Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
O ANTI-DISCURSO HISTÓRICO DA
M A N I F E S TA Ç Ã O P O P U L A R E M V I VA O P O V O
BRASILEIRO, DE JOÃO UBALDO RIBEIRO
M a u r í c i o d e O li v e i r a Sa n to s ( A u to r )
Estudante de graduação em Letras com Inglês pela UE FS
holymuri@gma il.com
R u b e n s Ed s o n A l v e s P e r e ir a ( O r i e n ta d o r / P I B I C/ F a p e s b )
Professor pleno e Pró -R eitor de gradua ção da UE FS
R e s u m o : Es te a r ti g o te m p o r o b j e ti v o q u e s ti o n a r a f o r m a ç ã o
s o c i a l , c u l tu r a l , p o l í ti c a e i d e n ti tá r i a d o B r a s i l , r e a l i z a n d o u m a
a b o r d a g e m q u e v á a l é m d a q u e l a d e f e n d i d a p e l o d i s c u r s o h i s to r i o g r á f i c o o f i c i a l , a o l o n go d a n o s s a f o r m a ç ã o n a c i o n a l . To m a n d o po r b a s e a s m a n i f e s ta ç õ e s c u l tu r a i s d e c a r á te r p o p u l a r e a
o b r a d e J o ã o U b a l do R ib e i r o , V i v a o p o v o brasi l e i r o , d e s e j a m o s
a b r i r - n o s p a r a u m a no v a c o m p r e e n s ã o d a s r e l a ç õ e s d e po d e r ,
d o s p r o c e s s o s d e c o n s tr u ç ã o d o s e s te r e ó ti p o s , d o s m e c a n i s m o s d a e x c l u s ã o i m p o s ta p e l o di s c u r s o d a s e l i te s , m a r g i n a l i z a n d o o s ti p o s n ã o - e u r o p e u s d a n o s s a te r r a , a f i m d e l e g i ti m a r a
c o n d i ç ã o p r i v i l eg i a d a d a c l a s s e d o m i n a n te . A s n a r r a ti v a s a l i c e r ç a d a s n a m e m ó r i a c o l e ti v a p o p u l a r , p e l o c o n tr á r i o , e m e r g e m p a r a o r e c o n h e c i m e n to e r e v a l o r i z a ç ã o d e i d en ti d a d e s e c u l tu r a s
p r e te r i d a s p e l o d i s c u r s o hi s to r i o g r á f i c o o f i ci a l .
P a l a v r a s - c h a v e : H i s tó r i a , So c i e d a d e , I d e n ti da d e , V i v a o po v o
b r asi l e i r o .
A b s tr a c t : T hi s a r ti c l e a i m s to q u e s ti o n th e s o c i a l , c u l tu r a l , a n d
p o l i ti c a l i d e n ti ty f o r m a ti o n i n B r a z il , d e v e l o p in g a n a p p r o a c h th a t
g o e s b e y o n d th a t a d v o c a te d b y th e o f f i c i a l h i s to r i c a l d i s c o u r s e
th r o u g h o u t o u r n a ti o n a l tr a i n i n g . B a s e d o n J o ã o U b a l d o R i b ei r o ’s
b o o k , V i v a o p o v o b r asi l e i r o , a n d th e c u l tu r a l m a n i f e s ta ti o n s b y
p o p u l a r f e a tu r e s , w e i n te n d to t a k e a n e w u n d e r s ta n d i n g a b o u t
th e s o c i a l s a n d e c o n o m i c a l r e l a ti o n s , th e p r o c e s s e s o f c o n s tr u c ti o n o f s te r e o ty p e s , th e m e c h a n i s m s o f e x c l u s i o n i m p o s e d
b y th e e l i te s ’ d i s c o u r s e w h i c h m a r g i n a l i z e s n o n - Eu r o p e a n p e o -
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ISSN 2236-3335
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p l e o f o u r l a n d i n o r d er to l e g i ti m i z e th e r u l in g c l a s s ' p r i v i l e g e d
s ta tu s . T h e n a r r a ti v e s g r o u n d e d i n th e p o pu la r c o l l e c ti v e m e m o r y , o n th e c o n tr a r y , e m e r g e to r e c o g n i z e a n d r e v a l u a te th e
i d e n ti ti e s a n d c u l tu r e s d e p r e c a te d b y th e o f f i c i a l h i s to r i c a l d i s course.
K e y w o r d s : H i s to r y , So c i e ty , I d e n ti ty , V i v a o p o v o b r asi l e i r o .
INTRODUÇÃO
Se n a n o s s a h i s tó r i a l i te r á r i a , d e s d e s e u p r i m e i r o p r o d u to ,
a C a r ta d e P e r o V a z d e C a m i n h a , o o l h a r d o n a r r a d o r s u b m e te
o a u tó c to n e a u m a c o n d i ç ã o i n f e r i o r , m a ti z a d a n o e tn o c e n tr i s m o e u r o p eu , e s s e p a r a d i g m a v e m s e n d o r e pr o d u z id o a o lo n g o
d e n o s s a f o r m a ç ã o s ó c i o - h i s tó r i c a e c u l tu r a l . A L i te r a tu r a i n a u g u r a l d a s c o n q u i s ta s e u r o p e i a s e m v e z d e e v i d e n c i a r o c a r á te r
l i b e r ta d o r q u e p e r ti n e à l i te r a tu r a , d e m o d o g e r a l , c o n tr i b u i u p a r a a i n f e r i o r i z a ç ã o d a s c l a s s e s m e n o s p r i v i l e gi a d a s , c o r r o b o r a n d o p a r a a c o n s tr u ç ã o d e u m a i m a g e m n e g a ti v a d o q u e n ã o s e
c o n f i g u r a c o m o u m i d e a l e u r op e u : o n e g ro , o í n d i o , o m e s ti ç o .
O m o n ó lo g o d o d i s c u r s o hi s to r i o g r á f i c o fo i d u r a n te m u i to
te m p o f a v o r e c i d o p e l a r e p r e s e n ta ç ã o a p o l o g é ti c a , o u o m i s s a , à s
ideias
opressoras
e
estigmatizadoras
na
l i te r a tu r a b r a s i l e i r a , n ã o e m to d a e s s a , o b v i a m e n te . O s p a p é i s
d e f o r m a d o r e s d a i d e n ti d a d e b r a s i l e i r a , d i s tr i b u í d o s p e l a n a r r a ti v a o f i c i a l d a h i s tó r i a d o B r a s i l , i n s i s te m e m c o n d i c i on a r o h a b i ta n te n a ti v o à n u l i d a d e q u a n to à c o n s tr u ç ã o s o c i o c u l tu r a l e p o l í ti c a d o p a í s ; o n e gr o ; v i s to a p e n a s c o m o a m ã o d e o b r a n e c e s s á r i a p a r a q u e o pr o j e to e c o nô m i c o e u rop e u v i ng a s s e , d e s c r i ta c o m o u m a g e n te c u j a i n c a p a c i d a d e i n te l e c tu a l j a m a i s f a r i a
f r u ti f i c a r o s i d e a i s d e c r e s c i m e n to n a c i o n a l , p e l o di s c u r s o pr e c o n c e i tu o s o , e x c l u d e n te , to d a v i a , o f i c i a l i z a d o , d a n o s s a f u n d a ção.
A p o i a d o s p el o di s c u r s o r e l ig i o s o q u e a l e g a va e l e g i ti m a v a
a n ã o h u m a n i d a d e d o s a f r i c a n o s e d o s n a ti v o s , ( o s n a ti v o s f o r a m “ b e n e f i c i a d o s ” c o m o s e u a te s t a d o d e h u m a n i d a d e p e l a I g r e j a b e m a n te s d o s p o v o s a f r i c a n o s ) , o s d o m i n a d o r e s ti n h a m
p r o n to o a l i c e r c e s o b r e o qu a l e s ta b e l e c e r i a m o s e u l u g a r d e
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p r i v i l é g io s : a e s c r a v i d ã o . I m e r s o n o p e n s a m e n to d e u m p e r s o n a g e m a r i s to c r a ta e m V i v a o p o v o b r asi l e i r o - P e r i l o A m b r ó s i o ,
o B a r ã o d e P i r a p u a m a - , J o ã o U b a l d o R i b e i ro a p o n ta p a r a u m
d i s c u r s o q u e v ê n a d o m i n a ç ã o d o s a b a s ta d o s s o b r e o s m a i s
p o b r e s u m a p e r s p e c ti v a s á d i c a d e g e n er o s id a d e e b e n e v o l ê n c i a , p a r a o o l h a r d o s d o m i n a d or e s :
O progresso está aí, no trabalho de homens como ele .
Através dele mesmo, os escravos pretos rudes e praticamente irracionais, encontravam no serviço humilde o
caminho da salvação cristã que do contrário nunca
lhes seria aberto, faziam suas tarefas e recebiam co mida , a ga s a lho, t et o e remédios , ma is do que a ma ioria
deles merecia pelo muito de dissabores e cuidados que
infligia m a s eus donos e pela ingra t idã o embrut ecida ,
natural em negros e gentios igualmente. (RIBEIRO, 1984.
p.33)
A r e p r e s e n ta ç ã o d e s s e p a c to d e g r a ti d ã o , s u b m i s s ã o e
r e c o n h e c i m e n to d o s m é r i to s e n tr e a s c l a s s e s b r a s i l e i r a s e s t á
e n v o l ta n u m m a n to d e i r o n i a , s o b o q u a l o a u to r te c e a s u a
tr a m a . N ã o é d i f í c i l , p o r é m , e n c o n tr a r o l i a m e d a v e r o s s i m i l h a n ç a
q u a n d o s e co m p a r a o e nr e d o d e V i v a o p o vo b r asi l e i r o c o m a s
r e l a ç õ e s d e p o d e r d a n o s s a c o n te m p o r a n e i d a d e .
O s n a ti v o s d a te r r a , q u e n ã o s e co n c e b i a m c o m o “ í n di o s ” ,
a té e n tã o e o s o ri u n do s d a Á f r i c a ti v e r a m s u a s r a í z e s , n a c i o n a l i d a d e s , i d e n ti d a d e s , c u l tu r a s , r e p r e s e n t a d a s e m u m a u n i f i c a ç ã o e s m a g a d o r a e v i o l e n ta . N ã o i m p o r ta n d o s e T u p i , P a ta x ó ,
A i m o r é , A n a m b é , C a r i j ó , e n tr e ta n ta s e ta n t a s o u tr a s s o c i e d a d e s , tu d o f o r a r e d u z i d o a “ í n d i o ” , a s s i n g u l a r i d a d e s c u l tu r a i s
f o r a m s i n te ti z a d a s c o m o “ c o i s a s d e í n d i o ” . D e s s e m o d o , m u i t a s
v e z e s , a i n d a , s e r e p e te n a s e s c o l a s b á s i c a s q u e T u p ã é o
d e u s d o s ín d i o s - o te o c e n tr i s m o p o r tu g u ê s i m p o s to à s c u l tu r a s d o s a u tó c to n e s . D a m e s m a m a n e i r a o s A s h a n ti s , Y o r u b á s ,
J e j e s , B a n to s , s o f r e r a m c o m o te r m o “ n e g r o ” o u “ a f r i c a n o ” a
s u p r e s s ã o d e s u a s i d e n ti d a d e s 2 .
P o v o s e s s e s , c u j a o r g a n i z a ç ã o e p a r ti c i p a ç ã o p ol í ti c a f o r a m d e i x a d a s à m a r g e m d o d i s c u r s o h i s tó r i c o d o p a í s . A e l i te
b r a s i l e i r a f o i p r i v il e g i a d a c o m o p a p e l d e v e rd a d e i r a e m b a i x a d o r a d o d e s e n v o l v i m e n to , d o p r o g r e s s o , a q u e l a q u e e m p u n h o u e
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e m p u n h a a e s p a d a q u e d e f e n d e e l i b e r ta , e o m a i s i m p o r t a n te ,
a p e n a q u e d o c u m e n ta o p e r c ur s o h i s tó r i c o q u e n o s f e z B r a s i l .
A í n ti m a r e l a ç ã o e n tr e L i te r a tu r a e H i s tó r i a , n o p r o c e s s o
d e i m p l a n ta ç ã o d o s e s te r e ó ti p o s s o c i a i s e d a s i d e n ti d a d e s , s e
d á , c o m o a f i r m a P a u l R i c o e u r , p e l a c o n f l u ê n c i a q u e a n a r r a ti v a
e n c e r r a . T o d a h i s tó r i a é c o n ta d a , o u s e j a , h á u m e l e m e n to c ri a d o r , ( d e s ) l o c a d o e n tr e a r e a l i d a d e e a f i c çã o . Z i l á B e r n d c i ta
R i c o e u r , p a r a a f i r m a r e s s e i m b r i c a m e n to :
Identidade não poderia ter outra forma que não a narrat iva, pois definir -se é em últ ima análise, narrar. Uma
coletividade ou um indivíduo se definiria, portanto, através de hist órias que ela narra a si mesma sobre si
mesma e, destas narrativas, poder -se-ia extrair a p rópria es s ência da definiçã o implícit a na qua l es ta colet ividade se encontra.
(RICOEUR, Apud, BERND, 2003,
p.19)
N e s s a p e r s p e c ti v a , a f i r m a Z i l á B e r n d q u e : “ P o r ta n to , a
c o n s tr u ç ã o d a i d e n ti d a d e é i n d i s s o c i á v e l d a n a r r a ti v a e c o n s e q u e n te m e n te d a l i te r a tu r a . ” ( B ER N D , 20 0 3 ,p .1 9 ) . P a r ti n d o d e s s a
v i s ã o , p o d e m o s e n tã o c o n c e b e r q u e , a s s i m c o m o a h i s tó r i a e s tá p e r m e a d a d e l i te r a tu r a , a s s i m ta m b é m a l i t e r a tu r a s e i m p r e g n a n a h i s tó r i a .
A s c h a m a d a s l i te r a tu r a s e m e r g e n te s - o u de f o r m a ç ã o q u e a s s i s te m a o r e s g a te e r e s s i g n i f i c a ç ã o d o s m i to s f u n d a d o r e s d a s s o c i e d a d e s i n i c i a m o p r o c e s s o d e r e p a r a m e tr i z a ç ã o d o
l u g a r d o n a r r a d o r . Es tã o e m p e n h a d a s e m a t r i b u i r v o z , n o m e e
r o s to a o s q u e f i c a r a m à m a r g e m d a h i s tó r i a d a f o r m a ç ã o n a c i o n a l a f i m d e l e g i ti m a r a co n d i ç ã o d e p o de r d a s e l i te s c o m o
m e r i tó r i a p e l a s l u ta s f e i ta s e p e l a a tu a ç ã o d i r e ta n o d e s e n v o l v i m e n to d a n a ç ã o . A a b o r d a g e m d e B e r nd s ob r e o p a p e l d a s l i te r a tu r a s e m e r g e n te s é d e g r a n d e v a l i a p a r a e s s a d i s c u s s ã o :
C o n s t ru i n d o -s e co m o u m d e s a f i o à i n s t i t u i çã o l i t e rá r i a , a s
l i t e ra t u ra s em e rg e n t es , à s v e z e s a i n d a p r ó x i m a s d e s e u
p a s s a d o co l o n i a l ( co m o p o r ex em p l o , a s j o v en s n a çõ e s
a f ri c a n a s ) , es t ã o d e s t i n a d a s a d es em p e n h a r u m p a p e l
f u n d a m e n t a l n a e l a b o ra çã o d a c o n s c i ên c i a n a c i o n a l . ( . . . )
f u n c i o n a m co m o o el e m e n t o q u e v em p r e en c h e r o s v a z i o s d a m em ó r i a c o l e t i v a e f o rn e c e r o s p o n t o s d e a n co r a m e n t o d o s e n t i m en t o d e i d e n t i d a d e . ( B E R N D , 2 0 0 3 , p .1 5)
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A l i te r a tu r a e ou tr a s a r te s p o s s u e m i m e n s a r e l e v â n c i a n o
q u e d iz r e s p e i to a o r e c o n h e c i m e n to d o in d i v íd u o e m r e l a ç ã o a o
s e u l u g a r s o c i a l , c o n tr i b u i n d o p a r a a c o n s tr u ç ã o e p a r a a v a l o r i z a ç ã o d a s i d e n ti d a d e s . A l i te r a tu r a b r a s i l e i ra d e u p a s s o s l e n to s e m d i r e ç ã o a e s s a p e r s p e c ti v a d i a l ó g i c a d a s r e p r e s e n ta ç õ e s s o c i a i s . F o i a tr a v é s d a s m a n i f e s ta ç õ e s p o pu l a r e s q u e o s
m i to s , c o s tu m e s e h i s tó r i a s ( n ã o d o c u m e n ta d a s ) p e r m a n e c e r a m
v i v o s e p u d e r a m s e r , a i n d a q u e r e s tr i ta m e n te , c o n h e c i d o s .
N e n h u m d o s n e g r o s q u e l u ta r a m n a G u e r r a d o P a r a g u a i ,
i n i c i a d a n o a n o d e 18 6 4 , te v e s e u n o m e g r a v a d o n o s m u r o s
d a s e s c o l a s , r u a s , o u p r a ç a s , ta m p o u c o c o ns ta a p a r ti c i p a ç ã o
d e s te s n a s p á g i n a s d a s m a i o r i a s d o s l i v r o s d i d á ti c o s q u e a i n d a
( d e ) f o r m a m o s e s tu d a n te s d e n í v e l b á s i c o e f u n d a m e n ta l . M u i ta s
v e z e s , f o i a p e n a s a tr a v é s d a e x p r e s s ã o p o p u l a r q u e o s n e g r o s
e n c o n tr a r a m a h o m e n a g e m e a c o n s o l i d a ç ã o m e m o r i a l d o s s e u s
f e i to s e d e s u a p a r ti c i p a ç ã o a ti v a n a s tr a n s f o r m a ç õ e s s o c i a i s
do país.
O g r a n d e m o m e n to h i s tó r i c o q u e e n v o l v e a d i á s p o r a d o s
africanos no Brasil, a abolição da escravidão, aparece generic a m e n te n o s l i v r o s d i d á ti c o s c o m o a s a n ç ã o d e u m d o c u m e n to
p e l a h e r o í n a d o s n e g ro s , a P r i n c e s a I s a b e l , f i l h a d e D . P e d r o I I ,
r e ti r a n d o d a s p á g i n a s d a h i s tó r i a a s m a n c h a s d e s a n g u e d o
p o v o qu e m u i to lu to u p a r a qu e s u a hu m a n i d a d e e di g n id a d e
f o s s e m r e c u p e r a d a s . Ep i s ó d i o s c o m o e s s e , e m q u e a a r i s to c r a c i a a s s u m e o p a p e l f u n d a m e n ta l d a s c o n q u i s ta s s o c i a i s , n e g a m
a r e l e v â n c i a d a s m a n i f e s t a ç õ e s c u l tu r a i s p o p u l a r e s c o m o o b a tu q u e , a c a p o e i r a , o m a c u l e l ê , e n tr e o u tr o s ; n e g a m a i n d a to d a a
o r g a n i z a ç ã o p o p ul a r d i a n te d a s i n s a ti s f a ç õ e s c o m a d i n â m i c a
s o c i a l d a é p o c a , c o m o , p o r e x e m p l o , a f o r m a ç ã o d o s q u i lo m b o s .
F o i j u s ta m e n t e a tr a v é s d a s m a n i f e s ta ç õ e s p o p u l a r e s q u e
s e p ô d e c o n s e r v a r u m g r a n d e a c e r v o c u l tu ra l q u e p e r m a n e c e u
d e f o r a d a n a r r a ti v a h i s tó r i c a e po r m u i to te m p o , ta m b é m , d a
r e p r e s e n ta ç ã o l i te r á r i a . A l i te r a tu r a a p a r e c e , a tu a l m e n te , s u b m e ti d a a u m n o v o o l h a r : a a l te r n a ti v a à s v e r d a d e s o p r e s s o r a s
q u e c o n s o l i d a m a té h o j e a s r e l a ç õ e s d e p o d e r e n tr e a s c l a s s e s , p a p e l e s s e c o n ti n u a m e n te r e a l i z a d o p e l a s m a n i f e s t a ç õ e s
c u l tu r a i s d e m a ti z e s p o p u l a r e s .
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A c a p o e i r a , g r a nd e s í m b o lo d e r e s i s tê n c i a n e g r a , s u r g e
c o m o a r m a f í s i c a e i d e o l ó g i c a n a l u ta p o r l i b er d a d e , a tr a v é s d a s
s u a s l a d a i n h a s – c a n to s q u e i n i c i a m o j o g o d a c a p o e i r a – d e
c u n h o p ol í ti c o m o ti v a d o r , d e n u n c i a d o r , c o nta m h i s tó r i a s d o s
te m p o s i d o s e d e s v e l a m a m u d e z v i o l e n ta a q u a l o s n e g r o s ( e
n a ti v o s ) f o r a m c o n d e n a d o s p e l o di s c u r s o d a s v e r d a d e s d o c u m e n ta d a s .
C o m o a p o n ta a c a n ti g a a s e g u i r , é s u f i c i e n te m u d a r o l o c u s d o n a r r a d o r , p a r a q u e n o v a s " h i s tó r i a s " s e j a m p e r c e b i d a s :
Dona Isabel que história é essa,
De ter feito a abolição?
De ser princesa boazinha
Que libertou a escravidão?
Eu tô cansado de conversa
Eu tô cansado de ilusão.
Abolição se fez com sangue
Q ue inunda va es s e pa ís
E que o negro t ransformou em lut a
Cansado de ser infeliz.
Abolição se fez bem antes,
A inda por se fazer agora
Com a verdade da favela
Não com a mentira da escola.
Dona Isabel chegou a hora
De se acabar com essa maldade
De se ensinar pros nossos filhos
Quanto custa a liberdade.
Viva, Zumbi nosso rei negro
Fez-se herói lá em Palmares.
Viva a cultura desse povo
A liberdade verdadeira
Q ue já corria nos quilombos
E já jogava capoeira. 1
A s m a n i f e s ta ç õ e s p o p u l a r e s f o r a m e c e r t a m e n te a i n d a
s ã o a v i a e n c o n tr a d a p a r a q u e a m a n u te n ç ã o e r e s g a te d a m e m ó r i a c u l tu r a l e i d e n ti tá r i a d o p o v o p u d e s s e s u b s i s ti r . A tr a v é s
d a s tr a d i ç õ e s , d a o r a l i d a d e , d o s h á b i to s d a s d i v e r s a s c o m u n i d a d e s é q u e o a n ti - d i s c u r s o po d e tr a n s p o r a s g e r a ç õ e s e s e r
( r e ) c o n h e c i do c o m o p a r te d a h i s tó r i a . J á q u e a hi s to r i o g r a f i a
o f i c i a l s e n e go u a co n te m p l a r a p a r ti c i p a ç ã o d a s c a m a d a s m e -
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n o s f a v o r e c i d a s n o s e m b a te s s o c i o p o l í ti c o s d o p a í s , a o l o ng o
d e s u a f o r m a ç ã o , a o r a l i d a d e d o p o v o f e z c om q u e m u i ta s v e r d a d e s c o n ta d a s e n c o n tr a s s e m o p o s i ç ã o .
A h i s tó r i a o f i c i a l e m V i v a o p o v o b r asi l e i r o e s tá i m p r e s s a
c o m o u m a f a c e d a m o e d a a q u a l f o i m a i s c o n v e n i e n te m o s tr a r ,
a p r o f e s s o r a R i ta O l i v i e r i - G o d e t a s s i m r e g i s tr a o p e s o q u e te m
o d i s c u r s o o f i ci a l n e s s a o b r a d e U b a l do :
A ficção denuncia a relação entre a história escrita e o
despotismo do poder. Desvendando o caráter normativo
que o pensamento das elites assume, ao se apropriar
das representações coletivas para elaborar uma síntese
simbólica, o romance denuncia o processo de privatização da história, (...), assim se ordena um processo que
impõe à comunidade uma verdade que não passa da
versão interessada de um grupo. (OLIVIERI -GODET,
2009. P. 48-49)
U b a l d o d e s q u a l i fi c a o d i s c u r s o o f i ci a l d a h i s tó r i a e , a s s i m ,
v a l o r i z a a f o r ç a p o l í ti c a e c u l tu r a l d o p o v o br a s i l e i r o , p a r a i s s o ,
o primeiro paradigma a ser desvalorizado é a “verdade”, uma
arma ideológica que, nas mãos dos poderosos, amordaçou muito s d o s q u e c o n s tr u í r a m a h i s tó r i a d o p a í s , m a s a q u e m n ã o f o i
d a d a a c h a n c e d e c o n tá - l a . Es s e q u e s ti o n a m e n to d a v e r d a d e
i n a u g u r a o r o m a n c e d e U b a l d o , é a f r a g il i da d e m a n i p u l a d a d a
v e r d a d e o p a n o d e f u n d o d o s c e n á r i o s , d i á l o g o s e a c o n te c i m e n to s d e n tr o d o r o m a n c e : “ O s e g r e d o d a V e r d a d e é o s e g u i n te : n ã o e x i s te m f a to s , s ó e x i s t e m h i s tó r i a s ” . ( R I B EI R O , 19 8 4 )
O d i s c u r s o a p r e s e n ta d o p e l a s e l i te s j á n ã o c o n v e n c e o
p o v o , q u e , s e p o r p a d e c e r d a v i o l ên c i a d o s p o d e r o s o s n ã o p o d e m g r i ta r , s u s s u r r a m a s o u tr a s h i s tó r i a s q u e f o r a m d e i x a d a s à
m a r g e m d o i n te r e s s e d o s s e u s d o m i n a n te s .
O s a v a n ç o s s o c i a i s , e c o n ô m i c o s , p o l í ti c o s , f o r a m e s ã o
r e m e ti d o s à s e l i te s , m e s m o a q u e l e s q u e d i z em r e s p e i to d i r e ta m e n te à s c l a s s e s i n f e r i o r i z a d a s . A o p o v o , a o p o b r e , c o u b e o
p a p e l d e tu te l a d o p e l a s e l i te s s o c i o e c o n ô m i c a s . B u s c o u - s e i n c u ti r – e ta l v e z s e te n h a c o n s e g u i d o – u m a “ a u to c o m p r e e n s ã o ”
de espera passiva pela solução dos seus pr oblemas, por parte
d o p o v o . À e s p e r a q u e v e nh a d o c é u a s a l v a ç ã o e d a m ã o
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d o s p o d e r o s o s o s u pr i m e n to d e s u a s n e c e s s i d a d e s b á s i c a s ,
b u s c a n d o n e u tr a l i z a r a s u a l u ta e a s s u a s c o n q u i s ta s .
A s d i v e r s a s f o r m a s d e o rg a n i z a ç ã o p op u la r , d i a n te d a
c a s tr a ç ã o s o c i a l a q u e v ê m s e n d o s u b m e ti d o s , d e s d e o i n í c i o
d e n o s s a c o n s tr u ç ã o i d e n ti tá r i a , o s p o v o s d e e s ti r p e s n ã o e u r o p e i a s , s e n ã o f o r a m a p a g a d a s d o n o s s o e n r e d o h i s tó r i c o , f o r a m p o s i c i o n a d a s n a m a r g i n a l i d a d e e n o b a n di ti s m o . A f i g u r a d e
Z u m b i do s P a l m a r e s , p o r ex e m p l o , f i c o u m u i to d i s ta n te d a i m a g e m e m b l e m á ti c a d e u m r e i , o u d e u m g r a n d e g u e r r ei r o , q u e
a r r e g i m e n ta v a a s r e l a ç õ e s tr i b a i s – s o c i a i s - e l i d e r a v a a l u ta
a r m a d a p a r a a p r o te ç ã o d o “ s e u p o v o ” .
A l i te r a tu r a e m e r g e n te a v a n ç a p a r a a r e - e l a b o r a ç ã o d o
d i s c u r s o h i s tó r i c o , r e c r i a nd o c e n á r io s , p e r s o n a g e n s , a c o n te c i m e n to s e “ v e r d a d e s ” .
N e s s a p e r s p e c ti v a , a s a n á l i s e s d o s f r a g m e n to s te x tu a i s d e
V i v a o p o v o b r asi l e i r o , d e J o ã o U b a l do R i b e ir o , q u e n e s te tr a b a l h o s e r ã o a b or d a d a s , b u s c a m i d e n ti f i c a r a s m a r c a s d e i x a d a s
p e l o d i s c u r s o o fi c i a l , n a f or m a ç ã o s o c i o c u l tu r a l e h i s tó r i c a d o
p a í s , q u e s ti o n a n d o o s m o l d e s d a " i d e n ti d a d e b r a s i l e i r a " m a ti z a d o s n a s e l i te s , c r i a n d o o s e s te r e ó ti p o s p o s i ti v o s e n e g a ti v o s d a
nossa sociedade.
N a e p í g r a f e d o l i v r o d e U b a l d o , a d e n ú n c i a d e h i s tó r i a s
s e m f a to s s u b m e te à v e r d a d e u m c a r á te r n ã o p a r a d i g m á ti c o ,
m a s v o l ú v e l , q u e v a r i a d e a c o r d o c o m o s i n te r e s s e s a e l a r e l a c i o n a d o s . A v e r d a d e e m V i v a o p o v o b r asi l e i r o e n c o n tr a u m a
f o r te tr a d u ç ã o n a " v o z " r e f i n a d a d o p o e ta A n tô n i o B r a s i l e i r o ,
n o s v e r s o s f i n a i s d o s e u p o e m a R o d a Mí sti c a : " A v e r d a d e é
u m a s ó : s ã o m u i ta s . / E e s t a m o s to d o s c e r to s . E s e m r u m o ." ( B R A SI L E I R O , 20 0 5 . p . 17 1)
A O br a d e U b a l d o r e m o n ta n ã o a h i s tó r i a d o B r a s i l , e s i m ,
u m a h i s tó r i a d e B r a s i l , u m u n i v e r s o d e p o s s i bi l i d a d e s i n te r p r e ta ti v a s d a s c o n s tr u ç õ e s e r e l a ç õ e s q u e f o r a m e s t a b e l e c i d a s e m
nossa sociedade. Nessa confecção ubaldiana, aparecerá a voz
d e m u i to s a o s q u a i s n ã o f o r a d a d a a o p o r tu n i d a d e d e c o n ta r
a s s u a s h i s tó r i a s n a n a r r a ti v a o f i c i a l i z a d a p e l a f o r ç a d a c l a s s e
d o m i n a n te b r a s i l e i r a .
D o ta d o d e u m a c r í ti c a p o l í ti c a v o r a z e d e um h u m o r r e f i n a d o , a s v e r d a d e s s o c i a i s e p o l í ti c a s s ã o s u b m e ti d a s a o c r i v o
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q u e s ti o n a d o r d o a u to r . A vi o l ê n c i a in a u g u r a l e r e c o r r e n te e m
n o s s a h i s tó r i a é d e s v e l a d a j u n to c o m a c o r r u p ç ã o d a s i n s ti tu i ç õ e s e d a s c l a s s e s d o m i n a d o r a s . A i r o n i a p e r p a s s a r á to d a a
o b r a , p o d e n d o p a s s a r d e s p e r c e b i d a a o s o l h os m e n o s a te n to s .
A o r g a n iz a ç ã o p o l í ti c a p o pu l a r c o m o f o r ç a tra n s f o r m a d o r a
n o s p r o c e s s o s d e c o n s tr u ç ã o d e n a c i o n a l i d ad e , ta m b é m e x c l u í d o s d o di s c u r s o o f i c i a l é d e s c r i ta , o u m e l h o r , p r o p o s ta e m s e u
c a r á te r d i f u s o , c a ó ti c o p o r v e z e s , m a s , n ã o p o r i s s o , m e n o s
s i g n i f i c a ti v o n o e n g a j a m e n to p o l í ti c o d a s c l a s s e s o p r i m i d a s .
O q u e s ti o n a m e n to a c e r c a d a s v e r d a d e s e d os p a r â m e tr o s
que as consolidam, desde a epígrafe da obra, permeia o enredo
d e m a n e i r a m a r c a n te , s e j a p e l o r i s o , o u p e l o a p e l o d r a m á ti c o ,
o u a i n d a p el a i n te r te x tu a l i d a d e q u e o te x to en c e r r a , e s u a h a r monização aos cenários onde as cenas se d esenvolvem. Já no
i n í c i o d o te x to a o d e s c r e v e r a c e n a d a m o r t e d o a l f e r e s B r a n d ã o , o a u to r a s s i m s e r e f e r e : “ M a s s ã o p a l a v r a s n o b r e s c o n tr a
a ti r a n i a e a o p r e s s ã o s o p r a d a s p e l a m o r te n o s o u v i d o s do a l f e r e s , e s ã o p o r ta n to v e r d a d e i r a s . ” ( R I B EI R O , 19 8 4 , p . 10 )
Ei s o a r g u m e n to do a u to r p a r a a s e d i m e n ta ç ã o d a v e r d a d e n a s p a l a v r a s d o p e r s o n a g e m : o tí tu l o e a n o b r e z a l h e co n f e r e m o d o m í n i o d a v e r d a d e , i n q u e s ti o n á v e l d i a n te d a h o n r a d o
h e r ó i e d e s u a br a v u r a . A f o r ç a d a v e r d a d e e s tá n o tí tu l o , m a s
a f o r ç a d o tí tu l o n ã o e s tá n a v e r d a d e . E s s a p r o v o c a ç ã o i n d i c a
q u a l o c a m i n h o q u e U b a l d o p e r c o r r er á a o l o n g o d a tr a m a : o d a
d i s s o l u ç ã o d e v a l o r e s e c o n c ei to s , p o s tu r a s e p a ta m a r e s , n a
b u s c a d e ( d e s ) c o n s tr u ç õ e s i d e n ti tá r i a s d o ( s ) p o v o ( s ) d o B r a s i l .
E, a c e r c a d o tí tu l o , p o d e r o u h e r o í s m o d o A l fe r e s , e x p õ e :
De seus deveres de A lferes nada conhecia, nem mesmo o que significava o posto, nem mesmo se era alfer e s . S u s p e i t a v a a t é q u e , p a r a s e r a l f e r e s , h a v i a n e ce s sidade de alguma coisa mais que simplesmente o chamarem por esse título, como aconteceu pela primeira
vez na botica e terminou por se tornar uso de todos
na Ponta das baleias. (RIBEIRO, 1984, p.12)
A r id i c u l a r i z a ç ã o d a c on d i ç ã o d o a l f e r e s , d o s e u c a r g o , a o
q u a l n a d a f i z e r a p a r a m e r e c ê - l o s i m b o l i z a t a n ta s a u to r i d a d e s e
i n s ti tu i ç õ e s n a s c i d a s d o m e r o pr i v i l é gi o s o c ia l o u d a tr o c a d e
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f a v o r e s e n tr e o s s e u s e n v o l v i d o s , e d e um a e l i te b r a s i l e i r a
c o n te m p o r â n e a , q u e a i n d a c e i f a o s f r u to s j a m a i s s e m e a d o s p o r
s e u s a s c e n d e n te s ; o s a r c a s m o e v i d e n te d o a u to r e m d e s ta c a r
o p a n o r a m a d o s u r g i m e n to d o h e r ó i : u m a bo ti c a , u m l u g a r do
p o v o , à m a r g e m d o s a m b i e n te s l e g i ti m a m e n te p o l i ti z a d o s .
O “ g r a n d e ” B a r ã o d e Pi r a p u a m a , a p r e s e n t a d o c o m o o fi l h o
d a a r i s to c r a c i a c o l o n i a l , d o n o d e u m a g u l a p ato l ó g i c a , r e p r e s e n ta a a v a r e z a e a m b i ç ã o d a e l i te i n e s c r u p u l o s a d i a n te d o p o d e r
e s e u f e i to h e ró i c o , f a l s e a d o q u e l h e r e n d e ra to d o s o s p r i v il é g i o s d e n o b r e d a n o v a r e p ú b l i c a é r i d i cu l a r i z ad o e r e v e l a d o c o m o p r o v a d a v i o l ê n c i a q u e g e r o u g r a n d e s r i q u e z a s a m u i to s
q u e s e a p r o v e i ta r a m d o s u o r e d o s a n g u e d o p o v o .
T e n d o s i d o e xp u l s o d e c a s a e r e n e g a d o pe l o p a i , P e r i l o
A m b r ó s i o f e z - s e c o m b a te n te d e u m a g u e r r a q u e j a m a i s c o m b a te r a d e f a to . V e n d o a o l o n g e d a á r v o r e o n d e c o m i a e b e b i a ,
a c o m p a n h a d o d e do i s n eg r o s , u m a tr o p a d e s o l d a d o s q u e l u ta v a m p e l a l i b e r t a ç ã o d o B r a s i l , n ã o h e s i to u e m s a n g r a r u m d e
seus negros, marcando -se com seu sangue, simulando, assim,
u m f e r i m e n to d e g u e r r a , e c o n s tr u i n d o a l i , c o m s a n g u e n e g r o , o
s e u tí tu l o d e n o b r e z a . B a r ã o , h e r ó i d e gu e r ra . O c a r á t e r b e n e v o l e n te d a e l i te a s s u m e , n o r o m a n c e , tr a ç o s d o e n ti o s :
A f i n a l , q u a n d o o s a n g r a r a à f a ca p a r a l a m b u z a r - s e d e
seu sangue e assim apresentar -se ao tenente, terminara por dar-lhe mais cuteladas do que planejara, já que
os bra ços e as mã os lhe fugira m do cont role e golpeou
o negro como s e es t ives s e t endo es pa s mos . Melhor
que tenha morrido e não se pode negar que de um
modo ou de outro deu sangue ao Brasil, pensou Perilo
Ambrósio[...]. (RIBEIRO, 1984, p.27)
O o u tr o n e g ro q u e s ob r e v i v e u , te v e s u a l í n g u a d e c e p a d a
a m a n d o d o B a r ã o . F i s i c a m e n te e , s i m b o l i c a m e n te , a v i o l ê n c i a
c a l a a v o z d o n e g ro , a v o z d o p o v o . A ve r s ã o h i s tó r i c a d o
p o v o é e m u d e c i d a p e l a s m ã o s d o s q u e p o s su e m o p o d e r p a r a
f a z ê - l o . T o d a v i a , a v o z d o n e g r o n ã o s e c a lo u , s u a l í n g u a u m a
v e z a m p u ta d a , a b r e e s p a ç o p a r a u m a a ç ã o c o n c r e ta d i a n te d a
impossibilidade de narrar.
A r e p r e s e n ta ç ã o d e u m a f o r ç a p o p ul a r o r g an i z a d a e c l o d i -
J
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r á c o m a i n s ti tu i ç ã o d a i r m a n d a d e d a c a s a d e f a r i n h a , u m a
a b s tr a ç ã o d o s e n ti m e n to d e c o n s c i ê n c i a e de d e f e s a d o po v o ,
d o c o n f r on to à s f o r ç a s d e d o m i n a ç ã o e p r o du to d e u m d e s e n v o l v i m e n to d a v i s ã o po l í ti c a d o p o vo e d e s u a c o m p r e e n s ã o
s o c i a l . N a l i d e r a n ç a p o s te r i o r d e M a r i a d a F é , r e e n c o n tr a - s e a
f i g u r a d o h e ró i q u e te r á s u a i m a g e m a tr e l a d a a o b a n d i ti s m o ,
c o m o o b s e r v a m o s a o l o n g o d e to d o o n o s so p e r c u r s o hi s tó r i c o : o s m o v i m e n to s p o l í ti c o s p o p u l a r e s e s e u s r e s p e c ti v o s l í d e r e s e v i d e n c i a d o s c o m o p e r tu r b a d o r e s d a o rde m , d e s d e Z u m b i e
o q u il o m b o d e P a l m a r e s , o C o n s e l h e i r o e o a r r a i a l d e B e l o M o n te , a té a s m a i s r e c e n t e s r e p r e s e n t a ç õ e s d a m í d i a , a c e r c a d o s
m o v i m e n to s s i n d i c a i s , e s tu d a n ti s e d e r e i v i n d ic a ç õ e s a g r á r i a s .
A f i g u r a d o a n ti - h e r ó i é co m p o s ta e m A m l e to F e r r e i r a ,
m e s ti ç o , q u e s e a p r o v e i t a n d o d a e n f e r m i d a d e d o b a r ã o d e P i r a p u a m a p r o v o c a d a p e l o s n e g r o s q u e p o s te r i o r m e n te f u n d a r a m
“ a i r m a n d a d e d o p o v o b r a s i l e i r o” , o u “ d a c a s a d e f a r i n h a ” - p a r a b e n e f í c i o pr ó p r io a s c e n d e u s o c i a l m e n te , s e n d o c a p a z d e
e m b r a n q u e c e r - s e p o r m e i o d e d o c u m e n to s de b a ti s m o c o m p r a d o s d e u m c l é r i go , r e p r e s e n ta n d o a do c u m e n ta ç ã o f o r j a d a m e d i a n te o p o d e r , p a r a o e s ta b e l e c i m e n to d a s v e r d a d e s c o n v e n i e n te s , o c u l t a n d o d e to d o s a s u a a s c e n d ê n c i a n e g r a n a f i g u r a
de sua mãe.
V i s to p e l o s s e u s h e r d e i r o s , j á n a d é c a d a d e 7 0 , d o s é c u l o
X X , c o m o u m g r a n d e e m p r e s á r i o , u m g r a n d e b a n q u e ir o e i m e n s u r á v e l c o l a b o r a d o r d o p r o gr e s s o e c o n ô m i c o n a c i o n a l , A m l e to
F e r r e i r a - D u t to n , d e a n ti g o m e s ti ç o , g u a r d a d o r d e li v r o s é d e s c r i to :
[...] sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser inglês, como, aliás, quase o
era, só faltou nascer na Inglaterra. [.. .] Evidente que
era desses velhos caturras, poços de honestidade e
a us t erida de, o que s e t inha a s pect os pos it ivos , cer t a m e n t e o a t r a p a l h o u m u i t a s v e z e s n o s n e g ó c i o s , p o rq u e
gente como ele, ex cessivamente apegada a princípios e
escrúpulos, tende a agir dentro de uma linha de conduta muito rígida, preferindo perder dinheiro a violar seus
padrões éticos. (RIBEIRO, 1984. p. 642 -643)
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U m a i m a g e m m u i to d i s t a n te d o A m l e to c a p a c h o , p í c a r o ,
m a s c o m a s a g a c i d a d e e , p o s te r i o r m e n te , o p o d e r n e c e s s á r i o
p a r a c o n ta r a p r óp r i a h i s tó r i a , d i r e i to e s te q u e n ã o a c o m e te u
o u tr o s s u j e i to s d a h i s tó r i a d o p a í s , q u e e s ti v e r a m s e m p r e à
m a r g e m d o s b e n e f í c i o s d a te r r a .
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sã o m u i ta s a s i m a g e n s c r i a d a s p e l o d i s c u rs o o f i c i a l q u e
n o s d i s ta n c i a m d e v e r d a d e s b á s i c a s à c o m p r e e n s ã o d o n o s s o
a r r a n j o i d e n ti tá r i o .
P o d e m o s p e r c e b e r o c a r á te r c o m p r o m e ti d o d e U b a l d o
c o m a s o c i e d a d e b r a s i l e i r a , ta n to n a e x te n s a r e f l e x ã o q u e s u a
o b r a p r o p o r ci o n a , e m p a r ti c u l a r , V i v a o p o v o b r asi l e i r o , q u a n to
n a s p a l a v r a s d o p r ó p r i o a u to r :
Minha lit erat ura é sim compromet ida (mas naturalment e
n ã o d e m a n e i r a f o r ç a d a ) c o m n o s s a c o m p l i c a d a i d en t i dade nacional e com a voz dos que não têm como expressar-se. (OLIVIERI-GODET, 2009. p. 28)
A tr a v é s d e u m c o n ta d o r d e h i s tó r i a s a c e g u e i r a d a r a z ã o
h i s tó r i c a é a p o n ta d a c o m o f o r ç a p a r a o c u l ta r a s v e r d a d e s n ã o
c o n v e n i e n te s à m a n u te n ç ã o d a c o n d i ç ã o d a s c l a s s e s .
A História não é só essa que está nos livros, até porque muit os dos que escrevem livros ment em mais do
que os que contam histórias do Trancoso. (...) toda a
H i s t ó r i a é f a l s a o u m e i o f a l s a e c a d a g e r a ç ã o q u e ch e ga resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a dos jornais,
onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos. Pou cos
livros devem ser confiados, assim como poucas pessoas, é a mesma coisa.
Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. (...) Então
toda a História dos papéis é pelo interesse de alguém.
(RIBEIRO, 1984, 515)
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A l e i tu r a d e V i v a o po v o b r asi l e i ro n o s r em e te a u m a
r e s s i g n i f i c a ç ã o d o s p a r a d i g m a s s o c i a i s e s ta b e l e c i d o s a o l o ng o
d e n o s s o p e r c u r s o p o l í ti c o , h i s tó r i c o e s o c i a l , i n te r e s s a d a e m
p r o p o r c io n a r u m a a l te r n a ti v a à s v e r d a d e s v i o l e n ta s q u e m a r c a m o e x c l u d e n te d i s c u r s o h i s to r i o gr á f i c o o f ic i a l .
R E F ER ÊN C I A S
B ER N D , Z i l á ; U T EZ Á , F r a n c i s . O c a m i n h o d o m e i o : u m a l e i tu r a d a
o b r a d e J o ã o U b a ld o Ri b e i r o . Po r to A l e gr e : Ed . U n i v e r s i d a d e /
U F R G S, 20 0 1.
B ER N D , Z i l á . “ I d e n ti d a d e ” : l i te r a tu r a e i d e n ti d a d e n a c i o n a l . 2.e d .
P o r to A l e g r e , U F R G S, 20 0 3 .
B O SI , A l f r e d o . C u l tu r a b r a s i l e i r a : te m a s e s i t u a ç õ e s . S ã o P a u l o :
Á ti c a , 1 9 8 7 .
B R A SI L EI R O , A n to n i o . “ R o d a M í s ti c a ” . I n . P o e m a s r e u n i d o s . Sa l v a d o r : F U N C EB , 20 0 5 .
C A N C L I N I , N e s to r G a r c í a . A s c u l tu r a s p o p u l a r e s n o c a p i ta l i s m o .
SP : B r a s i l i e n s e , 19 8 3 .
C H A U Í , M a r i l e n a . B r a s i l : m i to f u n d a d o r e s oc i e d a d e a u to r i tá r i a .
Sã o P a u l o : F u n d a ç ã o P e r s e u A b r a m o , 20 0 0 .
N EV E S, Er i v a l d o F a g u n d e s . H i s tó r i a r e g i o n a l e l o c a l : f r a g m e n ta ç ã o e r e c o m p o s i ç ã o d a h i s tó r i a n a c r i s e d a m o d e r n i d a d e . F e i r a
d e Sa n ta n a : U EF S; Sa l v a d o r : A r c á d i a , 20 0 2.
O L I V I ER I - G O D ET , R i t a . C o n s tr u ç õ e s I d e n ti tá r i a s n a O b r a d e J o ã o U b a l d o R ib e i r o . U EF S, H u c i te c , A B L . 20 0 9 .
R I B EI R O , J o ã o U b a l d o . V i v a o p o v o b r a s i l e i r o . 2. e d . R i o d e J a n e i r o : N o v a F r o n te i r a , 19 8 4 .
J
SA N T O S, B o a v e n tu r a d e So u s a .
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P ela mão de Alice : o social e o
Revista Graduando
nº1
jul./dez. 2010
p o l í ti c o n a p ó s - m o d e r n id a d e . 2 e d . Sã o P a u l o : C o r te z , 19 9 6 .
SO U Z A , L i c i a So a r e s d e . ( O r g . ) . D i c i o n á r i o de P e r s o n a g e n s A f r o b r a s i l e i r o s . Sa l v a d o r : Q u a r te to , 20 0 9 .
NOTAS
1 V A R G A S, M e s tr e T o n i . D o n a I s a b e l . F a i x a 1 , I n :
d e J a n e i r o , 20 0 3 .
Liberdade , Rio
2 A c e r c a d a s a b o r d a g e n s f e i ta s , é f u n d a m e n ta l a l e i tu r a d a o b r a A h i stó r i a d o s Í nd i o s no B r asi l , o r g a n iz a d a p o r M a n u e l a
C a r n e i r o d a Cu n h a , C o m p a n h i a d a s l e tr a s : S e c r e tá r i a M u n i c i p a l
d e C u l tu r a : F A P ESP , 1 9 9 2 .
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138
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o anti-discurso histórico da manifestação popular em