GÊNEROS ORAIS DA INFÂNCIA E AS POSSIBILIDADES DE INGRESSO
NA LÍNGUA ESCRITA
SHEILA OLIVEIRA LIMA (UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ).
Resumo
Os repertórios da oralidade lúdico–poética, aquele vasto arquivo de textos que a
criança põe em funcionamento para brincar, antes, na rua e, atualmente, na escola,
são de vital importância para uma entrada bem sucedida na cultura escrita. Vários
exemplares dessa tipologia textual dialogam com os diversos gêneros da cultura
escrita e funcionam como matrizes que favorecerão, posteriormente, o momento da
aprendizagem da leitura/escrita. Nossas pesquisas, apoiadas em teorias que
buscam um diálogo entre as áreas da psicanálise, da linguística e da educação,
observam vários casos em que o trabalho focado a partir de uma expansão dos
conceitos de língua e de escrita pode resultar em situações de aprendizagem mais
significativas. O uso dos diversos gêneros da oralidade lúdico–poética, entretanto,
não é novidade, principalmente na educação infantil. O que nos parece
fundamental, porém, é a concepção de que tais jogos linguageiros operam a partir
de estruturas do inconsciente, o que faz com que boa parte das crianças faça uso
de tais jogos quase que naturalmente, aplicando na oralidade um saber linguístico
fundamental para sua entrada na escrita. Esse saber, que implica uma produção
escrita imaterial, sem registro gráfico, pode ser compreendido como uma primeira
situação de lida com os elementos fundamentais para a efetiva entrada na
escrita/leitura. Nossa proposta, portanto, procura sugerir a criação de currículos e
de situações de ensino/aprendizagem que compreendam tais jogos linguageiros de
forma orgânica, isto é, articulando momentos de uso da oralidade e do contato
sistemático com materiais de leitura (sobretudo literária), efetivando, assim, um
convívio mais complexo com as diversas possibilidades de expressão da língua
materna.
Palavras-chave:
Oralidade, Inconsciente, Leitura.
A língua oral, modalidade de ingresso das crianças em seu idioma materno, tem
gerado diversos estudos no campo da linguística, sobretudo quando se trata de
legitimar a língua falada como parte fundamental do complexo a que chamamos
língua. É comum, nesse sentido, que, ao se abordar a oralidade, haja certa
insistência em tratá-la a partir dos gêneros da prosa cotidiana, os gêneros
conversacionais, marcados pela espontaneidade, pelo improviso e por uma
estruturação, em boa parte, assentada sobre o eixo associativo da linguagem,
aspecto comum à fala do dia-a-dia. Assim, ao se abordar a oralidade na escola, é
comum verificar um tratamento monogenérico, em que pouco se aproveita a
diversidade de gêneros própria da tradição oral, na medida em que há grande
preponderância do trabalho com a argumentação e o relato improvisados.
Nossa proposta, sobretudo quando se trata do ensino da língua materna na
educação infantil, aponta para um tratamento mais amplo e complexo da oralidade,
reconhecendo nela os diversos pontos de contato com a língua escrita, e, assim, as
possibilidades que o trabalho com tal modalidade apresenta na inserção da criança
no mundo da escrita e da leitura.
Desta forma, faz-se necessário definir mais detidamente o campo da oralidade,
observando-se que em seu repertório é possível encontrar exemplares de textos
que guardam semelhanças estruturais e temáticas muito próximas ao que vem
sendo produzido pela cultura escrita, sobretudo no campo da poesia. Sobre essa
proximidade, alguns autores fazem apontamentos bastante relevantes. Carlo
Ginzburg, historiador da cultura, em seu artigo "Estranhamento - pré-história de
um procedimento literário" , ao tratar das máximas produzidas por Marco Aurélio,
afirma que este se inspirou "num gênero popular como as adivinhas" (...) bem
como na ideia de que "entre cultura douta e cultura popular costuma existir uma
relação circular". Quer dizer, ao que parece, a tradição oral, de algum modo,
alimenta a cultura escrita, a qual, por sua vez nutre a oralidade.
Sobre essa relação de fecundação mútua entre a produção literária oral e a escrita,
Antônio Cândido (1995), em seu artigo "O direito à literatura", cita as posições de
Mário de Andrade e Roger Bastide, em que afirmam que "a esfera erudita e a
popular trocam influências de maneira incessante, fazendo da criação literária e
artística um fenômeno de vasta intercomunicação".
Também Walter Ong (1998), ao abordar as possibilidades de expressão da língua
oral na contemporaneidade, afirma a coexistência de duas modalidades de uso,
primária e secundária, sendo esta amplamente formulada sobre a cultura escrita.
Assim, uma apresentação teatral ou uma transmissão radiofônica, por exemplo, são
manifestações da língua oral demarcadas por uma anterioridade da escrita, já que
ambas, apesar de serem presentificadas por meio da fala, se organizam
previamente a partir de roteiros escritos.
Outras pesquisas sobre o campo da oralidade parecem-nos fundamentais para a
compreensão da relevância do trabalho com os gêneros da tradição oral na
educação infantil. No encontro da psicanálise com a linguística, autores como Lier
De-Vitto (1998), Jerusalinsky (2002), Belintane (2006), entre outros, são, em certa
medida, unânimes em afirmar a importância constitutiva que a língua, em seus
processos discursivos, efetua quando posta em funcionamento nas relações entre
mãe e bebê.
Segundo Freud, desde muito pequena, a criança, ao alucinar com a presença do
seio materno, realizando movimentos de sucção com a boca, vivencia uma espécie
de representação, na medida em que lida com o distanciamento do objeto de
desejo por meio de uma espécie de substituto capaz de remeter a tal objeto. Nesse
eixo das possibilidades de substituição do objeto, outras situações de ausência
materna vão sendo solucionadas pela criança por meio da representação. A voz
materna, presente na canção emitida à distância, em certo sentido, introduz a
criança, paulatinamente, ao caráter ambíguo próprio linguagem, que se opera já na
oralidade. Trata-se do fato de que toda representação, em sua operação de evocar
o objeto ausente, reafirma sua ausência. Assim, a voz da mãe, ao mesmo tempo
que remete o sujeito à presença materna, reforça sua ausência real. Na língua, de
modo similar, toda palavra dita, ao mesmo tempo em que remete ao referente,
evoca sua ausência concreta.
Um outro aspecto bastante relevante e na esteira das questões relativas às
condições de entrada da criança no universo da representação bem como na
constituição de sua subjetividade refere-se a um uso bastante específico que as
mães fazem da oralidade na lida com seus bebês. Trata-se de um gênero bastante
estudado pelas áreas da linguística e da fonoaudiologia e que se convencionou
chamar de manhês ou mamanhê. Essa forma de lidar com a língua, fazendo uso de
picos prosódicos, profusão de diminutivos, abrandamento de consoantes, entre
outros, é bastante comum nos diálogos que as mães estabelecem com os bebês
que ainda não fazem uso propriamente da fala. O que se observa de relevante
nessa forma de lidar com a língua refere-se ao fato de que a mãe, no seu discurso
eminentemente dialógico, sempre preserva o espaço do que seria o turno de fala do
bebê, preenchendo-o com uma fala que representa a resposta deste ou mesmo
silenciando, como se aguardasse a emissão da fala desse outro.
Nota-se que, nessa aparente simulação de um diálogo, o lugar de sujeito falante
deixado para o bebê, em algum momento, é por ele assumido (não se sabe o exato
instante disso), logo manifestado por um movimento de seu corpo e mesmo por
emissões de voz que vão dos balbucios e gritos até, propriamente, palavras
reconhecíveis em sua língua materna.
A lida com o diálogo em manhês pode ser considerada uma importante porta de
entrada para a língua materna, já que é fundante da constituição da subjetividade
da criança, na medida em que ela reconhece o seu espaço no jogo da interlocução
bem como da intersubjetividade. Porém, parece relevante destacar que a língua
oral, nas relações da criança com seu ambiente parental, não se fixa apenas nos
momentos em que a mãe se dirige ao bebê na forma de um diálogo. Há todo um
contexto de fala do entorno adulto que, ainda que não dirigido à criança,
certamente a atinge em sua sonoridade polifônica e, mais especificamente, povoa
seus ouvidos um amplo repertório da tradição oral, repleto de uma diversidade de
gêneros, sobretudo do campo da poesia ou que lidam com o código de maneira
muito específica, fazendo uso da função poética da língua. As muitas situações de
contato entre mãe e bebê são, em geral, enlaçadas por uma verdadeira polifonia de
gêneros orais que, segundo Belintane (2007), "foram selecionados pela peneira
estética da tradição especialmente para esses momentos em que a criança é
inserida em uma linguagem que, como diria Manoel de Barros, teria aquela
"desutilidade poética"."
Assim, é bem provável que não apenas o manhês seja o ponto fundamental da
entrada da criança na língua materna e da sua constituição enquanto sujeito,
havendo, portanto, todo um contexto estabelecido por uma língua entendida de
forma complexa, em que as suas diversas modalidades de expressão (oral e
escrita, erudita e popular, culta e coloquial etc.) se manifestam de forma implicada,
mais numa relação de continuidades do que de cisão entre tais formulações. Nesse
sentido, parece relevante considerar os gêneros da oralidade lúdico-poética,
marcados pelo uso estético da língua, como uma das vias fundamentais de entrada
efetiva da criança em uma língua que não se constitui apenas de diálogos.
Parece, portanto, necessário ressaltar toda a complexidade comportada pelos
gêneros da tradição oral lúdico-poética, além de observar a sua intensa presença
no universo da vida infantil. Algumas brincadeiras que lidam com o mapeamento do
corpo ao mesmo tempo em que fazem uso poético da linguagem são bastante
comuns no âmbito familiar e refletem de modo muito significativo uma entrada
prazerosa da criança na língua. Ou seja, a língua, esteticamente manipulada num
texto completo, promove o regozijo da criança que, no colo de um dos familiares,
se diverte com o contato afetuoso com seu corpo. Bom exemplo disso é a
brincadeira:
Janela, janelinha
porta, campainha:
dim-dom!
em que o adulto toca o rosto da criança, explorando os canais de percepção do
mundo externo, nomeando-os por meio de metáforas, lidando desde muito cedo
com um dos aspectos fundamentais da língua, tanto em sua modalidade oral
quanto na escrita, ou seja, com a sua capacidade de representação.
Outro exemplo interessante do uso da língua em sua perspectiva poética no contato
do adulto com a criança é a presença comum do gênero canção de ninar. Na canção
Ó rosa, rosa amarela
Ó rosa amarela eu sou
Eu sou rosa amarela
Cravo branco é meu amor
Lá vem a lua no céu
Redonda como um tostão
Não é lua não é nada
São os olhos de João
vemos um interessante jogo de representações na autonomeação do eu-lírico como
sendo uma rosa e, de seu amado, como um cravo. Nessa esteira, o jogo de
comparações e metáforas em que se implicam as imagens da lua e dos olhos do
homem amado parece também favorecer uma entrada complexa nas
potencialidades de representação da língua.
Ainda no texto da canção, mesmo que de modo simples, observamos os recursos
de lida com o código, como a presença de rimas, a métrica regular, as repetições
de palavras e as aliterações (no primeiro e terceiro versos da segunda estrofe) que,
certamente, favorecem a compreensão, ainda que inconsciente, do aspecto
sistêmico da língua, caracterizado pela dupla articulação e pelo cruzamento dos
eixos paradigmático e sintagmático.
Dentro dessa dinâmica em que a sonoridade produz efeitos de sentido, podemos
observar também, na criança em idade mais avançada algumas brincadeiras que
lidam com os aspectos fonéticos e fonológicos da língua. É o caso, por exemplo, de
fórmulas de escolha, como:
Lá em cima do piano
tem um copo de veneno
quem bebeu morreu
o azar foi seu!
Nesse texto, além do trabalho com as rimas e o ritmo, tem-se, na atuação da
brincadeira, uma lida com a língua que exige certa perspicácia da parte dos
falantes, na medida em que é preciso indicar cada um dos jogadores da roda de
acordo com a pauta sonora dada pela silabação do texto. O mesmo saber é
acionado na brincadeira da "língua do PE", em que se intercala a sílaba PE entre as
sílabas das palavras, ou nas brincadeiras de inversão de sílabas das palavras. Isto
é, ao realizar tais brincadeiras, as crianças já esboçam um conhecimento bastante
relevante sobre a escrita usada em nossa cultura que é a tentativa de reprodução
do seus aspectos sonoros.
Outro gênero bastante explorado nas brincadeiras infantis com a palavra é o travalíngua. O intenso trabalho com as aliterações e assonâncias observados nesse
gênero e o prazer com que as crianças brincam com tais "textos", reconhecendo
quase que conscientemente a origem da dificuldade em realizá-los, não deixam
dúvidas sobre a relevância de um trabalho significativo com a oralidade na
educação infantil. O ponto que nos parece relevante nesse tipo de texto é
justamente o fato de, em boa parte de seus exemplares, haver um abandono quase
que total do campo semântico, havendo um investimento nos aspectos sonoros. Em
trava-línguas como "três pratos de trigo para três tigres tristes" ou como "é um
dedo, é um dado, é um dia", o evidente nonsense deixa claro que o campo
explorado é tão somente o do código.
Observa-se, assim, que a oralidade lúdico-poética favorece em muitos aspectos
essa relação com o código bem como o convívio com recursos de linguagem que
são fundamentais na compreensão do que vem a ser a escrita, tanto em sua face
mais relativa ao registro de um sistema quanto no que se refere ao seu potencial
de representação do mundo, por meio de metáforas, metonímias etc.
Algumas pesquisas, sobretudo em Belintane (2006), encontramos referências
bastante relevantes sobre a importância da lida com a oralidade, principalmente na
ambiência parental, como constitutiva de matrizes para a entrada da criança na
língua escrita. Nesse sentido, ao se pensar a educação infantil e a abordagem da
língua materna nesse segmento do ensino, parece-nos essencial um trabalho com a
oralidade lúdico poética bem amparado teoricamente. Quer dizer, sabemos que é
bastante comum nas escolas de educação infantil o preenchimento do dia com
inúmeros textos orais, entretanto, tais textos (canções, brincadeiras etc.) vem
pouco amparados de um conhecimento sobre suas potencialidades pedagógicas. As
canções são postas em uso na hora do lanche, nos momentos de fila, na hora da
higiene, em geral como palavra de ordem para garantir a disciplina durante as
rotinas do dia. Pouco se explora a capacidade de criação sobre tais exemplares, por
meio da subversão dos textos originais ou da produção de paródias, por exemplo.
Outro problema que, atualmente, se vê é o aproveitamento equivocado de tais
textos da oralidade. Tem sido bastante frequente que algumas escolas consideradas
de vanguarda façam uso desses repertórios, porém destituindo-os de suas
potencialidades lúdicas, trabalhando-os de maneira teórica, fazendo-se registros
escritos ou pesquisas em torno do assunto.
É preciso, assim, ressaltar que, embora não seja possível manter os contextos
originais de ativação de tais repertórios - ou seja, a ambiência parental ou mesmo
a rua em que tais brincadeiras eram originalmente realizadas -, é preciso que a
escola não os destitua do seu caráter oral bem como das esferas de sua realização.
Quer dizer, um texto como, por exemplo, "Corre cutia" só deverá ser recitado no
contexto autêntico da brincadeira de roda, ainda que se reconheça a possibilidade
de se perceberem as rimas em -ia e as "palavras que saem de dentro de outras
palavras" (cutia-tia) e que se realizem efetivamente trabalhos em torno de tais
aspectos do texto.
Para finalizar, ainda no tocante à entrada da criança na cultura escrita, tendo em
vista as aproximações observadas por diversos teóricos e poetas, entre os quais
aqueles que aqui foram citados, não nos parece descabido afirmar que algumas
canções e brincadeiras rimadas encontrem similares na tradição literária. E, assim,
certamente, compreenderá melhor o poema "Cidadezinha qualquer", de Carlos
Drummond de Andrade, em que "devagar, as janelas olham" aqueles que tiveram
seus olhos tocados pela brincadeira de colo "Janela, janelinha", bem como
entenderão mais profundamente o conceito de "coita d'amor", nas aulas de
literatura ou nas precoces leituras poéticas, aqueles que, na infância houverem
cantado
"Se eu roubei, se eu roubei seu coração
Tu roubaste, tu roubaste o meu também
Se eu roubei, se eu roubei seu coração
É porque, é porque te quero bem.".
Referências Bibliográficas
BELINTANE, Claudemir. "Subjetividades renitentes entre o oral e o escrito".
REZENDE, N., RIOLFI, C. e SEMEGHINI-SIQUEIRA, I. In: Linguagem e educação:
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CÂNDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
FREUD, S. Além do princípio do prazer. Tradução Christiano Monteiro Oiticica. Rio
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GINZBURG, C. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução
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JERUSALINSKY, J. Enquanto o futuro não vem:
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a
Psicanálise
na
clínica
LIER DE-VITTO, M.F. Os monólogos da criança: delírios da língua. Porto Alegre:
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ONG, W. Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra. Tradução Enid
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SALES, L. (ORG.). Pra que essa boca tão grande: questões acerca da oralidade.
Salvador: Ágalma, 2005.
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