Revista Brasileira de Ensino de Fsica vol. 20, no. 3, Dezembro, 1998 359 Estudando Vidros por Meio de Analise Termica Diferencial (Studing glasses by dierential thermal analysis) Eudes Borges de Araujo Universidade Federal de S~ao Carlos, Departamento de Fsica Caixa Postal 676, S~ao Carlos - SP e-mail: [email protected] Recebido 26 de novembro, 1997 Este trabalho apresenta, de forma qualitativa, os mecanismos de nucleac~ao e cristalizac~ao em vidros. Estes mecanismos s~ao estudados usando a tecnica de Analise Termica Diferencial (ATD). Este metodo tem sido empregado com sucesso para a deteminac~ao da maxima nucleac~ao em vidros e possui inumeras vantagens em relac~ao ao metodo convencional. Complementando, par^ametros importantes como entalpia e energia de ativac~ao para a cristalizac~ao s~ao explorados usando ATD. This work presents of qualitative form the nucleation and crystallization mechanisms in glasses. These mechanisms are studied using Dierential Thermal Analysis (DTA). This method has been applied with success to determination for maximum nucleation in glasses and has several advantages compared to conventional method. In complement, important parameters like enthalpy and activation energy for crystallization are investigated using DTA. 1. Introduc~ao Vidros s~ao materiais que t^em despertado grande interesse nos ultimos anos, visto que constituem, na sua maioria, elemento principal em dispositivos para a otica. Recentemente, com a evoluc~ao das comunicac~oes por meio de dispositivos oticos, os esforcos t^em-se concentrado no estudo de novos materiais, a partir de vidros modicados, procurando-se otimizar as propriedades ja estabelecidas. As possveis aplicac~oes envolvem a manufatura de prismas, lentes, ltros, etc. Recentes aplicac~oes sugerem a utilizac~ao do vidro como materia prima para a construc~ao de lasers ou guias de onda 1]. Embora as principais aplicac~oes envolvam o campo da otica, outras importantes aplicac~oes tambem s~ao encontradas em outros campos. Alguns vidros apresentam o fen^omeno de chaveamento eletrico 2] (switching), que permitem sua utilizac~ao em dispositivos eletricos, outros, porem, s~ao utilizados como materiais sujeitos a tens~oes, utilizados em dispositivos de seguranca para a prevenc~ao de acidentes, que permitam a fragmentac~ao controlada do vidro. A natureza do vidro, tecnicas de caracterizac~ao e possveis aplicac~oes podem ser encontradas em um trabalho publicado recentemente 3]. Com o advento do vidro foi possvel preparar outros tipos de materiais baseados na matriz vtrea, principalmente as vitro-cer^amicas. Esses materiais s~ao essencialmente matrizes vtreas permeadas por microcristais. Os microcristais podem ser induzidos na matriz vtrea de varias forma, sendo atraves de tratamentos termicos controlados a maneira usual. E particularmente util obter microcristais com o ndice de refrac~ao proximo ao ndice de refrac~ao do vidro, de tal forma que a dispers~ao da luz seja mnima na interface vidro/cristal. Esse procedimento foi recentemente adotado com sucesso na preparac~ao de vitro-cer^amicas transparentes com microcristais de LiNbO3 4] e BaTiO3 5] em matrizes de vidros teluretos (TeO2 ). Para obter vitro-cer^amicas como essas e importante conhecer e entender o mecanismo de nucleac~ao e crescimento de cristais no interior 360 E. Borges de Araujo da matriz vtrea. Este trabalho tem o objetivo de explorar o estudo de vidros por meio de analise termica, enfocando alguns importantes par^ametros e suas inter-relac~oes. A nucleac~ao e crescimento de cristais em vidros sera explorada por meio de uma introduc~ao qualitativa, seguida de um estudo experimental, usando Analise Termica Diferencial (ATD). Essa tecnica tem sido utilizada recentemente com excelentes resultados no estudo de nucleac~ao em vidros e apresenta consideraveis vantagens sobre as tecnicas convencionais. II. O mecanismo da cristalizac~ao O vidro e um material amorfo que n~ao possui simetria de longo alcance. Por essa raz~ao e as vezes referido como lquido, porem com elevada viscosidade. Sob condic~oes favoraveis surgem pequenos aglomerados que constituem o ponto de partida para o desenvolvimento de regi~oes ordenadas. Esses aglomerados, ou embri~oes, apresentam utuac~oes constantes no tamanho e s~ao criados ou destrudos de acordo com utuaco~es estruturais produzidas por agitac~ao termica. Existe, portanto, um certo tamanho crtico do embri~ao a partir do qual sera desenvolvida uma nova fase cristalina denominada nucleo. O processo que leva a formac~ao de nucleos chama-se nucleac~ao. A nucleac~ao que ocorre de uma forma totalmente aleatoria atraves de um sistema e dita homog^enea. A condic~ao necessaria para que isso ocorra e que todo o elemento de volume da fase inicial seja estruturalmente, quimicamente e energeticamente id^entica. Outro processo de nucleac~ao esta associado a imperfeic~oes, impurezas, etc., e ocorre preferencialmente atraves das interfaces. Esse processo chama-se nucleac~ao heterog^enea. Na pratica, a nucleac~ao heterog^enea e difcil de ser evitada e por essa raz~ao e questionavel se somente ocorre a nucleac~ao homog^enea em um dado sistema. A fase posterior a formac~ao do nucleo constitui o crescimento do cristal atraves da sucessiva adic~ao atomos da fase lquida. Na gura 1 est~ao representadas a taxa de nucleac~ao (I), que e o numero de nucleos produzidos em uma unidade de volume por unidade de tempo, e a taxa de crescimento (u), taxa na qual essas partculas crescem. Ambas as curvas dependem da temperatura, conforme mostra a gura 1. A depend^encia quantitativa dessas curvas pode ser encontrada no livro Glass Science 6]. Para a presente discuss~ao e suciente um estudo qualitativo. Figura 1. Variac~ao da taxa de nucleac~ao (I ) e taxa de crescimento (u) em func~ao da temperatura. Para a formac~ao de um vidro a partir da fase lquida e necessario resfriar rapidamente o lquido para evitar a cristalizac~ao. Na gura 1, Tf representa a temperatura de fus~ao, acima da qual o lquido permanece em uma fase estavel. Quando o lquido e rapidamente resfriado abaixo de Tf , o crescimento de cristais e teoricamente possvel entre Tf e T2 . Todavia, a formac~ao inicial de nucleos ocorre entre T1 e T3 . Essa formac~ao inicial e uma condic~ao necessaria antes que o crescimento seja possvel. Assim, existe uma regi~ao crtica entre T1 e T2 que possibilita a cristalizac~ao. Dessa forma, a cristalizac~ao dependera da maneira na qual as curvas I e u na gura 1 se superponham e tambem dos valores absolutos de I e u na regi~ao superposta (area hachurada). Se a regi~ao compreendida pelo intervalo T1 ; T2 for pequena, nenhuma cristalizac~ao perceptvel ocorrera e o sistema passara para o estado vtreo. Se I e u s~ao grandes e ha uma superposic~ao razoavel entre as curvas, havera grande possibilidade de uma completa cristalizac~ao. Se no intervalo T1 ; T2 a taxa I for pequena e u grande, ocorrera a cristalizac~ao de um pequeno numero de cristais no interior da fase amorfa. Finalmente, se I for grande e u pequena o resultado sera um material parcialmente cristalino com gr~aos muito pequenos. As curvas para I e u podem ser determinadas experimentalmente com certa facilidade e precis~ao usando analise termica diferencial, assunto que sera abordado a seguir. III. Analise termica diferencial (ATD) Uma tecnica experimental extremamente util para estudar vidros e a Analise Termica Diferencial (ATD) 7]. Trata-se de uma tecnica simples que permite comparar a temperatura de uma amostra (objeto de estudo) Revista Brasileira de Ensino de Fsica vol. 20, no. 3, Dezembro, 1998 e uma refer^encia (material inerte) por meio de um aquecimento ou resfriamento linear em um forno eletrico. A diferenca de temperatura entre a amostra e a refer^encia e a func~ao armazenada. Transic~oes que envolvam trocas de calor podem ent~ao ser detectadas como uma mudanca na linha de base (background) da curva ou como picos exotermicos ou endotermicos. Transic~oes de segunda ordem, como a transic~ao vtrea 3], s~ao associadas a mudancas na linha de base da curva. Picos endotermicos podem ser associados a reac~oes de fus~ao como tambem a reac~oes de decomposic~ao ou dissociac~ao. Por outro lado, picos exotermicos s~ao associados a mudancas de fase cristalina. A gura 2 mostra uma tpica curva obtida por ATD para um vidro fosfato do tipo Li2O-P2 O5 -Nb2 O5 , tomado como exemplo. Nessa gura v^e-se claramente a temperatura de transic~ao vtrea (Tg ), temperatura de cristalizac~ao (Tc ) e temperatura de fus~ao (Tf ). Obtem-se a temperatura que determina o inicio de cada transic~ao pela intersecc~ao de uma linha que extrapola a linha de base com outra linha tangente a curva no ponto de inex~ao, conforme mostra a gura 2 (linhas tracejadas). 361 na taxa de aquecimento durante um ensaio de ATD. Aumentando-se a taxa de aquecimento verica-se que a altura do pico de cristalizac~ao aumenta enquanto a maxima temperatura do pico (Tp ) desloca-se para altas temperaturas. Esse fato pode ser visto na gura 3 para o mesmo vidro fosfato da gura 2. Figura 3. Curvas de ATD. Pico de cristalizac~ao sujeito a varias taxas de aquecimento para um vidro Li2 O-P2 O5 Nb2 O5 . Usando as maximas temperaturas de pico (Tp ) e as respectivas taxas de aquecimento da gura 3, pode-se usar a equac~ao de Kissinger 8] ln(Tp2 =) = E=RTP + constante Figura 2. Tpica curca de ATD para um vidro fosfato do tipo Li2 O-P2 O5 -Nb2 O5 . No graco, Tg representa a temperatura de transic~ao vtrea, Tc a temperatura de cristalizac~ao e Tf a temperatura de fus~ao. IV. Estudando vidros usando ATD A energia de ativac~ao (E ) para a cristalizac~ao e a entalpia (H ) na cristalizac~ao podem ser determinadas experimentalmente usando ATD. Para determinar E, uma amostra deve ser inicialmente cristalizada em um equipamento de ATD a diferentes taxas de aquecimento . O pico de cristalizac~ao e sensvel a mudancas onde R e a constante dos gases, e determinar a energia de ativac~ao E fazendo-se um ajuste linear dos pontos no graco de ln(Tp2 =)versus1=Tp : A energia de ativac~ao e ent~ao calculada usando o coeciente angular da reta. A entalpia H pode ser determinada medindo-se a area sob o pico de cristalizac~ao da amostra em estudo e comparar esta area com a area sob o pico de fus~ao de alguma refer^encia disponvel (Zn ou Al, por exemplo), cujo calor envolvido na reac~ao seja conhecido. A area sob um pico de cristalizac~ao e diretamente proporcional a entalpia H 7]. V. Taxa de nucleaca~o e crescimento Recentemente, Ray e Day 9] sugeriram uma maneira rapida e eciente, usando ATD, para a determinac~ao da maxima taxa de nucleac~ao em vidros, que posteriormente foi tambem estendido para a maxima taxa de crescimento 10]. O metodo convencional para estudar a nucleac~ao e baseado em etapas que envolvam tratamentos termicos prolongados seguidos de tratamentos termicos especcos para crescimento para posterior contagem dos nucleos 11]. O metodo proposto 362 por Ray e Day oferece vantagens adicionais por requerer muito menos tempo de execuc~ao se comparado ao classico metodo. A ess^encia do metodo proposto consiste em associar a altura do pico de cristalizac~ao (Tp ) com a concentrac~ao de nucleos na matriz vtrea. Assim, a altura do pico de cristalizac~ao e proporcional a concentraca~o de nucleos no vidro 8]. Experimentalmente, o vidro e previamente nucleado para uma serie de temperaturas entre Tg e Tc , por um determinado tempo, e em seguida faz-se um ensaio de ATD no intervalo de temperatura desejado. Mede-se ent~ao a altura do pico de cristalizac~ao para esta dada temperatura de nucleac~ao. Repete-se o processo para outras temperaturas de nucleac~ao ate que seja possvel esbocar a curva procurada. E. Borges de Araujo cristalizado em curtos intervalos de tempo para temperaturas previamente escolhidas entre Tg e Tf , preferencialmente fora do equipamento de ATD. A seguir, para cada temperatura de crescimento, ensaios de ATD devem ser realizados e a area sob os picos de cristalizac~ao medida e armazenada. Para cada temperatura de crescimento determina-se a diferenca H entre a entalpia da amostra e uma refer^encia, cuja entalpia seja conhecida. Um graco de H versus temperatura de crescimento pode ent~ao ser construdo. Um maximo obtido correspondera a maxima taxa de crescimento. A tecnica baseada em ATD tem sido recentemente empregada com sucesso no estudo de processos de nucleac~ao e crescimento de cristais em vidros ZBLAN 12], sistemas vtreos do tipo Ga-As-Se-I 9], vidros fosfatos 13], teluretos dentre outros. A import^ancia nesse estudo esta no controle de cristalizac~ao em matrizes vtreas, para a produc~ao de vitro-cer^amicas, como tambem em situac~oes nas quais a cristalizac~ao deva ser evitada. Trata-se de um estudo relativamente recente que ainda n~ao foi devidamente popularizado. Refer^encias Figura 4. Curva de nucleac~ao de um vidro Li2 O-P2 O5 Nb2 O5 . Os pontos s~ao dados experimentais obtidos por ATD (ver texto). A linha e apenas uma guia para os olhos. A gura 4 mostra uma curva de nucleaca~o para um vidro fosfato, nucleado por 30 minutos em cada temperatura de nucleac~ao. V^e-se claramente um maximo proximo a 360 C que corresponde a maxima taxa de nucleac~ao. Nessa gura v^e-se que a concentrac~ao de nucleos no incio e praticamente constante e aumenta com o aumento da temperatura de nucleac~ao, passando por um maximo, e em seguida decai a concentrac~ao de nucleos, tendendo a permanecer novamente constante. Esse comportamento tambem foi observado em outros vidros, como Li2O-2SiO2 8]. O metodo oferece grande eci^encia se o vidro possuir grande estabilidade termica e for nucleado no proprio equipamento de ATD. A estabilidade termica do vidro pode ser estimada qualitativamente pela diferenca T = Tc ; Tg . Quanto maior for T maior sera a estabilidade termica do vidro. A curva para a taxa de crescimento pode ser obtida de maneira analoga. Entretanto, o vidro deve ser 1. J. 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