Elenna Num dos muitos ancoradouros da cidade de Novgorod, um qualquer barco – tão imundo como os outros – largava um batalhão de marinheiros, com saudades de terra firme. Saídos do galeão, tal como todos os outros nas cidades portuárias da Liga Hanseática, dirigiam-se num frenesim descontrolado para as muitas tabernas e bordéis, desejando comprar uma noite no conforto de uma mulher ou de uma caneca. À beira destes estabelecimentos, diversas mulheres berravam histericamente, tentando convencer um público inexistente da vantagem em adquirir as suas trutas e robalos. Outras, mais controladas na voz, vendiam alhos e cebolas, nabos e cenouras, batatas e feijão, enfim, todos os produtos hortícolas com que Deus os abençoara naquele ano. O terceiro tipo de vendedores deixava que os seus produtos falassem por si. Os espelhos com entalhes em marfim, as escovas decoradas a ouro e todos estes produtos “emprestados” repousavam em cima de toalhas rudes e grosseiras. Quando chegava algum cliente mais afortunado, mas não tanto que se pudesse dar ao luxo de ser honesto, o vendedor acenava a outro colega gatuno, que se ausentava por uns minutos, indo prontamente alcançar o baú dos rubis e das safiras… Uma outra figura saiu do galeão. Aos olhos desatentos passava despercebida, mas o tinir dos choques do aço polido, abafado pelo barulho da cidade, e o cheiro a pólvora que dela emanava revelavam um passado muito mais interessante, um passado de lutas e violência. Coberta por manto negro, enveredou por uma das estreitas ruas da cidade, circulando no seu complexo esquema de ruas e ruelas, demorando mais de uma hora a aproximar-se do destino, em parte por as ruas se encontrarem cheias, em parte por causa das manobras de evasão que usara para se certificar de que não era seguida. Entrou numa pequena taberna de família, de aspeto pobre mas acolhedor. A porta revelou a sua chegada através do ranger que acusava má manutenção. Ao seu encontro foi um rapaz de tenra idade, de olhos azuis esbugalhados, cabelo emaranhado e face pálida. – Posso servi-la, menina? Quer dizer, senhora. Posso servi-la, menina? Raios! O meu pai diz que falo demais, mas eu não acho que falo demais, mas se calhar falo demais, o que é um problema, porque ele diz que, quando for velho, sou eu que tenho de tomar conta deste sítio… e faço já sete anos no próximo dia do meu nome. A recém-chegada retirou o capuz. O cabelo longo e fino que lhe correu pelas costas era de um branco puro e etéreo, onde até a mais pobre das almas veria o reflexo da sua felicidade. A face, longa e bela, era uma tela onde os mais belos olhos haviam sido pintados, olhos negros como a noite, mas onde qualquer resquício de impureza seria sublimado aos mais altos níveis da pureza. – Podes trazer-me o teu pai, por favor? – Disse ela, numa voz suave. Era, no entanto, uma voz que não comportava qualquer doçura, compaixão ou simpatia, uma voz marcada por uma certa tristeza, uma certa amargura. Era uma voz que já tinha sido manchada e corrompida pelas trevas, uma voz de alguém que conhecera a vida no seu pior estado, uma voz que conhecera o desespero. Qualquer vestígio de inocência feminina que possuíra fora erradicado de si, arrancado da pequena rapariga que dentro de si, inocentemente, pedia para ser libertada. Não era possível, costumava pensar para si… não neste mundo. O homem, do qual requisitara a presença, chegara. Olhou para ela com um olhar amedrontado, um olhar cobarde. Quanto a esta mulher, era obrigado a engolir o orgulho. – Da última vez que nos vimos, Elenna, pedi-te para te afastares da minha família. Agora tenho um filho, não posso continuar na vida que levava… apenas… não posso. – A voz quebrava-se a cada palavra, e cada som que emitia contribuía para a sensação esquisita que tinha na garganta. Elenna retirou um papel da algibeira. Estava dobrado nos cantos e vincado de tantas vezes que fora examinado. Largou-o em cima da mesa, de uma forma teatral e demorada: – Onde é que ele está? – É a última vez, pelos velhos tempos. Minutos depois, estava de novo em movimento, desta vez com uma pressa redobrada. Chegou ao velho armazém de mercadoria por altura do entardecer, enquanto os comerciantes arrumavam as bancas e a plebe se recolhia para as suas casas. Entrou por uma brecha no telhado, perto de um ninho de pombos. Estes olharam-na com o que lhe pareceu quase desdém, voltando depois as cabeças e esquecendo-se de que ela sequer existia. Já dentro do edifício, prosseguiu para uma abertura entre dois caixotes, de onde observou a cena que se desenrolava à sua frente. Vários homens preparavam o que parecia ser uma demonstração de produtos. Posicionavam mesas de maneira ordenada e sincronizada. Por cima destas era colocada uma grande quantidade de mosquetes, sacos de pólvora e balas. Elenna tentava registar tanta informação quanta podia, e passaram horas até que algo de diferente aconteceu. Um homem, largo mas robusto, entrou pela porta principal. Um homem que estava acima de todos. A voz era conotada de arrogância, e todos os seus comandos eram seguidos de uma qualquer expressão depreciativa. Elenna saltou da sua posição, fazendo um barulho propositado ao aterrar, de forma a despertar a atenção do homem. Uma fileira de armas foi-lhe apontada, mas ela não estremeceu. Não disse uma única palavra, enquanto ordens eram dadas à sua volta, e apenas desviou o olhar para encontrar o do seu alvo. – Então é isto!? – Disse num tom de gozo. – Querem livrar-se de mim e enviam uma mulher? Pensam que serei derrubado por uma rameira qualquer? Elenna olhou bem para o homem que iria matar. Tentou imaginar cenários em que poderia ter pena dele. Perguntou-se se os seus empregadores teriam sequer necessitado de um debate moral, quando decidiram matá-lo. Calculava que não. – Asseguro-te que sou mais do que uma simples meretriz. – Disse, numa voz desprovida de emoção. E numa fração de segundo, com um gesto que realizara tantas vezes durante a vida, um gesto fluido e natural, naquilo que poderia ter sido o bater de asas de um anjo, desembainhou a espada. Escola Básica de Mafra Concurso literário "Palavras aos Contos" Ano letivo de 2014/15 1º lugar Conto escrito por um aluno do 8º D