A MOLDURA. UM ENSAIO ESTÉTICO (1902)
["Der Bildrahmen.
Ein asthetischer Versuch"]
Georg Simmel
O caráter das coisas depende, em última instância, se são totalidades (Ganze)
ou partes (Teile). Se uma existência é autosuficiente, fechada em si mesma, somente
dirigida pela lei da sua própria essência, ou se encontra como elemento numa conexão
de um todo, do qual recebe, exclusivamente, a sua força e o seu sentido, isto distingue
a alma de todo material, o homem livre do mero ser social, a personalidade ética
(sittliche Persönlichkeit) da pessoa atada na dependência com tudo que há por meio
do instinto sensual.
Distingue, também, a obra de arte de um pedaço da natureza, pois, como ser
natural, cada coisa é meramente um ponto de passagem para correntes incessantes
de energia e de substância; é compreensível só na base daquilo que precede, tem
significado só como elemento do processo natural por inteiro. A essência da obra de
arte, porém, é um todo (Ganzes) por si mesmo, não precisa de uma relação com o
exterior, sempre reconduzindo suas correntes energéticas ao seu centro.1 Na medida
em que a obra de arte é assim como, além dela, somente o mundo como um todo e a
alma o são - uma unidade de elementos singulares (Einzelheiten) -, ela se isola, sendo
um mundo por si mesmo, contra todo o externo. Conseqüentemente, os seus limites
(Grenzen) significam algo totalmente diferente daquilo que chamamos "limites" numa
coisa natural: estas são um lugar de intercâmbio circular2 incessante com todo o
externo; naquela, porém, um tal fim absoluto que mostra num ato só a indiferença e a
defesa contra o exterior e a integração unificadora por dentro.
A função da moldura consiste na simbolização e no reforçamento da dupla
função do limite da obra de arte. A moldura exclui da obra de arte todo o meio
ambiente e, também, o expectador, e ajuda, assim, a colocar a obra de arte numa
1
Simmel usou a metáfora de fios (Fêiden) tecidos de volta ao ponto de origem, de maneira que se
forma um movimento circular, ou seja, um círculo. A tradução exprime este sentido da metáfora.
1
distância necessária, para possibilitar o seu consumo estético. A distância de um ser
(Wesen) em relação a nós significa, no Impo da alma, a unidade deste ser por si
mesmo. Na medida em que um ser é fechado em si mesmo, ele possui um espaço
(Bezirk) inacessível por todos: o serpor-si-mesmo (das Für-sich-Sein) com o qual se
reserva contra todos os outros.
"Distância" e "unidade", "antítese contra nós" e "sínteses em si mesmo" são
conceitos complementares (Wechselbegriffe).3 As primeiras características da obra de
arte - a unidade interna e a sua existência numa esfera distinta de toda vida imediata são uma única peculiaridade, mas vista de dois lados diferentes.4 Porque a obra de
arte tem esta autonomia, pode nos dar tanto. O seu ser-por-si-mesmo é o recuar de
arremesso (Anlaufrückschritt)5 com o qual penetra ainda mais fundo e mais intenso em
nós. O sentimento do presente não-merecido, com o qual ela nos faz felizes, vem do
orgulho daquele caráter fechado e auto-suficiente por si mesmo, o qual se toma,
contudo, propriedade nossa.
As qualidades da moldura revelam-se como meios auxiliares e simbólicos
(Versinnlichungen) de uma tal unidade interna da pintura. Isto já começa com
elementos aparentemente ocasionais como, por exemplo, as juntas (Fugen) entre os
seus lados. Seguindo-Ihes, o olhar vai ao interior da pintura; na medida em que o olhar
prolonga as juntas em direção a um ponto central ideal, destaca-se de todos os lados
a atração centralizadora da pintura. Reforçam, obviamente, este efeito centrípeto das
juntas da moldura, por elevar as suas margens extremas em relação às margens do
interior, de maneira que os quatro lados formam planos inclinados convergentes. Por
2
No texto alemão, encontram-se os termos técnicos "exosmose" e "endosmose". A tradução refere-se
ao sentido do uso daqueles termos.
3
O conceito alemão Wechselbegriff não tem tradução direta para o português. O verbo wechseln
significa "mudar", ou seja, "alterar". A partir da década de 1870, tomou-se popular o uso dos conceitos
Wechselbeziehung ("relação recíproca") e Wechselwirkung ("influência recíproca") para expressar
reciprocidade entre dois pontos de vista, mudando de um para o outro. Encontramos um uso extensivo
desta palavra em Wilhelm Wundt, o fundador da psicologia moderna. Simmel, um huomo universale,
tinha uma formação e uma inclinação fortes à psicologia e conhecia as obras de Wundt. A
conceitualização de um Wechsel (mudança, alteração, troca) permitiu a Simmel um movimento dialético
da sua argumentação, peculiaridade típica de suas obras. Daí vem, neste contexto, a palavra
Wechselbegriffe. (N. do T.)
4
Mostra-se aqui um outro impacto da psicologia wundtiana, o "paralelismo" de dois lados,
principalmente do lado psíquico e do lado físico. Psique e física, a alma e a matéria, são um
acontecimento real só, o qual tem duas aparências diferentes, disse Wundt. A realidade única na base
dos dois aspectos só pode ser descrita por meio de trocas de perspectivas com conceitos
reciprocamente relacionados (Wechselbegriffe). (N. do T.)
2
isso, um outro desenho, atualmente na moda, parece-me totalmente errado: a
elevação dos lados interiores da moldura, que faz com que a moldura desça ao
exterior. O olhar, como o movimento corporal, vai com maior facilidade de cima para
baixo do que de baixo para cima. Assim acontece, necessariamente, que o olhar
desliza, afastando-se da pintura, para fora, e a conexão unificadora da pintura corre o
perigo de uma dispersão centrífuga.
Serve menos à função sintetizadora do que à função limitadora que as margens
de moldura sejam cercadas de duas ripas. Com isso, todo o ornamento ou o relevo da
moldura corre com se fosse um rio entre duas orlas fluviais. Justamente isso favorece
uma situação isolada,6 que a obra de arte precisa em relação com o mundo exterior.
Por isso, é de extrema importância que a estrutura da moldura possibilite um fluxo
contínuo do olhar, como se voltasse sempre a si mesmo. A moldura na sua estrutura
não deve abrir uma brecha ou uma ponte, como acontece, por exemplo, por meio do
prolongamento do conteúdo da pintura para dentro da moldura. Esse é, felizmente, um
erro incomum que nega a autonomia da obra de arte e descarta, simultaneamente, o
sentido da moldura. A corrente fechada circular da moldura não exige, de maneira alguma, que o ornamento deva se estender numa direção paralela à da cercadura. Pelo
contrário. Para acentuar a corrente da moldura que transforma a pintura numa ilha, os
traços do ornamento têm de desviar-se, fortemente, da direção paralela, até noventa
graus. Todos os traços transversais às margens da moldura embaraçam a corrente
nele, cuja força e movimento, vistos por nós com empatia estética, aumentam e
salientam-se por meio da superação de tais embaraçamentos. Toda formação do
ornamento da moldura tem o seu padrão regulativo na impressão de flutuar e de se
fechar em si mesmo, acentuando o distanciamento da pintura de todos os arredores,
de maneira que cada linha separadora se justifica tanto mais, quanto mais ajuda a
intensificar ao máximo aquela impressão. O mesmo motivo toma compreensível a
prática provada há muito tempo, de que dão à pintura menor a moldura maior, ou pelo
menos uma moldura maior, ou pelo menos uma moldura que parece mais enérgica. A
pintura menor corre mais perigo de desfazer-se nos arredores simultaneamente vistos
5
A expressão Anlaufrückschritt vem, metaforicamente, do atletismo, e, filosoficamente, do francês
recuer par mieu sauter (dar um passo para trás para fazer um salto maior), fórmula inventada por Blaise
Pascal. (N. do T.)
6
No original alemão, usa-se o adjetivo inselhaft, que se refere a "ilhas" (lnseln). Os italianos chamam
uma ilha isola. Da raiz latina correspondente vem o adjetivo "isolado", do qual se esqueceu,
freqüentemente, a referência original à ilha. (N. do T.)
3
e de não se mostrar de forma suficientemente autônoma. Por isso, precisa de medidas
de separação mais fortes do que a pintura muito grande, que preenche por si mesma
grande parte do campo visual, porque não precisa temer, dos seus arredores, uma
concorrência pelo significado autônomo da sua impressão; basta uma moldura
minimamente separadora.
A finalidade última da moldura prova a deficiência7 de molduras de pano que
encontramos de vez em quando; um pedaço de pano desenhado é percebido como se
fizesse parte de um pano desenhado muito maior. Não existe nenhum motivo interno
para que o desenho do pano seja cortado justamente onde é cortado. O desenho em
si mesmo indica uma prolongação infinita - por isso a moldura de pano carece de uma
limitação, justificada pela sua forma, e não se mostra apta a limitar uma outra coisa.
Em panos não-desenhados, os quais mostram menos aquela carência do caráter
fechado e a aptidão limitadora, bastam a moleza das margens e a da impressão toda
do pano em geral para provocar a mesma falha. O pano carece de uma estrutura
orgânica própria, que dá à madeira uma auto-limitação efetiva e nem por isso modesta,
limitação da qual sentimos falta. penosamente, diante de uma moldura imitada,
enquanto a moldura dourada entalhada mostra-a, apesar da cobertura, pois esta não
disfarça as irregularidades pequenas do trabalho manual, graças ao qual sua
vivacidade orgânica supera toda a exatidão da máquina.
O princípio corretamente entendido explica por que não mais encontramos, em
ambientes de um bom-gosto mínimo, fotografias de natureza cercadas de molduras. A
moldura só é conveniente para formas de unidade fechada, que um pedaço da
natureza nunca tem. Cada setor da natureza imediata é ligado, por meio de milhares
de relações espaciais, históricas, conceituais, psíquicas, com tudo aquilo que o cerca
em proximidade mais imediata ou mais remota, psíquica ou física. Só a forma artística
corta as correntes de energia, reconduzindo-as ao centro.8
A moldura é contraditória e violenta num pedaço de natureza que sentimos,
instintivamente, como mero elemento em conexão com a totalidade maior, de modo
que cabe à obra de arte, por meio de seu princípio interno de existência, sustentá-la e
7
A palavra alemã Unzulassigkeit, que quer dizer "o caráter ilícito", é traduzida por "deficiência", em
correspondência à palavra alemã Unzulänglichkeit, que cabe muito melhor neste contexto. O som
semelhante de ambas as palavras alemães pode ter levado a uma substituição mútua devido a uma
associação aleatória.
8
Cf. nota 1.
4
estimulá-la.
Outro mal-entendimento importante que a moldura sofre resulta de pecados no
desenho moderno de móveis. O princípio de que o móvel seja obra de arte acabou
com muita falta de bom gosto e com uma mediocridade banal; mas o seu direito não é
tão positivo e infinito como parece, conforme o preconceito que o favorece. A obra de
arte é algo por si mesma, o móvel algo para nós. Aquela, como simbolização de uma
unidade psíquica, pode ser tão individualista como quiser: pendurando no nosso
quarto, não perturba os círculos nossos, pois tem uma moldura, Isto significa: é quase
uma ilha no mundo que espera até que cheguemos a ela ou pode ser ignorada e
deixada de lado. O móvel, porém, é continuamente tocado por nós, mexe com a nossa
vida, e por isso não tem o direito de existir por si mesmo. Alguns móveis modernos
parecem degradados quando sentamos neles, pois são expressões de arte individual;
grita, formalmente, para ter uma moldura, e, ficando sem moldura no nosso quarto,
reprime o homem que este sim deve ser o ator principal com a sua individualidade, enquanto aqueles devem ficar como coisa subordinada. É um exagero do sentido
moderno da individualidade, quando ouvimos pregar por toda parte a individualidade
do móvel. É o mesmo desconhecimento da hierarquia de valores como a pretensão de
dar à moldura um valor estético autônomo: por meio de ornamentos figurativos, de
atração própria de cores, de formação ou símbolos que a tomam expressão de uma
idéia artística autônoma. Tudo isso desloca a posição subordinada da moldura em
relação à pintura. Como a moldura da alma só pode ser um corpo e não, de novo,
outra alma, assim a obra de arte, sendo algo por si mesmo, não pode funcionar como
moldura que acentua e sustenta o ser-por-simesmo de uma outra: a resignação
necessária para exercer uma tal função exclui a possibilidade de ser arte.
A moldura, igual ao móvel, não deve ter nenhuma individualidade, mas sim
estilo. Estilo é descarga da personalidade, substituição de um extremo individual por
uma generalidade mais extensa; enquanto uma peça de artesanato coloca no primeiro
plano a pergunta sobre o estilo no qual é feita, na obra de arte raramente perguntamos
isso, e nas obras mais altas de arte o problema do estilo toma-se muito indiferente: o
individual supera simplesmente o geral, que chamamos de "estilo", e que a coisa
singular partilha com inúmeras outras; neste caráter supra-individual, consiste o ameno
e o tranqüilizante, irradiados de todas as coisas estritamente estilizadas. O estilo é,
nas obras do homem, uma forma intermediária entre a singularidade da alma individual
5
e a generalidade absoluta da natureza. Por isso, o homem cerca-se de objetos
estilizados, no seu ambiente cultural que o separa do mundo meramente natural; e por
isso o estilo é o princípio de vida que convém à moldura da obra de arte, cuja relação
com os arredores corresponde à da alma com o mundo, o que a individuação não é.
Se a posição estética da moldura é definida não tanto por uma certa indiferença
do que por aquelas energias de suas formas, cujo fluxo contínuo a caracteriza como
mero guardador da fronteira da pintura, então contradizem este sentido justamente as
molduras muito velhas. Nelas, os lados foram formados, freqüentemente, como
pilastras ou como colunas que sustentam cornijas (Gesimse) e empenas (Giebel): com
isso, cada parte e o todo são muito mais diferenciados e significativos do que uma
moldura moderna, cujos lados podem substituir-se mutuamente sem problema algum.
Aquela construção pesada,9 aquela dependência recíproca na divisão de trabalho,
maximizou a delimitação interna da moldura; mas ela ganha, com isso, uma vida
orgânica e uma peso que entram em concorrência prejudicial com a sua função de ser
somente uma moldura. Isto pode ser justificado quando a unidade artística interna da
pintura, que a fecha por dentro e a delimita do mundo, ainda não é experimentada com
o devido peso. Quando a pintura contribuía para finalidades do serviço de Deus,
quando era integrada numa experiência religiosa, quando ela se dirigia por meio de
mensagens (Spruchbänder) ou de outras interpretações diretamente à inteligência do
expectador, então esferas não-artísticas apoderaram-se dela e ameaçaram romper
com a sua unidade artística formal. Contra isso se dirige a dinâmica da moldura
arquitetônica, cujos elementos, apontando um para o outro, formam uma conexão forte
inquebrável, e com isso um encerramento. Tanto mais a obra de arte rejeita tais
relações exteriores a ela, quanto mais pode dispensar as forças da moldura, cuja
vivacidade orgânica contradiz, de novo, a sua função servidora.
A moldura moderna representa um progresso em comparação com a moldura
arquitetônica com o seu caráter muito mais mecânico e esquemático, e com isso a
moldura faz parte de um princípio amplo do desenvolvimento cultural. Este
desenvolvimento nem sempre conduz, de algum modo, o elemento singular de uma
forma mecânica-externa a uma forma organicamente animada, significativa por si
mesma. Pelo contrário: quando o espírito transforma, sempre mais extensamente, a
matéria da existência em formas cada dez mais altas, acontece que inúmeras formas
6
que tinham até então uma existência fechada, representadora de uma idéia própria,
são degradadas a elementos particulares, só mecanicamente ativas de conexões
maiores; agora estas conexões tornaram-se portadoras da idéia, e aqueles se
tornaram meios puros, cuja existência autônoma não tem sentido algum. Assim,
relaciona-se o cavalheiro medieval com o soldado do exército moderno, o artesão
independente com o trabalhador na fábrica, a comunidade fechada com a cidade no
estado moderno, a produção caseira com o trabalho dentro da organização de
economia monetária e do mercado mundial. Das entidades postas lado a lado,
autônomas, auto-suficientes, nasce uma formação abrangente, para a qual elas
perdem, por assim dizer; a sua alma, a sua existência por si, para ganhar de volta,
depois, um sentido da sua existência apenas como membros de um todo.
Assim mostra a forma mecânica-homogêna, insignificante por si mesma, em
comparação com as formas arquitetônicas ou "orgânicas" em geral, que só agora a
relação entre a pintura e o seu ambiente é compreendida como todo e adequadamente
exprimida. O espírito (Geistigkeit) aparentemente elevado da moldura significante por
si mesma só prova um espírito menor na compreensão do todo ao qual pertence. A
obra de arte encontra-se diante da tarefa propriamente contraditória de dever formar,
junto com o seu ambiente, um todo integral, enquanto já é um todo em si mesmo;
repete-se nisso a dificuldade geral da vida, que os elementos de totalidades
reivindicam ser totalidades autônomas por si mesmas. É óbvio que a moldura precisa
de uma sutil ponderação de avançar e recuar, de energias e de retardações, quando
deve resolver na visão (Anschauung) a tarefa de intermediar entre obra de arte e o seu
ambiente, ligando e separando - tarefa com uma analogia na história, para cuja
solução trituram-se, mutuamente, indivíduo e sociedade.
Extraído de: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel e a modernidade. Brasília: UnB. 1998.
p. 121-128.
9
Construção com pilastras, etc. (N. do T.)
7
Download

A Moldura - um ensaio estético _Georg Simmel_