A importância da participação dos avós na averiguação da filiação do neto, no projeto
Balcão de Justiça e Cidadania.
Silvio Maia da Silva
Assessor do TJ-BA
21/03/2015
Atualmente surgem na cidade de Salvador ocorrências em que crianças não reconhecidas pelo
pai falecido, muitos deles ainda jovens e que sofreram morte violenta. Sobre essas crianças, que
experimentaram a tragédia da perda prematura do pai, recai um segundo grave problema – o da
dificuldade de se efetuar o reconhecimento da filiação – o que depende de ajuizamento de
procedimento judicial em que parentes do pai terão que integrar à lide.
Ocorre que muitas vezes, os avós paternos, conhecedores da realidade do neto, tentam efetuar o
reconhecimento, mas encontram dificuldades várias, desde a inexistência de previsão normativa
que autorize administrativamente o registro, como a complexidade do processo e do próprio
acesso ao Judiciário.
Em março de 2010, o Superior Tribunal de Justiça julgou no Recurso Especial nº 807.849-RJ.
Essa decisão – que teve como relatora a Ministra Nancy Andrighi - influenciou as rotinas de
trabalho do Projeto Balcão de Justiça e Cidadania, por haver estabelecido um entendimento
importante acerca do reconhecimento da relação de parentesco entre ascendentes e descentes
de 2º grau.
O caso diz respeito à tentativa de um neto (reconhecido pelo pai) em reconhecer a relação de
parentesco com o avô, o que teria por consequência o reconhecimento da paternidade do
próprio pai.
O problema enfrentado nesse caso decorreu da interpretação do art. 1.606, do Código Civil, que
estabelece que a ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver, passando aos
herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Como no caso, o pai do autor da ação (quando vivo) não ingressou ação visando o
reconhecimento da sua filiação, prevaleceu na instância ordinária o entendimento de que
faltaria ao referido autor (neto do réu) legitimidade para mover ação contra o avô, na busca do
reconhecimento da sua ascendência, porque isso resultaria no reconhecimento da paternidade
do seu genitor que em vida não buscou esse reconhecimento.
Alguns pontos da decisão do STJ merecem destaque, especialmente a afirmação contida na
ementa do acórdão segundo a qual “o direito ao nome e ao conhecimento da origem genética
são inalienáveis, vitalícios, intransmissíveis, extrapatrimoniais, irrenunciáveis, imprescritíveis e
oponíveis erga omnes” bem como os trechos a seguir transcritos:
- Os netos, assim como os filhos, possuem direito de agir, próprio e
personalíssimo, de pleitear declaratória de relação de parentesco em face do avô,
ou dos herdeiros se pré-morto aquele, porque o direito ao nome, à identidade e à
origem genética está intimamente ligado ao conceito de dignidade da pessoa
humana.
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- O direito à busca da ancestralidade é personalíssimo e, dessa forma, possui tutela
jurídica integral e especial, nos moldes dos arts. 5º e 226, da CF/88.
- O art. 1.591 do CC/02, ao regular as relações de parentesco em linha reta, não
estipula limitação, dada a sua infinitude, de modo que todas as pessoas oriundas
de um tronco ancestral comum, sempre serão consideradas parentes entre si, por
mais afastadas que estejam as gerações; dessa forma, uma vez declarada a
existência de relação de parentesco na linha reta a partir do segundo grau, esta
gerará todos os efeitos que o parentesco em primeiro grau (filiação) faria nascer.
Nos Balcões de Justiça e Cidadania, um dos casos de maior incidência guarda semelhança com o
julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, uma vez que é relativamente comum a presença de
avôs que reconheceram o próprio filho e que depois da morte deste – o que muitas vezes
constitui a própria causa da falta do reconhecimento do neto – pretendem efetuar o
reconhecimento espontâneo da relação de parentesco com o neto. O esquema a seguir, ilustra as
duas situações:
Questão Julgada no STJ
Avô
//
Filho não reconhecido (falecido)

Neto reconhecido pelo pai
Busca o reconhecimento do parentesco
com o avô
Questão Recorrente nos Balcões
Avô
Reconheceu o filho e busca reconhecer o neto

Filho reconhecido (falecido)
//
Neto não reconhecido pelo pai
Aparentemente não existe grande diferença entre um caso e outro, porque em ambos não existe
elo registral entre avô e neto. No entanto, no primeiro caso, é possível argumentar ou inferir
que o pai falecido não pretendeu ver reconhecida a sua relação de parentesco com o seu próprio
pai, pelo fato de não haver exercido esse direito em vida, o que abre a possibilidade de aplicação
do art. 1.606 do Código Civil, na sua literalidade, com consequentemente negativa de pretensão
do neto, porque a ação ajuizada pelo neto contra o avô seria exercício de direito alheio em nome
próprio, o que é vedado processualmente.
Já o mesmo não pode ser afirmado em relação ao segundo caso, verificado nos Balcões de Justiça
e Cidadania, uma vez que a falta de registro do investigante deveu-se a uma impossibilidade
(caso o pai tenha falecido antes, por exemplo) ou por falta de cumprimento de um dever legal
(art. 53, I, da Lei 6.015/73), punível com penalidade de multa (art. 46, da mesma lei).
Portanto, o reconhecimento da relação de parentesco no segundo caso parece mais tranquilo e
aqui o art. 1.606 do Código Civil já não se encaixa perfeitamente, porque se está diante de caso
de filho vivo em busca do reconhecimento da sua paternidade, frustrada por impedimento ou
omissão do pai.
Esses casos se tornam ainda mais tranquilos, quando comprovada, mesmo que extraprocessualmente, a relação de parentesco por meio de exame de DNA efetuado com base em material
fornecido pelos próprios avôs, inclusive em campanhas como as empreendidas pelo Projeto Pai
Presente, criado por provimento do Conselho Nacional de Justiça.
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Um obstáculo que se tem colocado a esses reconhecimentos é existência de irmão unilateral
reconhecido pelo investigando (e, portanto, herdeiro deste) cuja mãe, na condição de sua
representante, recuse o reconhecimento do investigante ou mesmo a permissão para coleta de
material para exame de averiguação do parentesco.
Apesar da inegável legitimação desse irmão para reconhecer a existência do parentesco com
outro irmão não reconhecido, isso não significa que esse irmão reconhecido represente e a única
via lícita para obter-se a prova da filiação.
Em favor do filho não reconhecido vigora o art. 27, do Estatuto da Criança e do Adolescente, no
qual se afirma que “o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo,
indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem
qualquer restrição [...]”.
Sem dúvida, essa é uma norma estabelecida em favor do filho não reconhecido (e não no
interesse daquele que já foi reconhecido) e que não pode sofrer interpretação restritiva, porque
se trata de regra de proteção de um direito natural. A expressão “sem limitação” contida no
texto legal, combinado com dispositivos do Código Civil e da Constituição Federal, sobretudo o
seu art. 227, confere ao filho não reconhecido ampla garantia na busca desse reconhecimento e
não somente por meio de uma ação de um irmão contra o outro.
Soma-se a isso que a obrigação descumprida pelo pai falecido é personalíssima e, portanto, não
se transmite aos herdeiros (irmãos reconhecidos do investigante), que não se sub-rogam no
dever do ascendente morto, o que importa em dizer que entre o irmão reconhecido e o não
reconhecido não existe uma relação obrigacional anterior que torne obrigatório o ajuizamento
de ação de reconhecimento do parentesco de um contra o outro.
Aliás, o reconhecimento de parentesco que se busca é aquele verificado entre o filho não
reconhecido e o pai comum, de sorte que o parentesco entre os colaterais é uma mera
consequência do parentesco entre ascendentes e descendentes.
Como já afirmado, os avanços das técnicas atuais são bastante para se afirmar que a
comprovação da paternidade não mais depende exclusivamente ação do genitor e dos seus
descendentes, uma vez que a cessão de material genético pelos ascendentes e genitora do
investigante pode ser suficiente para demonstrar a existência da filiação.
Soma-se a isso que, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, surgiu para os netos o
direito de ação contra os avós em busca da percepção de alimentos (art. 1.696), direito de ação
esse que se justifica ainda mais em casos como esse, em que o pai já não mais pode contribuir
para o sustento dos filhos e os avós surgem como única alternativa para a sua sobrevivência.
Ora, se o avô está legitimado a figurar em polo passivo de ação de alimentos, evidente que
também está legitimado para figurar em polo passivo de ação que busca exatamente o
reconhecimento da própria condição de avô. Negar a possibilidade da existência da relação de
parentesco entre avô e neto equivaleria a negar a possiblidade do exercício da ação de alimentos
de um contra o outro e, portanto, da própria sobrevivência do alimentando órfão de pai.
Portanto, admitida a legitimação do avô paterno para o reconhecimento da relação de
parentesco com o neto, o que, inclusive cria para o referido avô a possibilidade de vir arcar com
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obrigação alimentar futura, desnecessária se torna a ação de um irmão contra o outro para ver
esclarecida a sua filiação, o que, aliás, poderia resultar na tentativa frustrada desse
reconhecimento, uma vez que não seria possível obrigar ao irmão reconhecido que produzisse
prova contra si, porque a presunção da filiação pela negativa ao exame de DNA só se aplica em
relação ao suposto pai, conforme súmula nº 301, do Superior Tribunal de Justiça.
Assim, o reconhecimento da filiação por via dos avós paternos resultaria na garantia do
cumprimento do comando contido no parágrafo 6º do art. 227, da Constituição Federal,
segundo o qual “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os
mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à
filiação”, além de evitar o litígio judicial entre filhos do mesmo pai.
A Constituição Federal e a legislação ordinária, sobretudo o Código Civil brasileiro e Estatuto da
Criança e do Adolescente, asseguram tratamento isonômico entre os filhos, de sorte que seria
iníquo admitir que um irmão, filho do mesmo pai morto, mas de diferentes mães, teria
privilégio em relação ao outro apenas pelo fato de haver nascido em momento anterior ao do
segundo filho e o reconhecimento de um não pode servir de fundamento a negativa ao registro
do outro.
Evidente que a esse irmão reconhecido anteriormente, cuja mãe, muitas vezes no exercício
deformado do instituto da sua representação legal, move-se por sentimentos próprios e pratica
um ato que guarda semelhança com a alienação parental - pelo qual se tenta implantar no filho
a falsa realidade da inexistência do irmão unilateral - o ordenamento jurídico disponibiliza
meios judiciais para discutir a filiação do irmão ou a validade do registro efetuado a partir de ato
praticado pelos avós paternos de ambos, mas isso não deve servir de fundamento para, a priori,
inviabilizar o reconhecimento efetuado pelos avós paternos.
Admitir como obrigatória a anuência dos demais descendentes do suposto pai como condição
para o reconhecimento do irmão faria supor que esses descendentes poderiam se opor a um fato
da vida – a existência do próprio irmão - o que juridicamente não se sustenta, pois, como visto,
a relação de parentesco entre irmãos é mera consequência.
Soma-se a isso que, se o pai não necessita da anuência dos filhos mais velhos para efetuar o
reconhecimento do filho mais novo, do mesmo modo deve proceder o Juiz quando, suprindo o
descumprimento de dever legal não observado por omissão do genitor, reconhece, com base em
prova científica e na declaração do ascendente em 2º grau, a relação de parentesco entre pai e
filho.
Portanto o que se propõe é não se deve optar pelo litígio quando existir a via do
reconhecimento espontâneo da paternidade pelos avós paternos do neto não reconhecido pelo
pai falecido, o que, aliás, encontra ressonância no preâmbulo da Constituição Federal, que
apregoa a via consensual das controvérsias como prioritária ao litígio. Entendimento contrário
equivaleria a atribuir-se ao estado um papel fomentador do litígio (no caso, desnecessário), o
que não é razoável.
Sem dúvida, não parece lícito que, uma vez comprovado o fato da vida – a existência do irmão –
tal realidade não se reflita do registro de nascimento, o que, além de contrariar direitos
elementares à pessoa não reconhecida, importaria na negativa a princípio que norteia o Registro
Público.
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Por tudo isso, a via do reconhecimento da filiação por intermédio dos avós paternos, seja esse
neto único descendente do pai ou não, especialmente quando esse reconhecimento acontece de
forma espontânea, se revela de inestimável importância prática e humana, inclusive por evitar
um desnecessário conflito entre irmãos, além de contribuir para a paz a social, objetivo maior de
todo e qualquer ordenamento jurídico.
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A participação dos avós no reconhecimento da filiação dos netos