Texto elaborado para a cerimónia pública na qual se celebrou o 43º aniversário da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra 02.12.2015 Carlos Fortuna Professor Catedrático da FEUC 1 Para a FEUC, no dia do seu 43º aniversário Carlos Fortuna Professor Catedrático Cumprimento a todas e a todos. Tenho o grato prazer de estar aqui a convite de queridos colegas a dirigir-vos umas palavras acerca dos últimos seis anos de vida da Faculdade de Economia. Não consigo, nunca, recusar convites vindos de gente amiga, por isso aqui estou. Ainda por cima, em ocasião feliz para mim, para vós e para a instituição Faculdade de Economia/Universidade de Coimbra. Aqui estou perante esta assembleia ilustre a procurar dar conta deste fragmento de uma história que, ainda curta, desejamos ver prolongada por muitos mais anos. Pedem-me uma “história breve” de seis anos para sublinhar o que, a meu ver, de mais importante terá sucedido ou mudado neste intervalo de tempo. Para o fazer com rigor, talvez devesse ter-me afastado por um período longo que me proporcionasse uma visão mais distanciada na qual as mudanças se consolidam e sobressaem melhor. Mas os meus afastamentos foram curtos e mantive-me sempre por perto. O que mudou… mudou lentamente e assemelha-se, portanto, às rugas que vão marcando a cara amada de todos os dias. São traços que assinalam uma mudança, mas uma mudança carinhosa, cheia de afetos e de sabedoria acrescentada a cada dia. Vivida de maneira tão próxima,… essa mudança é quase impercetível. Talvez, por isso, a escolha dos meus queridos colegas não tenha sido a mais acertada… Desde logo e sobretudo, porque, com a armadura da sociologia e os 39 anos que levo de FEUC, continuo sem conseguir olhar o passado sem tentar perscrutar o futuro à nossa frente. As minhas contas, (permitam que diga “as nossas” contas), não são, portanto, com o passado vivido, aquele que no dizer de alguns não passa de “uma terra estranha e distante”. É ao futuro que temos de pedir contas, mesmo que o possamos recear, como o “Anjo da História” duvidou tragicamente do destino a que se dirigia sem remédio, e que diziam chamar-se “progresso”. Caras e caros colegas, minhas senhoras e meus senhores, por mais desafiador que esse futuro se possa revelar, a ação próxima 2 da FEUC está nas nossas mãos! Tem de ser uma ação decidida, inovadora e competente, e nunca acomodada ao andar dos tempos. Tem de ser uma ação futurante, que ponha a FEUC à frente de si própria. Mas afinal o que é que mudou neste intervalo curto da vida da Faculdade? O que mais mudou nestes anos foi a adoção de um novo figurino institucional, que a linguagem fria das siglas trata por RJIES. Não veio sozinho e trouxe acoplada uma outra mudança educativa profunda que responde por “processo de Bolonha”. Tratemos do figurino institucional primeiro. Sobressai nele a concentração num único cargo unipessoal dos dispositivos de governo das Faculdades. Saberão alguns que deixei registado um voto de discordância em sede da Assembleia Estatutária da Universidade que viria a plasmar esta nova modalidade de governação. Entretanto, mudei de ideias e hoje vivo de bem com a nova fórmula governativa, convencido pela eficácia da gestão de três mandatos do meu colega e amigo de longa data, Doutor José Reis, e por todos e todas que com ele dirigiram a Faculdade. Mostraram que a virtude da gestão universitária, como sucede de resto em todas as formas de governação e não apenas a universitária, continua a depender da qualidade das pessoas e da sua entrega inteligente e democrática à causa comum. É certo que esta solução encerra um risco. Como sucede na vida pública, as pessoas de que depende a gestão das organizações podem não ser as melhores. No caso vertente, todavia, esse risco foi neutralizado com competência, porquanto José Reis e colegas de direção foram exemplares no respeito pela democraticidade institucional e o exercício nunca desmentido da colegialidade e da dedicação. São credores, por isso, do meu (do nosso) vivo reconhecimento. Mas se é com o futuro que temos de acertar contas, devo dirigir à minha colega Doutora Teresa Pedroso de Lima Oliveira e à equipa que convidou para com ela dirigir o nosso destino universitário uma palavra franca de estímulo e confiança nas suas escolhas e decisões. Nada do que digo ignora o papel do Magnífico Reitor – Doutor João Gabriel Silva – e a solidariedade repetidamente mostrada da UC para com a FEUC mesmo quando, como não pode deixar de ser, esta ajuíza de forma autónoma, e porventura crítica, a sua relação institucional tão íntima. 3 Que a gestão da coisa pública traz consigo a marca das pessoas, demonstra-o a FEUC à luz do seu passado recente, a tal ponto que torna este princípio num daqueles mais elementares truísmos. Posso mostrá-lo num olhar de relance sobre o que fomos fazendo para resistir à erosão incontornável do tempo que, como diz a poesia, “não estava de feição”. Desejo sublinhar este aspeto: grande parte do que a FEUC conseguiu fazer, fê-lo à margem do estafado refúgio e da improcedente retórica dos “recursos financeiros escassos”. Mesmo que o “tempo não estivesse de feição” pudemos continuar a ler livros novos (15 mil em 6 anos) e a dá-los a ler à comunidade; continuámos a ter um jardim cuidado de cara sempre lavada; recuperámos instalações e embelezámos paredes; fizemos algumas contratações novas que ajudaram a baixar, ainda que só muito ligeiramente, a idade média geral de 49,7 anos do corpo docente; passámos a produzir energia; reorganizámos os serviços e vimos crescer em qualidade o desempenho profissional de técnicos e pessoal administrativo; assistimos a uma produção média global de 14 livros por ano da autoria de docentes; registámos com agrado a melhoria sensível na carreira dos professores; criámos dispositivos de apoios à internacionalização; montámos um conselho de consultores externos para tornar mais densa a nossa relação com a sociedade e o mundo; constituímos uma Escola de Estudos Avançados para impulsionar a formação doutoral e apoiar os nossos mais de 400 doutorandos; demos os primeiros passos na criação de um Centro de Investigação em Economia e Gestão, tão imprescindível e crucial para a FEUC do futuro como para a Universidade em geral, a exemplo do que sucede com o Centro de Estudos Sociais, com quem mantemos uma longa e cúmplice relação de investigação… Tudo tão difícil em vista da proverbial “velhorestelice” da academia, mas tudo tornado tão fácil, talvez devido à dedicação de quantos fizeram engrandecer o “orçamento competitivo” e ajudaram a contrariar as implacáveis finanças regressivas do OE. Se, com o tempo, “tudo o que é sólido se pode dissolver no ar”, também estes anos mostraram que tudo o que é difícil pode ser tornado simples e convertido em mera “gestão corrente”. Esta é a grande virtude desta Escola, que sendo de Economia, como na sua ainda restritiva designação de origem, é também uma escola de gestão, à qual se junta a visão política do mundo e, maxime, também a visão sociológica da sua própria condição. Só uma escola assim consegue 4 tornar o difícil em algo tão fácil quase sem darmos por isso. Como sucede com as rugas do tempo que vão marcando, indeléveis, a cara amiga… O outro lado da mudança desta história curta – o “processo de Bolonha” – veio confirmar aquilo que já sabíamos e que é o facto de a Universidade só poder progredir se souber fazer as coisas de modo diferente, se for criativa e souber usar a máxima competência possível, nos planos educativo e da investigação científica. Para tanto, convenhamos, Bolonha não teria sido necessária. Contudo reconhecemos que Bolonha fez acelerar aquela que parecia ser uma Universidade adormecida. Desde logo através da equiparação de graus entre países/universidades europeias. Assim, no plano educativo, hoje, tudo é novo na Universidade, exceto o proverbial conservadorismo de muitos, umas vezes explícito e transparente, por isso digno da Universidade democrática, outras vezes sub-reptício e disfarçado, como uma perversa “infra”-academia. Na FEUC são novos também os programas de Licenciatura, de Mestrado e de Doutoramento. Tanto na sua duração – porventura o que mais se comenta – como nas suas renovadas linguagens. As avaliações externas a que foram sujeitos vieram comprovar esta generalizada qualidade, que tanto nos orgulha. Entre nós, a regra é a do preenchimento integral das vagas de 1º ciclo na primeira época de admissão à Universidade. Para crédito futuro, admito que tenhamos de investir mais na qualidade desse contingente de novos estudantes e fazer aumentar o número daqueles que colocam os nossos cursos como primeira escolha. Mas não apenas. A FEUC, como a Universidade no seu todo, tem de preparar-se para contrariar a aguda erosão demográfica que, conforme as projeções disponíveis, a partir de 2020, atingirá o ensino superior em Coimbra em vista da sua inserção numa região que além de demográfica e economicamente deprimida, se mostra vulnerável à ação estratégica das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. A solução para este “efeito de tesoura” pode estar em fazer de Coimbra uma Universidade Global, como o nosso Reitor, repetidamente faz assinalar. É certo que a Universidade, como a Igreja de resto, foi sempre, por definição, uma instituição global. Assim continuaremos. Pela nossa parte, na FEUC, vamos tratando de afirmar essa mudança. Alunos de mais de 70 nacionalidades marcaram presença entre nós nos últimos 6 anos. É um número impressionante 5 que indica uma mudança educativa inelutável, ao mesmo tempo que renova a paisagem cultural intramuros. Como poderemos reforçar esta bifurcação de públicos lusófonos e públicos europeus a que, porventura, – porque não? – devemos agregar outros que, por agora, só conhecemos como sendo “refugiados”? Sem nunca abdicar da linguagem da lusofonia, poderemos talvez ensinar mais in English please (ainda que as 26 unidades curriculares na nova língua franca já nos coloquem em posição cimeira dentro da Universidade). De outro lado, temos de pensar como integrar estes novos públicos na ação cultural da FEUC e trazer a internacionalização “para dentro” do quadro das suas atividades culturais, a começar pelas atividades dos Núcleos de Estudantes. Minhas Senhoras e Meus Senhores, não posso terminar estas palavras sem uma alusão final ao pano de fundo em que tudo se iniciou há pouco e tudo se há de esclarecer num futuro próximo. Esse pano de fundo é o knowing capitalism (a expressão é de Nigel Thrift1), o capitalismo do saber, uma outra versão soft do capitalismo que está, insidiosamente, a alterar as práticas académicas mais rotineiras em que, os menos novos, fomos ensinados. Bolonha é talvez apenas a persona, o disfarce deste novo sistema competitivo, comandado por dispositivos especializados – as agências de financiamento – que são autênticas soft machines2 que definem, regulam e controlam as condições de surgimento do “bom académico”, que são os novos sujeitos formatados pelo sistema universitário e de investigação vigente. Este capitalismo do saber está a obrigar-nos a ir em busca desenfreada de projetos financiados, parcerias, bolsas e revistas com factor de impacto. Infelizmente, não assinalam apenas o mérito académico e científico e marcam também a muito desigual distribuição de recursos e de condições de produção do conhecimento à escala internacional. Todavia, ilustram mais o terreno do futuro do que a memória do passado. E isso não podemos ignorar. O novo capitalismo está a tornar-se mais inteligente e usa e abusa, como nunca, da capacidade reflexiva, da inteligência, do conhecimento e do saber empresarial, da educação económica e financeira e da cultura. Tudo aquilo que, afinal, é parte da missão da Universidade. É já sem surpresa que assistimos 1 2 Nigel Thrift, Knowing Capitalism. Londres, Sage, 2005. William S. Burroughs, The Soft Machine. Paris, Olympia Press, 1961. 6 diariamente à erosão das fronteiras entre “negócio” e “academia”. Esta é chamada a responder ao jeito da quick response. Pode ser fascinante mas não deixa de ser desconcertante. O capitalismo soft de hoje - sob a égide de uma renovada cultura de mercado e da performatividade – é futurista e elogia a velocidade. Faz-se de universidades, de projetos e de pensadores, também eles, repentistas. São os fast thinkers académicos que comentam, por “dá cá aquela palha”, aspetos superficiais da vida social ou aquilo que provoca curiosidade pública, se não mesmo entretenimento, sem se darem conta, tantos deles, do nexo negativo existente entre “urgência” e “pensamento”. O capitalismo soft de hoje, usa em seu favor centros de investigação, laboratórios e bolseiros, como usa robots e gurus da administração. Está a digitalizar os nossos CVs e a sujeitá-los a uma estranha ou sinistra métrica, condensada em fórmulas digitais e expeditos códigos de barras. Sob o signo da urgência, está a eliminar a leitura e a substitui-la pela simples “consulta”. Exatamente como está a substituir os livros que lemos pelos ebooks, a conferência pela vídeo-conferência e, não menos importante, a biblioteca pela virtualmente inesperada generosidade da Google. No meio destas inovações temos também a nova política científica e uma outra lógica de produção do conhecimento. A universidade do knowing capitalism é cada vez menos a universidade das carreiras individuais duradouras, e o conhecimento científico deixou de ser um ato isolado, atributo de mentes brilhantes. O desafio está hoje em sabermos adaptar-nos, em simultâneo, tanto ao ensino como à investigação e melhorar continuamente a qualidade de ambos. E sempre, sempre preferindo o trabalho em equipa, os centros de pesquisa avançada, as redes e as redes de redes de investigação, bem como os projetos ganhadores que são os projetos ética e politicamente responsáveis. Interdisciplinares, claro está! Internacionais, sem dúvida. Adequados aos princípios da cidadania sem fronteiras, com toda a certeza! Sem isso, as Faculdades regridem e as Universidades definham. Mas nada disto, porém, constitui um inelutável derivado do moderno capitalismo do saber. É antes, minhas senhoras e meus senhores, caras e caros colegas, o espaço de manobra que temos para resistir e trilhar, sem desconfianças, o trajeto de progresso da FEUC, que se faz também do seu próprio passado, mesmo se breve. Obrigado.