Soi-même comme un autre Paul Ricœur Cap.6: Le soi et l'identité narrative • Duas tarefas: levar ao seu mais alto grau a dialética da mêmeté e da ipséité, implicitamente contida na noção de identidade narrativa completar esta investigação do eu narrado pela exploração das mediações que a teoria narrativa pode operar entre teoria da ação e teoria moral: a) qual extensão do campo prático a função narrativa suscita? (ação descrita = ação narrada?) b) como a narrativa se mostra o primeiro laboratório do julgamento moral 1) A identidade narrativa e a dialética da ipseidade e da mesmidade • A verdadeira natureza da identidade narrativa só se revela na dialética da ipseidade e da mesmidade ↣ contribuição maior da teoria narrativa para a constituição do soi • ordem da argumentação: a) demonstrar como a mise en intrigue permite integrar à permanência no tempo o que parece contrário à identidade-mesmidade – diversidade, variabilidade, descontinuidade, instabilidade b) demonstrar como a mise en intrigue, transposta da ação aos personagens do relato, gera a dialética do personagem, que é uma dialética da mesmidade e da a) como a mise en intrigue permite integrar à permanência no tempo o que parece contrário à identidade-mesmidade • Dilthey: conexão da vida ≈ história de uma vida • É esta pré-compreensão da significação histórica da conexão que a teoria narrativa da identidade pessoal tenta articular em um nível superior de conceitualidade • A identidade, compreendida narrativamente, pode ser chamada identidade do personagem • Esta identidade se constrói em ligação com a construção do enredo - intrigue • identidade no plano da construção do enredo (mise en intrigue): concorrência entre uma exigência de concordância e a admissão de discordâncias que, até o fechamento da narrativa, ameaçam a identidade • configuração: arte da composição que faz mediação entre concordância e discordância • concordância discordante, característica de toda composição narrativa ⇒ síntese do heterogêneo: diversas mediações que o enredo opera (entre os acontecimentos e a unidade temporal da história relatada; entre os componentes da ação – intenções, causas e acasos – e o encadeamento da história; entre a pura sucessão e a unidade da forma temporal • Comparar a configuração narrativa ao tipo de conexão reivindicado por uma descrição impessoal • A diferença reside no estatuto do acontecimento: o evento narrativo é definido pela sua relação com a própria operação de configuração; ele participa da estrutura instável de concordância discordante do próprio enredo; é fonte de discordância, quando surge, e de concordância, ao fazer avançar a história • a produção do enredo – mise en intrigue – inverte o efeito de contingência fazendo dela necessidade ou probabilidade • A inversão do efeito de contingência em efeito de necessidade se produz no cerne do acontecimento • Esta necessidade é uma necessidade narrativa cujo efeito procede de ato de configuração enquanto tal • a operação narrativa desenvolve um conceito original da identidade dinâmica que concilia as categoria que Locke tinha como contrárias uma a outra: identidade e diversidade • O passo decisivo na direção de uma concepção narrativa da identidade pessoal é feito quando se passa da ação para o personagem ⇒ aquele que faz a ação no relato • A categoria do personagem também é uma categoria narrativa e o seu papel no relato decorre da mesma inteligibilidade narrativa que o próprio enredo • O que a categoria narrativa do personagem traz para a discussão da identidade pessoal? • a identidade do personagem é compreendida pela aplicação a ela da operação da produção do enredo – mise en intrigue – aplicada inicialmente à ação relatada • Como a teoria narrativa dá conta da correlação entre ação e personagem? - postulada por Aristóteles na Poética - narratologia contemporânea: constrangimento semiótico (Propp, Brémond, Greimas) • a estrutura narrativa conjuga os dois processos de produção do enredo, o da ação e o do personagem • “quem?”, “quê?”, “como?”: termos discretos da rede conceitual da ação (ponto de vista paradigmático); mas as respostas a estas questões formam uma cadeia que nada mais é do o encadeamento do relato (ponto de vista sintagmático) • Relatar/contar é dizer quem fez o quê, por quê e como, estendendo no tempo a conexão entre estes pontos de vista • a articulação entre intriga e personagem permite encaminhar uma pesquisa virtualmente infinita no plano da pesquisa dos motivos e uma pesquisa em princípio finita no plano da atribuição a alguém • As duas pesquisas se intrincam no duplo processo de identificação do enredo e do personagem b) como a mise en intrigue, transposta da ação aos personagens do relato, gera a dialética do personagem, que é uma dialética da mesmidade e da ipseidade • Desta correlação entre ação e personagem da narrativa resulta uma dialética interna ao personagem que é o corolário exato da dialética de concordância e discordância desenrolada produção do enredo – mise en intrigue – da ação • Segundo a linha da concordância o personagem extrai a sua singularidade da unidade da sua vida totalidade temporal singular que a distingue de qualquer outra • segundo a linha da discordância esta totalidade temporal é ameaçada pelo efeito de ruptura dos acontecimentos imprevisíveis que a pontuam (encontros, acidentes etc) • a síntese concordante/discordante faz com que a contingência do acontecimento contribua para a necessidade de algum modo retroativa da história de uma vida, ao que se iguala a identidade do personagem • o acaso é transformado em destino • uma pessoa, compreendida como um personagem de narrativa, não é distinta das suas experiências; pelo contrário, ela compartilha o regime da identidade dinâmica própria da história contada • o relato constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a identidade da história contada • É a identidade da história que faz a identidade do personagem • É esta dialética de concordância discordante que é preciso inscrever na dialética da mesmidade e da ipseidade • Isto se faz necessário a partir do momento que confrontamos a concordância discordante do personagem à exigência de permanência no tempo atrelada à noção de identidade ⇒ mesmidade do caráter, ipseidade da promessa • como a dialética do personagem vem se inscrever no intervalo entre estes dois pólos para fazer a mediação entre eles • a função mediadora que a identidade narrativa do personagem exerce entre os pólos da mesmidade e da ipseidade é atestada pelas variações imaginativas aos quais o relato submete esta identidade. • Mais do que tolerá-las, o relato busca, engendra estas variações • literatura: laboratório para experiências de pensamento onde são posta a prova da narrativa os recursos de variação da identidade narrativa • o benefício destas experiências é o de tornar manifesta a diferença as duas significações da permanência no tempo, fazendo variar a relação de uma a outra; na experiência cotidiana elas tendem a se superpor e se confundir • numa extremidade o personagem é um caráter identificável e reidentificável como mesmo (estatuto do personagem dos contos de fadas e do folclore) • no romance clássico – do romance inglês do séc.XVIII a Dostoievski e Tolstoi – se explora o espaço intermediário de variações, onde pelas transformações do personagem a identidade do mesmo diminui sem desaparecer • Nos aproximamos do pólo oposto com o romance de aprendizado e de fluxo de consciência ⇒ a relação entre enredo e personagem parece se inverter: o enredo é posto ao serviço do personagem • É então que a identidade deste último, escapando do controle do enredo e do seu princípio de ordem, é colocada verdadeiramente à prova ⇒ pólo extremo da variação, no qual o personagem deixa de ser um caráter • casos limites onde a ficção literária se presta a uma confrontação com os puzzling cases da filosofia analítica • conflito entre uma versão narrativista e uma versão não narrativista da identidade pessoal • casos desconcertantes da narratividade: ficções da perda da identidade (teatro e romance contemporâneos) ⇒ O homem sem qualidades (Robert Musil) • a medida em que o relato se aproxima do ponto de anulação do personagem o romance também perde as suas qualidades narrativas e se aproxima do ensaio • Mas o que significa perda de identidade aqui? De qual identidade se trata? • recolocados sob a dialética do idem e do ipse os casos desconcertantes da narratividade se deixam reinterpretar como o desnudamento da ipseidade pela perda do suporte da mesmidade ⇒ o que foi perdido é o que permitia de igualar o personagem ao seu caráter • comparação com os puzzling cases de Parfit para esclarecer o que é a ipseidade sem o suporte da mesmidade • As ficções literárias diferem das ficções tecnológicas na medida em que permanecem variações imaginativas em torno de um invariante, a condição corporal vivida como mediação existencial entre o self (soi) e o mundo ⇒ os personagens de teatro e romance são humanos como nós • como o corpo próprio é uma dimensão do self as variações imaginativas em torno da condição corporal são variações sobre o self e sua ipseidade • o traço de ipseidade da corporeidade se estende ao mundo enquanto corporalmente habitado ⇒ a Terra é mais do que um planeta, é o nome de nossa ancoragem corporal no mundo • A ação imitada pela ficção literária continua submetida aos constrangimentos da condição corporal e terrestre • o que os puzzling cases colocam como radicalmente contingentes, por meio da tecnologia (sonho tecnológico) é justamente esta condição corporal e terrestre que a hermenêutica da existência, subjacente à noção de agir e sofrer, tem como incontornável ⇒ cérebro ≈ pessoa • as variações imaginativas da ficção científica variações relativas à mesmidade e as da ficção literária relativas à ipseidade, ou mais precisamente, da ipseidade na sua relação 2) Entre descrever e prescrever: relatar (contar) • propósito: justificar a posição de articulação entre teoria da ação e teoria ética desempenhado pela teoria narrativa • em qual sentido é legítimo ver na teoria do enredo e do personagem uma transição significativa entre atribuição da ação a um personagem que pode e sua imputação a um personagem que deve? • 2 vertentes da questão: - em que medida a conexão entre enredo e personagem, além de esclarecer sob uma nova luz as dificuldades ligadas à relação entre ação e agente, proporciona uma extensão considerável do campo prático, se a ação descrita deve poder se igualar a ação narrada - apoios e antecipações que a teoria narrativa propõe à interrogação ética • uma revisão da relação entre entre ação e agente exige uma revisão do próprio conceito de ação • Por revisão deve-se entender bem mais do que uma extensão das conexões entre os segmentos de ação formatado pela gramática das frases de ação ⇒ é preciso fazer aparecer uma hierarquia das unidades práxicas que, cada uma no seu nível, comporta um princípio de organização específico integrando uma diversidade de conexões lógicas • As primeiras unidades compostas são aquelas que merecem o nome de práticas (ofícios, artes, jogos); relações de subordinação, mais do que de coordenação, de ações parciais à ação total • a unidade de configuração constitutiva de uma prática repousa sobre uma relação particular de sentido ⇒ regra constitutiva: ela é constitutiva no sentido que ela não é adicionada do exterior a movimentos que já teriam sua própria organização; ela em si reveste o gesto da significacão: a significação procede da regra, ela faz “valer como” • as regras constitutivas não são regras morais; elas apenas estabelecem a significação de gestos particulares • caráter de interação das práticas, que não é enfatizado na teoria analítica da ação porque as frases de ação são extraídas do seu ambiente social • as práticas repousam sobre ações nas quais um agente toma em conta, por princípio, a ação de outrem • a interação se torna uma relação interna – interiorizada – na relação de aprendizagem pouco a pouco transformada em habilidade adquirida • a organização das práticas lhes confere uma qualidade pré-narrativa, o que é reforçado pelos aspectos de interação próprios às práticas • a mesma relação entre praxis e narrativa se repete em um grau mais elevado de organização ⇒ praxis e bios (Aristóteles); unidade narrativa de uma vida (MacIntyre) • Planos de vida: vastas unidades práticas (vida profissional, vida de família, vida de lazer) situadas em um nível intermediário entre as práticas e o projeto global de uma existência • o campo prático não se constitui de baixo para cima pela composição do mais simples para o mais elaborado, mas segundo um duplo movimento de complexificação ascendente – a partir das ações de base e das práticas – e de especificação descendente a partir do horizonte vago e móvel dos ideais projetos à luz dos quais uma vida humana se apreende na sua unicidade • Unidade narrativa de vida (MacIntyre): não resulta somente da soma das práticas em uma forma englobante, mas também é regida por um projeto de vida, por práticas fragmentárias, os planos de vida constituindo a zona mediana de troca entre a indeterminação dos ideiais e a determinação das práticas • MacIntyre: unidade narrativa de uma vida ⇒ ponto de apoio para a visada da vida “boa”, ponto culminante de sua ética • concordância entre as análises de MacIntyre e de Ricœur em Temps e Récit, salvo pela pouca utilização, pelo primeiro, da narrativa literária, o que traz vantagens e desvantagens. • Como as experiências de pensamento suscitadas pela ficção contribuem ao exame de si mesmo na vida real? • relação entre autor, narrador e personagem: quando eu me interpreto nos termos de uma narrativa de vida eu sou os três ao mesmo tempo, como em um relato autobiográfico? • Narrador e personagem, sem dúvida, mas de uma vida da qual eu sou no máximo co-autor • noções de começo e fim: na ficção, nem um nem outro são necessariamente os dos acontecimentos relatados (exemplo do Proust, La Recherche…) • Este fechamento literário falta ao que MacIntyre chama de unidade narrativa de uma vida • Se a minha vida não pode ser apreendida como uma totalidade singular, eu não poderia desejar que ela seja bem sucedida, realizada • Mas na vida real nada tem valor de um começo ou de um fechamento narrativo; meu nascimento e minha morte fazem parte da história de outros • Ao contrário dos romances, que desenvolvem um mundo do texto próprio, sem que seja possível relacioná-los com os enredos incomensuráveis de outras obras literárias, as histórias vividas de uns são emaranhadas nas histórias vividas de outros – pais, familiares, amigos, colegas etc • É por este emaranhado, assim como por seu caráter aberto nas duas extremidades, que as histórias de vida são distintas das histórias literárias, historiográficas ou de ficção • última objeção: na compreensão de si a narrativa de vida só pode cobrir a fase já superada da vida, se articulando com antecipações e projetos • equivocidade da noção de autor; inacabamento narrativo da vida; emaranhado de histórias de vida umas nas outras; inclusão dos relatos de vida em uma dialética de rememoração e antecipação ⇒ ainda assim, não excluem a aplicação da ficção à vida • Fazendo o relato de uma vida do qual eu não sou o autor quanto à existência, eu me faço o co-autor quanto ao sentido • quanto a noção de de unidade narrativa da vida é preciso ver aí um misto instável de fabulação e experiência viva ⇒ é precisamente em função do caráter evasivo da vida real que precisamos do socorro da ficção para organizar aquela retrospectivamente • o relato literário só é retrospectivo aos olhos do narrador; fatos relatados no passado contém antecipações • narrativas literárias e histórias de vida não se excluem, se completam, a despeito ou por conta do seu contraste ⇒ a narrativa faz parte da vida antes de se exilar na escrita; ela retorna à vida pelas vias múltiplas da apropriação e ao preço das tensões inexpugnáveis há pouco apresentadas As implicações éticas da narrativa • de que maneira o componente narrativo da compreensão de si convoca por complemento as determinações éticas próprias à imputação moral da ação a seu agente? • a noção de identidade narrativa ajuda a explicitar as relações entre narratividade e ética • confrontação da versão narrativa e da versão ética da ipseidade • W. Benjamin: a arte de contar é a arte de trocar experiências ⇒ exercício popular de sabedoria prática, sabedoria que comporta apreciações, avaliações; as ações não deixam de ser aprovadas ou reprovadas, os agentes, louvados ou malditos • as experiências de pensamento conduzidas no laboratório da imaginação são também explorações conduzidas no reino do bem e do mal • o julgamento moral não é abolido, ele é submetido às variações imaginativas próprias da ficção • estes exercícios de avaliacão na dimensão da ficção podem exercer uma função de descoberta e de transformação com relação ao sentir e ao agir do leitor • mesmo as formas de narrativas que se pretendem as mais neutras, como o relato historiográfico, não atingem o grau zero da avaliação • destino distinto, mesmo oposto, da identidade nos registros da teoria narrativa e da teoria ética • identidade narrativa: entre os dois pólos da identidade, mesmidade e ipseidade • identidade narrativa: narrativiza o caráter, lhe devolvendo o movimento abolido nas disposições adquiridas e nas identificações sedimentadas, e narrativiza a visada da verdadeira vida, lhe dando os traços reconhecíveis dos personagens amados ou respeitados • assim integra a permanência no tempo do caráter e da manutenção de si • casos desconcertantes da ficção literária (“eu não sou nada”) e perda da identidade ⇒ como manter juntos o caráter problemático do ipse no plano narrativo e o seu caráter assertivo no plano do engajamento moral (“aqui estou”)? • Como Parfitt com a ficção científica (mesmidade), estes casos desconcertantes da ficção literária (ipseidade) também levam à conclusão que a identidade não importa? • Como manter no plano ético um self (soi) que parece se apagar no plano narrativo? Como dizer ao mesmo tempo “quem sou eu?” e “estou aqui”? • Por um lado, o “aqui estou” marca uma parada na errância a que se pode chegar pela confrontação de si mesmo com uma multiplicidade de modelos de ação e de vida. • Esta tensão o ato de promessa transforma em concórdia frágil: “eu posso tentar de tudo, mas eu permaneço aqui!” • A questão “quem sou eu?” se transforma em “quem sou eu, tão versátil, para que, no entanto, tu possas contar comigo?” • Diferença entre a modéstia da manutenção de si e o orgulho estóico da rígida constância de si • A caracterização da da ipseidade como relação de possessão entre a pessoa e os seus pensamentos, ações, paixões, não é sem ambiguidades no plano da ética ⇒ a possessão não é o que importa • casos limites da imaginação narrativa ⇒ dialética da possessão/despossessão, afirmação/apagamento de si, preocupação/despreocupação • Este despojamento está relacionado com o primado ético do outro sobre mim ⇒ é preciso que a irrupção do outro encontre a cumplicidade deste movimento de apagamento pelo qual o self (soi) se torna disponível ao outro • a crise da ipseidade não precisa ter por efeito a substituição da estima de si pelo ódio de si