<faltando> <faltando> Artigo Inédito Relatos clínicos e de técnicas, investigações científicas e revisões literárias A Cirurgia Ortognática na Reabilitação do Paciente Portador de Fissura Unilateral Completa de Lábio e Palato Definidas como a falta de coalescência entre os processos faciais embrionários e entre os processos palatinos, as fissuras lábiopalatais representam um desafio à integração social de seu portador, pois, quando acometem o lábio, estampam na face suas marcas inexoráveis e, quando acometem apenas o palato, deixam suas seqüelas no mais importante processo da comunicação: a fala. O processo de reabilitação das fissuras lábio-palatais é complexo e lento, portanto, deve ser formulado com prudência e coerência. A seqüência terapêutica tem início bem cedo, nos primeiros anos e meses de vida, com as cirurgias primárias do lábio e palato. Nas fissuras completas de lábio e palato, essas cirurgias passam a exercer um papel negativo sobre a face média, impedindo-a de alcançar a plenitude do seu potencial genético de crescimento. À ortodontia cabe a supervisão do crescimento facial durante o desenvolvimento da oclusão, com o objetivo de reduzir o déficit maxilar a partir do final da dentadura decídua e do qual a ortopedia maxilar precoce, pré e pós-cirurgias primárias, é excluída. Este artigo se refere à reabilitação facial e oclusal de um paciente portador de uma fissura unilateral completa de lábio e palato, através da interação ortodontia/cirurgia ortognática/cirurgia plástica. Na realidade, o tratamento aqui apresentado representa apenas um dos pilares do longo processo reabilitador, que deve sempre incluir, entre outras especialidades, a fonoaudiologia, para que a reabilitação seja completa e consiga reintegrar o indivíduo no seu universo social. UNITERMOS: fissura palatina, tratamento ortodôntico, cirurgia ortognática. Orthognathic surgery in the rehabilitation of a complete unilateral cleft lip and palate patient Cleft lip and palate result from the lack of fusion among the maxillary and palatal processes and represent a challenge for the social integration of the patient. Patients with a cleft lip show the cleft marks on their faces and patients with a cleft palate express its consequences in their speech. The rehabilitation process of a cleft patient is complex. Treatment begins early with the primary surgeries of the lip and palate (cheiloplasty and palatoplasty, respectively). In cleft lip and palate patients, these surgeries, however, also have a negative influence on the midface growth. In this article we describe an orthodontic/surgical treatment of a complete unilateral cleft lip and palate patient and remind that this is just one of the steps required for the cleft patient’s total rehabilitation. UNITERMS: cleft lip and palate, orthodontic treatment, orthognathic surgery. Omar Gabriel da Silva FilhoA Flávio Mauro Ferrari JúniorB Roberta Martinelli CarvalhoC Reinaldo MazzottiniD A ORTODONTISTA DO HOSPITAL DE PESQUISA E REABILITAÇÃO DE LESÕES LÁBIO-PALATAIS (HPRLLP) DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), EM BAURU – SP. ORTODONTISTA E EX-ALUNO DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM ORTODONTIA DA PROFIS, EM BAURU – SP. RESIDENTE DO SETOR DE CIRURGIA ORTOGNÁTICA DO HPRLLP – USP, EM BAURU – SP. D CIRURGIÃO BUCOMAXILOFACIAL, RESPONSÁVEL PELO SETOR DE CIRURGIA ORTOGNÁTICA DO HPRLLP – USP, EM BAURU – SP. B C Omar Gabriel da S. Filho REVISTA DENTAL PRESS DE ORTODONTIA E ORTOPEDIA FACIAL VOLUME 3, Nº 4 JULHO / AGOSTO - 1998 51 INTRODUÇÃO Visando oferecer aos ortodontistas uma informação aprofundada sobre as possibilidades terapêuticas em pacientes com fissuras lábio-palatais, o presente artigo dá ênfase à participação da ortodontia e da cirurgia ortognática no abrangente contexto de reabilitação do paciente fissurado, filosofia esta adotada pelo Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões Lábio-Palatais – USP2,5,14,17. Através da descrição detalhada de um caso clínico, o leitor entenderá a seqüência do pensamento lógico que culminou com o diagnóstico e o plano de tratamento do paciente apresentado nas figuras 3 a 13 e entenderá, através da tabela I e da figura 1, a variabilidade de manifestações morfológicas das fissuras lábio-palatais11,18. A figura 2 ilustra as cirurgias plásticas iniciais (queiloplastia e palatoplastia), tão fundamentais na reabilitação da fissura unilateral de lábio e palato (fissura transforame incisivo unilateral). O PROCESSO REABILITADOR Um paradoxo inevitável salta aos olhos do profissional reabilitador: as cirurgias plásticas reparadoras (queiloplastia e palatoplastia), responsáveis pela reconstrução do lábio e palato fissurados, também mutilam. Mutilam por restringirem progressivamente o deslocamento anterior normal e espontâneo da maxila ao longo do crescimento craniofacial1,3,4,6,9,10 e mutilam por reforçarem a tendência natural ao deslocamento medial dos processos palatinos individualizados pela fissura 8,15,16. Em conseqüência desse paradoxo tão verdadeiro quanto irrefutável, surgem as mordidas cruzadas e um variável retrognatismo maxilar - traços comuns do paciente fissurado adulto que submeteu-se às cirurgias plásticas reparadoras em tenra idade. Essas distorções morfológicas, faciais e oclusais, consagradas na literatura pertinente, podem ser realçadas na figura 3. Por isso, impedem que o processo reabilitador das fissuras lábio-palatais se restrinja às cirurgias primárias, valorizam o trabalho em equipe e despertam a apreensão dos ortodontistas. A noção da conseqüência a longo prazo das cirurgias precoces faz da ortodontia uma especialidade inseparável do processo de reabilitação total do paciente fissurado. A tarefa da ortodontia consiste em se instalar como um real oponente ao efeito lento porém implacável das cirurgias, o que equivale a dizer, reconciliar cirurgias precoces e potencial de crescimento da face média, levando à possível plenitude o crescimento latente do complexo maxilar. Sabe-se que a face média é a estrutura vulnerável às forças negativas impostas pelas cirurgias primárias 9. Pode-se comprovar isto pela face e oclusão do paciente ilustrado nas figuras 3 a 11. A mandíbula também está alterada nas fissuras de lábio e palato12. Ela é menor e com características de crescimento vertical. Mas isso é inerente à presença da fissura, sem influência das cirurgias13. Iniciativas ortopédicas de caráter mecânico, tais como o emprego da expansão rápida da maxila seguida pela tração reversa da maxila, têm sido sustentadas pelo protocolo de tratamento defendido pelo setor de ortodontia do Hospital de Pesquisa e Reabilitação de Lesões LábioPalatais - USP (HPRLLP), para as fissuras completas de lábio e palato. Muitas vezes constituem medidas eficazes para impulsionar a maxila em direção anterior e acabam por mantê-la num plano sagital esteticamente aceitável. Recentemente tivemos a oportunidade de estender essa experiência bem sucedida aos leitores através da literatura14,17. Em que pese o esforço da ortodontia para reprimir as seqüelas pós-cirúrgicas, é no entanto notória a possibilidade de fracasso, com o avultamento da desfiguração facial - o sintoma mais lancinante - e do desarranjo da oclusão. Quando a deficiência maxilar atinge um grau de magnitude que inviabiliza o limite ortopédico da ortodontia e/ou quando a idade cronológica restringe o pouco de avanço maxilar que poderíamos recrutar com a mecanoterapia (Figs. 3 a 11), a falência das possibilidades ortodônticas dá lugar ao reposicionamento cirúrgico das bases apicais, depois de terminado o crescimento facial da adolescência. REVISTA DENTAL PRESS DE ORTODONTIA E ORTOPEDIA FACIAL VOLUME 3, Nº 4 CIRURGIA ORTOGNÁTICA O planejamento ortodôntico envereda pelo caminho da cirurgia ortognática quando a discrepância esquelética inviabiliza a possibilidade de compensação dentária. Fiel à conduta que tem seguido desde a sua implantação no HPRLLP, o setor de Cirurgia Ortognática se compromete a buscar, em conjunto com o setor de Ortodontia, uma solução objetiva para a descompensação ortodôntica prévia ao reposicionamento cirúrgico das bases ósseas. À ortodontia cabe reposicionar os dentes nas suas respectivas bases ósseas. À cirurgia cabe reposicionar as próprias bases ósseas7,19-21. O objetivo da cirurgia ortognática ao complementar as limitações ortodônticas é devolver ao paciente a função oclusal e mastigatória, restabelecendo a saúde bucal e tendo, como conseqüência, uma melhora estética. A opção pela cirurgia ortognática como complemento da ortodontia enfatiza, portanto, a preocupação da equipe reabilitadora não só com a aparência facial mas também com a função oclusal e a saúde periodontal. CASO CLÍNICO O paciente, sexo masculino, 14 anos e 6 meses de idade, apresentado nas figuras 3 a 11, ilustra as definições conceituais e clínicas inerentes à reconstrução cirúrgica precoce da fissura unilateral completa de lábio e palato (fissura transforame incisivo unilateral do lado direito)11,18. O mesmo foi operado em épocas oportunas (queiloplastia aos 5 meses de idade, palatoplastia primária para o palato duro aos 12 meses de idade e para o palato mole aos 18 meses de idade) em outro serviço. O quadro clínico apresentado na documentação ortodôntica inicial corrobora a rigorosa vinculação da morfologia dentofacial adulta ao processo reabilitador cirúrgico inicial, fazendo triunfar a tese de que as cirurgias reparadoras interferem no crescimento da face média. A tabela II esclarece a cronologia da história clínica do paciente em questão. A condição oclusal inicial era marcada nitidamente por uma atresia severa da maxila, progressivamente mais grave em direção anterior (Fig. 3). JULHO / AGOSTO - 1998 52 lábio superior forame incisivo rebordo alveolar palato mole Figura 1. O desenho esquemático representa uma vista oclusal do lábio superior e da maxila, colocando o forame incisivo como ponto focal e estratégico do sistema de classificação das fissuras lábio-palatais. As denominações pré-forame incisivo e pós-forame incisivo estão na dependência da localização da fissura, se à frente ou posteriormente a esta estrutura. As fissuras completas de lábio e palato (transforame incisivo) iniciam-se no lábio e acabam no palato mole, atravessando o forame incisivo. REVISTA DENTAL PRESS DE ORTODONTIA E ORTOPEDIA FACIAL VOLUME 3, Nº 4 JULHO / AGOSTO - 1998 53 A Figura 2. Fissura transforame incisivo unilateral (fissura unilateral completa de lábio e palato), não operada (A, B). A maxila encontrase dividida em 2 segmentos: o segmento palatino maior (não fissurado) e o segmento palatino menor (fissurado). As cirurgias primárias (queiloplastia e palatoplastia) reconstroem a fissura (C, D). B REVISTA DENTAL PRESS DE ORTODONTIA E ORTOPEDIA FACIAL VOLUME 3, Nº 4 JULHO / AGOSTO - 1998 54 C D REVISTA DENTAL PRESS DE ORTODONTIA E ORTOPEDIA FACIAL VOLUME 3, Nº 4 JULHO / AGOSTO - 1998 55