Márcia Rosa Fobia social: suores e rubor à flor da pele* O caso clínico de um adolescente, diagnosticado como padecendo de “fobia social”, leva a autora a mostrar que, embora classifique, o DSM-IV não se propõe a discutir questões relativas à terapêutica. Nesse sentido, este artigo trata as manifestações clínicas da dita “fobia social” a partir da teoria e clínica psicanalíticas, privilegiando as contribuições de Freud e Lacan. > Palavras-chaves: Fobia social, DSM-IV, psicanálise Thomaz, um jovem adolescente de 17 anos, retorna às suas sessões de análise, depois das férias de final do ano, e comunica que tem conversado com alguns médicos, aos quais teve acesso através de sites na Internet, sobre a possibilidade de fazer uma intervenção cirúrgica sobre a glândula respon- sável pelo suor. No entanto, diz não ter se decidido ainda porque essa intervenção produz um suor compensatório (nas pernas etc.) que pode ser muito desagradável. Surpreendida pela possibilidade de que ele tivesse seguido por aí, pedilhe que me prometesse não decidir *> Este artigo faz parte de um trabalho de Pós-Doutorado realizado no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil) sob a orientação da Profa. Dra. Tânia Coelho dos Santos. pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 > Key-words: Social Phobia, DSM-IV, Psychoanalysis. artigos > p.39-48 (Social phobia: sweating and blushing at one’s skin) The clinical case of an adolescent, diagnosed as suffering “social phobia”, leads the author to observe that although it classifies, the DSM-IV doesn’t propose itself as discussing questions related to therapeutic. In this sense, this article considers the clinical manifestations of the so- called “social phobia” since Freud and Lacan’s theory and clinical approach. >39 pulsional > revista de psicanálise > artigos > p.39-48 ano 21, n. 3, setembro/2008 nada sobre isso sem antes falar a respeito na sua sessão. Fato é que o incômodo dele em relação a esse suor já havia sido mencionado, sem que a intensidade da angústia relativa a isso tivesse chegado a esse ponto. Ao retornar das férias com a hipótese de uma intervenção cirúrgica, o jovem adolescente mostra à analista, através de um acting out, que as tentativas de tratar simbolicamente a questão não foram suficientes; apesar de terem sido acolhidas, elas esbarraram na prevalência de uma concepção biológica sobre o corpo. Na ocasião mesmo, ele insistira em que esse suor tinha uma causalidade orgânica. Mencionara, ao se levantar, o fato de ter deixado uma mancha, uma marca de suor onde repousara os braços. Esse era o incômodo maior: as marcas, as manchas de suor nas camisas, camisetas etc. Ele já havia comentado, com alívio, estar indo ao colégio com uma camiseta cujo tecido não deixava transparecer o suor, no entanto, no final do ano a sua angústia perante isso ficara muito intensa e ele inventara um recurso: amarrar algumas buchas debaixo dos braços como tentativa de resolver o problema, contudo isso não funcionara, ficara muito pouco confortável. Embora pudéssemos dizer, metaforicamente, que ele “marca o lugar pelo suor”, ou mesmo que está “suando para marcar um lugar”, essa marca é, ao mesmo tempo, uma mancha e é sob esse registro que ela o angustia. Entretanto, é interessante observar que o suor só ganhou relevância para esse jovem adolescente na medida em que as suas preocupações com os rubores faciais começaram a ceder. E foram exatamente elas que o levaram ao psiquiatra e que o trouxeram à análise. Na queixa inicial os “rubores” — a “vermelhidão”, o blushing, conforme termos que ele encontra na internet – vieram associados à timidez e ao diagnóstico de Fobia Social. Quanto a isso, o colégio é o lugar gerador de maior angústia e, no seu dizer, sem a medicação e as sessões de análise já teria parado de estudar há muito tempo. Segundo relata, começou a ficar mal desde a oitava série (por volta dos 14, 15 anos), sempre que precisava se apresentar. Algumas situações, principalmente aquelas formuladas nos termos “vamos fazer uma rodinha” ou “já que é o início das aulas vamos nos apresentar”, tornaram-se absolutamente insuportáveis. Sair do fundo da sala ou ter que falar em público, momentos nos quais se sente em evidência ou nos quais fica sob os olhares dos outros, lhe são insuportáveis. A intensidade da angústia chegou a levá-lo, em uma apresentação de trabalho no colégio, a cair fora da cena através de um desmaio (uma passagem ao ato?). Em vista disso, ele ocupou o momento inicial do tratamento com o relato sobre cada situação na qual precisaria se apresentar; tais mo- artigos > p.39-48 >40 Fobia social ou dificuldades de enlaçamento dos registros R. S. I.? Se formos ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV), no qual o termo Fobia Social é forjado, encontraremos a dita síndrome listada sob o termo “transtornos de ansiedade”, ao lado da fobia dita específica, bem como das síndromes de pânico, de estresse agudo ou pós-traumático, de ansiedade generalizada ou induzida, bem como dos transtornos obsessivo-compulsivos. De acordo com o DSM-IV, a Fobia Social tem como característica essencial ou Critério A (numa lista que vai até a letra H) “um medo acentuado e persistente de situações sociais ou de desempenho nas quais o indivíduo poderia sentir vergonha”. Uma vez exposto a tais situações, a resposta imediata é a ansiedade, que pode chegar ao pânico (critério B). De modo geral, o adolescente ou adulto reconhece que seu medo é irracional ou excessivo (critério C), no entanto isso não diminui a evitação da situação que, se suportada, o é com pavor (critério D). (DSM-IV-TR, 2003, p. 437). Interessa observar ainda que, de acordo com o Manual, para configurar o diagnóstico de Fobia Social é necessário que o medo, a esquiva ou a antecipação ansiosa relativos à possibilidade do indivíduo deparar-se com a situação temida interfiram significativamente na rotina diária, no funcionamento ocupacional ou na vida social do indivíduo. Os sujeitos que padecem desses transtornos manifestam fracas habilidades sociais, por exemplo, fraco contato visual, ou sinais observáveis de ansiedade, por exemplo, mãos frias e úmidas, tremores, palpitações, sudorese, rubor facial (DSM-IVTR, 2003, p. 437-439). pulsional > revista de psicanálise > artigos > p.39-48 ano 21, n. 3, setembro/2008 mentos, antecipados com um sofrimento intenso, eram trazidos e, de algum modo, assimilados (isto é, preparados) de antemão nas sessões. Pesquisador fervoroso, ele vasculhou a internet e os trabalhos sobre blushing, sobre “vermelhidão” e sobre o tratamento medicamentoso para essas manifestações corporais; pesquisou as medicações que lhe foram prescritas pelo psiquiatra, com o qual discutiu, por exemplo, a indicação do uso do propanolol para as situações de tensão. Estudou o mecanismo biológico responsável pelo rubor e chegou também a aventar a hipótese de tratar a questão por uma intervenção cirúrgica. Essas preocupações, sobre as quais não conseguia parar de pensar, funcionaram também como causa, e ele se decidiu a estudar farmácia ou medicina, “para ajudar as pessoas que sofrem com os rubores”. Para o contexto da análise, ele trouxe o significante “fobia social”, que lhe foi soprado pelas pesquisas virtuais, sob o qual ele se reconhece e a partir do qual traz as suas questões à análise. >41 pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 artigos > p.39-48 Na descrição proposta pelo DSM-IV encontramos os índices a partir dos quais o caso de Thomaz foi diagnosticado; no entanto, embora forneça elementos descritivos que possibilitam uma classificação, não está entre os propósitos do DSM-IV tratar de questões relativas à terapêutica. Nesse sentido, para a discussão do tratamento desse jovem adolescente precisamos nos reportar a uma outra abordagem teórico e clínica. O psicanalista Jean-Pierre Deffieux (2006) nos auxilia a ler o que se passa na Fobia Social ao comentar: >42 ... observamos, por exemplo, a importância que tomou, nas novas gerações, o que outros chamaram “fobia social” e que não é justamente a fobia no sentido freudiano. Trata-se, antes, de uma dificuldade de enlaçamento R.S.I. [Real, Simbólico, Imaginário], que faz com que o sujeito seja tomado pela angústia não da castração, mas pela angústia diante do real do olhar do Outro, não apaziguado pelo Nome-doPai. (p. 74) Com esse comentário, Defieux estabelece uma distinção entre a fobia freudiana, marcada pelas questões relativas à angústia de castração, e a fobia social, na qual o sujeito se angustia diante do olhar do Outro, de um grande Outro não barrado. Portanto, no caso da fobia social dois elementos são importantes: a relação do su- jeito com o Outro e a sua relação com o objeto escópico, o olhar. Além disso, fica assinalada uma dificuldade do sujeito fóbico com o operador responsável pelo enlaçamento dos três registros real, simbólico e imaginário,1 operador que, em princípio, é o Nome-do-Pai. No seu texto de 1925, “Inibição, sintoma e angústia”, Freud articula a angústia à castração e mostra que em cada período da vida o sinal de angústia surge diante de uma falta específica, faltas cuja lista ele constrói: falta de amparo, falta de amor do objeto, falta fálica e falta moral. O psicanalista chega a estabelecer uma relação “razoavelmente estreita” entre essas modalidades de falta do objeto – modalidades de castração – e a forma assumida por cada uma das três neuroses. Assim, os homens obsessivos se angustiam diante do temor de um castigo por uma falta moral, as mulheres histéricas diante de uma possível falta de amor do objeto, e as crianças fóbicas diante de uma possível falta fálica (Freud, 1925, p. 166-167). Portanto, para o psicanalista vienense a angústia gira em torno da castração, do temor da perda do objeto, seja ele o amparo, o amor, a moral ou o falo. Lacan (1963), por sua vez, argumenta que “a angústia não é sem objeto” 1> Com esses três termos, que atravessam o ensino de Lacan do primeiro ao último momento, sendo reformulados e redefinidos juntamente à teoria e à clínica, Lacan se refere ao campo das imagens em sua consistência (I), ao campo da linguagem com seus furos e lapsos (S) e ao campo daquilo que ex-siste, que existe fora do registro das imagens e da linguagem, e que é designado real (R). artigos > p.39-48 de nenhum dos modos sob os quais é possível localizar o fenômeno da angústia. A presença do Outro se dá como gozo, como demanda e como desejo, de tal modo que podemos dizer que o gozo, a demanda e o desejo do Outro angustiam. O sonho de angústia, o pesadelo, é uma ilustração disso na medida em que nele algo do Outro se apresenta e leva o sujeito a acordar. O psicanalista francês menciona a figura da Esfinge que, com seu imperativo “decifra-me ou te devoro!”, acaba sendo uma das figuras do pesadelo e encarnando o gozo do Outro. Na medida em que é, ao mesmo tempo, uma figura questionadora, a Esfinge também representa a demanda do Outro. Assim, a pergunta formulada por ela, “que animal é este que anda com quatro pés pela manhã, dois ao meio-dia e três à noite?”, apresentase como um significante que se propõe, ele mesmo, como opaco, constituindo a posição do enigma como tal. No entender de Lacan, temos aí a forma mais primordial da demanda do Outro. Enfim, para falar da articulação entre o desejo do Outro e a angústia, ele menciona o caráter enigmático suscitado pela interpretação analítica: ele me diz isso, mas o que é que ele quer? Ao se apresentar no percurso de uma análise em relação ao desejo do analista, essa questão não deixa de suscitar angústia (Lacan, 1962 p. 68 e segs.). Feitas essas considerações, podemos pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 (p. 81). Para ele, é a presença e não a falta de objeto que angustia. Ele observa, por exemplo, que não é a nostalgia, mas a presença do seio que engendra a angústia; ao lembrar os arruinados pelo êxito, ele mostra que a presença do sucesso é mais angustiante do que a sua possível falta e assinala ainda que a angústia do Pequeno Hans – caso paradigmático para tratarmos da fobia freudiana – surge não exatamente diante da perda do pênis, mas no momento em que o pênis se movimenta através das ereções, sinalizando a emergência do real pulsional (ibid., p. 64). Nesse sentido, a invés de considerar a castração apenas como angustiante, Lacan assinala que ela é também uma solução, um tratamento possível para a angústia. Na fobia, na medida em que está mal formulada, não resta ao sujeito outro recurso senão aquele de tratar a angústia pela construção do sintoma. Assim, Lacan lê o sintoma fóbico do Pequeno Hans, o medo de ser mordido pelos cavalos, como resultante de uma inoperância da intervenção paterna sobre o desejo da mãe; angustiado pela proximidade excessiva da mãe, o sujeito recorre ao sintoma. No entanto, na leitura lacaniana não é apenas a presença do objeto que está em jogo na angústia, além dela é preciso considerar a relação do sujeito com o Outro. Para Lacan, a dimensão do grande Outro não está ausente >43 artigos > p.39-48 pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 >44 observar que a fobia social não encontra, de saída, um campo de ressonância nas formulações freudianas sobre a fobia enquanto fundada no temor da perda do objeto. Assim, são as elaborações de Lacan sobre a relação do sujeito com o Outro e sobre a presença do objeto que nos permitirão ler o que se passa aí como uma resposta sintomática do sujeito diante da angústia suscitada pela presença do Outro. No caso de Thomaz, o trabalho de subjetivação das manifestações corporais, que o deixam “mal na própria pele” ou “à flor da pele”, evidencia que o objeto em jogo aí não é outro senão o olhar; diante do olhar do Outro ele se intimida, se envergonha, se esquiva. É muito claro, e ele insiste nisso, o incômodo experimentado em situações nas quais está em evidência e se sente à mercê das demandas do Outro, demandas que surgem na forma de perguntas que lhe são endereçadas tanto pelos colegas quanto pelos professores. A angústia surge ainda diante da possibilidade da gozação dos colegas e dos professores (um dos quais zombou sobre o modo como ele estava ficando vermelho) ou em situações nas quais o desejo do Outro se manifesta como enigmático: afinal, por que da insistência em tirá-lo do fundo da sala e em convocá-lo para as apresentações diante da turma? Se retornarmos agora ao comentário de Deffieux, anotamos que, na seqüência, ele mostra como a passagem do Nome-do-Pai, segundo a tradição religiosa, para o Nome-do-Pai como operador lógico, corresponde à pluralização dos Nomes do Pai, pluralização que faz com que o pai se torne um nome entre outros. E Deffieux (2006) conclui: ... no final do ensino de Lacan, o Nome-do-Pai torna-se o operador que enlaça os três elos, e todo operador que enlaça os três elos é um Nome-do-Pai. Todo enlaçamento R.S.I., estigmatizado por Lacan na função do sintoma, apela para a nomeação de um pai que, em termos lógicos, não está mais forçosamente ligado à pessoa do pai. (p. 75) Da mulher como um dos Nomesdo-Pai No caso de Thomaz, o despertar do amor por uma menina parece ocupar, embora ainda de modo precário, essa função sintomática de estreitar um pouco mais a amarração um tanto frouxa dos três registros R.S.I. Embora diante de perguntas do tipo: “será que meninos e meninas ficam ruborizados do mesmo modo?”, as respostas fossem sempre que não havia diferença, desqualificando, de algum modo, a diferença sexual e uma possível significação fálica das manifestações em questão, pode-se dizer que a significação fálica, que nada indica estar zerada, parece estar inoperante. E o que a torna inoperante? O caráter não típico do que está em jogo? Ou seja, através do uso das suas pesquisas na internet, alimentadas por uma pulsão epistemofílica, o jovem adolescente artigos > p.39-48 sendo a lógica fálica, regida pela castração. Através desse amor ele se desloca da posição de objeto “manchado” ou “ruborizado” aos olhos dos playboys e das patricinhas; através dele um movimento de falicização se esboça. Embora essa tentativa de construção de uma parceria sintomática dure pouco (uma vez que a menina muda-se de cidade), por mei0 dela ele deixa aberta uma outra via possível de amarração de um sintoma: se amarrar em uma menina. Não é sem interesse anotar que, na mesma sessão em que aventa a possibilidade de tratar cirurgicamente a sudorese, diz também que vai economizar dinheiro para poder sair à noite e encontrar as meninas. Portanto, essa via permanece aberta, aquela da mulher como um dos Nomes-do-Pai, isto é, da colocação de uma mulher no lugar do sintoma. Percebe-se que o despertar da primavera, para usar os termos com os quais Wedeking (1895) se refere à entrada na adolescência, em uma contemporaneidade marcada pela inoperância da função paterna, deixa o sujeito exposto a propostas de intervenções reais sobre o corpo, como tentativas de tratamento e de subjetivação do mal-estar da adolescência. Neste contexto, as pesquisas e os achados dos adolescentes na internet podem ser incluídos entre os “novos ordenadores da cultura” (Santos, 2006) — variações do objeto que têm aí a forma dos gadgets, isto é, dessas quinqui- pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 insiste em uma concepção biológica do corpo e em uma subjetividade “configurada” nos moldes propostos pelo DSM-IV. Neste sentido, é interessante lembrar que Lacan (1972-73) não deixou de colocar em questão o estatuto epistemofílico da pulsão, ao sugerir que isso fala, isso goza, e na d a sabe (p. 142). Talvez essa seja uma das questões: a dificuldade em saber algo sobre o gozo e, mais especificamente, sobre o gozo fálico. A diferença sexual e a significação fálica entram em jogo no momento em que ele se apaixona por uma menina. Com isso, ao invés de Lacan (1958) pensar em “rubores e suores” – ou no “demônio do pudor” (p. 699) – ele passa a pensar nela e chega a dizer que “está curado”, que “não está nem aí para as questões de ficar vermelho”. Diz não estar mais preocupado em ruborizar diante dos colegas; ao invés disso, surge a fantasia de se mostrar a eles acompanhado por ela que, obviamente, entra em cena com um valor fálico. Agora esses colegas, e não mais a presença de um Outro anônimo e de seu olhar, se dividem em grupos nomeados como playboys e “idiotas” no caso dos meninos, e “patricinhas” e “gente boa” no caso das meninas. Nesse momento, ele, um “idiota”, tenta construir uma parceria sintomática com uma menina “gente boa”. Através do amor por essa menina, o jovem sujeito entra no que poderíamos reconhecer classicamente como >45 artigos > p.39-48 pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 >46 lharias produzidas pela ciência – e mostram a sua ineficácia no fato de acabarem gerando manifestações acentuadas de quadros de inibição e de angústia, cuja dosagem exige atenção especial na direção do tratamento. No caso de Thomaz, a intervenção psicanalítica se orienta no sentido de ir contra o excesso traumático e de abrir as trilhas, os caminhos da formação do sintoma. Isso implica “que o sintoma se constitua em sua forma clássica, sem o que não haverá meio de sair dele” e, além disso, acrescenta Lacan (1962-63), implica “que se desenhe no sujeito uma coisa tal que lhe seja sugerido que há uma causa disso”, disso que é o “não-assimilado do sintoma, não assimilado pelo sujeito” (p. 306). na adolescência. Em que pese isso, o caso nos interessa nesse momento na medida em que esse jovem mostra-se embaraçado com as concepções sobre o corpo e sobre a subjetividade que lhe são sopradas pelo DSM-IV através da internet, bem como pelas nuanças que introduz no campo da pulsão escópica e do objeto olhar. Nas suas considerações sobre o objeto olhar, no seminário A angústia, Lacan (1962-63) observa que: As ironias do desejo Ao inverter a perspectiva, Lacan nos leva a perceber que o que olha os colegas de Thomaz na cena do rubor não é outra coisa senão o rubor, ele próprio. (Pode-se evocar aqui a experiência na qual o sujeito se sente olhado pela mancha branca no olho do cego.) Ali estaria aquilo pelo que eles mais seriam olhados, e que mostra como a angústia emerge na visão no lugar comandado pelo objeto. Nesse sentido, o rubor merece algum desdobramento. Salvo engano, não encontramos no ensino de Lacan referências ou mesmo uma discussão sobre a Fobia Social, no entanto, em alguns momentos ele se detém sobre o rubor. Entre as Este caso clínico nos suscita discussões diversas. Com Freud ele nos levaria, entre outros, a uma discussão sobre esses três termos maiores que são a inibição, o sintoma e a angústia. Com Lacan, surgem questões que vão desde a mancha que incide sobre a pele, isto é, sobre a superfície da imagem especular, e que apresenta um ponto opaco, um ponto de real na imagem almejada, passando pelo embaraço e pela passagem ao ato, gerados pela angústia, até as questões relativas aos diversos registros do corpo (Real, Simbólico e Imaginário) e ao despertar bifásico da sexualidade ... para ver dilacerar-se o que há de ilusório nisso, [no eidos visual], basta introduzir uma mancha no campo visual, e então vemos a que se liga realmente a ironia do desejo. (...) basta uma mancha para exercer a função da pinta. Os sinais e tecidos de beleza (...) mostram o lugar do a , aqui reduzido ao ponto zero (...). mais que a forma que ele mancha, é o sinal que me olha. (p. 277-278) do pudor e, após essa confissão pública, conotada por não sei qual vergonha, depois de mostrar o seu pequeno autômato, o velho colecionador se afasta com um “rubor feminino”, diz Lacan. Nesse momento, esse objeto, a caixinha de música, tem o estatuto de objeto pequeno a na fantasia, e isso faz com que ele seja um objeto que não agrada mostrar; trata-se de um objeto de cobiça única, do qual se quer afastar a concorrência, conclui o psicanalista (Lacan, 1961, p. 137). Esse desejo secreto que se comunica, só o faz por engano e aí Se a revelação do objeto que causa o desejo feminiza o velho colecionador, tal não é o caso de Thomaz. Para ele, a presença e a exibição do objeto feminino não faz senão virilizá-lo. No primeiro momento, diante do olhar do Outro, de um Outro anônimo encarnado pelos colegas, ele morre de vergonha, se desvanece e, embaraçado, cai como objeto; entretanto, no segundo momento ele tem algo a lhes mostrar: querem olhar? Vejam isso! 2> Tal como Lacan os lista no seu texto Seminário sobre A Carta Roubada: o esconder-mostrando, o mistério, o estar à sombra de, a contradição, o escândalo, o silêncio, a simulação do domínio do não-atuar, a imobilidade, a raiva e a caligrafia. artigos > p.39-48 ... o sujeito mostra o ponto maior, mais íntimo dele mesmo. O que é suportado por esse objeto, é justamente o que o sujeito não pode desvelar ainda para si mesmo (...). Trata-se de algo que se coloca diante do sujeito, que o determina retroativamente em um certo tipo de ser. (Lacan, 10.12.1958 ) pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 menções ao tema temos aquela que associa o rubor à vergonha e à falta em relação a alguma virtude (por exemplo, quando da análise de um fragmento da Divina Comédia de Dante), bem como uma outra em que o associa ao mérito da existência do sujeito e da obra de arte (no caso do personagem Stephan Dedalus, de James Joyce). No entanto, quando ele é tratado no campo do cinema, através de um filme de Jean Renoir, “Le règle du jeu”, o rubor nos interessa sobremaneira, pois essa referência nos possibilita inseri-lo entre os signos de uma posição feminina:2 nesse caso o olhar do Outro tem um efeito feminizante sobre o sujeito em questão e o rubor surge associado ao pudor. Lacan (10.12.1958, inédito) menciona o personagem Dálio, um colecionador de objetos, mais especificamente de caixas de música. Ele comenta o momento do filme de Jean Renoir no qual o velho colecionador revela, em frente a uma concorrência numerosa, sua última descoberta, ou seja, uma caixinha de música particularmente bela. Nesse exato momento, o personagem está na posição do pudor: ele sorri, se apaga, desaparece, está muito incomodado. Ao mostrar o objeto colecionado, uma das formas do objeto do desejo, o sujeito franqueia os limites >47 artigos > p.39-48 _____ . (1958-1959). O seminário. Livro VI. O desejo e sua interpretação. Lição de 10.12.1958. Inédito. _____ . (1960-1961). O seminário. Livro VIII. A transferência. Rio de Janeiro: Zahar, 1992. _____ . (1962-1963). O seminário. Livro X. A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. _____ . (1964). O seminário. Livro XI. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. _____ . (1972-1973). O seminário. Livro XX. mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. _____ . (1974). Prefácio a O despertar da primavera. In: Outros Escritos. 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Rio de Janeiro: Zahar, 1998. pulsional > revista de psicanálise > ano 21, n. 3, setembro/2008 Uma transcendência torna-se possível e ele sai da posição de ser-aí (Miller, 2003, p. 10-11). A fantasia exibicionista dá sustentação ao desejo e a parada viril pode se configurar. E o mais surpreendente é que, com o passar do tempo, as meninas começam a ser incluídas em uma lista, uma lista na qual os objetos femininos têm um valor fálico { (a, a’, a’’, a’’’, ...)}. Será que Thomaz está começando a ficar com pinta de conquistador? M ÁRCIA R OSA Psicóloga; psicanalista; membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise; doutora em Literatura Comparada (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Belo Horizonte, MG, Brasil); pós-Doutorado em Teoria Psicanalítica (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil); coordenadora e Membro do Corpo Docente da Pós-Graduação lato-senso em “Psicanálise aplicada à saúde mental”. (Centro Universitário do Leste de Minas Gerais – UNILESTE-MG, Cel. Fabriciano, MG, Brasil). Rua Levindo Lopes, 333, sala 305 – Savassi 30140-170 Belo Horizonte, MG, Brasil. Fones: (31) 3296-9423; 3281-0708; 9617-6443 e-mail: [email protected] >48 Artigo recebido em janeiro de 2008 Aprovado para publicação em agosto de 2008