48 | PORTO ALEGRE, DOMINGO, 1º/07/2001 ESPORTES ZERO HORA BRASIL X URUGUAI Uma jogada inesquecível do clássico da Copa do Mundo de 70 é recontada por Mazurkiewicz e Ancheta O mágico lance de Pelé FOTOS BANCO DE DADOS/ZH JONES LOPES DA SILVA vem da zaga da Celeste. Matosas passava dos 32 anos. Mazurkiewicz deve abafar o lance, pensou. E continuou voltando ao gol. Até o momento da surpresa. A passagem para a final da Copa do Mundo de 1970 já estava garantida. Rivelino recém havia sublimado o terceiro gol da vitória de 3 a 1 do Brasil sobre o Uruguai na Copa do Mundo do México, e a multidão, boa parte com chapéu-coco para amenizar o sol, vibrava como se fosse a seleção do seu próprio país em campo. Então, próximo ao fim, um lance mágico reacendeu o jogo. Foi como o desfecho surpreendente de um bom filme. Algo que ilustraria uma galeria das dez principais imagens do futebol de todos os tempos. Pelé, o goleiro Mazurkiewicz e o zagueiro Ancheta participaram dele. UM POUCO adiante do meio de campo, já no lado uruguaio, Tostão recebeu um passe de Rivelino e, de primeira, lançou Pelé em profundidade, em diagonal, rasteiro, às costas do zagueiro Matosas. Tudo começou ali. O atacante deixou o adversário para trás e avançou com a intenção de interceptar o passe na frente do gol. Pela trajetória do lance, ele e a bola fatalmente se encontrariam na entrada da meia-lua da área uruguaia. Pelé forçou o pique, estendeu a passada. O goleiro Mazurkiewicz saiu desesperado do gol. A alguns metros do grande encontro, Pelé deve ter intuído de que chegariam praticamente juntos à bola. Os dois colocaram mais força e, quando a bola entrou na meialua, Pelé e Mazurkiewicz estavam dando o bote final. O URUGUAI enfrentou o Brasil em condições precárias. Havia vencido a então União Soviética por 1 a 0 em um domingo chuvoso na Cidade do México. Foi partida decidida na prorrogação, ou seja, em 120 minutos. E a delegação retornou à concentração em um hotel da cidade de Puebla, a 110 quilômetros da Capital. Na segunda-feira, com os jogadores descansando, os dirigentes foram passear na praia de Acapulco. Não sabiam de uma reunião que ocorria na Fifa, com participação de brasileiros. Nela, uma decisão inapelável foi tomada: a sede do jogo entre Brasil e Uruguai, na quartafeira à tarde, sairia da Cidade do México e iria para Guadalajara, a sede do Brasil. Ancheta garante: só foram comunicados da mudança às 23h30min da segunda-feira. Pelé (D) se aproxima da trajetória do lançamento de Tostão com vantagem sobre o goleiro... ... Mazurkiewicz, que tenta interceptar o drible de Pelé com a bola, mas o atacante não toca... AS ROUPAS foram jogadas às pressas nas malas e os jogadores só dormiram depois da 1h da madrugada. Às 5h estavam de pé e, sem café, deslocaram-se para Guadalajara. Chegaram às 14h da terça-feira. – O nosso trabalho era para a altitude e o frio, ninguém esperava jogar em Guadalajara, sob temperatura de 35º C – depõe hoje o goleiro Mazurkiewicz. – Houve um equívoco, a gente chegou estressado e por isso jogamos bem apenas o primeiro tempo. Na noite anterior ao jogo, o som da boate do hotel bateu forte na cabeça dos jogadores. Ancheta foi dormir às 4h. COMPANHEIRO DE Matosas na zaga, Ancheta não alcançaria o desatinado Pelé e apenas troteou em direção ao gol. Sua preocupação era dar cobertura à saída de Mazurkiewicz caso o goleiro levasse a pior no grande encontro. Aos 22 anos, Ancheta era um zagueiro rápido, atento, de faísca instantânea no Nacional de Montevidéu. Era o jo- ...nela e corrige o seu rumo atrás da bola, enquanto Ancheta (2) corre para fechar o ângulo MAZURKIEWICZ chegou primeiro à meia-lua, mas o pé direito com as meias brancas de Pelé estava mais próximo da trajetória da bola. O goleiro equilibrava-se para colocar os pés adiante e interceptar a investida do atacante. Pelé estendeu a perna e pressentiu o golpe do uruguaio. Então, maliciosamente, encurtou o bote em alguns centímetros e deixou a bola passar. Um átimo atrasado, o goleiro passou-se do lance, mas não atirou-se. Pelo seu lado direito, Pelé passou com a velocidade da luz, agora, tentando corrigir a rota. A bola cruzou na frente de Mazurkiewicz (detalhe) e seguiu em diagonal, como se fosse para a bandeira de escanteio do lado esquerdo da área uruguaia. – Qualquer jogador do mundo tocaria naquela bola, mas Pelé, não – declara o goleiro, hoje supervisor do Peñarol. – Não sei o que pensei na hora, só queria voltar ao gol, sabia que seria tarde, e ainda vi o Ancheta correndo para a cobertura do lance. O CORTA-LUZ de Pelé sobre Mazurkiewicz apavorou Ancheta. Mesmo que a bola tomasse um rumo quase sem ângulo, o zagueiro sentiu a intenção do atacante e correu para fechar o lado esquerdo da sua goleira. – Era o canto certo para ele chutar, era óbvio – declara Ancheta. JOSÉ DOVAL/ZH Pelé fez a curva na altura da marca do pênalti e perseguiu a bola do outro lado de Mazurkiewicz. Enquadrou o corpo para o chute mas, na última hora, ainda espiou o gol. Foi quando viu Ancheta correndo, quase jogando-se no canto. – Eu pensei em defender com a mão, achei que ele fosse chutar com força – explica o zagueiro (no detalhe, com a camiseta usada naquela partida). A silhueta de Ancheta fez Pelé torcer ainda mais o corpo e virar o pé. Não chutou forte, mas procurou o ângulo contrário, às costas do desesperado uruguaio, que varria a área para fechar o lado da trave esquerda. A bola tomou o rumo do gol. NAQUELE INSTANTE, de pé, na linha de fundo, ao lado da trave esquerda de Mazurkiewicz, fotógrafos que já aguardavam o apito final do árbitro espanhol Ortiz de Mendíbil chegaram a entrar dois passos no gramado para tomar melhor ângulo e captar a imagem no outro canto. A bola saiu para fora, a meio metro da trave. Pelé praguejou com raiva o lance perdido. A última surpresa do seu lance mágico foi contra ele próprio.