Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br O ATO DISCIPLINAR MILITAR FERNANDO EDSON MENDES1 1. INTRODUÇÃO Com a promulgação, em 08 de dezembro de 2004, da Emenda Constitucional nº. 45, conhecida como “Reforma do Judiciário”, houve profunda alteração na Justiça Militar Estadual, especialmente com a ampliação de sua competência para processar e julgar ações judiciais contra atos disciplinares militares. Buscaremos, no presente estudo, atingir a escorreita interpretação do significado e alcance do que se entende por atos disciplinares militares, matéria agora delimitadora de competência. 2. DESENVOLVIMENTO 2.1. A novel competência cível da Justiça Militar Estadual A EC nº. 45/2004, dentre diversas mudanças, reformou o artigo 125 da Carta Magna, que trata da Justiça Estadual, inserindo no parágrafo 3º daquele artigo a figura do Juiz de Direito no primeiro grau de jurisdição castrense, dando àquele juízo, com a inclusão do parágrafo 5º, competência exclusiva para processar e julgar, singularmente, os crimes militares cometidos contra civis e as ações judiciais contra atos disciplinares militares. Ressalta o reconhecido doutrinador e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Álvaro Lazarini, que foi importante a atribuição de competência jurisdicional civil aos juízes de direito do juízo militar para processar e julgar os atos disciplinares militares, tendo em vista que os juízes estaduais, por vezes, igualavam hierarquia e disciplina militares, que são rígidas, às dos servidores públicos civis, mais flexíveis, ocorrendo decisões sem comprometimento com o Poder Hierárquico Disciplinar Militar2, ensinando ainda que: “ninguém melhor, assim, que o juiz de direito do juízo militar, que tem compromissos com os sadios princípios da hierarquia e disciplina que informam as instituições militares estaduais, para o controle jurisdicional dos atos disciplinares militares, evitando, com esse seu múnus, distorções em que poderiam vergar-se a hierarquia e a disciplina militares3. 2.2. O ato disciplinar militar Ponto nevrálgico desde estudo reside na necessidade de se definir o exato significado e alcance do que se entende por ato disciplinar militar, matéria agora delimitadora de competência. Como o ato disciplinar militar é uma espécie de ato administrativo, faz-se necessário, ainda que de forma superficial, explorar o conceito e fundamento do ato administrativo. Emprestaremos o conceito do saudoso administrativista Hely Lopes Meirelles: “Ato administrativo é toda manifestação unilateral de vontade da Administração Pública que, agindo nessa qualidade, Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar, extinguir e declarar direitos, ou impor obrigações aos administrados ou a si própria”4. Esta manifestação da Administração Pública decorre, por sua vez, dos Poderes Administrativos, que são instrumentais necessários à consecução dos fins da Administração e são classificados em: Poder Vinculado e Discricionário – dependendo da liberdade da Administração em realizá-los –; Poder Hierárquico e Disciplinar – quando visam ao ordenamento da Administração ou à punição dos que a ela se vinculam –; Poder Regulamentar – diante da necessidade Administração em normatizar sua atuação –; e em Poder de Polícia – quando há a necessidade de contenção de direitos individuais5. Poderes basilares da organização administrativa, os Poderes Hierárquico e Disciplinar estão intimamente ligados e são de difícil dissociação, mas não se confundem. Enquanto o Poder Hierárquico está voltado à distribuição e escalonamento das funções de seus órgãos e a ordenação e revisão da atuação de seus agentes, estabelecendo relação de subordinação entre seus servidores, o Poder Disciplinar reside na faculdade da Administração em punir as infrações funcionais de seus servidores ou qualquer pessoa sujeita à disciplina de seus órgãos, tendo em vista a necessidade de controle do desempenho e conduta interna de seus servidores, conforme as normas de conduta e sanções disciplinares previstas em norma própria. Destarte, conclui-se que o ato disciplinar militar origina-se do Poder Disciplinar da Administração, sendo uma espécie de ato administrativo que contém uma sanção imposta pela Administração aos administrados que cometem uma infração administrativa. Podemos, assim, conceituar o ato disciplinar militar como a manifestação unilateral dos órgãos militares estaduais ou federais, que tenha por fim a imposição de sanção aos seus integrantes que, por ação ou omissão, violem os valores e deveres da Instituição, cometendo uma transgressão disciplinar prevista em regulamento próprio. No caso da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o “regulamento próprio” trata-se da Lei Complementar nº 893/01 – Regulamento Disciplinar da Polícia Militar (RDPM) –, que prevê os valores e deveres policiais militares nos artigos 7º e 8º, as transgressões disciplinares em seu artigo 13 e as modalidades de sanções disciplinares no artigo 14, que são: advertência, repreensão, permanência disciplinar, detenção, reforma administrativa disciplinar, demissão, expulsão e proibição do uso do uniforme. Este mesmo regulamento prescreve os meios de apuração da transgressão disciplinar, prevendo o Procedimento Disciplinar nos artigo 27 a 29, destinado à apuração de transgressões disciplinares que, por sua natureza e complexidade, não exigem a instauração de Sindicância ou Processos Regulares. Em caso de transgressões disciplinares de maior gravidade ou complexidade, o artigo 71 prevê a instauração de Processo Regular, que visa avaliar a capacidade moral do policial militar em Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br permanecer no serviço ativo da Instituição e poderá ser de três formas: Processo Administrativo Disciplinar – destinado a praças com menos de 10 (dez) anos de serviço policial-militar –; Conselho de Disciplina - destinado a praças com mais de 10 (dez) anos de serviço policial-militar –; e Conselho de Justificação – destinado a Oficiais6. Podemos concluir, portanto, que o ato disciplinar militar, para efeito de processamento e julgamento pela Justiça Militar Estadual, será a sanção imposta pelas polícias militares e corpos de bombeiros militares em razão de infração disciplinar cometidas por seus integrantes, prevista em regulamento disciplinar próprio, como, por exemplo, o RDPM na Polícia Militar do Estado de São Paulo, havendo o processamento e a sanção ao policial militar, de acordo com o previsto na norma disciplinar. Todavia, conforme já ressaltado, os Poderes Hierárquico e Disciplinar apresentam estreita relação e são de difícil dissociação, o que provoca dúvidas quanto à natureza de determinados atos administrativos, se são emanados do Poder Disciplinar ou do Poder Hierárquico, conforme veremos a seguir, nas situações que geram maiores questionamentos no Estado de São Paulo: 2.2.1. Exoneração de Soldado PM de 2ª Classe A Lei Complementar nº 697, de 24 de novembro de 2002, prevê no artigo 2º, parágrafo único, que o Soldado PM de 2ª Classe que não for aprovado no curso de formação técnico profissional ou, a qualquer tempo, não preencher os requisitos estabelecidos em Decreto, será exonerado. Para regular estes requisitos, foi promulgado o Decreto nº 41.113, de 23 de agosto de 1996, em seu artigo 5º, regula os parâmetros do estágio probatório a que estará submetido o Soldado PM, conforme segue: “Artigo 5.º - O ingresso na Polícia Militar dar-se-á em caráter de estágio probatório, que se estende como o período de 730 (setecentos e trinta) dias de efetivo exercício, durante o qual o estagiário, submetido a curso de formação técnico-profissional, terá verificado o preenchimento dos seguintes requisitos: I - conduta ilibada, na vida pública e na vida privada; II - idoneidade; III - aptidão; IV - disciplina; V - dedicação ao serviço; VI - aproveitamento escolar; VII - perfil psicológico compatível com o desempenho da função; e VIII - adequação física e mental.” Caso não seja preenchido qualquer um dos requisitos acima descritos, ou se o Soldado PM de 2ª Classe não concluir o curso de formação técnico-profissional, ou ainda, se o mesmo requerer, este será exonerado, quando será instaurado um Processo Administrativo Exoneratório (PAE)7. O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência consolidada no sentido de que o PAE não se trata de ato disciplinar militar, e sim de ato hierárquico da administração pública, pois a exoneração, ato do Diretor de Pessoal, volta-se à análise da conveniência e oportunidade em se efetivar o policial militar em estágio probatório, e não se baseia em sanção disciplinar prevista no RDPM, logo, competindo o julgamento de lides às Varas da Fazenda Pública. Neste sentido, foram proferidos em 2005 acórdãos nos Processos nº 48.898/SP, 49189/SP, 54.553/SP e 56.938/SP8. Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br 2.2.2. O desligamento de Aluno-Oficial PM O desligamento de Aluno-Oficial PM é regulado pelo Decreto nº 52.575, de 11 de dezembro de 1970, sendo competente para o ato o Comandante da Academia de Polícia Militar do Barro Branco, “ad referendum” do Comandante-Geral, sendo os casos de desligamento previstos no artigo 88: “Artigo 88 - O Aluno-Oficial será desligado quando: I - pedir; II - for condenado, por qualquer espécie de crime ou contravenção penal, a pena restritiva de liberdade, desde que a sentença condenatória tenha transitado em julgado e não ocorra o benefício do “sursis”; III - for reprovado; IV - ingressar no mau comportamento; V - der origem a fatos ou tiver comportamento que o incompatibilize com a disciplina e moral militar, comprovado em processo regular, sem prejuízo das providências legais subseqüentes; VI - perder mais de 30 (trinta) pontos durante o ano letivo, na forma prevista no RIAPMBB; VII - por motivo de doença ou incapacidade física, for considerado inapto para o SMP ou deixar de se submeter, no prazo previsto, às provas de 2ª chamada, em 2ª época; VIII - contrair matrimônio; IX - obtiver conceito de aptidão, para o Oficialato, insuficiente em dois traços no mesmo semestre letivo ou em um mesmo traço em dois semestres consecutivos, independentemente do ano letivo; X - obtiver, durante o ano letivo, nota de conduta escolar inferior a 5,0 (cinco) em três meses consecutivos ou cinco alternados; e XI obtiver, no 2º semestre letivo do último ano do Curso de Formação de Oficiais - CFO, conceito de aptidão para o Oficialato insuficiente em qualquer traço.” Caso o desligamento do Aluno-Oficial PM se dê com base nos incisos IV e V, será competente para processar e julgar eventual questionamento judicial a Justiça Militar Estadual, pois são atos apurados segundo o RDPM, logo, originados do Poder Disciplinar. Caso o desligamento do Aluno-Oficial PM se dê com base nos demais incisos, da mesma forma como ocorre com a exoneração de Soldado PM de 2ª Classe, o desligamento do Al Of PM será ato decorrente do Poder Hierárquico, devendo seu processamento e julgamento, em caso de questionamento judicial, ser realizado pelas Varas da Fazenda Pública. 2.2.3. Desligamento de Soldado PM Temporário O Serviço Auxiliar Voluntário, criado pela Lei Federal 10.029, de 20 de outubro de 2000, foi regulamentado no Estado de São Paulo por meio da Lei 11.064, de 08 de março de 2002, sendo o trabalhador voluntário denominado Soldado PM Temporário (Sd PM Temp). A Portaria nº PM1-001/02/04, do Comandante Geral da Polícia Militar do Estado de São Paulo, prevê o desligamento do Sd PM Temp nos seguintes casos: “Artigo 10 - O Sd PM Temp poderá ser desligado do SAV antes do cumprimento do prazo estabelecido no artigo anterior, nos seguintes casos: I - a qualquer tempo, mediante requerimento do interessado; II - pela não conclusão com aproveitamento do Curso Específico de Treinamento; III - por deliberação do órgão de saúde da Polícia Militar quando ficar impedido de participar das atividades curriculares do Curso Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br Específico de Treinamento; IV - ficar afastado por problemas de saúde por mais de 60 (sessenta) dias, contínuos ou não, no decorrer de um ano; V - for considerado incapaz fisicamente para o serviço; VI - quando apresentar conduta incompatível com os serviços prestados; VII - em razão da natureza do serviço prestado; VIII - por prisão criminal; IX - falecimento”. Para configurar a “conduta incompatível”, o artigo 12 da mesma portaria prevê que a conduta incompatível que enseja o desligamento do SAV estará relacionada ao cometimento de transgressão disciplinar nos termos do RDPM, na seguinte conformidade: I - a prática, a qualquer tempo, de transgressão disciplinar classificada como Grave; II - a prática, dentro do período de um ano, de duas transgressões disciplinares classificadas como Média, ou a prática de uma transgressão disciplinar classificada como Média e duas transgressões disciplinares classificadas como Leves; III - a prática, dentro do período de um ano, de quatro transgressões disciplinares classificadas como Leves. Como o desligamento do Sd PM Temp, por conduta incompatível, está relacionado diretamente às infrações disciplinares previstas no RDPM, este ato é originado do Poder Disciplinar, logo, é ato disciplinar militar, devendo o questionamento judicial ser encaminhado para a Justiça Castrense. Caso o desligamento se dê com base nos demais motivos, será ato decorrente do Poder Hierárquico, devendo seu processamento e julgamento, em caso de questionamento judicial, ser realizado pelas Varas da Fazenda Pública. 2.2.4. Movimentação por conveniência da disciplina e por conveniência do serviço As Instruções para a Movimentação de Policiais Militares (I-2-PM), publicada no Boletim Geral PM nº 057/01, regulam as formas de movimentação do efetivo PM, destacando-se duas formas que geram por vezes originam questionamento judicial: por conveniência da disciplina e por conveniência do serviço. A movimentação por conveniência da disciplina, segundo o artigo 15 da norma citada, ocorrerá quando a permanência do policial militar na Unidade onde serve tornar-se nociva ou prejudicial à disciplina, vindo a comprometer o conceito de seus pares e da Corporação, devendo estar vinculada ao processo ou procedimento administrativo que apurar os fatos. Como esta movimentação possui vinculação com o processo ou procedimento administrativo disciplinar, os questionamentos judiciais deverão ser encaminhados para a Justiça Militar. Já a movimentação por conveniência do serviço, como o próprio nome diz, dependerá exclusivamente da avaliação da conveniência e oportunidade, atos típicos do Poder Hierárquico, devendo eventuais questionamentos judiciais ser encaminhados para as Varas da Fazenda Pública. Publicado no Site Lessa Cursos • www.lessacursos.com.br 3 - CONCLUSÃO Para o jurisdicionado policial-militar, a nova atribuição de competência à Justiça Militar Estadual para processar e julgar lides que visem atacar atos disciplinares militares foi benéfica, pois garante a este que as questões sejam analisadas pelo mesmo Juízo, especializado, diminuindo a imprevisibilidade e a demora observadas anteriormente nas Varas da Fazenda Pública. O ato disciplinar militar, decorrente do Poder Disciplinar da Administração, será o ato manifestado unilateralmente pelos órgãos militares estaduais ou federais, com a finalidade de imposição de sanção aos seus integrantes que, por ação ou omissão, violem os valores e deveres da Instituição, cometendo uma transgressão disciplinar prevista em regulamento próprio. Os Poderes Hierárquico e Disciplinar estão estreitamente ligados, mas não se confundem. Enquanto o primeiro volta-se à distribuição e escalonamento das funções de seus órgãos e a ordenação e revisão da atuação de seus agentes, estabelecendo relação de subordinação entre seus servidores, o segundo reside na faculdade da Administração em punir as infrações funcionais de seus servidores ou qualquer pessoa sujeita à disciplina de seus órgãos. Por fim, conclui-se que, qualquer que seja o ato administrativo, se conter sanção vinculada a procedimento ou processo previsto em regulamento disciplinar próprio, será ato disciplinar e eventuais questionamentos judiciais deverão ser apreciados pela Justiça Castrense Estadual; caso contrário, será ato decorrente do Poder Hierárquico e continuarão a ser competentes para o processamento e julgamento as Varas da Fazenda Pública. BIBLIOGRAFIA ASSIS, Jorge César de. A reforma do Poder Judiciário e a Justiça Militar. Breves considerações sobre seu alcance. Revista Direito Militar, número 51, P. 23-27. LAZARINI, Álvaro. A Emenda Constitucional Nº 45 e a Polícia Judiciária Militar. Revista A Força Policial, número 53. p. 09-16. MARTINS, Eliezer Pereira. Emenda Constitucional 45/04 (Reforma do Judiciário) – ações judiciais contra os atos disciplinares militares – ampliação da competência da Justiça Militar Estadual – reflexões iniciais. Revista Direito Militar, número 55, P. 15-18. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª Edição, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Décio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 1998. OLIVEIRA, Rodrigo Tadeu Pimenta de. Reflexos da Emenda Constitucional nº 45, de 08 de dezembro de 2004, nas Justiças Militares Estaduais. Revista Direito Militar, número 50, P. 12-15. NOTAS 1 Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo, cursando a Academia de Polícia Militar do Barro Branco no período de 1997 a 2000. Graduou-se em Direito pela Universidade Bandeirante em 2002 e, atualmente, é pós-graduando em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul. 2 Álvaro Lazarini, A Emenda Constitucional Nº 45 e a Polícia Judiciária Militar, p. 13. 3 Álvaro Lazarini, A Emenda Constitucional Nº 45 e a Polícia Judiciária Militar, p. 14. 4 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, p. 131. 5 Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, p. 101 e 102. 6 O RDPM, no parágrafo único do artigo 73, prevê, ainda, a possibilidade de instauração de CJ ao Oficial inativo presumivelmente incapaz de permanecer na situação de inatividade. 7 O PAE é regulamentado pela Portaria do Comandante Geral DP - 56/311/05, de 14 de outubro de 2005. 8 Disponível em: http://www.stj.gov.br/SCON/decisoes/doc.jsp?processo=056938&&b=DTXT&p=true&t=&l=10&i=2. Acesso em: 19MAI07.