O Novo Código e o remendo florestal
Por Raul do Valle, advogado, coordenador de Política e Direito S ocioambiental
do IS A
Agora é lei, e tem inclusive número: 12.651/12, com alterações feitas pela Lei
12.727/12. Após três anos de intensa mobilização, que começou com a
criação de uma comissão especial na Câmara dos Deputados, em 2009, e a
nomeação do deputado Aldo Rebelo (PCdoB -SP) como relator, o agronegócio
brasileiro finalmente tem uma lei florestal para chamar de sua.
Feita a sua imagem e semelhança, ela é cheia de contradições. Tem um lado
moderno, que prev ê a criação de um sistema georreferenciado de
cadastramento de imóveis rurais para monitorar, por satélite, a derrubada de
florestas. Mas tem também um lado arcaico, agarrado às raízes latifundiárias
do Estado brasileiro, e que infelizmente suplanta, em muito, seu aspecto
inovador. E é com esse lado que a sociedade brasileira terá de lidar daqui
para frente.
Com a nova lei, agora temos dois padrões de cidadãos: os que respeitar am as
regras até então vigentes (Có digo Florestal antigo) e os que não respeitaram.
Os primeiros, independente do tamanho do imóvel, terão de manter 50
metros de florestas ao redor de nascentes (só as perenes, que têm água o
ano inteiro, pois as demais fic aram sem proteção), 30 metros ao largo dos
pequenos rios, respeitar as florestas dos topos de morro e encostas. Os
outros não precisarão ter florestas em topos de morro e encostas, terão só
15 metros ao redor de nascentes e, dependendo do tamanho do imóvel ,
poderão nem ter mata ciliar ao largo dos pequenos rios ( vej a tabela). Para os
primeiros não há qualquer compensação co ncreta que lhes premie por haver
cumprido a lei. Para os demais não há qualquer incentivo concreto que lhes
convença a ter uma árvore a mais do que o mínimo (bem mínimo) exigido em
lei.
Uma das características mais marcantes da nova regra é sua complexidade e
dificuldade para compreendê -la, o que, co nsequentemente, se transformará
em dificuldade na hora de implementá -la. A lei anterior, co m todos os
problemas que generalizações podem trazer, pelo menos era pão -pão, queijo queijo. Todo mundo tinha que ter mata ciliar do me smo tamanho se estivesse
na beira do mesmo rio. Todo mundo tinha que ter reserva legal, e por aí vai.
Agora depende. Depende do que? Do tamanho do imóvel e, se ho uver
desmatamento de áreas protegidas (Área de Preservação Permanente e
reserva legal), de qua ndo ele ocorreu.
Um pequeno proprietário que tinha todo seu imóvel desmatado antes de 2008
terá que recuperar m uito po uco da vegetação original, mesmo aquela que há
décadas era protegida por lei. Um médio proprietário na mesma situação terá
que recuperar bem mais, mas mesmo assim bem menos do que na legislação
anterior. Se o desmatamento ocorreu após 2008, no entanto, a situação será
completamente diferente para ambos. Se parte do desmatamento foi antes e
parte depois de 2008 , a situação será o utra ainda. D ifícil imaginar como o
proprietário rural, que acredito u que a lei feita por seus representantes
traria “clareza” e “segurança jurídica”, vai entender essa confusão .
Tudo isso vai gerar um enorme problema de monitoramento. Primeiro porque
não temos imagens de satélite, com a resolução necessária e cobertura para
o país inteiro, para saber o que estava ou não desmatado em 200 8. Portanto,
é bastante possível que desmatamentos feitos após essa data acabem
entrando no “pacotão”. Segundo, porque as imagens de sa télites hoje
utilizadas para monitorar o desmatamento em todo o país não têm a
resolução adequada para verificar a restauração de 5 o u 8 metros de mata
ciliar, como determina a lei para muitos casos. Para que isso seja possível,
será necessário adquirir im agens de alta resolução, muito mais caras do que
as atualmente disponíveis.
Com todas essas questões, demorará muitos anos até que sejamos capazes
novamente de fazer análises da situação do desmatamento ilegal em
determinado município ou bacia hidrográfica , por exemplo. Até há pouco
tempo era possível, com imagens de satélite, identificar que pontos de
determinado rio devem ser obrigatoriamente restaurados, por terem menos
mata ciliar do que a lei mandava. Agora isso só poderá ocorrer quando todos
os proprietários lindeiros desse rio tiverem cadastrado seus imóveis e
assinado seus termos de compromisso de regularização. Não haverá mais
análises no atacado, mas apenas no varejo, pois cada caso será um caso.
Os grandes prejudicados com a nova legislação serão os que vivem nas
regiões mais drasticamente desmatadas do país. Sim, porque apesar da
Confederação Nacional da Agricultura (CNA) viver martelando que o país tem
mais de 50% de vegetação nativa preservada, ela se concentra so bretudo na
Amazônia. Em determ in adas bacias hidrográficas de São Paulo, a locomotiva
do país, não há nem 5% de floresta em pé. Está faltando lenha, está faltando
água. E justamente aí é onde haverá a menor restauração, pois a ocupação
agropecuária é antiga e os imóveis, em sua grande mai oria, são pequenos ou
médios.
Mas mesmo na Amazônia o impacto será grande. Primeiro porque muitas das
regras de proteção à floresta que ainda resiste ao avanço das pastagens
foram flexibilizadas. Em mais de 90 municípios a reserva legal cairá de 80%
para 50%. Todos os imensos igapós e várzeas (mais de 400 mil km2, ou um
estado de São Paulo) deixaram de ser considerados Áreas de Preservação
permanente e, assim, poderão ser derrubados. Todas as nascentes
intermitentes, abundantes nas áreas de transição com o Cerrado, poderão ser
desmatadas. Mas não é só isso. A anistia concedida ao desmatamento do
Cerrado (49% da área total, concentrada no Sudeste e Centro -Oeste) e da
Mata Atlântica (76% da área total) será seguramente um estímulo aos que
gostariam de avançar um pouco além do que a nova lei permite. “Se eles
puderam, por que eu não poderei?”
E assim abrimos um novo capítulo na história de nossa combalida política
florestal. Com um no vo marco legal que já nasce remendado, e traz como
princípio a submissão da pro teção de nossos biomas à “presença do País nos
mercados nacio nal e internacio nal de alimentos e bioenergia” (art.1o – A,
parágrafo único, inciso II), temos que seguir adiante e ver no que vai dar.
Parte dos estragos produzidos pela lei poderá ser amenizada em sua
regulamentação . Por exemplo, será necessário evitar que grandes e médios
proprietários cadastrem suas propriedades de forma fragmentada para
ganhar o direito a uma “anistiazinha adicional”. Outra parte poderia ser
resolvida com um conjunto coerente e robusto de incentivos eco nômicos que,
por um lado, premiassem os que historicamente conservaram suas florestas
e, por outro, estimulassem os proprietários a restaurar para além do mínimo
estabelecido na nova lei. Não há, no entanto, nenhum sinal do Gove rno
Federal de que esteja pensando seriamente em algo assim.
Resta saber qual o papel que será exercido pelos setores representativos do
agronegócio. Se vão apostar em aprofundar as flexibilizações na
regulamentação e empurrar a implementação da lei com a barriga, pra ver se
liquidam a fatura daqui a alguns anos, ou se finalmente, agora que têm uma
lei por eles elaborada, vão querer implementá -la. Essa é a incógnita que se
desvendará a partir de agora.
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