AS AVENTURAS DE “PELÉ” Marcelo Conti Adolescência é uma fase da vida que marca. Você está adquirindo um novo “posicionamento” no mundo, sua inserção na sociedade acaba por permitir que comece alçar voos mais altos, mais longos, mais distantes. E, mesmo sob os olhos vigilantes dos pais ou responsáveis (como era na época desta história), conseguíamos “aprender” algo de novo a cada dia, seja simplesmente andando na rua, observando, seja conversando com pessoas que jamais vimos antes. Na adolescência, entre tantas coisas, você faz amigos também, e isso é importante porque companheiros, juntos, se tornam fortes muitas vezes para desvendar segredos escondidos nos lugares em que frequentam, ou enfrentar situações inusitadas até então. Pelé e Buchecha, nos dias de hoje certamente seria uma ideia de nome para dupla sertaneja. Mas, lá pelos idos dos anos 70 eram simplesmente grandes e inseparáveis amigos. Nas relações de família e de amizade, os nomes de batismo são o que menos importam, porque o carinho permite que apelidos sejam colocados, e ali permanecem mesmo depois que seu dono vai para a esfera superior. Pelé ganhou o apelido logo cedo, quando tinha uns 7 ou 8 anos. Menos pela cor da sua pele que, aliás, era bem mais escura que a do detentor oficial do apelido, mas principalmente pela habilidade demonstrada quando com a bola nos pés. Era um verdadeiro inferno marcar aquele garoto porque, na quadra ou no campo, parecia que colava a bola junto de si e a levava com uma agilidade impressionante, normalmente até dentro do gol do adversário. Alto, esguio, cabeçudo, com o tempo foi cultivando um bigodinho fino que descia até o lábio inferior da boca, formando uma espécie de “meia lua”. Era uma pessoa muito engraçada, tanto pelo jeito desengonçado de andar, como pelas peripécias que criava sempre que saia com o amigo predileto, seja para tomar umas, seja para dançar. Quanto a Buchecha, desnecessário tecer maiores comentários. Meia altura, brancão, gordinho, era um pestinha, e servia de “escada” para as “apresentações” de rua de seu companheiro (“escada”, no jargão do teatro, é a pessoa que dá a deixa, que cria a oportunidade, para a atuação ou a piada de quem com ela contracena). O apelido ficou grafado mesmo com “u”, porque o que vale em se tratando de apelidos é o som, a forma como se fala. Eram verdadeiros amigos. Aliás, o são até os dias de hoje, e vivem se encontrando em finais de semana, não mais para “aprontar”, mas agora para reviver. E, claro, para beber. Quem conhece o passado glorioso do Santos Futebol Clube, vai entender quando dizem que Buchecha era o “Coutinho” do Pelé, porque ambos se entendiam de tal forma que bastava uma troca de olhares para saberem qual seria o “próximo passo”. SOLUÇÃO Gestão de Negócios e Cultura Ltda. Tel.: 11 5041.6901 / 99624.3949 [email protected] www.solucao-gnc.com.br Nunca fizeram nada de errado; o único vício que tinham era a bebida, as mulheres, e gozar a vida brincando com ela, enquanto podiam, enquanto adolescentes. Delitos, jamais praticaram, e drogas nem passaram perto dos dois. Muitas vezes, inclusive, ajudavam pessoas necessitadas, quando saiam aos finais de semana para se divertir. E a diversão variava, de acordo com a disposição da dupla. Certa vez, os dois caminhavam retornando de um salão de danças quando encontraram um amigo comum, Lino. Este, sabendo que Pelé gostava de enfrentar desafios, apostou com a dupla que Pelé não conseguiria ficar estirado na rua, como morto, por quinze minutos. Aposta feita, o desafiante se afastou apenas o suficiente para continuar assistindo a montagem do espetáculo. E, ele foi completo. Pelé deitou-se com as costas no chão frio, pés sobre a calçada, meio de lado, e o resto do corpo junto do meio fio. Buchecha cobriu seu corpo com jornal, e deu “toques” de catchup que conseguiu emprestado de um boteco próximo onde eram fregueses. Tirou um dos sapatos do “morto” e o deixou virado para baixo, um pouco mais longe do corpo. Não teria ficado tão bom, se não fosse noite escura. Porque, de dia daria para ver a trama e principalmente o engodo que o molho de tomate fazia sobre a vítima. Cena pronta começou a contagem regressiva. Os veículos que ali passavam reduziam a velocidade, para que seus ocupantes pudessem ver o que havia acontecido. Um ônibus, ao fazer a manobra para desviar do defunto teve de ir quase a zero, e em função disso os passageiros puderam ver a coisa de camarote; uma senhora, inclusive, fez uma cara de quem chupou limão, virou a cabeça num misto de consternação e horror. Em dado momento, e não se sabe de onde, apareceu um médico oferecendo ajuda. Antes que ele levantasse uma das folhas do jornal para ver o estado da vítima, Buchecha adiantou-se dizendo: “É tarde, doutor, não há mais o que fazer...” Ao que o médico desejou pêsames, e retirou-se do local. Exclamações, arrepios, e muitas condolências, era o que se via no local. Bem, passaram exatos 12 minutos e a dupla já contava com um dinheiro a mais para fazer graça com a mulherada quando, ao longe se ouviu um barulho que parecia ser a sirene de uma viatura qualquer. O “defunto” tremeu sob as páginas do jornal. “Aguenta aí, Pelé!” era a ordem que vinha do mundo terreno. A relação entre o som da sirene chegando e o corpo de Pelé se molhando de suor era proporcional, e mesmo Buchecha com toda a sua experiência temeu pelo pior. Enfim, a viatura virou a esquina, e logo o farol refletiu nos pés negros que sobravam na calçada. O veículo parou, e junto com ele, literalmente, a respiração de Pelé. Os policiais, porém, iam ao encalço de marginais e, portanto, não tinham como dar sequência na ocorrência. “Está morto?”, perguntou o policial; “Mortinho”, respondeu Buchecha, acrescentando depois um “infelizmente”. Pelo rádio do carro foi solicitada outra viatura, e também o carro do IML para levar o corpo. E partiram em desabalada carreira. Só deu tempo mesmo da dupla pegar o dinheiro do amigo, e sair daquele lugar o quanto antes. Os pais do Pelé é que quase morreram de verdade, quando o viram chegar em casa todo manchado de vermelho... Outra passagem foi quando a dupla estava num dos bailes da cidade de São Paulo. Chamava-se “Patropi”, em homenagem à música do Jorge Benjor, “País Tropical”, sucesso naquela época. SOLUÇÃO Gestão de Negócios e Cultura Ltda. Tel.: 11 5041.6901 / 99624.3949 [email protected] www.solucao-gnc.com.br Ficava no início da Rua Cubatão, no Paraíso, e a frequência era mista, ou seja, tinha gente de todo lugar e de todo tipo. Mas, conheciam os garçons, o maitre, e invariavelmente “ganhavam” umas doses a mais, além das muitas que pagavam. Tomavam algumas, iam dançar, e novamente tomavam mais umas; era um revezamento que durava a noite toda, e não havia fígado que aguentasse. “O samba destila”, dizia Pelé. O samba... Bem, quanto à dança, gostavam de variar com os pares, e dificilmente ficavam com a mesma dama (ou eram elas que dificilmente queriam ficar com eles). Mas, numa dessas idas para dançar Pelé se atracou com uma mulher e acabou gostando do jeito dela. “Ela dança prá caramba, Buchecha; dá uma quebradinha aqui pro lado, chega e se roçar toda em mim, bicho! Vou continuar com ela”. E, ficou não somente a noite toda como saiu dali acompanhado, e a levou para “posar” com ele num hotel barato do Centro da cidade. Era costume, sempre que acontecesse algum fato que gerasse desencontro entre eles, se reencontrar no boteco do Mané, no Largo do Paissandu. Pois, Buchecha estava lá, no dia seguinte ao do baile, quando viu Pelé chegando, desacorçoado, semblante de quem passou a noite em claro, fora a ressaca. “O que foi, negão?”. “Buchecha, tu não vai acreditar...”. “Fala Pelé! Tu não gostou dela? Disse prá mim que ela dança bem, que dá uma quebradinha, que se roça em você. Você matou a mulher?” “É essa tal de roçadinha que eu não percebi” “Não percebeu o que?” “Porra, Buchecha, depois que o “fogo” passou, depois de tudo o que eu fiz com a mulher, quando ela se levantou pra ir embora foi que eu vi. A mulher é manca de uma perna!” O boteco veio abaixo... Mas, uma das melhores do Pelé foi quando a dupla foi convidada para um baile à fantasia. A preparação dos dois já foi uma comédia porque, primeiro que não tinham dinheiro para bancar uma roupa condizente com a festa, e depois porque ficavam imaginando (e rindo muito) como ficariam fantasiados disso ou daquilo. Foi aí que Pelé lembrou do Lino, o amigo que sempre perdia os desafios. Foram até ele, e pediram um adiantamento por conta dos próximos três desafios, afinal queriam uma boa grana. Tinham crédito, e conseguiram. “Vou de Pelé”, disse o Pelé. “Para com isso, negão! Tu não parece nem de longe com o Pelé. Escolhe outra”. “Então vou de Papa”. “Papa preto! OK, vai de Papa Negão V. Pensa no que está falando, porra!” “Não sei do que vou, então”. “Eu sei”, disse Buchecha com aquela empáfia característica dos que mandam. “Tu vai de armadura” “O que?????” “Armadura, negão, tudo fechado. Ninguém vai saber que é você. Tu vai ficar no anonimato a festa toda, tá entendendo? “Entendendo eu estou, só quero saber como vai ser.” “Como vai ser o que?” “Prá mijar, porra. Aquela merda abre?”. Bem, a discussão seguiu, mas nada demoveu Buchecha de alugar a armadura para Pelé. E encheu de recomendações: não deveria dar um “pio”, nem andar como costumeiramente andava, enfim, circular com a fantasia, só isso... Buchecha se meteu num traje de Fred Flinstone, o qual caiu como uma luva em seu corpinho, e lá se foram os dois para a tal festa à fantasia, na casa de um dos amigos. Começou que, como foram de ônibus, quase se atracaram com uma turma de estudantes: pensaram que os dois eram gays, e ficaram com gracinha até que Pelé levantou a espada da fantasia e, se não fosse o trocador, a festa tinha ido para o espaço. SOLUÇÃO Gestão de Negócios e Cultura Ltda. Tel.: 11 5041.6901 / 99624.3949 [email protected] www.solucao-gnc.com.br Durante todo o caminho reiteraram que Pelé não mostraria o rosto, logo ninguém saberia quem estava por debaixo daquela armadura. Buchecha chegaria na frente, e diria que Pelé não pode ir, que tinha arranjado companhia (a Nega manca, talvez), e ficara em casa com ela. Lino, curioso e atrevido como sempre, soube da trama e antes que os dois saíssem foi até a casa de Pelé e cravou novo desafio, colocando em jogo o dinheiro que havia emprestado para o aluguel da fantasia. Pelé não poderia ser identificado, essa era a aposta. Aliás, poderia apenas quando no local da festa estivessem vinte pessoas ou menos. Era uma prova duríssima de cumprir porque, além de ir muitos convidados, a bebida e a comida de graça iam segurar o povo sabe lá até que horas. Mas, que jeito? Pelé topou. E, quando contou a Buchecha este deu aquele sorrisinho maroto, pensando “tá no papo”. Casa grande, bonita, na época fora dos padrões de vida da dupla. O amigo estava bem de vida, financeiramente realizado, empresário, convidou os dois porque gostava deles, e queria que tivessem a oportunidade de viver aquilo tudo. A música, o perfume, a decoração, tudo de primeira. Buchecha foi se enveredando pelos jardins, através de um caminho adornado com flores, plantas, e muitos refletores com luz indireta, até que chegou ao salão principal. Lá estava o Batman, quer dizer Lino, de plantão; uma piscadela de olhos foi a confirmação de que tudo estava pronto para a grande prova da vida de Pelé. Os convidados chegando, todos de carro, acompanhados ou não, entravam pelo portão daquela suntuosa residência, em busca da diversão entre amigos. Sim, amigos, porque se conheciam, de um lugar ou de outro, as pessoas se conheciam. Ali, ninguém era estranho, e mesmo Pelé com seu jeito engraçado e fanfarrão, era uma pessoa muito bem quista. De repente, um brilho enorme toma conta do salão. Os olhos se voltaram para a porta, e deram com aquela armadura enorme, parada com as pernas abertas, reluzindo como o sol do mais intenso verão. Ao perceber que tinha sido notada, a Armadura ergueu os dois braços, um com uma lança, outro com um escudo, numa verdadeira “entrada triunfal”. Buchecha e Lino caíram na gargalhada com aquela cena. Mas, logo se juntaram ao coro do “quem é?”, “quem será?” Não demorou, a Armadura começou a caminhar com dificuldade entre os convidados. E, assim permaneceu por muito tempo. Aliás, a festa ia avançando na noite e na madrugada do dia seguinte, e a bebida ia atingindo níveis “superiores” nas cabeças da maioria das pessoas. Alguns, mais atrevidos, insatisfeitos com aquele “silêncio armado em aço”, tocavam-no, batiam-no com a junta dos dedos, tentavam puxar conversa, e nada! Andava com as pernas semiabertas, e o calor da noite de verão intenso incomodava o fantasiado, de forma que, vez por outra, via-se uma tentativa de coçar um braço, ou mesmo a cabeça superprotegida com uma espécie de capacete intransponível. SOLUÇÃO Gestão de Negócios e Cultura Ltda. Tel.: 11 5041.6901 / 99624.3949 [email protected] www.solucao-gnc.com.br A curiosidade aumentava na mesma proporção em que a bebida era consumida. A Armadura já não tinha a mesma postura, e cansada tentou sentar-se numa banqueta de bar, ao que na primeira tentativa jogou-a ao chão, assustando alguns convidados. Em dado momento, Buchecha percebeu que, numa pequena abertura entre a luva da armadura e o resto do corpo, havia um tecido esbranquiçado. “O que é que esse negão foi inventar de fazer?”, pensou. Usar um tecido branco por baixo da fantasia, isso intrigava. Chamou discretamente a Armadura para o jardim, e também discretamente chegou bem perto da fantasia e disse: “Pelé...”, “Pelé...” Nada de resposta. “Pelé, olha aqui seu filho de uma... Bem, não vou te xingar porque estamos numa festa de gente chique, mas me fala que porra é essa que você tem por baixo da fantasia!!”. Ouviu um sussurro: “Tem um cigarro?”. “Cigarro, Pelé! Quer perder a aposta? Olha lá, o Lino tá lá, só de olho em você!”. “Não tá dando mais, cara!”, retrucou a fantasia. E, antes que Buchecha tentasse mais um argumento, aqueles dois braços metálicos se ergueram, e as mãos levantaram o capacete, expondo a cabeça do fantasiado para todos os que, à esta altura, já o rodeavam. “CASTILHO?”, Urrou Buchecha. “O que é que você está fazendo aí, Castilho? Cadê aquele filho de uma boa mãe do Pelé?” Castilho era uma pessoa tranquila, e branco como o leite. De ruim mesmo, de vício, só o cigarro. No mais, andava “reto” na vida. Mas, incrível, não era alguém procurado pelos demais, para um chope ou bate papo. E, por estes motivos pessoais que envolvem convites, o anfitrião não o havia chamado para a tal festa à fantasia. Dessa forma, e morrendo de vontade de participar, encontrou Pelé perdido nos metais, nas dobraduras e nos adereços da Armadura, quando ofereceu “boa recompensa” para ir em seu lugar. A boa recompensa foi aceita, e Pelé passou todos os “detalhes” do que teria de ser a apresentação pessoal. Deixou Castilho montando aquela parafernália, encheu o bolso de dinheiro, passou nuns dois botecos para se encher de coragem, e nem pensou nas consequências da aposta feita com Lino. Foi em busca da Nega Manca. SOLUÇÃO Gestão de Negócios e Cultura Ltda. Tel.: 11 5041.6901 / 99624.3949 [email protected] www.solucao-gnc.com.br