Um Tênue Limiar
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UM TÊNUE LIMIAR...
Graciella Leus Tomé
Lembro de uma cena em especial, no Hospital Psiquiátrico Cyro Martins, que muito
me chocou. Foi a internação de uma jovem senhora, mãe, casada, profissão estável,
olhar vago, entristecida, deprimida, em surto.
Então a idéia do quão tênue é o limiar existente entre o “estar ou não estar louco” e
o exercício do pensar a doença mental (Bion), se instalou em mim.
Porém meu pensamento dizia ser impossível determinar uma única verdade para o
comportamento e sentimentos de uma pessoa, o ser humano é interminavelmente
dinâmico, e por pessoa entendemos nós profissionais e nossos pacientes. Como diz a
poesia do Dr. Cyro Martins “fica decretado a partir de hoje, que terapeuta é gente
também”.
Continuando a peregrinação por minhas memórias, chego no dia em que apresentei
meu caso clínico, aqui na Instituição Cyro Martins. Naquela manhã tive a honra de ter a
meu lado como supervisor convidado o Dr. José Blaya e no final da discussão lembro
que ele sabiamente citou uma passagem de Freud “o homem que não acredita na sua
capacidade de amar, não acredita no amor do outro”. Ter amor, empatia e capacidade
para a transformação é algo que se conquista.
Por isso... Um tênue limiar... Onde princípios básicos do amar e ser amado se
completam, se sobrepõe, se buscam e se fundem na construção de cada singular
personalidade.
Então volto àquela jovem senhora que se interna. Um ser surge primeiro na idéia e
desejo de dois sujeitos, segue a fecundação, a gestação, o parto, e nasce um bebê. E
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juntamente nesta ocasião única também nascem pais, que precisarão aprender na
experiência e vivências com este bebê a doar de si para a formação de outra pessoa.
Pois bem, após essa trajetória de vida, o que pode haver falhado nessa mulher que
vem para internação?
O Dr. José Blaya (2004) sempre dizia que “o ego do filho se consolida no colo da
mãe”. Freud ensinou que nosso reprimido e herdado, nossas pulsões, nossos desejos,
nossas vivências, representações e percepções, estão em um lugar secreto para nós, o
Inconsciente.
Bastante intrigante, ou no mínimo persecutório, não acham?
Então vem Bion e nos ajuda a pensar o pensamento, a pensar sob diversos vértices o
funcionamento humano, a trabalhar a ampliação da mente. Quanto à loucura, ele diz que
todo mundo é um pouco louco, que é “normal” termos momentos loucos, pois somos
constituídos por “uma parte psicótica e uma parte não psicótica em nossa
personalidade”. Acredito que Bion, com esses novos paradigmas do pensar humano, nos
acalma.
Na prática clinica, parece ser frágil esta linha divisória, fugaz este limiar entre a
loucura e a sanidade.
Os pais suficientemente bons “nomeiam” seus filhos, os autorizam a “vir a ser” e
tudo é único a partir destes primeiros vínculos fundantes das representações psíquicas.
Um filho é a obra prima de seus pais, do seu mundo interno. Colorido por um olhar,
com a pincelada de um toque cuidadoso, a voz meiga dando um novo tom, um ambiente
amigo, a tradução singela e verdadeira de uma emoção, a base do tornar-se pessoa.
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Pensando na necessidade inconsciente de um colo, de ser nomeado e autorizado a
viver, lembro de um caso, pais vivos, um irmão mais velho. Vem para tratamento na
Instituição, encontra-se em profunda depressão, medicado pelo médico de um posto de
saúde. Nas primeiras entrevistas mal consegue pronunciar uma palavra, curvado na
cadeira chora muito, aproxima sua cadeira ficando bem perto. Houve um momento que
tamanha era sua angústia, que sentado bem perto agarrou minhas mãos e as ficou
segurando, chorando sem nada pronunciar, senti seu medo de vir a se desintegrar (medo
do aniquilamento). Sua história é de poucas conquistas afetivas, cognitivas e
profissionais. Após um tempo de tratamento pode por em palavras suas dores, e relatou
como foi seu nascimento.
“Nasci em um hospital do interior, um parto muito difícil para minha mãe, depois
ela teve de ficar um tempo em cadeira de rodas. Fui dado por morto quando nasci e me
colocaram em uma bacia, dessas antigas de metal, lembra? Três horas depois uma freira
passou lá embaixo, pelo local onde eu estava e me viu dentro da bacia e disse, mas essa
criança está viva” (sic).
Esta freira, sem saber, traduziu e deu significado à pulsão de vida de um recémnascido, instalou nele a possibilidade de sonhar um colo. Porém, fragilizado ficou o
limiar psíquico deste paciente, instalou-se uma falha em seu desenvolvimento. Suportar
a perda lhe é quase impossível e não estar sendo amado e olhado é para ele o fim, a
morte, o desinvestimento psíquico.
É fundamental olharmos os pacientes, um dia bebês de uma forma ampla, sob todos
os vértices possíveis de sua história, incluindo as vicissitudes que ocorrem nos vínculos
familiares. Ao nos permitirmos fazer parte deste resgate emocional, estaremos
emprestando nossa mente a ele para que possa crescer e amadurecer psiquicamente.
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E como dói um vínculo que se rompe..... Quanto sofrimento emocional carrega um
ser humano, que se vê só, em um mundo onde ele próprio não se sente existir, que
silencia em seu imaginário infantil a confiança no objeto.
São vazios buscando o reconhecimento no vazio.
O texto “Assassinato da Alma” (1979) que trata sobre essa falta de cuidado
deliberado na infância e descreve o abuso e maus tratos como uma invasão psíquica
real, afirma serem as privações protagonistas da morte psíquica de uma possível
identidade. Então o destino é a morte...
O homem precisa desenvolver a capacidade de lidar com as diferenças, a saber estar
só, tolerar o não saber e o não ter, saber lidar com a gratificação, para sobreviver a idéia
de que somos seres incompletos, sedentos de amor.
Então, seguindo pelo contínuo processo de desenvolvimento do ser humano, falando
em vida, pensamos no sujeito que foi capaz.
Considerando as favoráveis condições genéticas, ambientais e psíquicas, penso que
foi capaz de internalizar o objeto bom, valorizou menos o objeto mau introjetado,
elaborou a posição depressiva, acreditou mais no mundo de relação mesmo que este lhe
causasse alguma dor.
Um homem que aprendeu a perder, a receber, a doar, a se doar, a suportar, se
gratifica fazendo parte de algo maior acredita no amor e que o amor é uma emoção em
que se pode confiar.
Freud disse um dia que “um homem que foi o favorito da mãe conserva durante toda
a vida um sentimento de conquistador”.
Pensamos então no ser humano saudável, neurótico no bom sentido, que se sente
autorizado a ser ousado e criativo frente à vida, que sonha e não se assusta ao se
permitir pensar seus próprios pensamentos.
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Não sente culpa por buscar ser feliz.
Todo esse envolvimento, a produção subjetiva, não deixa de ser uma forma própria
de nos autorizarmos a sermos sujeitos de nosso próprio caminho incluindo nossos
preciosos pacientes. Nos remetendo ao nosso tênue limiar, de um lado permanecermos
pequenos no aconchego de um colo e de outro fazermos uso do próprio saber e poder
criar.
“A arte de viver
É simplesmente a arte de conviver...
Simplesmente, disse eu?
Mas como é difícil!”
Mario Quintana
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