Alimentos e a política econômica O novo ano traz notável consonância dos indicadores relevantes para o rumo da política monetária nos países emergentes. No Brasil, a demanda interna fechou 2010 crescendo a uma taxa acima da que muitos acreditam ser sustentável a longo prazo, a inflação ao consumidor continuou a distanciar-se do centro da meta (4,5%) e de forma relativamente generalizada, enquanto as expectativas de mercado apontavam - e seguem apontando - para uma inflação acima de 5% em 2011. Tal consonância corrobora as deliberações recentes de política monetária no Brasil e em vários outros países emergentes quanto à direção da taxa de juros. É possível, entretanto, que esse nem sempre seja o caso no decorrer deste ano. Pressões inflacionárias de origem importada - especialmente advindas da inflação global de produtos alimentícios - podem engendrar um complicado conflito entre os indicadores de pressão inflacionária interna e externa. Ainda que as autoridades consigam frear o consumo interno e o gasto público corrente nos próximos meses, reduzindo assim a inflação em setores domésticos de peso como construção e serviços, tal "inflação importada" pode continuar pressionando o IPCA. Três fatores sugerem que a inflação importada seguirá alta por algum tempo. Um deles é a inércia própria da inflação de alimentos. A evidência histórica sugere que entre 90% e 95% dos choques ao índice de preço mundial de alimentos em um dado trimestre (em relação ao índice de preço global) tendem a passar ao trimestre seguinte. O segundo fator está associado às previsões de importantes quebras de safra a nível mundial em 2011. O terceiro advém da inflação de alimentos não ser um problema tão agudo pelo seu menor peso na cesta de consumo nos países avançados (10% a 15% comparado com 20% a 50% nos paises emergentes) e as altas taxas de desemprego nessas economias, que seguram a inflação em outros bens. Isso incentiva a prorrogação de políticas monetárias expansionistas nos países avançados, que instigam os fluxos de capital para os países emergentes e a expansão da demanda global por alimentos. Tal combinação indica que uma rápida dissipação da pressão inflacionária externa é improvável. Diante de tal cenário externo, é importante que a nova administração tenha um arcabouço analítico claro e firmeza política para manter a boa rota. Como os alimentos têm alto peso na cesta de consumo do brasileiro médio, a tarefa de manter o IPCA perto da meta requererá inflação bem menor que 4,5% em outros setores da economia. Esse seria notoriamente o caso nos chamados setores "não transacionáveis" como o comércio e a construção. Baixar a inflação nesses setores requererá contenção considerável do crédito e do consumo doméstico, economicamente custosa no curto prazo. Provavelmente, isso engendrará pressões políticas e propostas insidiosas para qualquer gestão macroeconômica responsável. Uma delas seria expurgar os alimentos no cômputo da meta de inflação. O mérito de tal proposta é examinado em trabalho recente em coautoria com o macroeconomista Roberto Chang, que conclui que o expurgo do IPCA reduziria o bem-estar do cidadão (www.ideas.re pec.org/p/n br/nber wo/16563.html). Deixar os alimentos de fora da meta de inflação significa que o preço interno dos alimentos estaria menos "ancorado" e mais sujeito a pressões especulativas. Os alimentos são parcela importante do preço real do consumo interno. Dado o seu impacto nos salários e custos de produção, isso implicaria maior volatilidade da taxa de câmbio real, desestabilizando o consumo e o emprego, e assim reduzindo o bem-estar do cidadão. Outra razão importante para evitar tal expurgo é a sua regressividade social: deixar a inflação de alimentos correr solta exacerba a instabilidade do poder de consumo do cidadão menos abastado. Alimentos não são um produto como qualquer outro. São bens muito pouco substituíveis, de muito peso na cesta de consumo (e particularmente nos estratos de menor renda), e cuja baixa elasticidade da oferta no curto prazo faz com que choques tenham efeitos altamente persistente sobre preços. É assim importante que as pressões inflacionárias importadas sejam aplacadas cedo a fim preservar a credibilidade da política econômica, evitar o retorno de mecanismos perversos de indexação (formal ou informal) e, em ultima instância, a volta de taxas de inflação muito mais altas e de natureza crônica. Agir cedo e ajustar gradualmente tanto o leme monetário como o fiscal para que a inflação retorne ao centro da meta de 4,5% em 2011, devem ser adotados independentemente se a origem da inflação é interna ou externa. Medidas paliativas como expurgar alimentos dos índices de inflação para cumprir com a meta, alargar o horizonte da meta, ou tolerar desvios plurianuais do seu centro (que, no Brasil, não é baixo comparado com o de outros países), têm efeitos adversos sobre o bem-estar do cidadão, solapam a credibilidade da política econômica e, portanto, não deveriam ser contempladas. Luis A.V. Catão - Economista do Departamento de Pesquisa do Fundo Monetário Internacional (FMI) e PhD pela Universidade de Cambridge. As opiniões expressadas aqui são de caráter pessoal e não necessariamente representam aquelas do FMI, do seu diretório, ou administração. Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 10/02/2011.