UM OLHAR SOBRE O ROMANCE MALANDRO Luciane Figueiredo Pokulat (UFSM/ CAFW) Um importante aspecto levantado pelo antropólogo brasileiro Roberto DaMatta é que o brasileiro vive um dilema constituído pela oscilação entre duas unidades sociais distintas: o indivíduo – o sujeito das leis universais e igualitárias que modernizam a sociedade – e a pessoa – o sujeito das relações sociais que conduzem as dimensões hierarquizadas do sistema. Confuso entre essas duas unidades, o brasileiro não sabe como proceder ante as regras criadas para todos os indivíduos representadas pela Rua o espaço público - pois fora criado na Casa – o espaço privado, o espaço da satisfação e das vontades da pessoa. Como o brasileiro tem dificuldade em saber se é indivíduo ou pessoa, quando é indivíduo ou pessoa, surge um espaço nebuloso, o qual se torna propício para o desenvolvimento do jeito malandro de ser. Talvez seja difícil para nós brasileiros que vivemos esse dilema entendê-lo sem a explicação do antropólogo: Nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, somente para citar três bons exemplos, as regras ou são obedecidas ou não existem. Nessas sociedades, não há nenhum prazer em escrever normas que aviltam o bom senso e as práticas sociais estabelecidas, abrindo caminhos para a corrupção burocrática e ampliando a desconfiança no poder público. Em face da expectativa de coerência entre a regra jurídica e as práticas da vida diária, o inglês, o francês e o norte-americano param diante de uma placa de trânsito que diz “parar” o que - para nós - parece um absurdo mágico. Ficamos sempre confundidos e fascinados com a chamada disciplina existente nesses países. (DAMATTA, 2004:46) O que deveria ser uma lógica, em qualquer sociedade organizada, acaba sendo motivo de admiração para o brasileiro. O Brasil é um país que deseja ser moderno e caminha para isso. Porém, a relação do povo dessa nação com as normas e as leis ainda é um tanto nebulosa, pois frente a um limite estabelecido via de regra, o brasileiro adota um comportamento no „entremeio‟ do „pode e não-pode‟ da lei. Entendendo melhor: existe um padrão genuinamente brasileiro que se constitui em arranjar-se por meio dos furos da lei, originando os famosos „jeitinhos‟. DaMatta criou a teoria do triângulo ritual onde distribui os ritos da ordem, da desordem e os cerimoniais neutros das religiões nos espaços da casa, rua e outro mundo. 1090 Porque a sociedade brasileira é mestre em transições equilibradas e em conciliações, estabeleceu-se no Brasil a lógica relacional, cuja principal característica é a capacidade de inventar pontes e formas de passagens entre esses espaços estabelecendo as relações. Como esses espaços são segregados e afastados uns dos outros, as festas são momentos importantes para a sociedade brasileira, pois por meio delas se pode relacionar os espaços reunindo-os para a vivência da totalidade. Assim, o carnaval – a festa da inversão – encontra nessa sociedade relacional um espaço ideal para manifestar-se. Para Roberto DaMatta (1997) o universo carnavalesco é um espaço onde os múltiplos da realidade brasileira acontecem. É onde a dialética ORDEM x DESORDEM formaliza alguns aspectos da formação da sociedade brasileira. O antropólogo explica ainda que é no ritual, em especial os coletivos, que a sociedade manifesta-se autenticamente. O universo do carnaval é um espaço e um tempo diferente do cotidiano e possui suas próprias regras, as quais organizam uma nova lógica. A oposição espacial Casa x Rua possui determinadas regras e convenções para o espaço da CASA e outras para a RUA. O ritual carnavalesco, entretanto, é um tempo onde casa e rua se encontram em um espaço especial, já que a festa possui vários aspectos da ordem pública – desfiles, grupos formais – e, ao mesmo tempo, permite ações e gestos que teoricamente só seriam realizados em casa. No carnaval, portanto, a mistura e a confusão das regras de hierarquia são permitidas com a fusão dos dois espaços em um só, onde ações típicas de cada um deles acontecem com naturalidade representando a síntese da Casa e da Rua. O fenômeno do carnaval na sua forma sincrética de espetáculo de caráter ritual e festivo tem se constituído num dos problemas mais complexos e interessantes da história da cultura, ultrapassando as fronteiras das festas e dos ritos para adentrar em outras esferas inclusive na literatura. Em Problemas da Poética de Dostoievski (2003), Mikhail Bakhtin, na década de 60, veiculou o carnaval com a arte literária, apresentando a teoria da literatura carnavalizada. Para ele a carnavalização da literatura é a transposição do espírito carnavalesco para a arte, onde se constrói uma pluralidade intencional de estilos e vozes, mistura-se o sublime e o vulgar, intercala-se gêneros (cartas, manuscritos, paródias de gêneros elevados, etc.), provocando uma mescla de dialetos, jargões, vozes, estilos. A literatura carnavalizada é ambivalente, pois nela não há a denúncia negativa de caráter moral ou sociopolítico que opera apenas no plano da negação. Para ser carnavalizada, a obra precisa ser marcada pelo riso, que dassacraliza e relativiza as coisas sérias, as verdades estabelecidas. Para Bakhtin, o carnaval estabelece 1091 nas sociedades hierarquizadas um continuum marcado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de todas as categorias e grupos sociais. As distâ ncias são eliminadas porque o mundo está de cabeça para baixo e a sociedade perde temporariamente os seus centros regulares de poder e hierarquização. É nesse ponto que o antropólogo aproxima sua tese à teoria de Bakhtin acrescentando que o que se descobre no modelo da carnavalização é a possibilidade do diálogo entre as categorias divergentes, rigidamente subordinadas pelas hierarquias no mundo diário. E como dialogar é relacionar, quanto mais distantes estiverem as categorias entre si, mais espaços ambíguos e possibilidades relacionais surgirão. Arremata o antropólogo: “Em outras palavras, carnavalizar é formar triângulos, é relacionar pessoas, categorias e ações sociais que normalmente estariam soterradas sob o peso da moralidade sustentada pelo estado.” (DAMATTA, 1997:110). Memórias de um Sargento de Milícias (2005), de Manuel Antonio de Almeida, publicado inicialmente m folhetins, em 1852-53, é o primeiro romance da literatura brasileira a focalizar as camadas populares com cenas reais em que a narrativa escapa da visão romântica. O autor alia bom humor e realismo e apresenta personagens não idealizados, retratando com objetividade os costumes e hábitos do grupo social mais popular do Rio de Janeiro. Leonardo, fruto de uma pisadela e um beliscão, o protagonista da obra é apresentado como traquinas, o que o aproxima mais do anti-herói e lembra as peripécias de heróis do tipo picaresco. Em 1970, Antonio Candido propõe uma interpretação das Memórias redefinindo a maneira como o romance era tomado até então e, ao instaurar a Dialética da Malandragem o crítico acaba descobrindo e identificando uma nova linha de força teórico-literária brasileira: o romance malandro. Ou seja, Manuel Antonio de Almeida, ao criar Leonardo, estaria criando o primeiro personagem malandro da literatura nacional. Além disso, para A. Candido a eficiência e a durabilidade com que a obra atua na imaginação do leitor, perpassando os tempos, deve-se à sua natureza popular. A narrativa que se passa no início do século XIX – no tempo do rei – só teve o devido reconhecimento, entretanto, depois do Modernismo. A crítica afirma inclusive que as Memórias de Almeida teriam sido a semente de Macunaíma de Mário de Andrade e, portanto, Leonardo teria sido o malandro responsável por antecipar a figura de Macunaíma, conhecido pelo público em 1928. O livro Macunaíma do modernista Mário de Andrade com o subtítulo “o herói sem nenhum caráter” é uma obra classificada pelo próprio autor como uma rapsódia - 1092 termo retirado da música que se refere a uma variedade de motivos populares ligados entre si, por uma afinidade sonora. Em Macunaíma, Mário de Andrade combinou assuntos variados, temas heterogêneos, gêneros diversos e estilos diferenciados. O autor reuniu motivos populares de acordo com afinidades entre eles, montando uma espécie de colcha de retalhos, misturando os aspectos folclóricos, populares e culturais do Brasil. A obra foi classificada como rapsódia por constituir-se de uma colagem intencionalmente confusa de inúmeras fontes culturais que tenta estabelecer „um falar brasileiro e fazer uma leitura crítica do país‟. O “herói da nossa gente” passa a ser o símbolo/modelo de uma nacionalidade. Ele é tomado como o herói sem nenhum caráter e revela uma amoralidade (diferente de imoralidade), um modo de agir e pensar de um povo em formação, cuja identidade é um misto da cultura selvagem, colonial e moderna que coexistem com o linguajar que aproxima a língua escrita da falada e valoriza o uso do português coloquial com suas rupturas gramaticais. O fio condutor da obra é a perda e a busca da muiraquitã - uma pedra da cor verde que Ci a Mãe do Mato tira do colar e antes de subir para o céu doa para Macunaíma como lembrança dos dias de plenitude erótica que passaram juntos. Essa busca metaforiza na rapsódia andradiana a busca da identidade perdida, pois a pedra é o símbolo da iniciação à vida. Para Gilda de Mello e Souza, a constante busca da pedra se dá por um herói extremamente carnavalizado, pois a trajetória do nosso herói nacional “é uma sucessão de atos fortuitos (sem projeto) surgidos ao acaso e visando muitas vezes dois alvos opostos.” (SOUZA, 1979:92). Para a autora, Macunaíma representa “o ponto extremo de um conflito, cuja ação se projeta em dois planos simultâneos, não mais de amor e da guerra, mas da atração da Europa e da fidelidade ao Brasil.” (1979:92-93). Por outro lado, Macunaíma é tomado por Robson Pereira Gonçalves (1982) como a representação do herói genuinamente nacional que é o malandro, sendo que este seria o símbolo carnavalizado do brasileiro. Assim, por meio da sátira social de Mário de Andrade, o personagem passa a ser um símbolo da cultura brasileira e o grande mediador entre os polos ORDEM x DESORDEM da esfera social brasileira. De 1970 em diante, o Brasil configurou-se como uma nação capitalista e moderna. O milagre econômico provocou um espetacular crescimento das cidades, atraindo milhões de trabalhadores rurais à vida urbana. A sociedade patriarcal/agrária predominante no Brasil dá lugar a novos comportamentos e novas expectativas, todas relacionadas a princípios urbanos e capitalistas. Isso tudo, somado às transformações culturais iniciadas no ano de 1968, provocou modificações no paradigma dos valores 1093 humanos. A partir de então o individualismo, a busca da felicidade pessoal a qualquer custo (tanto nos aspectos emocionais como sexuais), o culto ao dinheiro e o consumismo passam a ser os pilares da sociedade brasileira. Com tantas transformações, o mundo se desorganiza, as pessoas ficam desorientadas, não conseguem entender a si mesmas e tampouco reorganizar e entender o mundo à sua volta. Esse novo contexto, o regime de violência da época e a censura imposta pelo regime militar atuaram de modo significativo na produção dos escritores da década de 70. A censura proibia a imprensa de noticiar os aspectos negativos do país, por isso o texto memorialista – biográfico ou autobiográfico - e o romance-reportagem acabam sendo alternativas de expressão literária. No entanto alguns escritores da década de 70 procuram uma nova possibilidade estética e criam estruturas narrativas capazes de retratar o estado social fragmentado e ao mesmo tempo atacar, mesmo que indiretamente, o regime imposto. Surgem, então, as técnicas da alegoria e da fragmentação, as quais procuram refletir o desespero social e ao mesmo tempo driblar a censura. Assim, no auge dos romances de memórias, Sérgio Sant‟Anna publica um romance de ruptura, intitulado Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária. “No campo das representações culturais voltadas às identitárias, o malandro ocupa lugar preminente”, manifesta-se Heloisa Costa Milton (2007:395-401) falando sobre a figura que foi incluída no Dicionário de Figuras e Mitos Literários das Américas – DFMLA – organizado por Zilá Bernd. (2007: 395-401). O malandro é uma figura que incide sobre um campo cultural de longo alcance. Velho conhecido em canções, obras literárias, danças e no teatro e também objeto de estudo da sociologia, história, filosofia e antropologia, ele se articula a partir de uma realidade social e imortaliza-se especialmente nas letras de samba. O malandro é um ser deslocado por excelência e se instala nos espaços de carnavalização dos valores comunitariamente aceitos. Avesso ao trabalho, ele é um tipo individualizado que possui um modo próprio de falar, andar e vestir-se. Para Roberto DaMatta, no mundo da malandragem, o que conta é a voz, o sentimento e a improvisação. Nesse universo, quem inventa as regras é o coração, o sentimento. Para o malandro, a palavra de ordem é a sobrevivência. Definir o malandro em seus vários aspectos não é, na verdade, uma tarefa muito simples, pois ele se constitui em um personagem múltiplo: não é um trabalhador bem comportado, mas também não é o ladrão, o marginal; não pertence ao mundo da ordem, nem ao mundo da desordem; é visto como um ser esperto, porém, se escorregar, pode cair na marginalidade. O 1094 malandro é a condensação das díspares ideias, imagens, costumes, comportamentos e ideologias remanescentes da tradição histórico-social e cultural. Essa figura contribui para fortalecer a idéia do brasileiro como maleável, alegre, com jogo de cintura e eficaz no uso do “jeitinho” na solução de impasses. No entanto, a figura estereotipada do malandro se sobrepõe, de certa forma, a outros aspectos inerentes à identidade nacional, ao mesmo tempo em que escamoteia os inúmeros tipos de malandros que se encontram em permanente transformação, como ocorre, inclusive, em relação aos diversos aspectos que envolvem o universo da malandragem. Jeitinho e malandragem, apurou DaMatta, são formas de navegação social, sendo que esta última se define como um conjunto de artimanhas utilizadas para se obter vantagem em determinadas situações, as quais podem ser lícitas ou ilícitas. Para o sucesso da malandragem é necessário carisma, destreza, lábia, sutileza ou quaisquer outros recursos que possibilitem a manipulação de pessoas no sentido de obter destas o que se deseja. O malandro repele a argumentação lógica e a honestidade pois, para ele, essas qualidades pessoais são incapazes de produzir resultados rápidos e satisfatórios, logo, não servem ao malandro. O malandro é um tipo social que caminha em busca da felicidade e tem ojeriza ao trabalho. A sua ética consiste na lógica do prazer, sua regra é “levar vantagem em tudo”. Para a malandragem ser bem-sucedida, o malandro deve obter vantagem sem que sua ação se faça perceber e, por isso ele engana sua vítima – o popular otário – sem que este perceba que foi enganado. Assim, a malandragem é uma prática alternativa para a superação de todo e qualquer obstáculo e, tal como o jeitinho, é um recurso de esperteza utilizado por indivíduos de pouca influência social ou socialmente desfavorecidos, o que não impede – evidentemente – que o recurso seja utilizado por indivíduos mais bem posicionados socialmente. Para Heloisa Costa Milton (2007:397-398), no âmbito da ficção, a figura do malandro tem origem no período colonial a partir da tradição folclórica ibérica - como é o caso de Pedro Malasartes - e na tradição satírica, por meio do discurso literário, do teatro, da imprensa, da propaganda e de outros sistemas. Contudo, acrescenta ela, “assinala-se como marco original da estética da malandragem a obra Memórias de um sargento de milícias (1854-1855), de Manuel Antônio de Almeida”. A autora, que eleva a figura do malandro a mito, prossegue seu raciocínio: “Se Memórias é o primeiro romance da linha da malandragem e Leonardo o primeiro malandro literário, conforme 1095 Candido (1970), esse malandro será elevado à categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma, o herói sem nehum caráter (1928).”(MILTON, 2007:398) Criado quase meio século depois de Macunaíma, o livro Confissões de Ralfo uma autobiografia imaginária (1975) de Sérgio Sant‟Anna, é uma narrativa que também apresenta um herói sem nenhum caráter: Ralfo não tem uma identidade, não possui qualidades que o individualizem como bom ou como mau, é um ser formado por vários “eus”, sujeita-se a inúmeras aventuras e fantasias. Ralfo é um personagem fragmentado e, embora represente uma época também fragmentada, simboliza o personagem malandro que quer se dar bem a qualquer custo. Assim como Macunaíma, Ralfo não tem qualquer coerência psíquica, não possui moral, não tem caráter que o identifique ou que lhe confira uma identidade. Ralfo, como Macunaíma, encarna o brasileiro: um ser em constante busca. A busca da identificação. Assim, três personagens diferentes, criados em três contextos históricos diferentes foram capazes de simbolizar um único ícone, provando a permanência deste através dos tempos. É certo, porém, que Leonardo representa uma malandragem mais romântica, quase que ingênua, ao passo que Macunaíma surge reafirmando essa ingenuidade, mas já dando sinais de que veio para ficar. Ralfo, por sua vez, nada tem de pureza ou ingenuidade, pois está sempre pronto a uma nova aventura com o claro intuito de levar vantagem em tudo a qualquer custo. Desculpa-se constantemente por seus atos ilícitos, mas nem bem termina uma aventura já está arquitetando o próximo intento. Ralfo, como Macunaíma e Leonardo, é um personagem da literatura brasileira que também traduz a relativização do texto literário com a dramatização do rito popular. Através de Ralfo constatamos a permanência da figura do malandro na sociedade brasileira, uma sociedade que independente de contexto histórico, político ou social, parece estar sempre de braços abertos para receber um novo malandro, essa figura tão bem adaptada nessa sociedade. Várias são as facetas que unem Ralfo, Macunaíma e Leonardo: do modo de vestir ao modo de se portar; da maneira de resolver os problemas às formas de encarar a sobrevivência; de como encaram o amor e as amizades às formas como se relacionam com a lei e de como a narrativa se desenrola. O crítico Antonio Candido consagra Leonardo como o primeiro malandro da ficção brasileira. Eneida Maria de Souza afirma que Macunaíma ostenta, ao longo dos anos, a imagem do malandro tupiniquim, da astúcia mesclada à ingenuidade, da preguiça como resposta ao modernizante apelo da civilização do trabalho. Robson Pereira Gonçalves vê em Macunaíma o arquétipo do malandro, por ser um herói 1096 cômico/trágico que representa os anseios e as dificuldades da brasilidade. Esse estudo trata de incluir ao lado de Leonardo e Macunaíma – personagens já consagrados pela crítica literária – o Ralfo, personagem surgido na década de 70, que transita livremente por espaços aparentemente absurdos, em uma narrativa aparentemente sem nexo e apresenta – no nosso entendimento - características de um típico malandro brasileiro. Na intenção de entender quem é o malandro e quais as características necessárias ao personagem para que seja tomado como tal fez-se um movimento ao contrário, investigando as características de um herói clássico. Gilda de Mello e Souza arrolou as qualidades de um herói típico das novelas de cavalaria e, segundo ela, este herói se caracteriza em síntese pelas seguintes qualidades: nobreza, coragem, lealdade, verdade, justiça e desprendimento. Ele pertence ao ápice da hierarquia aristocrática; enfrenta as provas com coragem e determinação; é um personagem simpático sempre em busca da aventura, mas sempre lutando lealmente; não aceita a mentira; posta-se em defesa dos mais fracos, ignorando qualquer proveito pessoal; na vida amorosa manifesta-se com sutileza, elegância, refinamento e gentileza, sendo que os traços ostensivos da paixão devem ser contidos pelo herói. Leonardo, Macunaíma e Ralfo são o avesso do herói clássico. Leonardo é arruaceiro, individualista, safado, apegado aos confortos de qualquer tipo, sejam eles materiais, carnais, amorosos e não trabalha. Macunaíma é exatamente a carnavalização do nobre, é a paródia do herói em todos os seus aspectos: é medroso, desleal, mentiroso, injusto, preguiçoso, ganancioso, possui impulsos sexuais incontroláveis e não trabalha. Da mesma forma Ralfo é um típico anti-herói, pois não tem identidade bem definida, desfilando pela narrativa como ladrão, conquistador, mentiroso, desleal, avesso ao trabalho, individualista, sempre preocupado com seus objetivos e vantagens pessoais e, assim como Macunaíma, não controla os impulsos sexuais. Além disso, os três personagens não pertencem nem ao mundo da ordem, nem ao mundo da desordem e transitam livremente entre os dois polos, tirando proveito de ambos. Ademais Leonardo, Macunaíma e Ralfo são incapazes de vincular-se a alguma ideia ou ideal de conduta, assumindo vários papéis numa demonstração clara da instabilidade de sua personalidade. Aventureiros e trapaceiros sujeitam-se a qualquer atividade para ganhar a vida e por isso burlam a lei, mentem, fazem armadilhas, enganam, roubam e seduzem. Ao final desse estudo, nos damos conta de que não é tão fácil demarcar o campo do malandro. Se de um lado há um mundo da Ordem, definido por regras, leis e decretos que valem para todos, do outro lado há um mundo individualizado de cada um, 1097 da pessoa, da vontade própria no qual a parte pode triunfar sobre o todo. Se no primeiro mundo - o mundo da Ordem - o Caxias é nosso representante, no lado oposto há o mundo da malandragem, no qual, segundo Roberto DaMatta, o que conta é a voz, o sentimento e a improvisação, pois nesse universo quem inventa as regras é o coração. Assim, as fronteiras do mundo da malandragem são bastante tênues e se de um lado existe a malandragem socialmente aceita, vista como esperteza e vivacidade, de outro, há um ponto mais pesado quando o malandro deixa de viver do jeito e do expediente para viver de golpes, transformando-se em marginal ou bandido. Roberto DaMatta diz que para a sociedade brasileira o modelo do(s) herói(s) brasileiro(s) oscila entre a imagem deificada do malandro (que não se apega ao trabalho e consegue as coisas com o menor esforço), o renunciador ou o santo (o que abandona o trabalho neste e deste mundo e vai trabalhar para o outro, como fazem os santos e líderes religiosos) e o Caxias (que pode não ser o trabalhador, mas é o ser cumpridor de leis e que obriga os outros a trabalhar). Vê-se que a ideia do trabalho duro e honesto ou a glorificação do trabalhador não são modelos ou padrões enaltecidos por essa sociedade. Acrescente-se a isso a constatação de que o brasileiro não possui um estilo de vida coeso ou disciplinado capaz de integrar e definir sua personalidade no sistema social. Tem-se, então, um indivíduo livre, que se e entrega a quaisquer ideias, gestos e formas encontradas pelo caminho, assimilando-as sem nenhuma dificuldade. Conclui-se, portanto, que nessa sociedade com dificuldades em identificar um herói por falta de um padrão, por falta de um modelo a seguir, há o espaço para o antiherói, nesse caso, o malandro. O malandro é, então, a paródia do herói, um herói carnavalizado, é o anti-herói que encontra no mundo carnavalesco – o mundo da inversão – o espaço ideal para movimentar-se, pois entre os „pode‟ e „não-pode‟ estipulados pelas leis brasileiras, há a possibilidade da junção destes, criando o „jeitinho‟ e os espaços para os arranjos pessoais. Ora, em uma sociedade caracterizada pelo dilema brasileiro, pela mistura, pela ambiguidade, pelo homem cordial, pelo livre trânsito e aceitação entre o mundo da ordem e da desordem, é perfeitamente compreensível que o universo carnavalesco e seu principal representante – o malandro – sirvam de símbolos do modo de ser do brasileiro. E, se na sociedade brasileira prevalecem os espaços carnavalizados no sentido da mistura e da inversão de valores, das múltiplas éticas ou até mesmo da falta de ética (definida), daí a resposta de por que o malandro adapta-se tão bem a essa sociedade a ponto de ser conhecido como personagem nacional, de ser cantado em prosa e verso 1098 durante tanto tempo e dessa figura ter, inclusive, conseguido instaurar uma nova vertente na literatura brasileira: o romance malandro. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Introdução de Mário de Andrade. Edição preparada por Vadim Nikitin. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 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