DA TENDENCIA HOMOSSEXUAL AO EMPUXO À MULHER Letícia Balbi Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFF, psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana Edson tinha certeza de que era mulher, uma mulher num corpo de homem. Ele tinha família mas isso não tinha nada a ver. A partir desse encontro pontual, como podemos pensar essa certeza de ser mulher que acompanha tantos psicóticos, que em alguns casos, dela se defendem persecutoriamente, e em outros, aceitam e até mesmo buscam uma transformação corporal? Também no caso Schreber encontramos essa certeza, que se encontra na origem de sua construção delirante. Freud aborda este fenômeno de forma muito cuidadosa, acompanhando o passo a passo da elaboração das “Memórias” de Schreber como um verdadeiro trabalho do delírio, como tentativa de restabelecimento. Contudo, Freud faz este acompanhamento baseando-se em sua concepção da psicose como uma defesa contra uma tendência homossexual. Como podemos entender essa tendência homossexual no caso da psicose? Freud indica na origem da construção delirante de Schreber uma idéia primária: “como seria belo ser uma mulher e sofrer o ato da cópula”. Todo trabalho monumental do delírio, que podemos ler em suas “Memórias”, serviria como tentativa de construir um remendo mediador para aceitar essa idéia, a princípio rechaçada. Este rechaço à irrupção da tendência homossexual é tão intenso que provoca uma catástrofe interior e também a reconstrução delirante. Lacan, em sua releitura, enfatiza que a defesa é tão intensa porque se exerce contra o narcisismo ameaçado – e de acordo com Freud, o temor narcísico é condicionado pela castração. Este seria o eixo de toda concepção freudiana sobre a neurose e também sobre a psicose: o sujeito se defende contra a castração, contra a perda do objeto fálico. Ora, nem todos os psicanalistas concordam com a interpretação de Freud. Ida Macalpine afirma que não se trata de castração, porque não houve o que ela chama de “maturidade genital” que justificaria o temor de castração. Lacan destaca a importância da 1 crítica que Macalpine faz à concepção da psicose como efeito de uma recusa da tendência homossexual mas ele faz uma ressalva: “A Sra. Ida Macalpine, embora inaugure aí uma crítica justa, acaba no entanto por desconhecer que, se Freud depositou tanta ênfase na questão homossexual, foi, primeiro, para demonstrar que ela condiciona a idéia de grandeza no delírio, porém, mais essencialmente, ele denunciou ali o modo de alteridade segundo o qual se efetua a metamorfose do sujeito, ou, em outras palavras, o lugar onde se sucedem suas transferências delirantes. Ela teria feito melhor em se fiar na razão pela qual Freud, também nesse caso, obstinou-se numa referência ao Édipo com a qual ela não concorda.”(LACAN, 1998, p.551). Ou seja, se a castração não opera, não podemos falar em escolha homossexual porque esta de fato se dá como uma das posições possíveis frente à função fálica e como uma das saídas possíveis do complexo de Édipo. No caso da psicose não há essa referência à castração, à função fálica, o que não quer dizer que devamos deixar de lado o recurso à lógica que está implícita na estrutura edípica. Na verdade, é por referência a esta estrutura que Lacan constrói os esquemas R, da realidade psíquica, e também o Esquema I, que designa o que pode sustentar a posição estabilizada de um sujeito psicótico. Macalpine recusa o recurso ao Édipo preferindo a explicação de que o delírio relaciona-se com uma fixação pré-edípica, com uma fantasia de procriação, a partir da relação da criança com a mãe: “trata-se de um desejo de se igualar à mãe na sua capacidade de fazer uma criança”( apud LACAN, 1985, p.352). A recriação do mundo no delírio de Schreber seria efeito de uma fantasia imaginária de parto. Lacan vai além da interpretação de Macalpine mostrando que é insuficiente sustentar todo processo psicótico numa fantasia imaginária e restaurando a necessidade do recurso à estrutura simbólica e ao Édipo. Inicialmente, no entanto, ele concorda com Macalpine: não se trata de castração. Mas, discorda radicalmente de sua interpretação imaginária.que permanece numa dialética dual, da relação mãe-bebê, sem levar em conta o simbólico e mesmo a referência à estrutura edípica. Lacan não se contentar com a explicação imaginária da irrupção do pré-edípico. Em primeiro lugar, porque no texto de Schreber está em jogo o reconhecimento da captação do sujeito no mundo da palavra. Ele dá o testemunho da exigência da palavra que o chama e o incita a responder. Em suma, a função simbólica é anterior e determinante em relação às capturas imaginárias a que o sujeito pode se colar. Em segundo lugar, por conta da prevalência da função do pai no 2 delírio de Schreber – que se desdobra e multiplica no início, reunificando-se depois na figura de Deus. Assim, a fantasia de procriação de uma nova raça não se refere a uma função materna mas à função simbólica do pai. Função do pai enquanto terceiro, enquanto Nome do pai que é o significante que nomeia e barra o desejo caprichoso da mãe. O delírio de ser a mulher de Deus que procriaria uma nova raça de espírito schreberiano é construído para suprir a função simbólica do pai. Essa função diz respeito ao que Lacan definiu como Nome do Pai que intervém, na verdade, mais como um quarto termo do que como um terceiro na relação entre mãe e criança. Isso porque as chamadas relações pré-edípicas, entre a criança e a mãe, sustentamse num tripé imaginário, isto é, circulam em torno da imagem fálica. A criança representa o falo para a mãe e, correlativamente, é a mãe que tem o falo, de acordo com a perspectiva da criança. Segundo Lacan, “este par deveria muito bem se conciliar em espelho em torno dessa ilusão de falicização recíproca. Tudo deveria passar ao nível de uma função mediadora do falo. Ora, o par se acha, ao contrário, numa situação de conflito, e mesmo de alienação interna, cada um por seu lado”(LACAN, 1985,p.358). Esta situação dual em que a criança fica no lugar de falo imaginário da mãe, logo revela-se como uma ilusão de complementaridade, pois o falo não está ali: é o pai que supostamente é seu portador. “O pai não tem função alguma no trio exceto a de representar o portador, o detentor do falo – um ponto é tudo”(ibid, p.358). É um ponto de basta no deslizamento do desejo da mãe e, ao mesmo tempo, faz função de metáfora como nome do pai. A procriação ilustra a função simbólica do pai como aquele que é nomeado pela mãe, pela palavra da mãe. Este é o registro simbólico do pai. Enquanto portador do falo, o pai intervém na relação imaginária entre mãe e criança, privando a mãe do objeto de desejo. Mas o que é paradoxal nesta operação é que a mãe não tem o falo. O pai priva a mãe de algo que ela não tem e com isto faz existir este algo, o falo, como símbolo. E é esta a característica principal de um significante; ser o símbolo de uma falta. Em suma, Lacan enfatiza que a função do falo foi desvelada por Freud como “pivô do processo simbólico que arremata em ambos os sexos, o questionamento do sexo pelo complexo de castração”(LACAN, 1998, p.561). O resultado desta operação metafórica, de substituição do desejo da mãe pelo nome do pai, é a 3 significação fálica. E é frente a esta significação que o sujeito vai realizar sua identificação sexuada. É nesse nível significante que opera a forclusão, provocando um furo no lugar do nome do pai e também uma elisão da significação fálica. Sem a referência simbólica que permitiria ao sujeito posicionar-se como homem ou como mulher, resta ao psicótico buscar outras saídas, outras soluções. No caso Schreber acompanhamos todo trabalho do delírio no sentido de aceitar sua transformação em mulher. Isso faz Lacan afirmar que “na impossibilidade de ser o falo que falta à mãe, resta-lhe a solução de ser a mulher que falta aos homens”, ou seja, neste nível da falta da referência fálica o “ser e o ter” não mais se diferenciam: “é por ter que ser o falo que o paciente estará fadado a se tornar uma mulher”(ibid, p.571). O campo do imaginário vai poder ser restaurado justamente através da aceitação do sujeito de tornar-se mulher. Isso se mostra quando Schreber se entrega ao gozo narcísico frente a sua imagem no espelho, “revestido com as bugingangas da ornamentação feminina”(ibid, 575). Com essa atividade de contemplação da imagem da mulher ele pode satisfazer a volúpia divina e sendo a mulher de Deus, procriar uma nova raça de espírito schreberiano. No delírio, procriar uma nova raça é o que permite que a função do pai seja compensada. Da mesma forma, ser a mulher de Deus, é o que supre a elisão do falo. Na clínica encontramos essa impossibilidade do psicótico de simbolizar a diferença sexual pela norma fálica. Ele se esbarra, a cada encontro, com a necessidade de indutivamente ir diferenciando cada tipo por traços imaginários - mulher tem cabelo comprido, homem tem cabelo curto; mulher usa brinco, homem usa barba: mulher cruza a perna fechada, homem cruza aberta - sem jamais chegar ao símbolo que indexaria a diferença pois não há inscrição simbólica do significante fálico. Nessa infinitização indutiva o sujeito é impulsionado a ser “A mulher” - como Schreber - revelando um empuxo à mulher que parece ser inerente à estrutura psicótica. Quando formula a lógica da sexuação Lacan escreve esse efeito de empuxo à mulher no qual o sujeito psicótico é lançado a partir do momento do desencadeamento da psicose. Se a função fálica é o que constitui um limite a partir do qual se delimita o conjunto dos homens e se para que esta função vigore é necessário a existência de Um pai, como figura da exceção fundadora, então, se não existe nada que faça essa função fálica vigorar, não é possível fundar nenhum 4 conjunto que delimite o gozo, deixando-o infinitizado. Isso significa que “nada existente constitui um limite da função, que não pode certificar-se de coisa alguma que seja de um universo”(LACAN, 2003, p.466). Na direção da cura, tratar o empuxo à mulher faz parte do trabalho que o psicótico poderá realizar, construindo algumas amarras onde referenciar a questão do sexo. Mas isso não quer dizer que o trabalho seja o de reconhecer uma suposta homossexualidade, pois esta só pode ser reconhecida a partir da norma fálica, e essa confrontação pode ser devastadora para o psicótico, como atestam as vozes ouvidas pelo paciente:”Viado! Viado!” E a pergunta desesperada: “Você acha que eu sou viado?” Voltemos a Schreber. Também em relação ao gozo opera-se um trabalho que redistribui sua economia. O paranóico, que é descrito por Lacan como aquele que identifica o gozo no lugar do Outro, pode retirar para si uma parcela de gozo. Schreber enuncia claramente: “Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições de existência das almas, de acordo com a Ordem do mundo; é meu dever proporcionar-lhe este gozo, na forma de um abundante desenvolvimento de volúpia de alma, na medida em que isto esteja no domínio da possibilidade, dada a situação contrária à Ordem do Mundo, que foi criada; se ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a título de um pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto...”(SCHREBER, 1984, p.264) Assim, encontramos na solução delirante construída por Schreber um enodamento que tenta amarrar os três registros da experiência do sujeito: Ser a mulher de deus – supre a significação fálica, no imaginário; procriar uma nova raça – supre a função do pai no simbólico; e se permitir uma parcela de gozo – reequilibra a economia o gozo. Tal enodamento indica-nos uma direção clínica que pode ser trabalhada através do delírio ou de qualquer outro “achado”, desde que produzido pelo sujeito. Contudo, sabemos que esse enodamento funciona como um “remendo” que estabiliza a posição do sujeito, mas não é garantia de cura definitiva. 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FREUD, S. “Sobre um caso de paranóia descrito autobiográficamente”(1911) in Obras Completas v.XII. Buenos Aires. Amorrortu Ed. 1976 LACAN, J. O seminário: livro 3[as psicoses, 1955-1956]. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed. 1985. ________ “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose” in Escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar E.,1998. ________ “Apresentação das Memórias de um doente de nervos” in Outros escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2003. ________ “O aturdito” in Outros escritos. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 2003. SCHREBER, D.P. Memórias de um doente dos nervos. Rio de Janeiro. Ed. Graal. 1984 6