençoada Corre um riacho de vinho. As canecas aproximam-se dali por si sós, Assim como os copos E as taças de ouro e prata. Este riacho do qual falo É metade de vinho tinto, Do melhor que se pode achar Em Beaune ou no além-mar; A outra parte é de vinho branco, Melhor e mais fino Que o produzido em Auxerre, La Rochelle ou Tonnerre. Quem quiser é só chegar, Pegar pelo meio ou pelas margens, E beber em qualquer lugar Sem oposição e sem medo, Sem pagar sequer uma moeda. As pessoas lá não são vis, São pelo contrário virtuosas e corteses. Seis semanas tem lá o mês, Quatro Páscoas tem o ano, E quatro festas de São João. Há no ano quatro vindimas, Feriado e domingo todo dia, Quatro Todos os Santos, quatro Natais, Quatro Candelárias anuais, Quatro Carnavais, E Quaresma, uma a cada vinte anos, Quando é agradável jejuar Pois todos mantêm seus bens; Desde as matinas até depois da nona Come-se o que Deus dá, Carne, peixe ou outra coisa. Ninguém ousa proibir algo. Não pensem que é piada, Ninguém, de qualquer condição, Que não considero desprezíveis, Pois cheios de delicadeza Distribuem calçados com cadarço, Sofre em jejuar: Três dias por semana chovem Pudins quentes Para cabeludos ou calvos, Botas e botinas bem-feitas; Quem quiser as terá, Bem moldadas aos pés. Se quiser, trezentas delas por dia Para todos, eu sei porque vi. Ali pega-se tudo à vontade. O país é tão rico Que bolsas cheias de moedas Ou mesmo mais, obterá: Tais sapateiros existem lá. Há ainda outra maravilha, Vocês jamais ouviram coisa semelhante: Estão jogadas pelo chão; Morabitinos e besantes Estão por toda parte, inúteis: Lá ninguém compra nem vende. A Fonte da Juventude Que rejuvenesce as pessoas, E traz outros benefícios. Lá não haverá, bem o sei, As mulheres dali, tão belas, Maduras e jovens, Cada qual pega a que lhe convém, Sem descontentar ninguém. Homem tão velho ou tão encanecido, Nem mulher tão velha que, Tendo cãs ou cabelos grisalhos, Não volte a ter trinta anos de idade, Cada um satisfaz seu prazer Como quer e por lazer; Elas não serão por isso censuradas, Serão mesmo muito mais honradas. Se à fonte puder ir; Lá podem rejuvenescer Aqueles que moram no país. Certamente é muito louco e ingênuo E se acontece porventura De uma mulher se interessar Por um homem, Ela o pega no meio da rua Quem pôde entrar naquela terra E de lá saiu. Eu mesmo o sei, Posso entender isso muito bem, E ali satisfaz seu desejo. Assim uns fazem a felicidade dos outros. E digo a verdade a vocês, Nesta terra abençoada Pois fui louco Quando de lá saí; Mas meus amigos eu queria Para aquela terra levar, Há tecelões muito corteses, Pois todo mês distribuem De bom grado e com prazer Roupas de diversos tipos; Junto comigo, se pudesse. Mas desde então não posso lá entrar. O caminho que seguira, Nem a trilha, nem a estrada, Quem quiser tem roupa de brunet, De escarlate ou de violete, Ou de biffe de boa qualidade, Ou de vert ou de saie escura, Jamais pude encontrar. E como não posso voltar, Não tenho como me consolar. Por isso uma coisa vou lhes dizer: Ou de seda alexandrina, De tecido listado ou de chamelin, O que mais irei contar? Existem lá tantas roupas Se vocês estão bem, Não mudem por nada, Senão podem acabar mal. Pois como ouvi muitas vezes Das quais se pega à vontade, Umas de cor, outras cinzas, E, para quem quer, forradas de arminho. A terra é tão feliz Em um provérbio, “Quem está bem não mude, Pois pouco ganhará”; Eis o que nos ensina o texto. Que tem sapateiros Fim da Cocanha Fonte: www.swissparkcampinas.com.br fonte: www.ricci-arte.biz/pt/Pieter-Bruegel-the-Elder-3.htm fonte: http://www.raremaps.com/gallery/enlarge/17343