O JULGAMENTO DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 423.768-SP
NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:AINDA O PROBLEMA DA
PROGRESSIVIDADE DO IPTU
Leonel Cesarino Pessôa1
Iniciou-se, no Supremo Tribunal Federal, o julgamento do Recurso Extraordinário
nº 423.768-SP, em que se discute a constitucionalidade da Lei nº 13.250/2001 do
Município de São Paulo que estabeleceu alíquotas progressivas para o IPTU, em razão do
valor venal e destinação do imóvel. A Municipalidade recorreu da decisão do extinto
Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que havia declarado a
inconstitucionalidade da referida lei por ter ela, ao dar nova redação à Lei 6.989/66,
supostamente violado princípios constitucionais.
Votaram até o momento o relator, Ministro Marco Aurélio além dos Ministros
Cármen Lúcia, Eros Grau, Joaquim Barbosa e Sepúlveda Pertence. Todos eles
acompanharam o voto do relator no sentido de dar provimento ao recurso da
Municipalidade, reconhecendo a constitucionalidade da cobrança progressiva. O
julgamento foi adiado pelo pedido de visa do Ministro Carlos Britto.
Essa é a segunda vez que os Município tentam fazer com que as alíquotas desse
imposto sejam fixadas de forma progressiva. Em São Paulo, no governo da então prefeita
Luisa Erundina foi feita uma primeira tentativa. Acreditava-se, naquela época, que o texto
da Constituição Brasileira tal como foi promulgado permitia a cobrança progressiva em
razão do valor venal do imóvel.
A Carta Magna continha, à época de sua promulgação, dois dispositivos diretamente
ligados ao tema da progressividade do IPTU. O § 1º do artigo 156, do título VI, dispunha:
“O imposto previsto no inciso I [o IPTU] poderá ser progressivo, nos termos de lei
municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”. Por outro
lado, no capítulo II do Título VII, intitulado Da Política Urbana, o art. 182 ainda dispõe:
“A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme
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Doutor em Direito pela USP, foi pesquisador visitante na New School for Social Research (Nova
York/EUA) e na Università Commerciale Luigi Bocconi (Milão/Itália).
diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. E seu § 4º e
respectivos incisos, por sua vez, dispõem: “É facultado ao Poder Público municipal,
mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal,
do proprietário do solo urbano não edificado, sub-utilizado ou não utilizado, que promova
seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: I - parcelamento ou edificação
compulsórios; II – imposto sobre propriedade predial e territorial urbana progressivo no
tempo”.
Os intérpretes concordaram sobre o sentido do artigo 182 § 4º e respectivos incisos:
tratava-se de implementar a chamada progressividade extrafiscal, com o objetivo de dirigir
o comportamento de contribuintes proprietários do solo urbano não edificado, não utilizado
ou subutilizado.
Existia, no entanto, divergência com relação à interpretação do § 1º do artigo 156:
enquanto alguns autores sustentavam que esse dispositivo disciplinava um outro tipo de
progressividade, distinto da do artigo 182, de feição fiscal e caráter arrecadatório, outros
sustentavam que os dois artigos estariam ligados. Assim, o artigo 182 § 4º seria a
“explicitação especificada” do artigo 156 § 1º, e a progressividade extrafiscal a única
possível em face do texto constitucional.
Esses últimos argumentavam também que o princípio da capacidade contributiva que está no fundamento do critério da progressividade - não se aplicaria aos impostos ditos
reais, mas apenas aos impostos pessoais.
Com efeito, o § 1º do artigo 145 dispõe: “Sempre que possível, os impostos terão
caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte,
facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio,
os rendimentos e as atividades do contribuinte“.
Os autores que viam na progressividade extra-fiscal do artigo 182 a única
progressividade do texto constitucional, argumentavam que, de acordo com a Carta Magna
de 1988, os impostos deveriam ter, sempre que possível, caráter pessoal. E apenas nesses
casos (em que os impostos fossem pessoais e não reais) o tributo deveria ser graduado de
acordo com a capacidade econômica do contribuinte.
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Portanto, no entender desses autores, a única progressividade prevista no texto
constitucional seria a do artigo 182, porque ela teria função de dirigir comportamentos e
não é informada pelo princípio da capacidade contributiva.
O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se sobre essa controvérsia no Recurso
Extraordinário nº 153.771-0, interposto por um particular contra a Prefeitura do Município
de Belo Horizonte, e relatado pelo Ministro Moreira Alves, cujo voto conduziu a decisão
vencedora. Naquela ocasião, o Supremo entendeu que a Constituição não autorizava outra
progressividade do IPTU além daquela prevista no artigo 182, e julgou inconstitucional a
Lei do Município de Belo Horizonte.
Depois dessa decisão, no entanto, o legislador constitucional promulgou a Emenda
Constitucional de nº 29/2000, alterando os termos do § 1º do art. 156. Esse dispositivo
passou a conter a seguinte redação: “Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se
refere o art. 182, § 4º, inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá: I - ser progressivo
em razão do valor do imóvel e II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e
uso do imóvel”.
Portanto, com a Emenda Constitucional o legislador determinou, expressamente,
que a progressividade do IPTU poderia ser tanto extrafiscal como fiscal, e que o § 1º do
artigo 156 estava disciplinando a progressividade de caráter fiscal.
Mesmo assim, os contribuintes continuaram a ingressar em juízo contra a cobrança
progressiva. Passaram a alegar, dessa vez, a inconstitucionalidade da própria Emenda
Constitucional. Respaldados por pareceres de autores como Miguel Reale e Ives Gandra, os
contribuintes argumentaram que os impostos dividem-se em pessoais e reais e que somente
os impostos ditos pessoais poderiam ser graduados de acordo com a capacidade econômica
do contribuinte.
Por outro lado, argumentavam que a não progressividade dos impostos reais seria
cláusula pétrea e, nesse sentido, não poderia ser alterada nem mesmo por Emenda
Constitucional.
Em dois artigos publicados em periódicos nacionais, discuti detidamente o erro na
argumentação dos contribuintes.
Em meu artigo publicado no número 60 da Revista Tributária e de Finanças
Públicas, intitulado “IPTU, Impostos Reais e Progressividade”, procurei mostrar como a
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tese de que o critério da progressividade não se aplica aos impostos reais fundava-se em
referências feias referências à doutrina italiana feitas pelo então Ministro Moreira Alves no
voto que conduziu o RE 153.771-0.
Com efeito, no fundamento de seu voto, o Ministro relator faz referência a uma
série de doutrinadores italianos para os quais a progressividade não se aplicaria aos
impostos reais. Com efeito, são citados trechos dos livros de Vincenzo Carullo (La
Costituzione della Repubblica Italiana, p. 184, Dott Cesare Zuffi-Editore, Bologna, 1950),
Zingali (apud Cocifera, Principii di Diritto Tributario, I, os. 253/254, nota 60, Dott A.
Giuffè, Milano, 1974), Berliri (Principii di Diritto Tributario, I, 2ª ed., os. 268/269, Giuffrè
Editore, Milano, 1967) e Gianini (Comentario Sistematico alla Costituzione Italiana diretto
da Piero Calamandrei e Alessandro Levi, vol I, p. 284, G. Barbèra Editore, Firenze, 1950)
que apontariam como a progressividade seria aplicável apenas aos impostos pessoais.
Exemplificando toda essa série de citações, o Ministro relator cita Vincenzo Carullo que,
comentando o artigo 53 da Constituição italiana, que dispõe que: “todos são obrigados a
concorrer para as despesas públicas em razão de sua capacidade contributiva” e que “o
sistema tributário é informado por critérios de progressividade” teria escrito:
“Naturalmente, não queremos dizer – nem o podemos – que todos os impostos
devem ser indistintamente progressivos, porque sabemos como isso seria IMPOSSÍVEL ou
cientificamente errado: porque bem sabemos que A PROGRESSÃO NÃO CONDIZ COM
OS IMPOSTOS REAIS e pode encontrar só inadequada e indireta aplicação nos impostos
sobre consumos e nos impostos indiretos em geral”.2
Procurei mostrar como essas afirmações fariam sentido apenas no contexto em que
foram produzidas, isto é, na Itália, no período anterior à reforma dos anos 70 que unificou
os diversos impostos sobre a renda.
O segundo argumento utilizado pelos contribuintes foi o de que a Emenda
Constitucional seria, ela mesma, inconstitucional, por ter violado cláusula pétrea da
Constituição Federal.
De acordo com Miguel Reale, por exemplo, entre as matérias que, de acordo com a
Carta Magna, não poderiam ser objeto de alteração, estariam os direitos e garantias
individuais, nos termos do inciso IV, parágrafo 4º, do artigo 60 da Constituição.
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Voto do Ministro Moreira Alves no RE nº 153.771-0.
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Muitos senão todos os dispositivos tributários da Constituição seriam, no entender
dos autores referidos, direitos e garantias individuais. Esse seria o caso dos dispositivos
que, antes da Emenda Constitucional, impediam a progressividade do IPTU.
Nas palavras do professor Miguel Reale, no texto constitucional de 1988, “vigia
todo um sistema de normas constitucionais que protegia o direito de propriedade urbana
contra a incidência de imposto progressivo lançado com base no valor venal do imóvel”.3
Esse sistema não poderia, portanto, segundo ele, em hipótese alguma, ser alterado, sob pena
de violação de direitos e garantias individuais.
Em outro artigo intitulado “Iptu, progressividade e a emenda constitucional
29/2000: o julgamento do supremo tribunal federal”, procurei mostrar o erro desta
concepção, à medida que ela engessa o texto constitucional para bem além daquela que foi
a intenção do constituinte.
Por tudo isso, estão corretos os argumentos lançados pelo Ministro Relator Marco
Aurélio, e a decisão do Supremo caminha no sentido de estabelecer que existe uma outra
manifestação da capacidade contributiva além da renda de cada um, qual seja, o valor venal
de seus imóveis e de dar aos Municípios mais um instrumento de política fiscal.
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REALE, Miguel. “O IPTU Progressivo e a Inconstitucionalidade da EC 29/2000”. In: Revista Dialética de
Direito Tributário nº81, p. 126.
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o julgamento do recurso extraordinário nº 423.768