ZORZI JL. . O que devemos saber a respeito da linguagem escrita e seus distúrbios:
indo além da clínica. In: Andrade, C. R. F.; Marcondes, E.. (Org.). Fonoaudiologia em
pediatria. São Paulo, 2003, v. 1, p. 120-132.
Aprender a ler e a escrever: indo além dos métodos
Prof. Dr. Jaime Luiz Zorzi
2003
CEFAC – Centro de Especialização em Fonoaudiologia Clínica
Introdução
Um dos principais objetivos da educação elementar é o ensino da leitura e da
escrita. Porém, atingir esta meta não tem se mostrado uma tarefa muito fácil, tendo em
vista o número muito elevado de alunos que tem sido apontado como apresentando
dificuldades no processo de aprendizagem da língua escrita (ZORZI, 2000).
De acordo com dados do INEP (2002), temos uma população de estudantes em
nível elementar estimada em mais de quarenta milhões. Deste total, cerca de vinte e
cinco milhões estão cursando o ensino fundamental de 1ª a 4ª série, sendo
principalmente atendidos pela rede escolar pública.
Estima-se, também, que 40%, ou mais, destes estudantes estão tendo
dificuldades no processo de aprendizagem, principalmente envolvendo do domínio da
leitura e da escrita. Para agravar ainda mais este quadro, os demais alunos, embora
não sejam considerados como portadores de dificuldades, estão apresentando, em sua
maioria, um baixo rendimento escolar. E, para complementar, esta realidade, embora
mais acentuada nas escolas públicas, pode, muitas vezes, também ser aplicável à rede
particular de ensino. Uma pesquisa realizada por ZORZI et al (2002), voltada para o
estudo da formação de atitudes e hábitos de leitura em alunos das quatro séries do
primeiro grau, confirma que as atividades escolares destinadas a desenvolver leitores
não pareceram estar sendo realmente efetivas.
Os valores indicativos de altos índices de dificuldades de aprendizagem e de
baixo rendimento escolar, mesmo daquelas crianças consideradas como não
apresentando qualquer distúrbio de aprendizagem, são pouco animadores e levantam
questões fundamentais, particularmente em termos das etapas iniciais da
escolarização. Muitas são as razões que levam a esta situação que, dada sua
configuração, obriga a reflexões de natureza social, política, econômica e, como não
poderia deixar de ser, de ordem metodológica. e de aprendizagem propriamente dita. O
objetivo deste texto é o de apontar alguns aspectos importantes da aprendizagem da
linguagem escrita que merecem ser considerados em propostas de ensino que
estejam voltadas para a superação ou minimização dos problemas atualmente
encontrados nessa área.
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Aspectos determinantes da apropriação da escrita
O aprendizado da leitura e da escrita depende, fundamentalmente, de condições
sociais propícias. Ele está subordinado a situações de aprendizagem informal ou
espontânea decorrentes do contato da criança com pessoas letradas e da
aprendizagem formal ou escolar, envolvendo situações especialmente planejadas.
Assim sendo, a idade para se aprender a escrever fica condicionada não somente às
características da criança em si, mas também à existência de condições culturais
específicas, de um ambiente letrado e ao momento em que a criança passa, de alguma
forma, a ser ensinada. Encontramos, assim, idades variadas em termos desta
aprendizagem.
Muitas crianças, desde pequenas, têm a oportunidade de interagir com textos
escritos, assim como com pessoas que lêem e escrevem. Situações deste tipo podem
propiciar a descoberta e a compreensão das funções e usos que as pessoas fazem da
linguagem escrita. Quanto mais intenso for este tipo de interação, maiores
oportunidades as crianças terão para ir construindo conhecimentos diversificados a
respeito dos atos de ler e escrever. Tais conhecimentos, que podem ter sido originados
nestas situações naturais ou espontâneas, permitem a construção de hipóteses a
respeito de ler e escrever (FERREIRO e TEBEROSKY, 1986).
Este conjunto de conhecimentos poderá ter um papel determinante na
aprendizagem formal da escrita, uma vez que servirá de base para que a criança
compreenda aquilo que a escola está lhe ensinando quando iniciar uma proposta formal
de alfabetização. Nestes casos, a probabilidade de sucesso aumenta, uma vez que os
métodos se mostram mais eficazes para aqueles que já trazem uma possibilidade de
assimilar, de alguma forma, o que está sendo proposto.
Por outro lado, crianças que não tiveram tais oportunidades para interagir com a
escrita e com pessoas que lêem e escrevem em razão de viverem em ambientes não
letrados ou de baixo nível de letramento, podem não apresentar o mesmo rendimento.
Este desconhecimento ou compreensão mais limitada que elas possam ter, tenderá a
interferir nas possibilidades de sucesso das propostas formais de alfabetização, caso
estas não levem em consideração a realidade vivida por tais crianças. Limitações
semelhantes poderão estar ocorrendo com crianças que, apesar de terem sido criadas
em ambientes letrados e terem tido a possibilidade de interagir com a linguagem
escrita, por alguma razão não o fizeram, até mesmo por falta de envolvimento ou de
interesse em relação a ela.
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Alfabetização e os diferentes perfis de alunos
Em determinado momento da vida das crianças uma proposta formal de ensino
da língua escrita tem início. Cabe à escola esta tarefa, desenvolvendo procedimentos
ou métodos que permitam a obtenção de tal meta, ou seja, de alfabetizar as crianças,
transformando-as em pessoas capazes de ler e escrever. Entretanto, nem todas as
crianças chegam da mesma forma a este ponto. Se relembrarmos o que foi apontado,
podemos verificar que a escola estará lidando com crianças com diferentes perfis.
Em primeiro lugar, podemos falar daquelas crianças que tiveram a oportunidade de
constituir conhecimentos importantes a respeito da linguagem escrita por terem
convivido com pessoas que lêem e escrevem e terem tido acesso a textos escritos.
Estas crianças, em geral, principalmente a partir de situações reais e naturais de
interação, foram, ao longo do tempo, construindo noções significativas a respeito da
escrita as quais podem, em muito, facilitar o processo de assimilação daquilo que está
sendo apresentado. Nesta categoria provavelmente encontram-se as crianças com
maiores chances de sucesso frente às propostas escolares para o ensino da leitura e
da escrita. Entretanto, caberá à escola a tarefa, nem sempre alcançada, de dar
continuidade a este processo de construção de conhecimentos formando pessoas
realmente capazes de fazer uso efetivo da leitura e da escrita.
Em segundo lugar, encontraremos crianças que, embora tenham tido chances de
interagir com a linguagem escrita por viverem em ambientes nos quais esta forma de
comunicação está presente, não chegaram, por questões provavelmente ligadas ao
interesse, a construir conhecimentos significativos. Temos podido observar diferenças
marcantes entre crianças, inclusive irmãos: enquanto alguns desenvolvem alto
interesse pela escrita e procuram informações cada vez mais detalhadas sobre ela,
outros não manifestam a mesma curiosidade, como se esta forma de linguagem não
merecesse maior atenção. Isto nos leva a crer que, nem sempre, a oportunidade
garante a aprendizagem, mesmo quando o aprendiz possa ter boas condições
cognitivas e lingüísticas para tanto. O desafio para as escolas, nestes casos, será
também estendido a questões de natureza motivacional, ou seja, como envolver,
cognitiva e afetivamente com a leitura e com a escrita, uma criança que até então,
apesar das oportunidades, mantém com elas uma relação de distância.
Em terceiro lugar, podemos falar de um número imenso de crianças que,
principalmente por viverem em condições sociais e econômicas pouco favoráveis,
acabam tendo muitas restrições em termos de oportunidades para aprender fatos
relativos à linguagem escrita. Devemos lembrar que baixo nível de escolaridade e
letramento, assim como o analfabetismo, fazem parte de tal quadro. Neste sentido,
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uma criança que embora possua boas condições de aprendizagem em geral, mas que
sofre restrições nas oportunidades que tem para interagir com a linguagem escrita,
assim como com pessoas que dela fazem uso real, não terá como construir
conhecimentos sobre algo que, efetivamente, não faz parte de sua vida. Esta,
infelizmente, parece ser a realidade de uma parcela significativa de crianças brasileiras
cujo grande problema não é a falta de capacidade para aprender, mas sim a ausência
de oportunidades para se tornar um aprendiz.
Este grande conjunto de crianças trará enormes desafios para a Educação
principalmente tendo em vista os recursos e métodos tradicionalmente empregados
para a alfabetização e as concepções de aprendizagem e desenvolvimento que estão
por detrás deles. A maior parte delas está destinada ao fracasso escolar e irá compor
as estatísticas daqueles 40% de alunos com dificuldades de aprendizagem, de uma
grande porcentagem daqueles com baixo rendimento escolar, de reprovações,
daqueles com defasagem entre a idade e a série, dos que estão em programas de
aceleração escolar e até mesmo daqueles que um dia acabarão abandonando a escola.
Se bem que tais crianças tendam a ser taxadas como portadoras de distúrbios de
aprendizagem estamos, na realidade, frente ao que podemos chamar de “pseudosdistúrbios”. Para podermos afirmar que alguém tem dificuldade de aprendizagem
precisaríamos garantir a existência de condições e oportunidades efetivas para que a
aprendizagem pudesse ter ocorrido (ZORZI, 2003).
Um quarto grupo será composto por crianças com graus variáveis de reais
dificuldades de aprendizagem. Nele podemos incluir aqueles escolares que, de fato,
apresentam alterações de alguma ordem em seu desenvolvimento, como é o caso das
deficiências sensoriais, da deficiência mental, dos distúrbios motores, dos distúrbios
neurológicos e comportamentais. Estas são crianças consideradas como tendo
necessidades educativas especiais, para as quais estão destinadas escolas
exclusivamente especializadas ou classes especiais de escolas regulares. De acordo
com dados do INEP, esta população corresponde a cerca de 8% dos alunos. Podemos
ainda acrescentar aquelas crianças que, embora não se encaixem nas categorias
anteriores de deficiências mais conhecidas, também apresentam dificuldades reais para
a aprendizagem. Teoricamente, estas deveriam ser as crianças-problemas para a
educação, uma vez que, de fato, são portadoras de alguma limitação que dificulta, em
maior ou menor grau, as possibilidades de aprendizagem. Entretanto, se somarmos o
total que elas representam, estaremos muito longe dos 40%, ou mais, dos alunos
apontados como apresentando distúrbios de aprendizagem e mais distante, ainda, do
total de alunos apresentando baixo desempenho escolar, que corresponde à maioria.
Esta realidade, já conhecida, muitas vezes não parece ser levada em consideração
quando se pensa nas razões dos problemas e em como superá-los. Ainda, para muitos,
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a resposta está centrada nas crianças, o que sustenta a crença de que uma alta
porcentagem apresenta distúrbios de aprendizagem. Daí a tendência para busca de
soluções fora da escola, via intervenções predominantemente de natureza extraescolar, quer seja fonoaudiológica, psicopedagógica, médica, psicológica e assim por
diante. Não se questionam os métodos, mas sim
os aprendizes.
Continua
prevalecendo a crença de quem não aprende tem algum tipo de problema.
As “soluções” para os problemas da aprendizagem
As intervenções extra-escolares, de caráter predominantemente clínico, portanto,
são cogitadas quando há alguma quebra no processo de ensino aprendizagem,
acreditando-se que o ponto frágil está situado em quem aprende. A perspectiva é que
uma intervenção adequada possa resolver ou minimizar problemas apresentados pela
criança de modo que a aprendizagem escolar possa ser, de alguma forma, garantida.
Isto não deixa de ser verdade, para alguns. Porém, se considerarmos a porcentagem
de estudantes com reais dificuldades, estaremos falando em um número aproximado de
10 a 15%, o que pode representar cerca de 6 milhões de crianças e jovens no ensino
elementar. Se fizermos projeções com o número de estudantes considerados como
tendo dificuldades para aprender (cerca de 40%), estaremos falando em um universo
de aproximadamente 24 milhões de crianças. Impossível pensar em soluções que
sigam modelos de intervenção clínica, sem envolver mudanças educacionais. Ao lado
de problemas de aprendizagem em níveis individuais, que levam a pensar nestas
formas mais tradicionais de intervenção, temos o predomínio de problemas decorrentes
da falta de oportunidades para aprender, o que configura a necessidade de novos
enfoques nas propostas escolares. Temos, acima de tudo, um problema social e não
clínico propriamente dito.
Na realidade, as soluções não podem ser unilaterais. Temos, por um lado, que
buscar suprir as necessidades mais individualizadas que aqueles que apresentam
dificuldades de aprendizagem podem requerer, incluindo atendimentos especializados.
Por outro lado, a grande maioria dos problemas diz respeito a uma falta de ajuste entre
a propostas escolares e a realidade da maior parte dos aprendizes de modo a gerar o
que denominamos os pseudos-distúrbios de aprendizagem (ZORZI, 2003), assim como
os baixos índices de aproveitamento.
Em sua grande maioria, predominam em todos estes problemas que configuram
os diversos tipos de distúrbios de aprendizagem, dificuldades relativas à aquisição da
linguagem, muitas vezes no plano da oralidade e, invariavelmente, no que diz respeito
ao aprendizado da leitura e da escrita. Estamos falando, portanto, do desenvolvimento
de habilidades lingüísticas fundamentais para que o processo de escolarização, de uma
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forma geral, possa ser garantido: aprender a linguagem para poder aprender pela
linguagem. Este é um princípio fundamental da educação.
Têm sido muito acentuados os desafios da Educação, sendo que os números e a
realidade revelam, claramente, que não tem sido fácil superá-los. Acreditamos que há
necessidade de um esforço conjunto, envolvendo profissionais de formações distintas
mas complementares, que possam colaborar para a elaboração de novas propostas
educacionais, que melhor se ajustem ao perfil da população a ser educada. A
linguagem é um dos temas de maior destaque e acreditamos que o fonoaudiólogo é um
dos profissionais deve se preparar para poder estar presente e prestar sua contribuição.
A Leitura
Entre os fatores de maior importância para a aprendizagem da leitura podemos
citar os conhecimentos adquiridos informalmente no dia a dia, a capacidade de usar a
linguagem e de conhecer suas características, a inteligência, a dinâmica familiar, as
condições afetivas, o interesse e motivação para novas aprendizagens assim como
oportunidades para aprender e, de extrema importância, a qualidade da instrução
escolar que está sendo oferecida. Qualquer falta ou alteração em algum destes
aspectos pode estar determinando prejuízos no processo de desenvolvimento e
aprendizagem.
A leitura corresponde a um ato de compreensão, ou seja, a uma busca daquilo
que o texto pode significar. Para que a leitura seja possível, há necessidade de se
compreender os símbolos ou letras e a significação por eles representada, ou seja, a
relação entre símbolos (significantes) e aquilo que eles simbolizam (significado). Assim
sendo, uma criança que seja somente capaz de decodificar, simplesmente
pronunciando as palavras sem alcançar o entendimento das idéias nelas contidas, não
pode ser considerada como alguém que realmente lê. O ato de leitura, portanto,
ultrapassa a simples pronúncia, mesmo que correta das palavras, envolvendo outras
capacidades:
• Compreender o papel da escrita enquanto um sistema de representação da
linguagem oral e seus usos sociais;
• Reconhecer os sinais gráficos e diferenciá-los entre si;
• Compreender que a escrita é organizada espacialmente de um modo particular,
seguindo uma direção da esquerda para a direita, tanto na formação das palavras,
na formação das sentenças assim como na estruturação geral do texto;
• Reconhecer um conjunto de letras como uma palavra escrita e transformá-la na
palavra correspondente na oralidade;
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Compreender o sistema ortográfico, ou seja, o conjunto de regras que regula a
transformação de sons em letras e letras em sons - a passagem do oral para o
gráfico e vice-versa;
Compreender o papel da pontuação na organização e significação do texto;
Buscar a compreensão do texto;
Reconhecer os diferentes tipos de textos e seus usos;
Retomar o texto para resolver dúvidas;
Buscar as intenções e o ponto de vista de quem escreveu e
Ter uma postura de quem reflete ou pensa sobre o que foi lido.
Crianças com problemas quanto ao domínio da leitura podem apresentar uma série
de dificuldades, dentre as quais podemos destacar as seguintes:
• Não conhecimento ou pouca familiaridade com os símbolos gráficos, o que provoca
dificuldades de reconhecimento e diferenciação entre os mesmos, assim como sua
correlação com o som correspondente;
• Falta de fluência, isto é, as dificuldades para reconhecer ou discriminar as letras , ou
grupos de letras, acabam por alterar a fluência ou fluxo continuado da leitura;
• Velocidade da leitura:
- lenta, em razão das dificuldades em lidar com os símbolos gráficos;
- muito rápida, dificultando a compreensão do que está escrito e, em geral,
acompanhada de uma série de alterações como omissão, substituição ou
distorção das palavras ou trechos do texto;
• Não compreensão ou desconhecimento do sistema de pontuação e de seu papel na
estruturação dos textos;
• Falhas de compreensão;
• Emprego de estratégias inadequadas de interação com o texto:
- leitura estritamente limitada ao sentido literal das palavras;
- leitura acentuadamente dedutiva, com o leitor pouco se prendendo ao texto e,
praticamente, procurando "adivinhar" o que está escrito.
Para leitores competentes sejam formados, podemos tomar como referência
algumas sugestões feitas por HINSON (2001) a respeito dos aspectos que definem um
bom leitor, o que nos permite seguramente afirmar que os programas escolares, assim
como clínicos, deveriam ter como objetivo a formação de atitudes e habilidades nos
estudantes como:
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A leitura deve fazer parte do cotidiana, não se limitando a finalidades meramente
acadêmicas; Ter autonomia para eleger os textos que serão lidos;
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A capacidade de ler sem que o leitor tenha que se deter em palavra por palavra e,
menos ainda, em letra por letra. Um bom leitor trabalha com grandes unidades de
significado do texto e não com somatória de detalhes dos significantes.
Comprovar o acerto de antecipações ou previsões;
Buscar o sentido da leitura;
Ler com fluidez;
Ser capaz de perceber e destacar as partes importantes de um texto;
Obter livros;
Ter razões ou propósitos para ler;
Ser capaz de criar imagens a partir do texto;
Monitorar a compreensão, desenvolvendo a consciência do que está sendo
assimilado ou não;
Desenvolver procedimentos de auto-correção;
Ouvir histórias lidas por outros e saber desfrutar da situação;
Estabelecer relações entre o conteúdo dos textos e os fatos da própria vida;
Parafrasear o que está sendo lido, expressando o conteúdo em palavras próprias e
não simplesmente repetindo o que está escrito a partir de estratégias de memória
que podem não significar compreensão;
Elaborar perguntas a partir do texto e buscar possíveis respostas, o que leva à
construção de reflexões pessoais e à busca de respostas internas;
Compartilhar com os outros o que está sendo lido;
Encontrar tempo para ler;
Desejar ler;
Descobrir que pode, via leitura, interagir com o autor do texto;
Para aquelas crianças que vivem em ambientes letrados que lhes proporciona
interação constante e sistemática com a leitura, esta tarefa de formação de bons
leitores, estará sendo partilhada, na realidade, entre a escola e o ambiente extraescolar, principalmente a família. O grupo familiar, a partir da relação que mantenha
com a leitura, terá peso fundamental no processo eficiente de formação de leitores
verdadeiros. Neste caso, a escola não é o único agente de transformações e de
aprendizagens.
Por sua vez, crianças cuja realidade corresponde a ambientes não letrados ou de
baixo nível de letramento, dependem, de modo praticamente exclusivo, da atuação da
escola na sua formação de leitores. Por esta razão, a escola deve compreender
claramente qual o seu papel na educação destas crianças, assumindo, realmente, a
condição de mais importante agente de transformações e de aprendizagens que elas
possam ter. Para elas seria fundamental o acesso a uma educação em nível préescolar que as recebessem ainda pequenas, a fim de otimizar oportunidades de
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aprendizagem. Crianças com este perfil, o qual corresponde à maioria de nossa
população, deveriam ser vistas e tratadas não como carentes sociais ou culturais, mas
sim como clientes privilegiados, pela relação de dependência e exclusividade que
mantêm com a escola.
A Escrita
Escrever também não se reduz a um simples processo de "codificação" ou seja,
de simples transformação de fala em escrita. A escrita é uma forma de representação
da linguagem oral e, como tal, escrever também diz respeito a um ato de significar, de
representar idéias, conceitos ou sentimentos através de símbolos, mas de ordem
gráfica e não sonora. Porém, embora corresponda a um sistema de representação da
oralidade, a escrita não se limita a ser uma transcrição exata daquilo que é falado
possuindo características próprias que precisam ser compreendidas pela criança que
aprende a escrever (ZORZI, 1998). Algumas das capacidades envolvidas na escrita
podem ser aqui apontadas:
• Compreender a escrita como um modo de representação da linguagem oral;
• Conhecer as letras e o valor sonoro das mesmas;
• Identificar, na fala, os sons que formam as palavras e fazer a correspondência entre
sons e letras, o que implica a consciência fonológica;
• Compreender que existe uma variação entre o modo de falar e o modo de escrever;
• Conhecer o sistema ortográfico da língua:
- existência de sons que são representados por uma única letra;
- existência de sons que podem ser representados por diversas letras;
- existência de letras que podem simbolizar mais do que um som;
• Dominar o uso da linguagem;
• Compreender o papel da pontuação e as formas de organizar textos;
• Planejar, antecipar e desenvolver uma narrativa;
• Buscar coesão e clareza no relato;
• Considerar as características do leitor;
• Auto corrigir-se, sendo capaz de reescrever o texto;
• Diferenciar entre os "estilos" típicos de expressão por meio da oralidade e os
"estilos" característicos da expressão escrita
Podemos observar uma variedade muito grande de dificuldade relativas à escrita
que podem variar em termos de extensão e profundidade. Muitas crianças apresentam
problemas principalmente de ordem ortográfica, o que é bastante comum, enquanto que
outras possuem limitações significativas em todos os aspectos envolvidos com o
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domínio da escrita. Alguns destes problemas comumente encontrados na escrita
podem ser descritos como:
• Conhecimento limitado das relações entre letras e sons;
• Falta de compreensão ou de domínio do sistema ortográfico;
• Dificuldades para organizar o texto espacialmente e para empregar a
pontuação;
• Dificuldades na construção de narrativas que podem ser caracterizadas por
ausência ou falhas de planejamento ou antecipação, por ausência de clareza e
coerência, por limitações na capacidade de desenvolver ou explorar um tema
ou, ainda, em razão de limitações de ordem gramatical;
• Desconhecimento ou domínio precário dos estilos próprios da escrita;
• Ausência de procedimentos de autocorreção ou de reescritura do texto.
Em sua natureza, a linguagem escrita corresponde a uma representação da
linguagem falada. Representar um objeto não se limita a reproduzir o objeto tal e qual,
como se fizéssemos um retrato. Quando escrevemos, não estamos simplesmente
"desenhando" os sons em forma de letras, ou seja, fazendo uma mera associação
entre letras e sons. Escrever diz respeito a representar a oralidade, o que implica, em
parte, corresponder sons e letras. Porém, enquanto sistema de representação, a escrita
não é idêntica à oralidade, como se fosse uma simples transcrição. Quando estamos
escrevendo, embora possamos estar dizendo as mesmas coisas que diríamos
oralmente, organizamos o discurso de uma outra maneira, isto é, a escrita possui
características próprias enquanto sistema de comunicação que divergem daquelas
características típicas da oralidade. A escrita exige novas formas de raciocinar e de
organização do pensamento. Isto quer dizer que não bastam habilidades perceptivomotoras, uma vez que entra em jogo o desenvolvimento de formas particulares de
pensamento e de simbolização implícitas na escrita e que não são necessárias na
oralidade.
Considerações finais
Aprender a ler e escrever implica o desenvolvimento de novas habilidades de
linguagem, ou seja, novos modos de representar e compreender a realidade. Não
basta, simplesmente, que ela tenha uma boa capacidade de compreensão e expressão
oral uma vez que as habilidades ou capacidades exigidas para o domínio da leituraescrita não estão implícitas, de antemão, no uso da linguagem oral. É preciso que a
criança desenvolva formas particulares de interagir, via leitura, com textos escritos,
assim como desenvolva novas maneiras de se expressar, de acordo com o modos
próprios da escrita.
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Tais habilidades não se restringem a aspectos perceptivos e motores, mas sim à
construção de novos modos de representação que, certamente,
incluem tais
habilidades mas que vão além delas envolvendo questões ligadas a diferentes usos de
linguagem e diferentes maneiras de organizar o pensamento. A aprendizagem da
leitura-escrita é bastante complexa, o que nos permite afirmar que não é de se
estranhar que muitas crianças apresentem dificuldades na evolução de tal processo.
Quando são apontadas as condições favoráveis ou necessárias para que uma
criança possa ter êxito na aprendizagem da leitura-escrita, é pouco freqüente vermos
referências aos conhecimentos informais que ela já tem a respeito de ler e escrever.
Certamente, uma criança que tenha contato freqüente com a leitura-escrita, que viva
situações nas quais tais ações sejam usuais, façam parte de sua realidade, e que delas
possa participar de alguma forma tem, a princípio, melhores condições para assimilar
tal processo de aprendizagem em comparação com crianças que não têm o mesmo tipo
de vivência. O simples fato de os adultos criarem hábitos de ler histórias para as
crianças pequenas, permite que elas se familiarizem com aquelas características que
são típicas do sistema de escrita como, por exemplo, o tipo de vocabulário empregado,
o uso de formas gramaticais mais elaboradas e, principalmente, as formas mais
complexas de organização de narrativas. Acrescente-se a isto, é claro, a possibilidade
de desenvolver uma capacidade de interagir com os conteúdos da leitura.
Aprender alguma coisa significa dominar um conhecimento e ser capaz de fazer
uso dele, considerando que, dependendo do estágio de aprendizagem, este
conhecimento pode ser mais profundo ou mais superficial. Para tanto, no que se refere
à aprendizagem da linguagem escrita, nós adultos desenvolvemos métodos
pedagógicos com a finalidade de facilitar tal apreensão ou domínio.
Assim sendo, podemos apontar alguns elementos básicos no processo de
aprendizagem da leitura e da escrita, como a criança que aprende e o método que a
conduz ao aprendizado. Quando são apontadas possíveis causas que impedem ou
dificultam o aprendizado, observamos que elas estão centradas principalmente na
criança: déficits perceptuais, insuficiência no desenvolvimento da fala ou da linguagem,
dificuldades de ordem cognitiva, distúrbios emocionais; família com baixo nível de
letramento, pobreza, estrutura familiar e assim por diante. Atualmente, tem-se
observado uma reflexão mais crítica sobre os problemas de ordem metodológica e que
podem também causar dificuldades na aprendizagem.
Pensando-se de uma forma mais abrangente, o papel da escola pode ser tido
como o de compreender a realidade dos alunos e o de se propor a modificá-la, via
educação. Isto significa que a escola tem a responsabilidade de transformar a realidade
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da grande maioria dos alunos e não ficar se lamentando que não tem o êxito esperado
porque os alunos têm problemas. Seu papel é o de superá-los.
Os aspectos relevantes da aprendizagem, porém, não estão limitados somente a
quem aprende e a quem ensina. Mais especificamente, quem ensina, ensina alguma
coisa e quem aprende, aprende alguma coisa. Neste sentido, não tem sido dada a
devida atenção para a questão que envolve o próprio objeto a ser conhecido, “a coisa”,
ou seja a, linguagem escrita com suas peculiaridades. A escrita corresponde a um
objeto complexo de aprendizagem e, como tal, pode ser, em si, um fator determinante
de dificuldades e limitações na relação entre ensino e aprendizagem. Por esta razão,
ela pode estar sendo incluída entre os grandes desafios que estão implícitos na
aprendizagem escolar, os quais dizem respeito à natureza e complexidade do objeto a
ser conhecido: o próprio sistema de linguagem escrita. Não haverá método eficiente se
não for levada em consideração a natureza da escrita, do ponto de vista de seus
elementos e propriedades lingüísticas, assim como seus usos e funções sociais.
Há muito o que se compreender a respeito da linguagem em si, principalmente
porque, como profissionais ligados à educação ou aos distúrbios da aprendizagem,
estamos nos propondo o papel de mediadores entre a criança e a leitura-escrita. Isso
significa um aprofundamento no sentido de conhecermos melhor os processos
cognitivos e lingüísticos necessários para que a criança deixe de ser unicamente
“falante” de uma língua, com os conhecimentos “intuitivos” de linguagem que isto
implica, para tornar-se “escrevente” da mesma língua, com os novos conhecimentos,
agora no plano conceitual, que tal aprendizagem requer. Quanto mais pudermos
conhecer a respeito da natureza e complexidade da linguagem escrita, mais
poderemos entender as transformações que ela exige no modo de funcionamento
mental da criança. Na medida em que isto ocorra podemos também esperar que
aumente nossa capacidade de analisar, compreender e minimizar os distúrbios que
afetam a aprendizagem e o desenvolvimento da leitura-escrita.
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