O delírio no cotidiano do amor Heloisa Caldas O objetivo desse pequeno texto é tomar alguns pontos da teoria freudiana e lacaniana sobre o amor para pensar que seu caráter delirante não se restringe ao amor na psicose, nomeadamente a erotomania, podendo ser encontrado no amor da vida cotidiana. Tomamos como ponto de partida a proposta avançada do ensino de Jacques Lacan (1978) de que o delírio encontra-se na base de toda produção subjetiva, não se restringe à psicose, logo todo o mundo delira. Cabe, portanto, pensar como o delírio se apresenta, ou melhor, como se esconde na neurose, segundo comentário de Freud, quando indica que a estratégia psicótica revela o que a neurótica esconde. No final de seu texto sobre a perda da realidade na neurose e na psicose, ele afirma que: “Dificilmente se pode duvidar que o mundo da fantasia desempenhe o mesmo papel na psicose, e de que aí também ele seja o depósito do qual derivam os materiais ou o padrão para construir a realidade. Ao passo que o novo e imaginário mundo externo de uma psicose tenta colocar-se no lugar da realidade externa, o da neurose, pelo contrário, está apto, como o brinquedo das crianças, a ligar-se a um fragmento da realidade – um fragmento diferente daquele contra o qual tem de defender-se – e emprestar a esse fragmento uma importância especial e um significado secreto que nós (nem sempre de modo inteiramente apropriado) chamamos de simbólico. Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na psicose interessa a questão não apenas relativa à perda da realidade, mas também a um substituto para a realidade”1. É preciso que se isole, no coração da neurose, a experiência que funda a fantasia, para compará-la ao fenômeno elementar a partir do qual se constrói o delírio das psicoses. Nesse sentido, o delírio deriva e exacerba sempre uma interpretação primordial, fragmento de simbólico, nos termos de Freud, que um sujeito produz como resposta à questão sobre seu ser diante do enigma do desejo do Outro. Podemos estabelecer um paralelo e dizer que o fenômeno elementar representa para a psicose o que a formação do inconsciente representa para a neurose2. Assim a fantasia fundamental, uma das formações do inconsciente, 1 2 FREUD :1924/1986, p. 234 MILLER: 2009 responsável pela sustentação da realidade psíquica e pela construção sintomática de um sujeito, tem a mesma estrutura de um delírio, pois responde como este à experiência de significação enigmática. Na fantasia clássica da literatura freudiana “bate-se numa criança”, fica claro que “bate-se” designa o ato e o gozo sexual, ainda que essa designação não faça o menor sentido. Freud ressalta que ela se encontra no limite do saber. Uma vez solicitados mais detalhes, os sujeitos que lhe relataram essa fantasia respondiam: “não sei nada mais sobre isso: bate-se numa criança”3. No entanto, em torno dessa frase axiomática, cuja certeza reside em seus efeitos inequívocos de gozo sexual, podem girar inúmeros outros pensamentos, em parte bastante razoáveis, que compõem o discurso com que os amantes podem encenar tal fantasia. Assim, a fantasia interpreta o gozo sexual. Se a reduzimos ao significante primordial, isolado da cadeia discursiva, vinculado ao gozo de forma inexplicável, ela está na coalescência entre um significante e uma experiência de gozo. Tal significante/letra opera, a partir de então, como o próprio elemento enigmático e premissa original que deflagra o discurso delirante. Na experiência amorosa, a fantasia desempenha esse mesmo papel nodal. O discurso amoroso surge em torno do encontro com alguém porque algo que causa o desejo e mobiliza o gozo foi encontrado. Sabemos desde Freud que o amor é um engano. Seu encontro se revelará inevitavelmente faltoso. No entanto, ele é vivido, mesmo que seja durante um curto espaço de tempo, com o mesmo sentimento de certeza que o fenômeno elementar clássico das psicoses produz. O discurso amoroso surge e se amplifica para justificar a necessidade lógica do amor, explicar as versões dos amantes para a causa enigmática disso que os enlaça e sustentar seu futuro. Enquanto tal conversa durar, dura o amor. Com frequência, ex-amantes ficam perplexos de ter vivido aquela experiência, que perdeu seu sentido depois que acabou. Na verdade jamais o teve, mas o delírio justamente o salvaguardava da falta de sentido, através de sua produção discursiva. Esse discurso permite passar ao Outro o cerne da fantasia – o objeto a –, visado no amado. Ele possibilita uma parceria que, a rigor, se estabelece entre o sujeito e o objeto a. Nela cada sujeito esbarra no ímpar de seu gozo. E como não existe pulsão genital para guiar o encontro de Um com o Outro sexo, é preciso inventá-la, fazer com que as pulsões parciais passem pelo campo do Outro, da cultura, do Édipo, das identificações, para que seja possível 3 FREUD:1919/1986, p. 227 2 construir algum semblante de homem, mulher, gay etc. Essas formas de identificações amorosas se tecem a partir do discurso. O amor que sustenta a parceria demonstra pela exigência de reciprocidade que o sujeito não quer saber da solidão do gozo. A reciprocidade se constitui, não só pela expectativa de amor que o amante demanda ao outro, mas também porque há, no outro, algo que faz com que seja amado. Esse traço que o amante atribui ao amado tem sua raiz no narcisismo do eu. O que se ama são as versões do objeto a encapadas pela imagem do eu ideal e sustentadas pelos significantes do Ideal do Outro, I(A). Logo o amado, de certa forma, é responsável pelo amor que causa. Por isso o amor não correspondido é uma ofensa ao amante. Entretanto, o semblante de amor mente a solidão do sujeito em busca do objeto. A pretensa recíproca do amor que leva a pensar em dois sujeitos encobre que temos apenas Um e a4. Por isso o amor, assim como a fantasia, sempre fracassa, precisando ser inventado a cada vez, para fazer renascer a parceria, pois o que move os amantes, em termos de desejo e gozo, é fadado à dissimetria. O desejo parte de significantes isolados, autistas, e o gozo é mudo. Logo, o amor promove uma conversa cujas frases não se compartilham. Uma conversa que une pessoas atraídas por algo de muito seu, delirado no outro; conversa de surdos-mudos em que o amor tagarela, mas o gozo silencia; conversa que supre a inexistência da relação sexual, pois, através de suas ressonâncias, pode-se obter no corpo efeitos de gozo, sonhados como recíprocos. Podemos distinguir duas manifestações do discurso amoroso: a fala e a escrita. A primeira implica a presença dos corpos e a sincronia na troca dos ditos. Devido à presença do real – no sentido lacaniano do termo do gozo que não se pode dizer –, a fala nesse contexto ganha valor pelo que se experimenta no corpo, além e aquém do que se diz. Dessa forma, pode prescindir, em parte, do sentido diante do gozo que os amantes vivem no corpo. Com frequência, basta a mão que afaga os cabelos, a troca de olhares, o riso, os balbucios. A escrita amorosa, ao contrário, se dá geralmente na ausência do corpo parceiro, precisando do sentido como cúmplice, pois depende dele para mobilizar, de tão longe, os corpos. Assim, a experiência amorosa vale-se muito da linguagem escrita e tem sido uma fonte inesgotável para a literatura. Sua semelhança com o delírio também pode ser assinalada pelo fato de propiciar um tratamento ao gozo. Podemos encontrá-la também na fervilhante produção cotidiana da internet, em grande parte dedicada ao amor, em blogs, e-mails, Msn, 4 LACAN: 1972-73/1985, p. 67 3 Facebook, Orkut, Tweeter, dando materialidade ao semblante do amor e substancializando o gozo. A abordagem de Lacan sobre a carta/letra, em “Lituraterra”5 permite pensar esse gozo da escrita, em que a letra é situada no ponto limite do trabalho significante e serve para fazer borda ao real. Lacan a chama de letra-litoral para situá-la como o que traça a separação entre o sentido e o gozo – duas coisas tão diferentes como o mar e a terra. De um lado, temos a faceta significante que permite o discurso e faz laço; do outro, ela é marca material articulada ao gozo. Essa dupla função da letra favorece o escoamento de gozo Outro em gozo do sentido. A escrita amorosa pode se constituir no litoral entre o sujeito do significante e o gozo que habita seu corpo, dando a este, pela via do delírio, um tratamento e a chance de fazer laço. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: FREUD, S. (1924) “A perda da realidade na neurose e na psicose”. Obras psicológicas completas, vol. XIX. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1986. __________ (1919) “Uma criança está sendo espancada. Uma contribuição ao estudo da origem das perversões sexuais”. Obras psicológicas completas, vol. XVII. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, 1969. LACAN. J. (1978) Ornicar? Paris: Navarin, nº 17-18, 1978. _________ (1972-73). O seminário, livro 20: mais, ainda... Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. _________ “Lituraterra” (1971). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. MILLER, J.-A. “A invenção do delírio”. Opção Lacaniana online nº5, 2009. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/index.asp 5 LACAN: 1971/2003 4