AS DUAS ORDENS DE GRANDEZA
É bom, senhor, que saiba o que lhe é devido, a fim de que não pretenda exigir dos homens o que não
lhe é devido; porque é uma injustiça visível: e, contudo, é muito comum dentre aqueles da sua condição, porque
ignoram sua natureza.
Há no mundo dois tipos de grandezas; porque há grandezas instituídas e grandezas naturais. As
grandezas instituídas dependem da vontade dos homens, que acreditavam, com razão, dever honrar certos
estados e vincular a eles certo respeito. As dignidades e a nobreza são desse tipo. Num país se honram os
nobres, em outro as plebeus; neste os mais velhos, naquele os jovens. Por que isso? Porque agradou aos
homens. A coisa era indiferente antes da instituição: depois da instituição, torna-se justa, porque é injusto
perturbá-la.
As grandezas naturais são as que são independentes da fantasia dos homens, porque consistem nas
qualidades reais e efetivas da alma ou do corpo, que tornam um ou outro mais estimável, como as ciências, a
luz do espírito, a virtude, a saúde, a força.
Devemos algo a uma e outra de tais grandezas; mas como são de natureza diferente, devemos-lhes
também diferentes respeitos.
Às grandezas instituídas, devemos respeito de instituição, isto é, certas cerimônias exteriores que
devem, contudo ser acompanhadas, segundo a razão, de um reconhecimento interior da justiça desta ordem,
mas que não nos fazem conceber qualquer qualidade real nos que honramos desta sorte. É preciso falar com os
reis de joelhos; e preciso ficar em pé no quarto dos príncipes. É uma tolice e uma baixeza de espírito recusarlhes esses deveres.
Mas quanto aos respeitos naturais que consistem na estima, só os devemos as grandezas naturais e
devemos, ao contrário, o desprezo e a aversão às qualidades contrárias a essas grandezas naturais. Não é
necessário que eu o saúde. Se o senhor é duque e homem honesto, darei o que devo a uma e a outra dessas
qualidades. Não lhe recusarei absolutamente as cerimônias que sua qualidade de duque merece, nem a estima
que merece a de homem honesto. Mas se o senhor fosse duque sem ser um homem probo, eu lhe faria justiça,
ainda; porque dando-lhe os deveres exteriores que a ordem dos homens vinculou ao seu nascimento, não
deixarei de ter pelo senhor o desprezo interior que a baixeza de seu espírito mereceria.
Eis em que consiste a justiça desses deveres. E a injustiça consiste em vincular os respeitos naturais à
grandezas instituídas, ou em exigir os respeitos instituídos para as grandezas naturais. O senhor N ... é um
geômetra maior que eu; nesta qualidade, ele quer me tomar a dianteira; eu lhe direi que ele não entende nada
disso. A geometria é uma grandeza natural; ela pede uma preferência por estima; mas os homens não
vincularam a ela nenhuma preferência exterior. Eu estarei acima dele e o estimarei mais que a mim, na qualidade de geômetra. Do mesmo modo se, sendo duque e par, o senhor não se contentasse que eu me mantenha
descoberto diante do senhor e quisesse ainda que eu o estimasse, eu lhe pediria para me mostrar as qualidades
que merecem minha estima. Se o senhor o fizesse, a estima estaria conquistada e eu não a poderia recusar-lhe
com justiça; mas se o senhor não o fizesse, seria injusto pedi-la, e seguramente não a conseguiria, ainda que
fosse o maior príncipe do mundo.
Pascal, Second discours sur la condition des grands (Segundo discurso sobre a condição dos grandes),
Bibliothèque de la Pléiade, Gallimard, pp. 618-619.
Todo o texto está fundado na distinção entre duas ordens de grandeza, isto é, de valores: as grandezas
instituídas e as grandezas naturais. As grandezas instituídas são as que foram estabelecidas, quer dizer instituídas
pelos homens; os níveis sociais só são tais porque se assim decidiu. As grandezas naturais são as que não são
instituídas pelos homens; o que é decisivo é, pois, a questão de saber se um valor é instituído ou não.
Resulta desta distinção fundamental que há dois tipos de justiça: a que consiste no reconhecimento da ordem
estabelecida, que merece os sinais exteriores de respeito; a que consiste no respeito das grandezas naturais, que
merecem estima. Mas há três maneiras de ser injusto: recusar a estima devida às grandezas naturais; não prestar a
homenagem devida à hierarquia; pretender a estima às grandezas instituídas, ou aos sinais exteriores de respeito
para as grandezas naturais. O conjunto do texto visa sublinhar como a mais grave e a mais insidiosa esta terceira
forma de injustiça. Pascal desmistifica, recolocando-a no seu lugar, a ordem estabelecida, que sempre se toma e
sempre se quer tomar pela ordem natural, como condena a tolice daqueles que, só reconhecendo grandezas estimáveis, recusam à hierarquia social os sinais exteriores do respeito.
Porque, enfim, se se pode ser ao mesmo tempo duque e homem honesto e, por esse duplo titulo, merecer ao
mesmo tempo os sinais exteriores do respeito e a estima, esses dois tipos de respeito não se confundem pelo fato de
que se encontram no mesmo homem essas duas grandezas. Se o duque, porque é duque, sem ser homem honesto,
pretendesse os dois tipos de resposta, eis o que seria inteiramente injusto. Mais os que não saúdam os duques,
considerando como nada as grandezas instituídas, saibam que não mostram ai, como crêem, a grandeza do sábio que
despreza os falsos valores: são apenas tolos: Porque se a hierarquia dos valores instituídos, dependendo da instituição pode variar de uma sociedade a outra e mudar na mesma, é conforme a razão que existe uma hierarquia. Os
que não saúdam os duques estão bem perto de pensar que o duque, simplesmente porque o é, não pode ser homem
honesto; como ousam protestar tão fortemente contra os duques, os quais desejariam confundir a hierarquia social e
a superioridade natural, quando inclinam a concluir, exatamente como eles, por uma ordem de grandeza à outra?
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