ROUSSEAU E O CASO DE ÉMILE ET SOPHIE OU LES SOLITAIRES:
ENTRE OS IDEAIS ROMÂNTICOS E OS IDEAIS ESTOICOS
Arlei de Espíndola
RESUMO
Emile e Sophie, ou Os solitários, texto inacabado, escrito para ser uma
continuação de Emílio ou Da educação, é um trabalho de Rousseau que
divulga, exemplarmente, seus ideais românticos e estoicos. Essas duas
perspectivas intelectuais, vistas na tradição, aparecem como tendências
opostas. O romantismo, caracterizado aqui por meio do incentivo do
encontro entre Emile e Sophie, faz votos pela afluência das paixões, torce
para que se realizem os desejos do coração, e estimula o sentimento de
amor. O estoicismo, ao qual é feito recurso para remediar os males do
adultério de Sophie, da morte da filha de Emile, e do mergulho deste na
escravidão, atua no sentido de fazer a vida possível, reivindicando que seu
governo esteja à cargo de sua racionalidade. Essa representaria a única
maneira de ver-se garantida a integridade humana e ter-se assegurada a
autonomia de Emile. A hipótese fundamental que lançamos, neste artigo,
é a de que, ainda que “romantismo” e “estoicismo” formem orientações
antagônicas, o esforço de Rousseau, no escrito em análise, é o de
estabelecer uma conciliação entre essas vertentes teóricas e
especulativas.
Palavras-Chave: Iluminismo; romantismo; liberdade humana.
245
I
Emile e Sophie, ou Os solitários, texto inacabado, conhecido
como complemento do Emílio ou da Educação, é um trabalho de
Rousseau, menos familiar ao público leitor, que suscita, a um só tempo, o
pensamento de que o filósofo genebrino se constitui num escritor
romântico e faz-se simultaneamente um pensador estoico, procurando,
inclusive, conciliar essas duas orientações teóricas e especulativas.
Não haveria qualquer problema ou mesmo uma curiosidade
excepcional neste citado esforço de Rousseau se esses dois seguimentos
intelectuais trabalhassem com noções idênticas. Mas se as pedras de
toque do romantismo são, porém, os sentimentos, o estoicismo é uma
corrente especulativa que encontra na razão seu ponto maior de apoio.
O mais comum, ao se pensar o nexo entre Rousseau e seus
ideais estoicos e românticos, é focalizar prioritariamente sua especulação
filosófica e política e ver nesta esfera uma radicalização do estoicismo. 99
Minha ideia neste momento, entretanto, é apontar essa conexão teórica e
essa tentativa de conjunção desde um romance, de um escrito literário,
que opera com preceitos morais e éticos revestidos de um discurso
tomado pela linguagem poética.
Para caracterizar, no romance em questão, seu “romantismo”,
bem como seu “estoicismo”, Rousseau constrói uma narrativa, que é
conduzida por Emile, com uma tonalidade melancólica e saudosista. Desse
estado de espírito, que envolve a integralidade do ser do narrador, resulta
ora um indivíduo romântico, ora uma figura estoica, ora um personagem
literário que se assume ao mesmo tempo como estoico e romântico.
99
Roche Kennedy é um intérprete de Rousseau que nos dá um exemplo deste tipo com seu livro Rousseau; Stoic &
Romantic.
246
Antes de perseguir o caráter melancólico, trágico, desesperado,
e, por outro lado, saudosista da escrita de Rousseau no romance em
questão, e elencar alguns fragmentos que informam o “romantismo” e o
“estoicismo” do filósofo, que pretendemos caracterizar numa outra
oportunidade, passando por todo o texto, vale fazermos uma observação
geral sobre o modo como aparece estruturado o escrito do autor. Emile e
Sophie, ou Os solitários, é constituído por duas epístolas que guardam o
traço de serem desproporcionais, se medirmos uma em relação à outra. A
primeira epístola é maior que a segunda e termina cobrindo 2/3 a mais
em volume de papel. Enquanto a epístola 1 contém 75 parágrafos
geralmente longos, a epístola 2 abriga 27 parágrafos sempre bastante
longos.
Esgotar toda a riqueza do romance está fora de nosso interesse
aqui e também não será possível neste espaço de que dispomos. Vamos
nos
ater
apenas
em
demonstrar,
sumariamente,
a
hipótese
que
aventamos, para o que basta o contato e o recorte de passagens dos 15
primeiros parágrafos do texto. Assim, deixaremos o trabalho mais
completo e exaustivo para outro momento.
As duas epístolas nos colocam diante de uma narrativa, de um
relato, cuja condução é feita por Emile que pretende confidenciar ao
preceptor sua vida, com suas tristezas e alegrias, sem o temor de ter algo
para ocultar. Esse foi o responsável pelos saberes propiciados a Emile no
plano teórico e no campo empírico, o qual manteve sempre firme o
interesse de lhe conduzir adequadamente, segundo seu ideal. Por isso
Emile assinala no parágrafo 3 do romance:
Essas páginas não chegarão às suas mãos,
não posso ter essa esperança. Irão, sem
dúvida, perecer sem serem lidas por homem
algum: mas não importa, estão escritas, eu as
colijo, prendo sigo escrevendo e é a você que
as dirijo: é para você que quero traçar essas
247
preciosas lembranças que alimentam e
desolam meu coração; é a você que quero
prestar contas de mim, de meus sentimentos,
de minha conduta, deste coração que você me
deu. Vou dizer tudo, o bem, o mal, meus
sofrimentos, meus prazeres, meus erros, mas
creio nada ter a dizer que possa desmerecer
sua obra. (OC IV, Émile et Sophie, p. 882).
Com essas referências de reconhecimento da autoridade do
preceptor, e com a consideração que Emile lhe devota, pode-se já falar do
romance em análise como uma sequência da reflexão iniciada no Emílio ou
da educação. Esse desejo de revelar os aspectos acima referidos aparece
em outros momentos do escrito; a isso soma-se o anseio de mostrar o
respeito que tem pelo preceptor, dado aos cuidados a ele dirigido em seu
desenvolvimento, com todas as suas orientações, que se desdobraram
com sua permanente vigilância, ao mesmo tempo firme e discreta,
fazendo-se quase imperceptível. Esse sentimento de gratidão para com o
preceptor Emile trata de revelar a seguir: “Ah! Onde quer que você esteja,
está morto para mim, meus olhos não mais o verão; mas meu coração vai
dedicar-se sem cessar a você. Nunca conheci tão bem o valor dos seus
cuidados como depois de sentir os golpes da dura necessidade que me
tirou tudo exceto a mim mesmo”(OC IV, Émile et Sophie, p. 882)
O texto de Rousseau quer revelar uma face do “romantismo” e
uma face do “estoicismo” do filósofo, e, para tanto, coloca a “unidade” e o
“desencontro” entre Emile e Sophie nos lugares de ponto geral de
referência. Enquanto impera a harmonia entre o casal, e subsiste o bem
em sua plenitude, Rousseau mostra-se um romântico, reverência o
sentimento de amor, e enaltece o afeto e todas as situações que
conflagram o encontro entre os homens na sociedade. Mas quando o mal
assume a cena, em decorrência dos vícios, e dos erros, e macho e fêmea,
portanto, se perdem, o discurso do filósofo ganha um ar triste, pesaroso,
248
melancólico; ele anuncia toda a saudade que sente daquela vida doce e
feliz, desfrutada no acordo com a natureza.
Neste segundo caso, Rousseau, por meio de Emile, ou ancora no
estoicismo ou a ele mais uma vez retorna. Podemos colocar as coisas
nesses termos porque, por um lado, na plenitude do ponto de partida, os
personagens já vivem como estoicos; mas um estoicismo que é
transmutado por Rousseau, pois ele o funde com seu espírito romântico,
dando-lhe um caráter sensível, e não intelectivo.100
Mas, vendo-se diante dos reveses, por outro lado, o filósofo
igualmente, através de seu personagem, ancora no estoicismo em sentido
tradicional, pois essa representa a única alternativa para Emile tornar sua
vida efetivamente possível. Como estoico, neste segundo momento,
valendo-se de sua racionalidade, ele vai se fortalecer e ficar preparado
para lidar com as adversidades e com os acontecimentos duros da vida.
Antes de avançarmos importa indicar ao leitor que Emile e
Sophie, ou Os solitários, terminou inacabado e não se sabe, ao certo, qual
seria o desfecho do romance. Fato é que o filósofo genebrino deixa
subsídios suficientes para pensarmos que há toda a possibilidade para os
indivíduos neutralizarem os vícios e conquistarem a liberdade moral,
tornando-se plenamente senhores de si mesmos.
II
Nos ocupemos, a partir de agora, com a entrada em cena de
Sophie, e com sua queda que define o distanciamento do casal, levando
Emile a mergulhar no estado de desespero, de aflição. É no parágrafo 7,
precisamente, que a moça aparece pela primeira vez, tendo sua presença
100
Jean Starobinski menciona essa forma sensível, não intelectualista, que o estoicismo assume em Rousseau,
representando uma metamorfose do ideário original. Ver seu livro Jean-Jacques Rousseau: A transparência e o
obstáculo.
249
na vida de Emile saudada por ele, que afirma amá-la profundamente. Ao
lado de Sophie, ele conhece o que é a virtude e experimenta os ganhos de
encontrar o cume da elevação humana:
Amei Sophie antes mesmo de conhecê-la; este
amor preservava meu coração das armadilhas
do vício, trazia-lhe o gosto das coisas belas e
honestas; gravava nele com traços indeléveis
as santas leis da virtude. Quando vi, enfim, o
belo objeto de meu culto, quando senti o
império daqueles encantos, tudo o que pode
entrar de doce, de lindo numa alma, penetrou
a minha com um maravilhoso sentimento que
nada pode expressar. Dias queridos dos meus
primeiros amores, dias deliciosos, quem dera
pudessem recomeçar sem cessar e preencher
doravante todo o meu ser! Eu não iria querer
outra eternidade.(OC IV, Émile et Sophie, p.
883).
Os reveses, que haverão de se consumar com a partida, por fim,
de Sophie, encontram inicialmente seu relato entre os parágrafos 8 e 10
do texto, com a indicação de males que atingem mais diretamente Sophie.
São eles a perda do pai dela, o falecimento de sua mãe, e a morte, em
suma, da filha do casal, fatos esses que determinam um abalo da
constância, da serenidade, e do equilíbrio da jovem: “Até então, contente
e tranquila na sua solidão, ela ignorava as amarguras da vida, não
armava contra os golpes do destino aquela alma sensível e facilmente
afetada. Sentiu estas perdas como são sentidas as primeiras desgraças:
pois aquelas foram apenas o começo das nossas”. (OC IV, Émile et
Sophie, p. 884).
A justificativa para todos esses infortúnios, Rousseau oscila em
atribuir ora à renúncia do preceptor de amparar Emile e Sophie, ora à
fuga da responsabilidade protagonizada pela providência. Emile e Sophie,
deixados em situação de abandono, seja por um personagem, seja por
250
outro, caem em desgraça. Veja-se as palavras que o autor endereça a
quem ele chama de “pai cruel” que tanto pode ser “Deus” como caberia
ser a figura do “preceptor”:
Você parecia feliz com minha felicidade; os
ternos carinhos de Sophie pareciam lisonjear
seu coração paterno, você nos amava, estava
bem conosco, e nos deixou! Sem a sua partida
eu ainda seria feliz [...]. Partida funesta, que
me entregou sem retorno aos horrores do meu
destino! Não, jamais, sob seu olhar, o crime e
suas penas teriam se aproximado de minha
família; ao abandoná-la, você me trouxe mais
males do que o bem que trouxera a toda a
minha vida. (OC IV, Émile et Sophie, p. 884).
O amor que Emile conserva por Sophie o faz compreender que
“todos os objetos que as traziam à lembrança tornavam mais amargos
seus sofrimentos”.(OC IV, Émile et Sophie, p. 885). Em razão disso,
encontrou maneiras de emigrar com ela para Paris, afastando-a, assim, do
convívio com o que lhe causava dor por força das lembranças. Embora
apresentasse essa alternativa, Emile pressentiu, logo de saída, o perigo de
ir viver na capital onde imperavam os vícios, os preconceitos; onde
exercia hegemonia a conduta astuciosa e a maldade dos homens, motivo
pelo qual ali não se podia gozar de paz e de felicidade.
Esses pressentimentos, que significam primeiramente simples
avisos, terminam por prenunciar todo o mal que vai atingir tanto a Emile
quanto a Sophie. Com dois anos de estada em Paris Emile pôde sentir os
efeitos cruéis dessa experiência sobre a sua alma e sobre seu destino:
Você soube bem demais destas tristes
desgraças cuja lembrança, apagada em dias
mais felizes, vem hoje redobrar meus pesares,
levando-me de volta à sua fonte [...].
Desgastado, aos poucos, por tantas diversões
frívolas, meu coração ia perdendo o primeiro
impulso, tornando-se incapaz de força e calor;
251
eu vagava inquieto de um prazer a outro;
procurava tudo, e tudo me entediava; só me
sentia bem onde eu não estava e me
atordoava por diversão. Sentia uma revolução
que não queria perceber, não me dava tempo
de entrar dentro de mim mesmo por medo de
não mais me encontrar. Todos os meus laços
tinham afrouxado, todos os meus afetos
tinham esfriado: no lugar da realidade, eu
pusera um jargão de sentimento e moral. Era
um homem galante sem ternura, um estoico
sem virtudes, um sábio ocupado com loucuras,
do seu Emile só me restavam o nome e alguns
discursos.(OC IV, Émile et Sophie, p. 885886).
Neste bloco inicial do texto de Rousseau, as indicações sobre os
males arcados por Sophie aparecem de um modo rápido e lacônico. E isso
acontece porque o autor vai se estender sobre este tópico em momentos
seguintes da obra, imprimindo uma ênfase considerável. O filósofo
destaca, entretanto, a queda da jovem nos vícios e nos erros ao manter
contato com o mundo degenerado da grande cidade; ressalta a decepção
que significa para Emile deparar-se com essa realidade no tocante a
Sophie, lembrando a armadilha que carregam os exemplos negativos.
Seria a inconstância e a fraqueza humana que abririam espaço para a
consolidação de um mal como este. Emile registra, por fim, toda sua
perplexidade e externaliza o quanto representa algo duro, para ele,
conservar vivo semelhante registro em sua memória:
como é que aquela que fora a glória e a
felicidade de minha vida era agora sua
vergonha e desespero? Como descrever tão
deplorável desatino? Não, jamais este episódio
terrível sairá de minha pena ou de minha
boca; é demasiado injurioso para a memória
da mais digna das mulheres, demasiado
opressivo, demasiado horrível para minha
lembrança, demasiado deprimente para a
virtude; eu morreria cem vezes antes de
concluí-lo.(OC IV, Émile et Sophie, p. 886).
252
Emile
resta
desolado,
mergulha
no
desespero,
diante
da
decepção que a experiência amorosa malfadada lhe provoca. Sophie não
ocupa mais o lugar da perfeição, deixa de ser modelo de sublimidade. E
isso podemos afirmar, considerando-a na qualidade de amante ou esposa,
uma vez que seriam nestes papéis, segundo Emile, que o governante, o
preceptor, teria tido a oportunidade de conhecê-la. Os encantamentos de
Sophie ainda persistiam em sua lembrança, seguiam impregnados em sua
alma sonhadora, mesmo que a realidade concreta a tenha levado a perder
a beleza e a integridade natural. O relato a seguir indica o que Sophie era
no passado, mas não confirma que no presente ela se faça uma criatura
sublime, elevada, passível de levar ao pasmo no sentido positivo: “Mestre,
você acha que conheceu essa jovem feiticeira. Oh! Como você se engana:
conheceu minha amante, minha mulher; mas não conheceu Sophie. Seus
encantos de toda a espécie eram inesgotáveis, cada instante parecia
renová-los, e o último dia de sua vida me revelou alguns que eu não
conhecia”.(OC IV, Émile et Sophie, p. 883-884).
III
Como resultado da experiência de unidade entre Emile e Sophie,
da alegria que o jovem sente de ter a moça ao seu lado, sobressai-se, no
quadro mais amplo do texto, o romantismo de Rousseau. Na escrita do
filósofo, só para ilustrar, esse aspecto já aparece no primeiro parágrafo do
trabalho. Neste momento inicial, o autor refere-se à liberdade e à
felicidade de Emile com a vida que ele desfrutava. Como um filósofo
romântico, Rousseau destaca a coesão, a parceria perfeita, entre Emile e
Sophie; menciona a estruturação adequada do coração do jovem para
gozar essa plenitude; ressalta a relevância que há no sentimento de amor,
na amizade, na instituição familiar, no afeto paterno. O pensador
argumenta, finalmente, por meio de Emile:
253
Eu era livre, era feliz, oh, mestre! Você fizera
em mim um coração apropriado para desfrutar
da felicidade, e me dera Sophie. Às delícias do
amor, às efusões da amizade, uma família
incipiente acrescentava os encantos do afeto
paterno: tudo me prenunciava uma vida
agradável, tudo me prometia uma doce velhice
e uma morte tranquila nos braços de meus
filhos.(OC IV, Émile et Sophie, p. 881).
Essa perspectiva intelectual impõe que haja, por parte do
indivíduo, uma entrega plena aos sentimentos. Do exercício intensivo da
sensibilidade veríamos florescer tudo que há de belo e de esplendoroso
enquanto produto do que o mundo natural e humano pode nos ofertar.
Inexiste aqui a ideia de que seria perigoso o ser humano sucumbir, ou
mesmo se desintegrar, por conta da força de suas paixões e da afluência
vigorosa
de
seus
desejos
desmesurados.
Estando
subordinado
ao
regimento da natureza, esses conhecem a medida certa de todas as
coisas.
Semelhante sentimento de felicidade, ilustrado pelo primeiro
parágrafo do texto, que se associa à infância e às épocas em que impera a
mais completa inocência, retorna nos parágrafos 4, 5, e 6 do trabalho.
Entretanto, já nos parágrafos 5 e 6, este sentimento se entrelaça com
concepções de uma vertente especulativa cujas bases encontram-se no
pensamento antigo. Neste instante, vem à tona, mais precisamente, toda
a simpatia que Rousseau guarda pelo estoicismo, e manifesta-se, de
maneira introdutória, a influência que ele sofre do ideário desta escola.
Aqui não temos exatamente uma transposição do estoicismo para
o quadro do século XVIII pela escrita de Rousseau. O filósofo genebrino,
em verdade, vale-se dos recursos da química para realizar, muito
sutilmente, a proposta de constituição de uma forma própria de
estoicismo. Neste plano intelectual, o sentimento de amor, que também
254
faz parte do ser mais substantivo das coisas, e do que pode ser prescrito
pelo destino, encontra seu espaço.
A sabedoria, tanto para o estoicismo em sua forma tradicional,
como na formulação sugerida por Rousseau, é produto da aceitação
daquilo que é e igualmente decorre de uma atitude de conivência com o
que o destino reserva aos indivíduos. Não desejar a verdade das coisas e
insurgir-se contra as prescrições do destino significa abrir espaço para os
males e para os infortúnios de toda ordem. Diante disso, Emile
argumenta:
Aprendi, assim, que a sabedoria primeira está
em querer aquilo que é, e acertar o coração
pelo próprio destino. É a única coisa que
depende de nós, você dizia, todo o resto é
inevitável. Aquele que mais luta contra o seu
destino é o menos sensato e sempre o mais
infeliz; o que ele consegue mudar em sua
condição o alivia menos do que o atormenta a
perturbação interior que ele cria com isso.
Raramente obtém algum êxito, e nada ganha
quando o obtém.(OC IV, Émile et Sophie, p.
883).
IV
A valorização, por exemplo, do sentimento de amor, próprio do
romantismo, permite a Emile fazer-se um estoico ao modo de Rousseau,
considerando-se que essa condição espiritual é decorrente da integridade
e da perfeita harmonia dele consigo mesmo, que teria sido conquistada
pelo concurso integral de todo o seu ser. Todavia, precisamos entender
que o estoicismo, na sua formatação tradicional, subordina-se a outros
princípios, que carregam a característica, aliás, de serem mais estreitos,
mais limitados.
O estoicismo, classicamente falando, rebaixa as paixões e
reivindica que o sujeito delegue a gerência de sua vida aos ditames
255
estritos da razão. Essa opção significa, para tal tendência especulativa, a
única forma de fazer-se garantida toda a integridade humana. É assim
que o indivíduo pode mostrar-se impassível, pronto para enfrentar as
adversidades, mostrando-se resistente aos sofrimentos da vida e restando
inabalável.
No escrito em análise, essa condição que torna Emile senhor de
si mesmo, como já dissemos, dá-se simultaneamente ao estabelecimento
da unidade entre os personagens centrais do romance, isto é, entre Emile
e Sophie.
O escrito é aberto, realmente, com o encontro e a sintonia plena
entre os dois jovens, que foram deixados à própria sorte pelo preceptor
ou pela providência. Porém, é definido como sua temática específica, no
quadro mais geral do texto, o desencontro entre eles, revelando todo o
impacto que Emile, principalmente, sofre com mais de um acidente que o
acomete no decurso de sua vida. Esses reveses começam e depois
assentam âncora, ainda no âmbito mais amplo do livro, em torno da
traição e do abandono de Emile por parte de Sophie; seguem com a morte
principalmente da filha do casal. Por fim, se completam com a derrocada
de Emile, que muito lembra o sucedido, na Antiguidade, com o sábio
Epicteto, que penou na escravidão.
Aqui entra em jogo, finalmente, o recurso e a adesão que o
filósofo empreende a um conjunto de preceitos éticos cunhados pelo
estoicismo, em sua versão clássica, que ele faz o esforço de selecionar e
absorver quando lhe interessam. Semelhante exercício representa uma
espécie de acesso ao remédio para o mal que ganhou corpo na esfera da
vida em sociedade. O que parece atrativo para Rousseau dessa tradição
especulativa do mundo antigo, e que ele encontra em especial em
filósofos romanos como Sêneca, Epicteto, e Marco Aurélio, acaba por
inserir no seu quadro doutrinal no romance. E esse último escrito, vale
256
concluir, não tem o mesmo caráter que seus Discursos, não faz-se árido
como o Do contrato social; ele é um trabalho de natureza literária, com os
propósitos de um escrito de semelhante gênero, isto é, poético,
romântico, fictício, colocando-se longe de suas formulações teóricas, frias,
calculadas, e desfibradas, que, na realidade, formam um quadro pequeno.
REFERÊNCIAS:
ESPÍNDOLA, Arlei de. “Rousseau e Sêneca: a construção da liberdade
moral”. In.: MARQUES, J.O.A. Reflexos de Rousseau. São Paulo:
Humanitas, 2007.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Émile et Sophie, ou Les solitaires. Paris:
Éditions Gallimard, Bibliotèque de La Pléiade, 1969, T. IV.
ROCHE, Kennedy F. Rousseau; Stoic & Romantic. Londres: Methuen & Co
Ltd, 1974.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques Rousseau; A transparência e o
obstáculo. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
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ROUSSEAU E O CASO DE ÉMILE ET SOPHIE OU LES