Agressividade e transferência na clínica psicanalítica: de Freud a Winnicott
Priscila F P Robert
A abordagem da transferência na clínica psicanalítica através das noções
freudianas de repetição e de atualização permite compreendê-la como a criação de uma
zona intermediária entre a doença e a vida real do sujeito.
A dimensão de repetição, mais constantemente abordada, e muitas vezes
confundida com a noção de projeção, é bastante nítida no artigo freudiano sobre
transferência, de 1912:
Deve-se compreender que cada indivíduo, através da ação combinada de sua disposição inata e
das influências sofridas durante os primeiros anos, conseguiu um método específico próprio de
conduzir-se na vida erótica – isto é, nas precondições para enamorar-se que estabelece nos
instintos [pulsões] que satisfaz e nos objetivos que determina a si mesmo no decurso daquela.
Isso produz o que se poderia descrever como um clichê estereotípico (ou diversos deles),
constantemente repetido – constantemente reimpresso – no decorrer da vida da pessoa. (p.111)
É importante notar que, ao mesmo tempo em que a transferência carrega em sua
definição principal a noção de repetição, ela pode, com maior ou menor ênfase, como
aponta Laplanche e Pontalis (1998, p. 514), ser compreendida a partir da noção de
atualização da experiência. Assim, é possível compreender a transferência como a
criação de espaço intermediário, com atualizações vividas como contemporâneas e
reais. Estabelece-se assim uma analogia, pontuada pelo próprio Freud neste texto, entre
a transferência e o sonho, o que coaduna com a concepção winnicottiana da
transferência como espaço transicional (Winnicott, 1975). Esta dimensão da
transferência ainda persiste, quando Freud define o tratamento como uma luta entre
médico e paciente, entre o intelecto e vida pulsional, entre a compreensão e a procura
da ação, sendo o espaço para esta luta estabelecido justamente no campo transferencial.
Como aponta Freud (1914):
Alcançamos normalmente sucesso em fornecer a todos os sintomas da moléstia um novo
significado transferencial e em substituir sua neurose comum por uma neurose de transferência.
´(...) A transferência cria, assim, uma região intermediária entre doença e vida real, através da
qual a transcrição de uma para outra é realizada (...) Trata-se de um fragmento de experiência
real, mas um fragmento que foi tornado possível por condições especialmente favoráveis e que é
de natureza provisória.
E, entre todos os paradoxos que o campo transferencial inclui, talvez o mais
notável seja a dimensão de resistência da transferência. Ou seja, a transferência é
condição para que o tratamento ocorra e, ao mesmo tempo, a maior resistência possível
ao tratamento. No intuito de tentar compreender este paradoxo, Freud procura
classificar a transferência em dois tipos: a transferência positiva, compreendida em
termos dos sentimentos de simpatia e afetivos conscientes, dirigidos à figura do analista
e também inconscientes, sendo esses últimos de natureza invariavelmente erótica, e a
transferência negativa, que incluiria os sentimentos hostis do paciente em relação ao
analista. A partir desta divisão “didática”, Freud parece avançar na compreensão do
fenômeno: “Assim, a solução do enigma é que a transferência para o médico é
apropriada para a resistência do tratamento apenas na medida em que se tratar de
transferência negativa ou de transferência positiva de impulsos eróticos reprimidos”.
(p.117)
No entanto, o que parece ser facilmente solucionado do ponto de vista teórico
não o é na prática, uma vez que, para que a transferência adquira contornos de
resistência é necessário o suporte da transferência afetuosa. Freud pontua: “Cada
associação isolada, cada ato da pessoa em tratamento tem de levar em conta a
resistência e representa uma conciliação entre as forças que estão lutando no sentido do
restabelecimento e as que se lhe opõe, já descritas por mim.” (FREUD, 1912, p. 115)
Em outras palavras, transferência positiva e negativa precisam coexistir. Esta é
a condição para o tratamento psicanalítico. Freud aponta que nas psiconeuroses,
sentimentos afetuosos e hostis, conscientes e inconscientes ocorrem lado a lado e são
dirigidos simultaneamente para a mesma pessoa. Assim, repetir, resistir e elaborar são
trabalhos que ocorrem neste espaço que engloba a dimensão da ambivalência. Em
outras palavras, o que possibilita o trabalho de elaboração da transferência negativa,
dentro dos limites do que é possível elaborar numa análise, é a ocorrência da
simultaneidade dos afetos de amor e ódio dirigidos à figura do analista. Nos casos de
paranóia, aponta Freud, a transferência negativa pode tomar conta da relação, o que leva
à impossibilidade de influência ou cura. Se a transferência negativa domina o quadro, a
caracterização intermediária, ambivalente e criativa do espaço analítico deixa de ser
possível, e a transferência deixa de possuir a dimensão simbólica e de se caracterizar
como espaço análogo ao sonhar. Freud pontua a impossibilidade de influência ou cura
nestes casos em que a transferência negativa domina. No caso de sentimentos hostis,
leva ao abandono do tratamento, no caso de sentimentos eróticos inconscientes pode
levar a um tratamento que nunca chega ao fim, o que ocorre com freqüência em
instituições.
Qual abordagem possível diante de um paciente em que o risco da
agressividade se apresenta como uma ameaça, não só ao tratamento, mas ao próprio
sujeito?
O paciente em questão chega após um surto psicótico e uma crise de
agressividade. Este atendimento foge do formato tradicional em vários aspectos, na
freqüência dos atendimentos, no local e no contrato de atendimento. Importante notar,
desde o início, o atendimento ocorre “com uma mesa entre nós”. Na sala de
atendimento, há duas poltronas e o divã e, na entrada da sala, perto da porta, uma mesa
e duas cadeiras. No primeiro dia, ele não quis ir à cadeira e está lá até hoje. Suas
maiores questões são a ausência de um sentido para a vida emoldurada por uma
nostalgia de algo que não consegue nomear com palavras e “encarar de frente”, e um
ódio enorme que sente, e que o faz ter crises agressivas, que ele mesmo não sabe dizer
se são ou não reais em algumas situações. O que chama atenção é que, embora a
agressividade contra si e contra os outros esteja bastante presente em sua vida, na
relação comigo não há sinais de hostilidade.
A hipótese é que, no caso apresentado, a agressividade não pode ser
compreendida em termos de expressão de ambivalência amor-ódio, mas como
circunscrita no processo de construção da relação de objetos. Winnicott (1963, p. 113
afirma: “No impulso agressivo-destrutivo como um todo, também está contido um tipo
primitivo de relação com o objeto que envolve destruição. (...) parto do princípio de que
o bebê tornou-se capaz de combinar a experiência erótica e agressiva, e em relação a um
único objeto. Foi alcançada a ambivalência.”
Em outras palavras, este processo dialético de destruir/construir o objeto ainda
implica o risco da destruição total para este paciente. Trata-se do manejo da
agressividade compreendida em momento anterior à instalação da ambivalência
emocional. Em seu artigo sobre contratransferência, Winnicott fala de pacientes
borderlines, ou com tendência anti-social, que não fariam análise strito sensu. Nestes
casos, seria necessário, por parte do analista dar “resposta às necessidades do paciente”.
Este caso exige uma espera para que o campo transferencial se estabeleça e que a
proximidade-distância se estabeleça para que a agressividade-destrutividade ganhe um
espaço. Winnicott afirma que, nas análises clássicas, a distância entre analista e paciente
adquirem uma função de símbolo: “A atitude profissional é como um simbolismo, no
sentido de que pressupõe uma distância entre analista e paciente. O símbolo está no
fosso entre o objeto subjetivo e o objeto que é percebido objetivamente.” (p. 148, 1960)
No caso deste paciente, é preciso que a mesa marque esta distância, uma proteção para
mim e para ele próprio, para que o vínculo afetivo se sustente.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. A dinâmica da transferência (1912) In: FREUD, S. Edição Standard das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
________ Recordar, Repetir e Elaborar (1914) In: ________ Edição Standard das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LAPLANCHE, J. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 1998.
WINNICOTT, D. Contratransferência (1960). IN: Winnicott, D. O ambiente e os
processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto
Alegre: Artmed, 1983.
_______. O desenvolvimento da capacidade de envolvimento (1963) In: ________.
Privação de Delinquência. São Paulo: Martins Fontes, 1995
________. O brincar e a realidade (1971). Rio de Janeiro: Imago, 1975
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