COCANHA & SWISS PARK: A UTOPIA COMO UMA PROPOSTA DE
CONVENCIMENTO.
DIEGO CARVALHO DE OLIVEIRA (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
UNICAMP).
Resumo
O trabalho tem, como intuito, discorrer acerca da ressurgência/permanência no
imaginário humano de alguns anseios que perpassam épocas e que, ao nos
depararmos com as construções imagéticas contemporâneas, percebemos que
estão presentes no ser humano as inquietações e imaginações de outros tempos e
lugares. Consideramos, então, que permanece a vontade do homem de divagar
acerca do amanhã, buscá–lo e torná–lo possível, ainda que impossível de ser
construído em efetividade: a utopia. Em torno dessa discussão, tomamos como
base de nosso argumento Cocanha, que vem a ser um país imaginário onde a
abundância, em todos os sentidos, torna–se realidade. Vimos que as vontades e
pressões de uma época são representadas de diversas formas, principalmente na
forma do impossível narrativo e que vem a confortar aqueles a que a realidade
presente é insuportável. Diante disso e, principalmente, das alegorias lançadas pela
propaganda imobiliária contemporânea, escolhemos um lugar que se faz em
narrativa para se fazer vender. Esse lugar, foco de nossos estudos, denomina–se
Swiss Park Campinas, um condomínio fechado que, para se fazer melhor e mais
rentável, criou em suas imagens propagandísticas um u–topos. São essas questões
que fazem parte do trabalho construído, nos revelando a ressurgência de Cocanha
no homem contemporâneo e da utilização de uma linguagem em direção ao futuro
para tocar os homens de hoje: simples consumidores.
Palavras-chave:
Utopia, Educação Visual, Geografia.
Introdução
Um lugar, criado por volta do século XII, XIII, outro no século
XXI. Um utiliza-se de imagens narradas através da oralidade e das
letras, outro através da fotografia entremeada a slogans escritos e
textos impressos, das imagens em televisão, de outdoors, panfletos,
site, enfim, toda a gama narrativa de massa em que possuímos hoje.
Um utiliza-se de imagens que dentro de uma narrativa racional o
torna irreal, o outro real. Porém ambos tem o mesmo destino e
papel: fazer-se interessante e desejável a qualquer indivíduo que o
(re)conheça em suas mais diversas formas de narrativas. Falamos,
pois, do país imaginário da Cocanha, em que a característica da
abundância e da realização do indivíduo em seu deleite aproxima-se,
ao nosso ver, das narrativas propagandísticas do chamado complexo
urbanístico Swiss Park Campinas, que vem a ser o lugar da
abundância às ditas carências contemporâneas, tal como Cocanha
satisf(e)az as carências de seu espaço/tempo.
Nos preocupamos, neste artigo, em analisar as formas
narrativas, as imagens narradas e as narrações das imagens, bem
como auferir ao pensamento utópico a intrínseca capacidade de guiar
o homem na construção de espaços, seja nas mais diversas formas
em que possamos nos utilizar da palavra construção. Temos, como
intuito, abrir à discussão questões que nos são colocadas quando
observamos lugares criados, imaginados, narrados em suas mais
diversas temporalidades e origens, quer seja no que chamamos hoje
de Idade Média, quer seja na chamada Idade Contemporânea
(épocas em que se “situam” esses dois lugares estudados). Porém,
torna-se lugar comum falar que cada época, impelida pelas suas
possibilidades técnicas, tem sua maneira própria de narrar os lugares
– de criá-los –, utilizando-se, através de diversas formas, meios
imagéticos que tornam aquele lugar narrado vivo para o espectador
que o ouve/lê/vê. Forças colocadas por argumentos, ora alegóricos,
ora concretos fazem com que, em determinado tempo/lugar, as
narrativas tornem-se atraentes e, por que não assim dizer,
compradas através das imagens que cada uma, de sua maneira,
torna-se real para aquele que é consumido/afetado pela pela
narrativa em palavras ou imagens.
Através dessa discussão posta, outra questão pertinente ao
trabalho é a idéia de utopia e as decorrências desse pensamento
utópico, que ora pode ser colocado como gênero literário, ora como
um desabrochar de idéias acerca de um lugar diferente, quer seja
colocado no passado, no presente ou no futuro. Portanto, nos
entretemos com a criação desse topos, ou como iremos tratar, dessa
narrativa utópica que perpassa épocas, territórios e homens em seu
descontentamento constante com a realidade do hoje em cada
época/lugar.
Assim, os lugares nos são narrados e, na nossa tentativa de
argumentação para fomentar tal discussão, nos apegamos a dois
lugares que, em primeira instância são muito diferentes entre si, mas
que numa análise mais aprofundada, vemos que as semelhanças
argumentativas fazem desses lugares imagens que perpassam
épocas, através das narrativas de seu tempo/espaço.
Lugares esperados e imaginados – a utopia
É vasto saber que o mundo não está bom, quer
comparativamente (no imaginário, na memória) ele foi melhor ou que
o seu futuro possa ser melhor, mas é fato que ele não agrada. O hoje
não agrada, pois a realidade àquele que o vive não está de acordo
com seus anseios e desejos. Lança-se, então, mão à narrativa do
impossível, às imagens criadas pelo desconhecido, sob a intenção de
se movimentar nesse espaço/tempo em que o peso da realidade não
fascina, mas que pode ser aliviado através da busca, mesmo que seja
ela estritamente imaginativa: pelo outro lugar, pela outra época, pelo
outro ser e estar no mundo. Como nos fala CIORAN (CIORAN, 1994):
só agimos sob a fascinação do impossível: isto significa que
uma sociedade incapaz de gerar uma utopia e de consagrar-se
a ela está ameaçada de esclerose e de ruína. A sensatez, à
qual nada fascina, recomenda a felicidade dada, existente; o
homem recusa esta felicidade, e essa simples recusa faz dele
um animal histórico, isto é, um amante da felicidade
imaginada (p. 101).
E é pela ótica desse pensamento utópico que criam-se as mais
diversas formas no espaço e que através dele transfiguram-se
políticas e modos de viver entre esses sujeitos históricos, cambiando
seus desejos e limites para essa forma de pensamento.
Mas antes de falarmos desse pensamento e suas implicações
apontadas no presente trabalho, afinal, o que vem a ser utopia?
Difícil entrar em tal discussão, pois doutos no assunto não entram em
acordo para uma definição crassa acerca de seu significado, de seu
conceito propriamente dito, seja ela classificada como gênero literário
ou como forma de pensamento. Portanto, nos inclinamos a definir o
substantivo “utopia”, pois parece que tal definição tem mais acordo
entre os estudiosos do assunto e, a partir dessa definição, tomamos a
liberdade em nos fazer pensantes acerca desse. Esse substantivo
vem significar, ao mesmo tempo, um lugar bom e um não lugar, ou
seja, um lugar tão bom que não existe em lugar algum
. Porém, esse lugar sempre está construído num bojo social
totalizante, em sua maioria. Isso quer dizer que há, em diversas
utopias, uma preocupação em abarcar uma sociedade, que ela faça
parte dessa utopia, que ela, através da sua inserção nesse magnífico
lugar, participe das ações, leis, regras e normas sociais que instituem
esses lugares, e é isso que faz esses lugares serem considerados
utópicos, além, é claro, de seu cercamento e/ou distanciamento
geográfico.
Todo lugar maravilhoso, toda façanha está sempre distante das
mãos daqueles que os desejam, principalmente quando se pensa
numa sociedade, em que todos estão dispostos a viver sob
determinadas formulações de um convívio social em virtude de que
essa sociedade seja mais agradável e, doravante, melhor. Fato é que
toda utopia é narrada e aquele que narra esteve ou conhece alguém
que lá esteve, em carne e osso, tornando, dentro de uma
argumentação plausível, carregada de imagens acerca desse lugar,
mais factual possível a narrativa
e, assim, prende a atenção do espectador para as maravilhas de um
lugar que este desconhece, mas como se esteve lá, aquele que o
recebe também pode estar lá – é só encontrá-lo.
Outro fato interessante anotar é que, em todos esses lugares
imaginados, a mudança nunca é bem vinda, na verdade, mudar seria
a ruína de qualquer utopia, pois todo lugar utópico é totalmente
previsível e dentro de um padrão comportamental que está amarrado
em sua própria existência (por isso seu distanciamento) e, além do
mais, não haveria a necessidade de mudar um lugar onde se
encontra a perfeição e a felicidade.
Antes de continuar essa discussão, vale salientar que o que
chamamos hoje de Humanismo, este calcado da sabedoria e dos
estudos provenientes da Antigüidade e de valores que colocam o
homem como o centro e o ator no mundo, vai ser melhor
compreendido após o “Discurso sobre a dignidade do homem”, de
Pico della Mirandola (1463 – 1494), em que citando as palavras de
Deus dirigidas à Adão, faz a seguinte consideração: “Ó suma
liberalidade de Deus pai, ó suma e admirável felicidade do homem!
ao qual é concedido obter o que deseja, ser aquilo que quer” (PICO
DELLA MIRANDOLA, 1989: 52). Este autor lança mão, através da sua
argumentação, que somente os seres humanos podem mudar a si
mesmos pelo seu livre-arbítrio e essa é a base teórico/filosófica de
boa parte da criação deste período, ao qual conhecemos hoje como
Renascimento. Segundo HELLER: “com o Renascimento surge o
conceito dinâmico de homem. O indivíduo passa a ter a sua própria
história de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire
também a sua história de desenvolvimento” (HELLER, 1982: 09). É
nesse mesmo período que surge o livro “Utopia”, de Thomas Morus
(1478 – 1535), influenciado por todo pensamento de seu tempo e
criando, por assim dizer, um gênero literário que veio, também,
influenciar todo um pensamento posterior, mas que não elimina, ao
nosso ver, criações anteriores à obra de Morus, de lugares
imaginários tão mágicos quanto a Ilha de Utopia – às quais, como
Cocanha, também chamaremos de utopia.
Seguimos, a partir dessas constatações, com um trecho
pertinente de BERLIN sobre o pensamento utópico (BERLIN, 1991):
de modo geral, as utopias ocidentais tendem a conter os
mesmos elementos: uma sociedade vive em estado de pura
harmonia, no qual todos os membros vivem em paz, amam
uns aos outros, encontram-se livres de perigo físico, de
carências de qualquer tipo, de frustração, desconhecem a
violência ou a injustiça, vivem sob uma luz perpétua e
uniforme, em um clima temperado, em meio a uma natureza
infinitamente generosa. A principal característica da maioria
das utopias (ou talvez de todas) é o fato de serem estáticas.
Nada se altera nelas, pois alcançaram a perfeição: não há
nenhuma necessidade de novidade ou mudança; ninguém
pode desejar alterar uma condição em que todos os desejos
humanos naturais são realizados (p. 29).
Note-se que a própria condição de estabilidade nessas utopias
contradiz a idéia de livre-arbítrio posta por Pico della Mirandola, mas
a criação desses lugares não, e é sob essa ótica que se faz o objeto
de nossa investigação, pois através do posto acima, torna-se
impossível de concretude qualquer criação desse tipo, a não ser que a
criação seja o elemento discursivo primeiro e não a sua
materialização. Nesse ponto, apegamo-nos ao Swiss Park Campinas e
na sua relação com Cocanha, pois nela vemos que a busca incessante
pela “perfeição” dos lugares faz-se cada vez mais freqüente nos dias
atuais, o que nos faz crer que a idéia é que esse lugar utópico exista
“de fato”, ao menos como proposta imagética.
Eis, então, nossa argumentação e as diversas formas
observadas do que tomaríamos a liberdade de chamar de “discurso
utópico contemporâneo”. Porém, o que notamos é que esse discurso
é prioritariamente pautado na saciedade individual, levado às
exigências do indivíduo e não de um corpo social, tão comum às
classificadas utopias. No entanto, sua lógica é totalizante, pois atinge
um pensamento não apenas individual, mas social – como haveremos
de mostrar mais adiante.
Cocanha & Swiss Park Campinas – leituras aproximadas
Escute agora quem está aqui.
Todos devem ser meus amigos
E me honrar como seu pai,
Pois é correto e lógico que apareça
A grande sabedoria que Deus me deu,
Antes de contar
O que vocês escutarão e
Muito os alegrará.
Não tenho muita idade, mas
Nem por isso sou menos sábio.
Uma coisa vocês devem saber:
Barba grande não significa sabedoria;
Se os barbados fossem sábios
Bodes e cabras também o seriam.
Não valorizem a barba,
Pois muitos a têm grande, mas a inteligência pequena:
O jovem é muito sensato.
ANEXO 1]
(trecho do fabliau de Cocanha) [Ver
Assim começa o fabliau
de Cocanha, em que o interlocutor tenta, por meio de uma ironia
carregada de crítica, se legitimar e tornar aquilo que vai ser relatado
por ele
como passível de credibilidade e sensatez, pois sabe que o mundo a
ser apresentado pode ser ridicularizado, desacreditado e, por isso,
das primeiras estrofes serem um apelo aos ouvidos ouvintes de que
aquela estória a ser narrada é legítima de confiança.
Como Cocanha, a todo o momento, o Swiss Park Campinas
tenta nos mostrar, através dos vários links contidos em todos os seus
veículos de divulgação – site, televisão, revistas, outdoors etc – a
credibilidade em que se apóia o empreendimento. Sejam os parceiros
ou os empreendedores, todos fazem questão de se mostrar através
daquilo que por eles foi feito anteriormente, pela tradição de seus
negócios e, principalmente, pelo sucesso de seus feitos anteriores.
Porém, diferentemente de Cocanha, o passado daqueles que nos
narram o Swiss Park Campinas serve como a estrutura primeira de
todo o discurso implementado pelo lugar, porque nesse caso a “barba
grande” é de grande validade, pois atrai a confiança daqueles que
vêem/lêem e ali querem/podem morar – característica da
credibilidade
de
instituições/empresas
que
realizam
algum
empreendimento qualquer (ver ANEXO 2).
No caso de Cocanha, a experiência pela idade é tida como
querela, pois cabe a um indivíduo narrar a estória e esse se utiliza de
exemplos que se fazem averiguar que, através da idade não se pode
zelar pela credibilidade, mas sim pela sabedoria, sensatez e, no
decorrer da narrativa, temos também que a experiência de ter vivido,
visto esse lugar é o que lhe dá autoridade de autenticidade, pela via
do testemunho pessoal. Há várias estrofes em que o interlocutor se
refere a ele; estes são momentos cruciais de afirmação de que sua
narrativa não é nenhum delírio, mas sim o que ele presenciou e
viveu.
Ainda em relação a essa análise, poderíamos, também, falar do
advento do novo (ou de uma valorização do novo) e uma certa dada
negação ao velho (lembre-se que esse país possui uma fonte da
juventude). Vale discorrer que o período é de transição de uma
maneira de pensar para outro, de um advento de uma burguesia que
vai se concretizar séculos depois, de mudanças estruturais dentro do
pensamento acerca dos preceitos da Igreja, enfim, toda uma
mudança espacial que pode já ser encontrada em Cocanha, ou que
ela seja uma “preparação” de um porvir – porém essa discussão será
travada em um trabalho futuro.
O Swiss Park Campinas, devido à forte utilização de imagens
fotográficas e de televisão, além da utilização constante, através de
imagens em seu site e em sua revista (que também pode ser vista
online), de um acompanhamento das etapas de efetivação,
cronogramas de construção e toda uma gama de recursos narrativos,
faz com que ele tenha um caráter de realidade, hoje, muito maior
que aquele posto por Cocanha, pois as imagens que temos desse país
imaginário são exclusivamente através de seu texto, de pinturas e de
cartas cartográficas antigas, sendo dignas de contestação a uma
visão racional atual de realidade (ver ANEXO 3). Mesmo porque a
realidade almejada pelos poetas e narradores de Cocanha não era a
mesma almejada pelos empreendedores do Swiss Park Campinas. Os
primeiros buscavam provocar nos ouvintes um percurso imaginativo,
com ações projetadas no futuro temporal. Os últimos buscam
provocar nos espectadores e leitores um percurso efetivo de compra,
ações atuais conjugadas a projetos de futuro de moradia.
Como aponta Milton José de Almeida (ALMEIDA, 1999: 10),
acerca do discurso narrativo pautado nas imagens de televisão e do
cinema: “são narrações que tomam forma estética na representação
visual que se movimenta em sequências sustentadas pela razão
cronológica, aproximando-se, pela sua verossimilhança naturalista
espacial e temporal, à exposição de uma verdade”. É nessa forma de
narrativa cronológica que, como nos diz o mesmo ALMEIDA, se
alcança o grau máximo do naturalismo no tempo, que se torna de
mais fácil apreensão/aceitação o narrado e muito mais próximo da
idéia de veracidade.
Ainda segundo o mesmo autor , essa linguagem narrativa faz
com que (ALMEIDA, 1999):
“lugares, homens e mulheres reais [sejam] transcritos pela
linguagem da televisão em signos da realidade. Dessa
linguagem, que expressa a realidade com signos da própria
realidade, decorre a credibilidade quase total do espectador
naquilo que vê nas telas e que acredita ser real e verdade” (p.
12).
Não é à toa que, em várias imagens do complexo urbanístico, vemos
pessoas inseridas, carregadas de felicidade, quer pelos braços
abertos, quer pelo sorriso estampado no rosto – signos da realidade
que retratam o prazer que aqueles que vemos estão sentindo por
estarem naquele lugar (ANEXO 4).
Vale dizer que, toda a apresentação feita da Cocanha e do
Swiss Park Campinas se faz valer pela expectativa, pois não só se
pretende prender a atenção do espectador, como também mostrar
que o lugar a ser narrado é único, que só existe aquele e que,
encontrado o caminho para esses dois lugares, a felicidade fará parte
de um enredo cotidiano.
Ao apóstolo de Roma/ Fui pedir penitência,/ Ele me enviou a
uma terra/ Onde vi muitas maravilhas:/ Agora ouçam como
são/ Os habitantes daquele país./ Creio que Deus e todos os
seus santos/ Abençoaram-na e sagraram-na mais/ Que
qualquer outra região./ O nome do país é Cocanha (trecho do
fabliau de Cocanha).
Respire fundo/ você não perde por esperar/ fique atento aos
detalhes/ prepare-se/ você vai achar demais viver aqui/ você
nunca viu nada igual/ relaxe/ você vai se surpreender (trecho
retirado da imagem de abertura do site do Swiss Park
Campinas).
A semelhança das duas apresentações é notável. Ela
permanecerá ao longo do texto de Cocanha e das propagandas do
Swiss Park Campinas. Por se tratar de um artigo, faremos uma
ponderação breve destas demais semelhanças. De um lado, as
pessoas em Cocanha irão se fartar na comilança, nos prazeres
carnais, na juventude eterna, na riqueza universal, sem obrigações e
nem exigências; de outro, as pessoas no Swiss Park irão se deitar na
PRESERVAÇÃO da sua tranqüilidade, do seu ambiente, da sua
comodidade, do seu tempo e, principalmente, da sua natureza. Em
ambos lugares percebemos que a intenção da narrativa se faz em
tratar da não carência nesses lugares, no todo individual saciado –
cada qual com as especificidades de seu tempo/espaço.
Uma outra questão que se faz pertinente é em relação à idéia
de natureza que esses lugares carregam em si. De um lado, tudo é
natural, tudo é divino; de outro, tudo é natureza, tudo é tecnologia.
Cada lugar se utiliza daquilo que lhe averigua veracidade em seu
tempo/espaço e nos mostra que tudo que eles possuem faz parte
deles. Portanto, a sua natureza está posta pela diferença de ali ter e
os outros lugares, diferentes, distantes, não possuírem natureza tão
bela quanto.
A estratégia narrativa de uma realidade, posta em diversos
meios de comunicação, mostrada esfacelada, rápida, sob fragmentos,
acompanhada sempre de frases, quer sejam orais ou escritas, fazem
com que se fixe nas mentes aquela realidade narrada (OLIVEIRA JR.,
2000), tornando a escassez, ou sua idéia, comum perante diversos
atores do corpo social. Por exemplo, como pudemos constatar em
trabalhos feitos com alunos das mais diversas idades
da rede pública de ensino do Estado de São Paulo (nos anos 2008 e
2009), quando pedi a eles descreverem, através de uma narrativa, o
lugar perfeito, ideal, para eles viverem, foi encontrado um “mundo
outro” muito parecido em muitas das narrativas.
Quase todos esses lugares, descritos pelos alunos, tratavam da
abundância diante a uma escassez presente e, mais interessante
avaliar que, a questão da segurança, da natureza, da tranqüilidade,
da liberalidade, sempre permearam o ideário narrativo de muitos
deles (portanto, a idéia de escassez é parecida para muitos). E, ao
final da atividade, quando eu narrava o Swiss Park Campinas (sem
mencioná-lo), utilizando-me da oralidade para tratar das imagens
acerca desse, muitos falaram que adorariam viver nesse lugar ou que
esse lugar não existia.
Partindo desse movimento, vale um outro apontamento
interessante acerca de Cocanha, pois essa transpassou épocas e
lugares, percorreu onde hoje reconhecemos como França, Inglaterra,
Bélgica, Holanda, Alemanha e, posteriormente, veio desembarcar no
Brasil com a “Viagem a São Saruê” de Manoel Camilo dos Santos
(FRANCO JR., 1998 [b]). Assim, Cocanha se apresenta/mostra aos
anseios desses sujeitos que a imaginaram, que a almejaram, que a
quiseram real e tornaram-na real, pois como nos fala LE GOFF
, acerca desse país imaginário: sua longevidade na literatura, na arte
e no imaginário, que chega até o Brasil de meados do século XX e até
sua ressurgência inconsciente no movimento estudantil de maio de
68, é testemunha de sua sedução e sua atualidade na cultura da
Europa ocidental e do Brasil (p. 13). Portanto, vale dizer que
Cocanha, através de suas imagens, seduziu pessoas nos mais
diversos lugares e épocas, sendo que sua busca hoje pode ser
realocada à sua compra, pois esse lugar agora existe, porém continua
para poucos – somente para aqueles que sabem o seu “caminho”.
Segundo SZACHI (1972: 21), “certos motivos do pensamento
utópico
mostram
impressionante
constância,
acompanhando
fielmente a humanidade praticamente desde o início dos tempos
históricos até o mundo de hoje” e, ao nosso ver, é nesse ponto que
afirmamos que as imagens das construções de lugares tem cada vez
mais a presença de elementos (signos) que satisfazem através da
abundância os desejos dos homens de hoje, cada vez mais
cerc(e)ados pelas imagens da realidade posta pelos mesmos meios
de comunicação que nos falam que esses “lugares perfeitos” existem,
amparados nos fortes efeitos de verdade que tem as fotografias e as
imagens audiovisuais em nossa cultura. A mesma forma narrativa é
usada e a edificação dessa no espaço faz com que as formas que
encontramos materializadas em muito devem a esses lugares
imaginados.
Considerações Finais
Como afirmamos, a ressurgência do pensamento de Cocanha
pode ser analisado hoje através de imagens de lugares a serem
construídos com o intuito de “substituírem” uma realidade espacial
não agradável à grande parte das pessoas e que, através do todo
individual saciado, se fazem reais em seu discurso imagético – que
viemos chamar a isso de “discurso utópico contemporâneo”.
Temos também que, em grande parte das narrativas são
utilizados signos da realidade que confortam o espectador, pois esse
se sente mais próximo e desejoso ao lugar narrado e esse mais real
àquele que o ouve/lê/vê. A partir disso, justificam-se políticas,
construções de lugares, enfim, toda uma gama de relações que vão
implicar diretamente em nosso espaço/tempo e em sua leitura como
realidade.
Para finalizar, gostaria de frisar que muitas das questões
colocadas ficaram sem uma análise mais contundente, sendo melhor
discutidas em minha monografia de conclusão de curso do
Bacharelado em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas, a
ser concluída no final do ano de 2009. Enfim, todo um trabalho
começa em virtude das indagações do hoje, em busca de outras
indagações no amanhã.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Milton José de. “A Educação Visual da Memória - Imagens
Agentes do Cinema e da Televisão”. In: Pro-posições. vol. 10, n. 2
(29). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas,
1999.
BERLIN, Isaiah. Limites da utopia: Capítulos da história das idéias;
organização Henry Hardy; tradução Valter Lellis Siqueira. – São
Paulo: Companhia das Letras, 1991.
CIORAN, E. M. História e utopia - tradução de José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HELLER, Agnes. “O Homem do Renascimento” – Lisboa: Editorial
Presença, 1982.
FRANCO JR., Hilário. “Cocanha: a história de um país imaginário”. –
São Paulo: Companhia das Letras, 1998 [a].
FRANCO JÚNIOR, Hilário. “Cocanha: várias faces de uma utopia”. –
Cotia: Ateliê, 1998 [b].
OLIVEIRA JÚNIOR, Wenceslao Machado de. “ Realidades
Ficcionadas: palavras e imagens de um telejornal brasileiro. Anais em
cd-rom da 23ª Reunião Anual da Associação Nacional de PósGraduação em Educação. Caxambu: GT Educação e Comunicação,
Caxambu-MG. 2000. p. 1–20.
PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. “Discurso sobre a Dignidade
do Homem” – Lisboa: edições 70, 1989.
SZACHI, Jerzi. “As Utopias” – São Paulo: Paz e Terra, 1972.
Sites Pesquisados (agosto/2009)
www.swissparkcampinas.com.br
www.revistaswisspark.com.br
www.ricci-arte.biz/pt/Pieter-Bruegel-the-Elder-3.htm
www.raremaps.com/gallery/enlarge/17343
Cocanha
A Cocanha (trad. Hilário Franco Júnior)
Escute agora quem está aqui.
Todos devem ser meus amigos
E me honrar como seu pai,
Pois é correto e lógico que apareça
A grande sabedoria que Deus me deu,
Antes de contar
O que vocês escutarão e
Muito os alegrará.
Não tenho muita idade, mas
Nem por isso sou menos sábio.
Uma coisa vocês devem saber:
Barba grande não significa sabedoria;
Se os barbados fossem sábios
Bodes e cabras também o seriam.
Não valorizem a barba,
Pois muitos a têm grande, mas a inteligência
pequena:
O jovem é muito sensato.
Ao apóstolo de Roma
Fui pedir penitência,
Ele me enviou a uma terra
Onde vi muitas maravilhas:
Agora ouçam como são
Os habitantes daquele país.
Creio que Deus e todos os seus santos
Abençoaram-na e sagraram-na mais
Que qualquer outra região.
O nome do país é Cocanha;
Lá, quem mais dorme mais ganha:
Quem dorme até ao meio-dia
Ganha cinco soldos e meio.
De barbos, salmões e sáveis
São os muros de todas as casas;
Os caibros lá são esturjões,
Os telhados de toicinho,
As cercas são de salsichas.
Existe muito mais naquela terra de delícias,
Pois de carne assada e presunto
São cercados os campos de trigo;
Pelas ruas vão se assando
Gordos gansos que giram
Sozinhos, regados
Com branco molho de alho.
Digo ainda a vocês que por toda parte,
Pelos caminhos e pelas ruas,
Encontram-se mesas postas
Com toalhas brancas,
Onde se pode beber e comer
Tudo o que se quiser sem problema;
Sem oposição e sem proibição
Cada um pega tudo o que seu coração deseja,
Uns, peixe, outros, carne;
Se alguém quer carne
Basta pegar a seu bel-prazer;
Carne de cervo ou de ave,
Assada ou ensopada,
Sem pagar nada
Mesmo após a refeição.
É assim nesse país.
É pura e comprovada verdade
Que na terra abençoada
Corre um riacho de vinho.
As canecas aproximam-se dali por si sós,
Assim como os copos
E as taças de ouro e prata.
Este riacho do qual falo
É metade de vinho tinto,
Do melhor que se pode achar
Em Beaune ou no além-mar;
A outra parte é de vinho branco,
Melhor e mais fino
Que o produzido em Auxerre,
La Rochelle ou Tonnerre.
Quem quiser é só chegar,
Pegar pelo meio ou pelas margens,
E beber em qualquer lugar
Sem oposição e sem medo,
Sem pagar sequer uma moeda.
As pessoas lá não são vis,
São pelo contrário virtuosas e corteses.
Seis semanas tem lá o mês,
Quatro Páscoas tem o ano,
E quatro festas de São João.
Há no ano quatro vindimas,
Feriado e domingo todo dia,
Quatro Todos os Santos, quatro Natais,
Quatro Candelárias anuais,
Quatro Carnavais,
E Quaresma, uma a cada vinte anos,
Quando é agradável jejuar
Pois todos mantêm seus bens;
Desde as matinas até depois da nona
Come-se o que Deus dá,
Carne, peixe ou outra coisa.
Ninguém ousa proibir algo.
Não pensem que é piada,
Ninguém, de qualquer condição,
Que não considero desprezíveis,
Pois cheios de delicadeza
Distribuem calçados com cadarço,
Sofre em jejuar:
Três dias por semana chovem
Pudins quentes
Para cabeludos ou calvos,
Botas e botinas bem-feitas;
Quem quiser as terá,
Bem moldadas aos pés.
Se quiser, trezentas delas por dia
Para todos, eu sei porque vi.
Ali pega-se tudo à vontade.
O país é tão rico
Que bolsas cheias de moedas
Ou mesmo mais, obterá:
Tais sapateiros existem lá.
Há ainda outra maravilha,
Vocês jamais ouviram coisa semelhante:
Estão jogadas pelo chão;
Morabitinos e besantes
Estão por toda parte, inúteis:
Lá ninguém compra nem vende.
A Fonte da Juventude
Que rejuvenesce as pessoas,
E traz outros benefícios.
Lá não haverá, bem o sei,
As mulheres dali, tão belas,
Maduras e jovens,
Cada qual pega a que lhe convém,
Sem descontentar ninguém.
Homem tão velho ou tão encanecido,
Nem mulher tão velha que,
Tendo cãs ou cabelos grisalhos,
Não volte a ter trinta anos de idade,
Cada um satisfaz seu prazer
Como quer e por lazer;
Elas não serão por isso censuradas,
Serão mesmo muito mais honradas.
Se à fonte puder ir;
Lá podem rejuvenescer
Aqueles que moram no país.
Certamente é muito louco e ingênuo
E se acontece porventura
De uma mulher se interessar
Por um homem,
Ela o pega no meio da rua
Quem pôde entrar naquela terra
E de lá saiu.
Eu mesmo o sei,
Posso entender isso muito bem,
E ali satisfaz seu desejo.
Assim uns fazem a felicidade dos outros.
E digo a verdade a vocês,
Nesta terra abençoada
Pois fui louco
Quando de lá saí;
Mas meus amigos eu queria
Para aquela terra levar,
Há tecelões muito corteses,
Pois todo mês distribuem
De bom grado e com prazer
Roupas de diversos tipos;
Junto comigo, se pudesse.
Mas desde então não posso lá entrar.
O caminho que seguira,
Nem a trilha, nem a estrada,
Quem quiser tem roupa de brunet,
De escarlate ou de violete,
Ou de biffe de boa qualidade,
Ou de vert ou de saie escura,
Jamais pude encontrar.
E como não posso voltar,
Não tenho como me consolar.
Por isso uma coisa vou lhes dizer:
Ou de seda alexandrina,
De tecido listado ou de chamelin,
O que mais irei contar?
Existem lá tantas roupas
Se vocês estão bem,
Não mudem por nada,
Senão podem acabar mal.
Pois como ouvi muitas vezes
Das quais se pega à vontade,
Umas de cor, outras cinzas,
E, para quem quer, forradas de arminho.
A terra é tão feliz
Em um provérbio,
“Quem está bem não mude,
Pois pouco ganhará”;
Eis o que nos ensina o texto.
Que tem sapateiros
Fim da Cocanha
Fonte: www.swissparkcampinas.com.br
fonte: www.ricci-arte.biz/pt/Pieter-Bruegel-the-Elder-3.htm
fonte: http://www.raremaps.com/gallery/enlarge/17343
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Introdução Um lugar, criado por volta do século XII, XIII, outro no