“Um por todos” ou “todos por um”? O diálogo entre o talento e o comportamento
disruptivo
Não se fala de outra coisa na Liga Nacional de Futebol Americano de algumas semanas para cá: a
demissão de Terrell Owens, o talentoso recebedor do Philadelphia Eagles cujo comportamento disruptivo
(isto é, violento e insubordinado) marginalizava os colegas, técnicos e fãs.
Embora a saga de T. O. — como ele é mais conhecido — tenha dominado as páginas de esportes durante
vários dias, a cobertura do relacionamento do esportista com o Eagles caberia também perfeitamente nas
páginas de uma publicação acadêmica voltada para a administração. Professores da Wharton e
especialistas de outras instituições dizem que Owens é um caso clássico do funcionário extremamente
competente (uma “estrela”) que, em virtude do seu enorme talento, teve privilégios demais, apesar do
comportamento excêntrico (para dizer o mínimo) e abusivo (ou violento). Contudo, nem mesmo a
competência de Owens em receber passes e marcar touchdowns conseguiu salvar seu emprego, já que seu
comportamento chegou a um ponto em que foi considerado prejudicial ao bom funcionamento da equipe.
“Em qualquer empresa, o poder está sempre relacionado a uma certa dependência”, observa Lawrence
Hrebiniak, professor de Administração da Wharton. “Se a empresa depende do talento de alguém, e se esse
alguém possui um conhecimento difícil de achar por aí, o poder desse indivíduo aumenta. T. O. é dono de
um talento superior ao de qualquer outro jogador, e dispõe de um know-how muito mais valioso. Sempre
que um indivíduo tem esse tipo de influência, ele se torna peça fundamental para a organização, o que lhe
permite quebrar as regras com uma freqüência maior do que os demais empregados. Por causa desse
talento raro, a chefia decide lhe dar mais uma chance. Nenhum time agiria dessa forma se o sujeito em
questão, titular da equipe, fosse apenas medianamente capaz.”
Hrebiniak, porém, diz que Owens demonstrou que até mesmo um empregado de grande talento “pode ir
longe demais. T. O., apesar da sua importância e do seu poder, atacou a empresa e violou as regras. Seus
chefes lhe disseram então: “Se deixarmos você exagerar na dose, outros empregados, que talvez não
sejam tão imprescindíveis quanto você para o nosso sucesso, podem acabar fazendo a mesma coisa.”
“A forma como o empregador encara o diálogo entre o talento e o comportamento disruptivo depende do
valor que ele atribui ao trabalho em equipe e ao moral vigente na cultura da organização”, assinala Peter
Cappelli, professor de Administração da Wharton. “No caso de um vendedor muito competente, mas de
temperamento difícil, cujo trabalho, porém, é desenvolvido fora da empresa, talvez estejamos dispostos a
tolerar um nível elevado de dificuldades, porque o efeito disso sobre o desempenho da organização não é
significativo. Mas se o trabalho em equipe for essencial, o grau de tolerância será menor.”
Funcionários como Owens são comuns em quase todas as empresas, mas podem se tornar difíceis de lidar
em culturas que exijam resultados não menos que excelentes e que, ao mesmo tempo, enfatizam a
importância do espírito de cooperação e de harmonia. Para Cappelli, a decisão do Eagles de despedir
Owens indica a forma como a organização entende sua cultura. “Ao despedirem T. O., o Eagles passou a
seguinte mensagem: “Estamos dispostos a pagar um preço alto para preservar o trabalho em equipe. Não
toleraremos quem que não esteja disposto a contribuir para o bem geral da organização. No episódio
ocorrido, procuramos acertar o foco e deixar claras as prioridades de todos nós.”
Para quem não acompanhou a história de Owens, é importante observar que as atitudes questionáveis do
atleta não se limitaram a um ou dois incidentes isolados, e que havia um padrão nítido de autodestruição
final em todas elas. Antes do início da temporada de 2005, Owens — que tinha a reputação de jogador
insubordinado em seu antigo time, o San Francisco 49ers — fez diversos comentários e tomou atitudes que
provocaram sérias tensões entre os colegas e os técnicos da equipe.
Durante os treinos de verão, Owens criticou o time por se negar a renegociar um aumento de salário no seu
contrato, e isso depois de ter assinado, em 2004, um contrato multimilionário válido por vários anos. Ele
criticou também abertamente o zagueiro Donovan McNabb, profissional muito querido pela torcida. Owens
foi obrigado a abandonar os treinos em agosto de 2005, mas conseguiu uma segunda chance e voltou a
treinar. Durante o período de treinamento, o jogador recusou-se a falar com a imprensa, e num determinado
momento passou a se comportar de forma inusitada: fazia alongamentos no gramado de sua casa, em New
Jersey, com fone de ouvido enquanto as câmeras se deslocavam de um lado para o outro e os repórteres
gritavam perguntas que Owens ignorava.
Durante os primeiros poucos jogos da temporada, tudo parecia tranqüilo. Owens, porém, começou a criticar
a equipe e McNabb. Ele se queixava de que o Eagles não lhe prestara as devidas homenagens quando
marcou o centésimo touchdown de sua carreira, e faltou novamente ao respeito com McNabb no momento
em que concordou com os comentários de um entrevistador segundo o qual o Eagles não seria derrotado
se Bret Favre, zagueiro do Green Bay Packers, estivesse no Eagles no lugar de McNabb. Andy Reid,
técnico do Eagles, pediu então a Owens que se desculpasse com McNabb e com os outros jogadores do
time. Owens, porém, reagiu com um pedido de desculpas indiferente à equipe, e recusou-se a se desculpar
diretamente a McNabb. Reid suspendeu-o então por quatro jogos, e disse que Owens não jogaria mais pelo
Eagles até o fim da temporada. Na verdade, Owens foi demitido. Mais tarde, o jogador e seu agente deram
uma entrevista coletiva em que Owens se desculpou a todos os envolvidos, mas aí já era tarde demais. O
Eagles não planeja convocar Owens novamente.
Houve muita especulação sobre o futuro do time sem Owens antes do jogo de 14 de novembro contra o
Dallas Cowboys. O Eagles acabou perdendo a partida nos momentos finais, por 21 a 20, num lance em que
McNabb fez um corte que acabou resultando em um touchdown. A derrota levou Phil Sheridan, colunista
esportivo do The Philadelphia Inquirer, a fazer a seguinte observação: “Em algum lugar, pode acreditar,
Terrell Owens tinha em mãos um boneco de vodu com o no. 5 (o número de McNabb). Ele esperou o
momento exato, e mais doloroso, para espetar a agulha.”
Corrompendo a organização
Na opinião dos professores da Wharton, não se pode culpar o Eagles por correr um risco calculado no
momento em que propôs a Owens um contrato multimilionário antes da temporada de 2004. O clube
achava que o jogador poderia ajudá-lo a chegar ao Super Bowl (e foi o que aconteceu antes de perder para
o New England Patriots), mas o clube sabia também que o mau comportamento de Owens era uma
realidade imponderável.
Thomas W. Dunfee, professor de Estudos Jurídicos da Wharton e especialista em ética, acompanha de
perto o futebol profissional. Na sua opinião, o Eagles não pode ser responsabilizado pela contratação de
Owens, porque havia a possibilidade de que ele pudesse mudar na tentativa de se adaptar, de fato, a um
time célebre por sua disciplina extremamente racional.
“São vários os casos de jogadores profissionais com problemas nos times em que atuavam e que, ao
mudarem de clube, se endireitaram”, disse Dunfee. “Em tais casos, o mais provável é que esses jogadores
não tenham conseguido se adaptar à equipe, e por isso ganharam a reputação imerecida de problemáticos.
O Eagles é um time que sabe lidar com jogadores difíceis, isso é notório, portanto acho que o clube
acreditava que seria capaz de administrar um jogador talentoso como Owens.”
O caso em questão suscita questões éticas, porque se o comportamento disruptivo de indivíduos de nível
de desempenho elevado não for controlado de algum modo, pode acabar contrariando frontalmente os
valores da organização cujos códigos de conduta exigem dos empregados que tratem uns aos outros com
respeito. “Em relação às empresas, a existência de um duplo padrão ético, pelo qual ignora-se pura e
simplesmente a atitude das grandes estrelas, cujo comportamento é lamentável, corrompe a organização
como um todo”, observa Dunfee. “Os astros acham que as regras da ética não se aplicam a eles.”
“Até mesmo os gerentes mais capazes têm dificuldade em lidar com essa gente”, diz Katherine A. Nelson,
consultora de ética de Filadélfia e professora dos programas de educação executiva da Wharton. “Já é difícil
gerenciar um profissional de excelente desempenho e sem problemas de relacionamento pessoal. Contudo,
quando se tem de lidar com alguém que é muito bom no que faz, mas que não sabe se relacionar com as
pessoas, seu trabalho deixa de ser um desafio e se transforma em pesadelo. Não há nada capaz de minar
mais rapidamente o ambiente de trabalho do que uma estrela arrogante, grosseira, ou que exige tratamento
especial. Se esse tipo de comportamento não for censurado, o clube se transformará em uma bomba em
potencial, porque o ressentimento se alastrará contaminando os demais membros da equipe e com o tempo
— às vezes, pouco tempo — comprometerá o desempenho de todo o time. O Eagles é um exemplo perfeito
disso.”
A área mais seriamente afetada pelo comportamento irresponsável de uma estrela temperamental,
acrescenta Nelson, é a credibilidade da organização. “Com que autoridade ela pode afirmar que respeita
seu pessoal, e que se preocupa com ele, se permite que haja em seu meio práticas ofensivas? Não merece
crédito uma organização que, por um lado, promove publicamente a prática de valores nobres e, por outro,
ignora o comportamento grosseiro de um funcionário. Ela diz uma coisa e tolera outra. Esse é o início de um
câncer que devorará a organização de dentro para fora.”
Os especialistas, porém, ressaltam que nem todos os grandes profissionais são como pregos que precisam
da força do martelo para que se comportem como os demais empregados.
“Os melhores profissionais na área de vendas, ou até mesmo em organizações como os escritórios de
advocacia — os tais grandes “gurus” — que têm mau comportamento ou que seguem seus instintos tornamse, às vezes, extremamente desafiadores”, observa Linda Richardson, fundadora, presidente e CEO de uma
consultoria de vendas da Filadélfia que leva seu nome. “Contanto que o superprofissinal em questão
apresente resultados e seu comportamento não contrarie o sistema de valores da organização, e se esta for
capaz de lidar com a diversidade, ela se fortalecerá.”
Contudo, acrescenta Richardson, se a gerência “perceber a existência de um comportamento
inegavelmente nocivo”, e que “contrarie os valores e princípios da organização, ou se se tratar de um
comportamento totalmente inaceitável do ponto de vista do modelo padrão estabelecido, esse indivíduo
deverá passar por um treinamento e ser advertido de forma inequívoca sobre as conseqüências dos seus
atos, ou então ser demitido. Sempre acreditei em uma segunda chance. Muitas vezes, o mau
comportamento é resultante de uma série de atitudes negativas que o precederam. Creio que muitas
organizações que têm problemas com esses profissionais-estrelas teriam muito a ganhar se contratassem
um técnico executivo ou um conselheiro que ajudasse a gerência e o profissional em questão a solucionar
determinados problemas antes que o seu comportamento atinja um ponto limite.”
A conclusão a que se chega, de acordo com Richardson, que fez questão de ressaltar que não estava
totalmente familiarizada com os detalhes da história de Owens, é de que não há resposta pronta quando se
trata de demitir um funcionário de desempenho excepcional. “A verdade é que é extremamente difícil abrir
mão de uma estrela. Além disso, ninguém é insubstituível, ou pelo menos quase ninguém. Quanto mais
uma organização for capaz de conviver com a diversidade e limitar os seus “ativos mais preciosos” a um
número reduzido, lidando desde logo com os problemas por meio de coaching (consultoria especializada
que não visa, necessariamente, à troca de emprego, e o sim ao aperfeiçoamento do profissional no seu
local de trabalho) e de aconselhamento [...] tanto melhor, como também serão maiores as chances de
preservar as estrelas e criar situações em que não haja nenhum tipo de perda. Para decidir, é preciso pesar
os fatores — avaliar a contribuição do astro em questão e o custo da sua permanência. Esse custo não diz
respeito apenas ao dinheiro em si. Trata-se de algo que tem a ver com o moral, com a reputação pública
criada pelo modelo, com seu impacto sobre os padrões existentes e sobre o sistema de valores em vigor.”
As grandes estrelas constituem um desafio para qualquer gerência. Aqueles, porém, de desempenho
sofrível são também causa de muitos problemas. Nelson, consultora de ética, disse que a gerência não
deve tolerar os funcionários “simpáticos”, que não causam maiores problemas, mas que também não estão
à altura do que se espera deles.
“Há pessoas com quem é muito bom trabalhar, mas cujo desempenho apresenta resultados pífios ou
nulos”, observa. “Ambos os extremos do espectro desempenho/valores devem ser administrados com
cautela. Organizações mais perspicazes procuram recompensar os empregados por um comportamento
que reverta em resultados e ostente os valores organizacionais por meio dos quais foi possível à empresa
atingir aqueles resultados. Se, depois de fixar criteriosamente os objetivos e de recorrer ao coaching, o
funcionário-estrela não for capaz de se entrosar com os demais membros da organização, e o profissional
negligente não produzir resultados, ambos devem ser demitidos.”
Quando as estrelas convertem-se em ativos de alto risco
Num sentido bem amplo, as equipes esportivas, dada sua própria natureza, vêem-se diante de um dilema
quando obrigadas a lidar com estrelas imprevisíveis como Owens, assinala Cappelli, da Wharton. Os
jogadores e seus agentes sabem que aqueles serão recompensados por seu desempenho individual. Uma
estatística de resultados brilhantes — jardas percorridas, passes ganhos, touchdowns marcados e
interceptações feitas — implica salários lucrativos. Quanto ganha, porém, um linebacker (no futebol
americano, zagueiro que se posiciona atrás da primeira linha da zaga e cuja missão é impedir que o time
adversário avance com a bola pelo campo inimigo) por participar do time? O mesmo acontece com os
funcionários da empresa — talvez menos com o pessoal de escritório, cujos esforços não aparecem com
tanta nitidez na conta de lucros, mas sem dúvida é o caso do pessoal de vendas e do CEO, cuja
remuneração está diretamente associada ao desempenho.
“O verdadeiro dilema das equipes esportivas é que elas não têm como discriminar a contribuição efetiva do
indivíduo enquanto indivíduo em contraposição ao indivíduo enquanto membro da equipe”, observa
Cappelli. “Não há como avaliar o que seria melhor: preservar o sujeito de estatísticas brilhantes ou aquele
outro disposto a abrir mão de oportunidades individuais em prol da harmonia e do sucesso do grupo?
Ouvimos todo tipo de lugar comum sobre o trabalho em equipe, porém as equipes não trabalham com
pesos iguais. Elas louvam o trabalho em equipe, mas premiam financeiramente as estrelas individuais.”
Agora que Owens não faz mais parte do Eagles, será que outras equipes o procurarão para a temporada de
2006? Sem dúvida, diz Hrebiniak, da Wharton. Mas será que deveriam? “Tudo depende da inclinação delas
para o risco. O caso de Owens lembra a situação dos ativos de alto risco: o potencial de retorno é alto, tal
como o risco. Você compraria esses títulos? Qual o seu grau de tolerância ao risco? Quanto você pode
gastar? Se eu fosse técnico de um time com um histórico de derrotas, tentaria contratar Owens. Contudo,
equipes como o New England Patriots ou o Indianápolis Colts, cuja cultura de cooperação é bastante forte,
não devem pensar nisso.”
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