Desdobramentos: A mulher para além da mãe “Uma mulher que ama como mulher só pode se tornar mais profundamente mulher.” Nietzsche Daniela Goulart Pestana Afirmar verdadeiramente “eu sou homem” ou “eu sou mulher”, aparentemente parece fácil, porém, sabemos da complexidade do que está em jogo, a afirmação da identidade sexual pautada somente no referente anatômico não parece dar conta da questão. A pergunta de hoje é: O que quer a mulher que existe para além da mãe? Ou, qual a posição do sujeito, mulher, frente ao referente fálico? Interessa pensar na comunicação, o aparecimento do lugar da mulher, sobretudo a partir da frase de Simone de Beauvoir: “O destino não é a anatomia, pois o sexo das mulheres é uma questão política”1. O que quer dizer Beauvoir com: “o sexo das mulheres é uma questão política”? O trabalho procura pensar a inscrição do sujeito em uma posição sexuada, que implica necessariamente a função fálica, onde o sexual se inscreve no corpo a partir do significante fálico. Não é a Lei fálica que vai determinar a diferença entre os sexos e sim, a posição do sujeito frente a ela. Tentaremos pensar a posição do sujeito mulher, o que implica em produzir ativamente insígnias de pertença a essa posição. No caso da mulher, a lógica fálica implica a inexistência de um significante que diga da Mulher Nas fórmulas da sexuação no lado da mulher, o desejo implica a castração do homem, onde seu desejo se pauta na falta colocada do lado do Outro. É a castração introduzida pela linguagem, que permite ao homem direcionar seu desejo para uma mulher. O homem vendo-se dividido, 1 Beauvoir, S. “O Segundo Sexo v.2. A Experiência de vida.” 1 eleva a mulher à condição de objeto (a) causa do desejo. Nesse lugar de objeto, a mulher tem acesso ao que é da ordem do desejo. A posição feminina é bastante paradoxal, tendo em vista, que se inscrevendo na sexuação, a partir da significação fálica, essa posição não fala dela como um todo. Segundo Lacan: “Não é porque ela é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela não está lá não de todo. Ela está lá à toda. Mas há algo a mais.”2 A mulher está referida à lógica fálica. Sendo assim, ela se divide frente a castração do Outro. Percebendo-se castrada, a mulher se volta para aquele que tem o falo e pode lhe dar. Conclui que, ser mulher não se esgota em não ter o falo. Trata-se da ausência de uma inscrição significante para se situar. A posição feminina se caracteriza pela ausência de exceção à castração, apontando para a inexistência de uma regra que regule o modo feminino de se situar na partilha sexual. A castração coloca para a mulher a impossibilidade de regulação do seu gozo pela lógica fálica, se não existe Um para quem a castração não se inscreva, não há possibilidade de regulação do gozo por meio da exceção lógica. Para a mulher, então, o que está em jogo no amor é muito mais o enigma do desejo masculino do que propriamente um desejo essencialmente feminino. O interesse feminino é despertado a partir do direcionamento do desejo masculino para ela como objeto de desejo. Se a mulher faz semblante de encarnar a posição de objeto, é porque, desse modo, poderá tamponar a falta do falo. O que está em jogo na posição de semblante que a mulher adota, é que ao se colocar como falo, a mulher crê possível eliminar sua ausência. 2 Lacan, J. “O Seminário, livro 20, mais, ainda”, p. 100. 2 Frente a ausência do falo nela mesma e em seu parceiro, ela consente em se fazer o falo que falta. Nesse movimento de tamponar a falta, a mulher conjuga seu desejo e sua demanda de amor endereçando-se ao homem. “...o falo: é isso que, em cada um, quando ele é atingido, justamente o aliena do outro”. 3 O falo faz obstáculo à relação sexual, não levando em consideração o Outro, e sim a própria falta. Então, a única possibilidade de encontro no campo sexual é via semblante. No encontro com a falta presentificada pelo falo, só resta aos homens e as mulheres fazerem semblantes de “ter” ou “ser” o objeto que falta. Os parceiros fazem semblantes de ser, do lado feminino, e de ter , lado masculino, esse falo faltante. O modo feminino de se relacionar com o desejo do homem implica necessariamente, o consentimento em se fazer semblante de objeto do desejo. O homem ao apontar na mulher a mãe, está colocando em jogo o enigma da mulher que a mãe não pode suprir, assim, a mulher põe um limite na mãe. A mãe, ao querer o falo, se localiza nessa lógica, no lugar do sujeito desejante, ou seja, no lugar do sujeito masculino, que é quem busca do lado do outro o objeto de seu gozo. O lado da mulher, na mãe, faz um limite à mãe toda-fálica. É a ausência desse limite que deixa em aberto o caminho para que a mãe faça de seu filho o objeto que venha a tamponar sua falta sem vigorar o Nome-do-Pai. Lugar ocupado pela criança psicótica. A pergunta retorna: O que quer a mulher que existe para além da mãe? Somente a mulher é capaz de dividir, de barrar a mãe. A Mulher é um limite para a mãe e, nesse caso, espera-se que o filho não permaneça na posição de saturar 3 Lacan, J. “O Seminário, livro 10 A angústia”, p.292. 3 completamente o seu desejo. É a falta lógica da mãe, responsável por introduzir o pai. É a mulher que há na mãe que remete o filho ao pai. A père-version do pai assegura a divisão materna, só o desejo de um homem pode resgatar a mulher. Na divisão da mãe e da mulher encontram-se os personagens do Édipo, onde o desdobramento do personagem feminino é o responsável por introduzir o equilíbrio. A barra colocada entre a mulher e a mãe aponta o furo em torno do qual giram os significantes. Furo conseqüente da inexistência da Mulher, e nem da mãe-toda, espera-se que a cada uma falte algo. A mãe que porta a divisão sinaliza que a criança não pode ser tudo para a mãe, assim como, a mãe deve desejar outras coisas além do filho. O filho não dá conta de responder a todo desejo da mulher. A mulher por trás da mãe introduz para o infans o indizível, a falta, à medida que não está toda no campo do significante. Assim, a mulher aparece como limite à mãe. É preciso que uma mãe possa legitimar o desejo do pai, cabe a ela portanto, como mulher do homem, ocupar o lugar de objeto que causa o seu desejo. É isso, o que uma mulher pode fazer de melhor, é aí que encontramos a mulher para além da mãe. Fragmentos clínicos: P. é uma mulher de 45 anos, em análise há algum tempo. Separada, tem uma filha adolescente. Relata que o casamento não deu certo porque: “agora percebo que assumi o papel de homem”. Outra paciente, mais velha com filhos, separada relata: ”acho que meu casamento não deu certo, porque eu vesti as calças de homem, era eu quem fazia tudo”. Nos dois casos, parece que encarnar o falo coloca essas mulheres na condição de impossibilidade lógica de ocupar o lugar feminino nas fórmulas da sexuação. Se atrapalham ao fazer semblante de ser falo, encarnando o falo. 4 Quando uma mulher está do lado da falta-a-ter e faz semblante de quem tem, não se trata de uma mulher. Sua posição é a mesma de um homem que procura o complemento que venha saturar a fratura produzida pela castração. Falha que incide na transmissão da função fálica como semblante. Segundo Eduardo Vidal: “Praticamente é a falha do semblante que precipita o sujeito ao ato em algum momento do percurso analítico... é fundamental que essa função do semblante se estabeleça e se mantenha para poder transitar nesse buraco, no real que é a sexualidade.”4 Assim, fazer do amor um semblante, é o que propicia um tratamento possível do real. O amor é uma via que permite passar pelo semblante sem se identificar a ele, dando ao gozo um destino cultural e assim, sustentando a ligação possível com o real do sexo. O semblante é o único meio possível de encontro entre os sexos, pois é correlato à lógica do não-todo. Eduardo afirma: “O semblante é o que vela um nada. É o semblante que dá o estatuto estrito ao objeto a. Podemos dizer então que o objeto a é esse dejeto, esse nada que o semblante vela.”5 Retomando agora, a frase de Simone de Beauvoir “O destino não é a anatomia, pois o sexo das mulheres é uma questão política”. Coloco então: Podemos falar que uma mulher é política, na medida em que, tem mais facilidade em negociar, jogar, brincar com o amor. No jogo do amor, a mulher brinca com isso, é uma questão política, de “se fazer”. É no jogo de engodo onde não há dissimetria, equivalência, e completude, que a inventividade faz sua abertura. 4 5 Vidal, Eduardo. ”Seminário Semblante” ,1994. p. 6. Ibidem, p. 8. 5 Segundo Malvine Zalcberg em palestra, “aceitar o jogo da mascarada é fazer semblante. A mulher usa o semblante, ser o que não tem é a essência do significante”6. Concluímos com Lacan: “Quando se trata de uma mulher, não é a mesma coisa, porque a mulher tem uma enorme liberdade com o semblante. Consegue dar peso até a um homem que não tem nenhum.” 7 Referências Bibliográficas Beauvoir, Simone. O Segundo Sexo. V.2. A experiência de vida. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira. 1980 [1949]. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 10: A Angústia. Ed. Jorge Zahar, 2005. Rio de Janeiro. Lacan, Jacques. O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Ed. Jorge Zahar, 2009. Rio de Janeiro. Lacan, Jacques. O Seminário , livro 20: Mais, ainda. Ed. Jorge Zahar, 1985. Rio de Janeiro. Vidal, Eduardo. Seminário de 11/01/1994 - “Semblante”. Letra Freudiana. Zalcberg, Malvine. Amor paixão feminina. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 2007. Zalcberg, Malvine. Palestra Letra Freudiana “Entre mãe e filha: como vacilam os semblantes”, 29/09/2011. 6 7 Zalcberg, M. palestra Letra Freudiana – “Entre mãe e filha: como vacilam os semblantes”, 29/09/2011. Lacan, J. “Seminário, livro 18, De um discurso que não fosse semblante”, p. 34. 6