II Colóquio da Pós-Graduação em Letras
UNESP – Campus de Assis
ISSN: 2178-3683
www.assis.unesp.br/coloquioletras
[email protected]
CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA PROTAGONISTA TITA EM
COMO AGUA PARA CHOCOLATE (1989), DE LAURA ESQUIVEL
Kátia Rodrigues Mello Miranda
(Doutoranda – UNESP/Assis)
RESUMO: O romance Como agua para chocolate (1989), da escritora mexicana Laura
Esquivel, apresenta a história da protagonista Tita, que, por ser a caçula de três irmãs, deve
cumprir a tradição familiar de não casar-se para cuidar da mãe até sua morte. Mesmo revoltada
com a situação, Tita, que vive uma intensa paixão correspondida, não tem outra alternativa
senão ficar solteira. No entanto, a trajetória da personagem ganha especial relevo, uma vez
que Tita apresenta características e atitudes que contrariam a tradição familiar. A narração da
história é feita pela sobrinha-neta da protagonista, que, anos após a morte da tia-avó, e
tomando por base o livro de cozinha escrito por esta e os fragmentos da memória familiar,
relata a história de Tita. Nesse contexto, o presente trabalho pretende destacar alguns traços
constitutivos da protagonista e de sua trajetória de luta pela ruptura da tradição.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura hispano-americana; Laura Esquivel; personagem feminina.
Introdução
Publicado em 1989, o romance Como agua para chocolate, da mexicana
Laura Esquivel, obteve grande sucesso de vendas, foi traduzido para diversas línguas
e também adaptado para o cinema. Embora não sejam apresentadas datas precisas,
por meio de alguns indícios é possível verificar que a narrativa se passa entre os
últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX, coincidindo a maior
parte de sua ação com a Revolução Mexicana. A narrativa tem como pano de fundo
esse contexto e nela se destacam ideias relacionadas à consciência patriarcal
característica do período.
Em Como agua para chocolate predominam as personagens do sexo
feminino, fator que desperta a atenção para a construção dessas personagens, por
meio das quais é possível evidenciar diferentes posturas das mulheres com relação ao
tradicionalismo que marca a época.
Categoria fundamental da estrutura narrativa, a personagem, conforme
enfatiza Antonio Candido (1987, p. 55), é uma criação que “comunica a impressão da
mais legítima verdade existencial”, o que ratifica a importância do estudo dessa
688
categoria para a análise de uma obra literária. Diante disso, o presente trabalho tem
por objetivo pontuar alguns aspectos da construção da personagem Tita, protagonista
do romance, de modo a compor um esboço que sirva de suporte para reflexões
futuras.
Vale assinalar que nossas considerações a respeito da construção da
protagonista partem de uma perspectiva de cunho social, em consonância com as
ideias expostas por Elaine Showalter no estudo “A crítica feminista no território
selvagem”, que constitui parte da obra Tendências e impasses: o feminismo como
crítica da cultura (1994).
1. A história do romance e o romance da história
A obra é dividida em doze capítulos, correspondentes aos meses do ano
apresentados em ordem crescente, ou seja, o primeiro capítulo se intitula Janeiro, o
segundo, Fevereiro, e assim por diante. Cada capítulo é iniciado por uma receita,
introduzida da maneira convencional: inicialmente, são relacionados os “Ingredientes”
e, em seguida, é anunciada a “Manera de hacerse”. As explicações sobre o preparo
dos pratos são mescladas à narração da história, e, a partir de cada receita, são
narrados fatos associados à memória do momento em que o prato foi servido. Sendo
assim, há na obra a presença da linguagem descritiva, própria das receitas, e da
narrativa, para o relato dos acontecimentos.
Ao final de cada capítulo aparece a expressão “Continuará”, com o anúncio
da “Siguiente receta”. Podemos dizer que tal estrutura seja uma paródia do folhetim,
publicação comum nos periódicos da época do Romantismo, que teve grande êxito de
meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX (MEYER, 1996).
Em linhas gerais, o romance folhetim apresentava narrativas de fácil
compreensão que vinham publicadas de modo fracionado, funcionando, assim, como
chamariz para a aquisição dos números seguintes dos periódicos. Esse caráter de
publicação fragmentada, assim como o conteúdo do livro, é assinalado na obra de
Esquivel desde o subtítulo: “Novela de entregas mensuales, con recetas, amores y
remédios caseros”. No entanto, a obra foi publicada diretamente em volume, fato que
permite pensar a estruturação fragmentária como uma espécie de paródia – grosso
modo dizendo – da publicação folhetinesca.
Também era comum no romance folhetim o estabelecimento de diálogo
explícito com o leitor, possivelmente não só como estilo de escrita, mas também como
689
uma das estratégias comerciais de vinculação do leitor à publicação. Esse tom
dialógico pode ser observado em Como agua para chocolate, como demonstra o
seguinte fragmento do primeiro parágrafo da narrativa: “Les sugiero ponerse un
pequeño trozo de cebolla en la molera [...]. No sé si a ustedes les ha pasado pero a mí
la mera verdad sí” (ESQUIVEL, 2009, p. 11).
O principal público leitor do romance folhetim era o feminino, que, ao longo do
século XIX, foi apresentando maior acesso ao letramento e consequente interesse
pela leitura. Assim, para atender às expectativas das leitoras, bem como da estrutura
social vigente, as histórias veiculadas nesse tipo de publicação geralmente possuíam
estruturas simples, de fácil leitura, e traziam histórias de amor, cujas personagens
femininas eram cordatas e submissas, de modo a reforçar, portanto, o modelo
patriarcal predominante na época.
Com relação aos aspectos de estrutura e conteúdo, podemos pensar que,
numa leitura mais linear, Como agua para chocolate atende, de certo modo, ao
pressuposto do romance folhetim, já que apresenta uma estrutura aparentemente
simples e uma história cujo eixo principal é o amor. No entanto, numa leitura mais
atenta é possível verificar no romance sofisticada elaboração estrutural e, sobretudo,
aspectos que chamam atenção quanto à situação de desvantagem social da mulher
da época.
No tocante à narração é possível verificar na obra vários níveis narrativos. No
principal deles surge a voz da sobrinha-neta da protagonista Tita: “Mamá decía que
[...] yo soy igual de sensible a la cebolla que Tita, mi tía abuela” (ESQUIVEL, 2009, p.
11). Essa narradora revela seu parentesco e identificação com a protagonista, mas
não o seu nome e nem fornece aspectos peculiares de sua própria história – ao menos
não extensiva e declaradamente –, o que permite deduzir que seu interesse primordial
é o de oferecer o relato da trajetória de sua tia-avó.
O espaço primordial da história é o rancho da família De la Garza, onde a
protagonista vive com a mãe, as irmãs Rosaura e Gertrudis, a cozinheira Nacha, a
empregada Chencha e alguns outros empregados, encarregados de trabalhar nas
terras da família. Viúva desde o nascimento de Tita, a autoritária Mamá Elena
comanda o rancho, as filhas e os empregados com extrema rigidez, criando suas
próprias regras e exigindo a obediência de todos. Tita, aos quinze anos, passa a viver
com Pedro uma intensa paixão correspondida; no entanto, Mamá Elena, que
representa na obra o poder patriarcal, impede-a de casar-se com ele, condenando-a a
690
cumprir a tradição familiar, segundo a qual a filha caçula deveria permanecer solteira
para cuidar da mãe.
Convém esclarecer que a ideia de patriarcalismo é posta aqui de acordo com
a acepção do termo “Patriarcado”, exposto no Dicionário crítico do feminismo (2009, p.
173): “Nessa [...] acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em
que os homens têm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”.
Mesmo sendo mulher, Mamá Elena pode ser vista como representante patriarcal, uma
vez que, após a morte do marido, torna-se a responsável pelo rancho e pela família,
sobre os quais exerce poder total.
Assim, Mamá Elena oferece a mão de Rosaura, a filha mais velha, a Pedro,
que, com a intenção de ficar próximo de Tita, aceita, e, após o casamento, vem morar
no rancho. Devido à morte da cozinheira Nacha, a protagonista passa a cozinhar para
toda a família e, a partir de sua atuação no espaço da cozinha, que não estava sob o
controle da mãe, ela estabelece um código de comunicação amorosa com Pedro,
através dos alimentos que prepara. Porém, percebendo que o amor entre Tita e o
cunhado ainda se mantinha, Mamá Elena age para separá-los. Após uma trajetória
intensamente marcada pelo anseio de ruptura com a tradição familiar, Tita conquista a
liberdade para a realização amorosa, que será vivida de modo mais pleno pelas
mulheres a partir da geração da sobrinha Esperanza, a quem, ao contrário do que
acontece com Tita, é permitido casar-se com o homem que ama.
Como não conviveu com a protagonista e nem presenciou os acontecimentos
que expõe, a sobrinha-neta de Tita, na condição de narradora, vale-se de dois
elementos principais, ambos de caráter fragmentário ou lacunar, para a construção de
seu relato e, por conseguinte, da imagem de Tita: a memória familiar e o “libro de
cocina”, encontrado nos restos do incêndio em que morrera Tita e deixado à narradora
como herança por sua mãe, Esperanza, conforme é possível verificar no seguinte
trecho dos parágrafos finais da narração:
Una capa de ceniza [...] cubría todo el rancho. Cuando Esperanza,
mi madre, regresó de su viaje de bodas, sólo encontró bajo los restos
de lo que fue el rancho este libro de cocina que me heredó al morir y
que narra en cada una de sus recetas esta historia de amor
enterrada.
Dicen que bajo las cenizas floreció todo tipo de vida, convirtiendo
ese terreno en el más fértil de la región.
Durante mi niñez yo tuve la fortuna de gozar de las deliciosas
frutas y verduras que ahí se producían (ESQUIVEL, 2009, p. 210).
No trecho transcrito é possível constatar não somente que a narradora
desfruta dos benefícios proporcionados pela história de luta da tia-avó, mas também a
691
utilização do livro de cozinha e da memória familiar na construção do relato, esta
última evidenciada por meio do vocábulo “Dicen”, que aparece diversas vezes no
decorrer da narração, desde o primeiro parágrafo. Ao “desenterrar” a história de amor
da tia-avó, a narradora revela a trajetória de uma mulher que, mais do que
simplesmente viver uma história de amor proibido, lutou pela ruptura de uma tradição
castradora e silenciadora da voz e vontade feminina.
É interessante pontuar que a narradora não tem participação direta na história
da protagonista, uma vez que nasce após os fatos narrados. No entanto, por pertencer
à família de Tita, vemos que a participação dessa narradora não pode ser totalmente
desvinculada da história narrada, já que nela é apresentado o percurso de uma
conquista – a da ruptura com a tradição – que será desfrutada a partir da geração de
Esperanza, mãe da narradora e, consequentemente, por esta. Em outras palavras, a
narradora não é testemunha direta dos fatos que relata, mas pertence a uma geração
que se beneficia dos resultados da trajetória da protagonista, o que estabelece entre
essa narradora e a história que relata um vínculo de continuidade que não pode ser
desconsiderado.
Diante disso, é possível entrever a caracterização da narradora de Como
agua para chocolate a partir de dois ângulos. O primeiro apresenta seu
posicionamento em relação não aos fatos relatados a respeito Tita, mas à história do
livro em si, ou seja, das condições de organização, produção e constituição do relato
enquanto obra. Nesta perspectiva, a narradora possui fundamental importância, uma
vez que é nas mãos dela em que vão parar os restos do livro de cozinha de Tita, a
partir dos quais se faz possível a (re)construção da trajetória da protagonista. Embora
não seja este o principal objeto de discussão no presente artigo, vale apontar que,
nesse âmbito, a narradora pode ser identificada como um alter-ego da autora, ou seja,
a produtora da obra.
De outro ângulo, vemos que essa narradora é, ainda, detentora da memória
familiar, na qual também se baseia para a construção do relato. Assim, é possível
inferir que, para ter material suficiente para resgatar a história de amor “enterrada”, a
narradora,
que
não
conviveu
com
Tita,
nem
participou
diretamente
dos
acontecimentos que narra, lançou mão, além da consulta ao livro de cozinha escrito
pela tia-avó, de relatos daqueles que conheceram a protagonista, ou seja, de
informações advindas da memória familiar, fornecidas possivelmente por seus pais –
sobretudo por sua mãe, Esperanza, que foi educada por Tita e a primeira a desfrutar
inteiramente da liberdade pela qual a protagonista lutou –, entre outros.
692
Assim, podemos dizer que a narradora é personagem fundamental da história
do livro enquanto relato organizado, mas não pertence de forma direta à história
narrada, ou seja, a trajetória de amor e luta de Tita.
Tendo em vista o que foi observado, é possível concluir que a história de Tita
é narrada a partir de pelo menos dois tipos de fragmentos: relatos escritos –
constituídos pelos restos do livro de cozinha de Tita – e relatos orais – adquiridos pela
narradora a partir da memória familiar. Sob tal prisma, para ser apresentada ao leitor,
a protagonista precisou ser, mais do que construída, reconstruída pela narradora.
Desse modo, ao ser construída a partir de fragmentos, é possível dizer que
não existe uma visão unívoca a respeito de Tita enquanto personagem da história
familiar da narradora, mas que essa visão é completada pela narradora, que, além de
coligir os restos do livro de cozinha e da memória familiar, possui as próprias ideias,
convicções e ponto de vista, e pertence a um tempo futuro, em que a mulher tem total
liberdade no manejo do discurso.
Em linhas gerais, resulta disso tudo a existência em Como agua para
chocolate de um processo de mise en abyme, em que podem ser observadas duas
histórias principais: a primeira seria a da narradora, que acontece após a morte de
Tita, e, portanto, é posterior à história de amor e luta relatada, e a segunda seria a
história Tita, em que a narradora recupera a trajetória da tia-avó, cujo desfecho
possibilitou que a história da narradora – a primeira história – fosse como é, ou seja,
livre das amarras da tradição.
2. O amor, a cozinha e outros ingredientes
A construção da personagem Tita se dá, basicamente, em torno de dois
elementos essenciais: o amor e a cozinha. Juntos, esses elementos serão os eixos
principais que nortearão a trajetória da protagonista, marcada por um movimento de
inconformidade, questionamento e ruptura da tradição familiar que oprimia as
mulheres.
Nascida em algum momento impreciso do final do século XIX, Tita vive em
uma sociedade patriarcalista e passa sua juventude – a que praticamente
correspondem onze dos doze capítulos da obra – em meio aos acontecimentos da
Revolução Mexicana e, principalmente, sob o jugo de uma tradição familiar à qual
questiona, mas que, por quase toda a sua vida, tem de obedecer.
693
A narrativa se inicia com uma apresentação de Tita em que fica assinalado o
forte laço existente entre a cozinha e a protagonista: “Tita arribó a este mundo
prematuramente, sobre la mesa de la cocina [...] nació llorando de antemano, tal vez
porque ella sabía que [...] en esta vida le estaba negado el matrimonio” (ESQUIVEL,
2009, p. 11).
Dois dias após o nascimento de Tita, Mamá Elena fica viúva e perde o leite;
desde então, passa a preocupar-se com o comando do rancho e da família, deixando
os cuidados e alimentação da recém-nascida a cargo de Nacha, antiga cozinheira do
rancho. A partir desse contexto, é possível vislumbrar outras importantes
características constitutivas da protagonista, delineadas desde seu nascimento: a
tristeza, o pranto, o sofrimento, a rejeição por parte da mãe e a alimentação recebida
de Nacha, a quem:
[...] se consideraba la más capacitada para ‘formarle el estómago a la
inocente criaturita’, a pesar de que nunca se casó ni tuvo hijos. Ni
siquiera sabía leer ni escribir, pero sí sobre cocina tenía tan
profundos conocimientos como la que más (ESQUIVEL, 2009, p. 12).
A partir de então, os vínculos entre Tita e a cozinha tornam-se cada vez mais
sólidos, uma vez que a menina passa a maior parte do tempo nesse espaço, ao lado
daquela que seria para ela mais que uma mãe. É com Nacha que Tita aprende sobre a
vida e sobre o amor; é dela que recebe o alimento não só para o desenvolvimento
físico, mas, principalmente, para a formação de uma consciência em que não havia
lugar para a proibição do amor e da felicidade. Nesse âmbito, merece especial
atenção a figura de Nacha: a cozinheira, mesmo sendo analfabeta, transmite a Tita
todo seu conhecimento da arte culinária, de modo a simbolizar na obra a importância
da tradição oral.
Desde a infância, Tita se diferencia das irmãs, Rosaura e Gertrudis, que são
totalmente submissas às ordens da mãe e conformam-se com a atuação restrita ao
ambiente privado. Já Tita, que domina por completo a cozinha – seu espaço de
atuação maior e pertencente ao universo privado –, apresenta atitudes de
transgressão, que denotam o anseio de ampliar esse espaço fechado e transitar
também pelo espaço aberto:
[...] a los nueve años de edad se había ido de pinta con los niños del
pueblo. Tenía prohibido jugar con varones, pero ya estaba harta de
los juegos con sus hermanas. Se fueron a la orilla del río grande para
ver quién era capaz de cruzarlo a nado, en el menor tiempo. Qué
placer sintió [...] al ser la ganadora.
694
Otro de sus grandes triunfos [...] tenía catorce años y paseaba en
carretela acompañada de sus hermanas [...]. Los caballos salieron
corriendo [...] El cochero perdió el control del vehículo. Tita [...] lo
pudo dominar a los cuatro caballos. Cuando algunos hombres del
pueblo las alcanzaron para ayudarlas, se admiraron de la hazaña de
Tita. En el pueblo la recibieron como a una heroína (ESQUIVEL,
2009, p. 37-8).
A partir de tais feitos tornam-se evidentes características fundamentais na
construção de Tita, como a atitude, a coragem e o instinto de luta em situações de
dificuldade, a ponto de causar a admiração dos homens.
Outro elemento crucial na construção da personagem é o anseio pela ruptura
de regras. Um exemplo disso se dá quando ela, ao costurar um vestido, muda os
procedimentos; em consequência, é fortemente repreendida pela mãe, e, ao tentar
contestá-la, é silenciada: “¿Vamos a empezar otra vez con la rebeldía? Ya bastante
tenías con la de haberte atrevido a coser rompiendo las reglas” (ESQUIVEL, 2009, p.
17). Neste trecho também fica clara a intolerância de Mamá Elena diante de qualquer
situação de questionamento de suas ordens.
Aos quinze anos, Tita começa a viver uma paixão correspondida por Pedro,
que viria a ser o amor de toda a sua vida. No entanto, Mamá Elena tira da protagonista
qualquer esperança quanto a casamento, situação em que Tita, novamente sem êxito,
tenta contestar a ordem da mãe:
– Sabes muy bien que por ser la más chica de las mujeres a ti te
corresponde cuidarme hasta el día de mi muerte. [...]
– Pero es que yo opino que...
– ¡Tú no opinas nada y se acabó! Nunca, por generaciones, nadie en
mi familia ha protestado ante esta costumbre y no va a ser una de mis
hijas quien lo haga (ESQUIVEL, 2009, p. 16).
Dessa forma, são revelados outros traços fundamentais da protagonista: o
questionamento e o inconformismo no tocante à tradição familiar, elementos
confirmados no seguinte fragmento:
[...] Tita no estaba conforme. Una gran cantidad de dudas e
inquietudes acudían a su mente. Por ejemplo, le gustaría tener
conocimiento de quién había iniciado esta tradición familiar. [...]
quería saber, ¿cuáles fueron las investigaciones que se llevaron a
cabo para concluir que la hija menor era la más indicada para velar
por su madre y no la hija mayor? ¿Se había tomado alguna vez en
cuenta la opinión de las hijas afectadas? ¿Les estaba permitido al
menos, si es que no se podía casar, conocer el amor? ¿O ni siquiera
eso? (ESQUIVEL, 2009, p. 16-7).
O fato de Pedro aceitar casar-se com Rosaura, mesmo sendo para ficar
próximo a Tita, causa a ela grande tristeza e frustração. No entanto, a narradora
695
sentencia a respeito de Tita: “El papel de perdedora no se había escrito para ella”
(ESQUIVEL, 2009, p. 37). Tal afirmação, proferida em meio à narração do momento
em que a protagonista tenta disfarçar o extremo sofrimento pelo casamento entre o
homem de sua vida com sua irmã, prenuncia o desfecho da história, em que Tita, após
muita luta, consegue romper com a tradição familiar. Assim, mesmo passando por
várias dificuldades, a personagem é marcada desde o início pela vitória.
No dia do casamento de Pedro e Rosaura acontecem fatos importantes, que
também
revelam
características
essenciais
da
construção
da
protagonista.
Encarregada, como castigo, de ajudar Nacha nos preparativos para o banquete, Tita,
muito triste, derrama lágrimas na massa do bolo de casamento. Ao comerem o bolo,
todos os convidados apresentam reações:
Una inmensa nostalgia se adueñaba de todos los presentes en
cuanto le daban el primer bocado al pastel. [...] el llanto fue el primer
síntoma de una intoxicación rara que tenía algo que ver con una
melancolía y frustración que hizo presa de todos los invitados y los
hizo terminar en el patio, los corrales y los baños añorando cada uno
el amor de su vida. Ni uno solo escapó del hechizo [...]. (ESQUIVEL,
2009, p. 39).
Fica assinalada uma característica fundamental da personagem: o poder
mágico e transformador de sua comida. Através dos alimentos que preparava, Tita
conseguia não só expressar seus sentimentos, mas fazer com que os comensais
sentissem o mesmo que ela. Isso acontece em várias passagens do romance, o que
atribui à comida preparada pela protagonista o caráter de meio de comunicação ou
expressão de sua voz, calada pelo autoritarismo da mãe.
Logo após o desfecho da festa de casamento, Nacha é encontrada morta. A
partir de então Tita, seguindo as ordens de Mamá Elena, assume a cozinha do rancho:
“[...] Tita era entre todas las mujeres de la casa la más capacitada para ocupar el
puesto vacante de la cocina, y ahí escapaban de su [de Mamá Elena] riguroso control
los sabores, los olores, las texturas y lo que más éstas pudieran provocar”
(ESQUIVEL, 2009, p. 45). Assim, a mãe, sem dar-se conta, lança Tita no espaço da
cozinha que, a despeito de ser considerado de submissão, para ela representa um
lugar de comunicação e atuação livre. De tal maneira, a cozinha se revela como um
local de subversão e, portanto, tem reforçado seu papel crucial na trajetória da
protagonista.
No tocante à significação da cozinha dentro da obra, é possível pensar nas
ideias que Elaine Showalter expõe a respeito da “zona selvagem”, que, “espacialmente
[...] significa uma área só de mulheres, um lugar proibido para os homens
696
(SHOWALTER, 1994, p. 48). Assim, a cozinha de Tita pode ser vista como esta zona
selvagem, que está fora do campo de ação de Mamá Elena – representante, na obra,
do poder patriarcal. Neste espaço desconhecido pelo elemento dominante, a
protagonista tem total liberdade de atuação e é nele que prepara os pratos por meio
dos quais comunica seus sentimentos. Um exemplo notável, que atesta o caráter de
comunicação por meio da comida, ocorre quando Tita prepara um prato com as rosas
que ganha de Pedro, então já casado com Rosaura, mas ainda e sempre apaixonado
pela protagonista:
[...] un extraño fenómeno [...] penetraba en el cuerpo de Pedro,
voluptuosa, aromática, calurosa, completamente sensual. Parecía
que habían descubierto un código nuevo de comunicación en el que
Tita era la emisora, Pedro el receptor y Gertrudis la afortunada en
quien se sintetizaba esta singular relación sexual, a través de la
comida (ESQUIVEL, 2009, p. 50).
Como é possível constatar no trecho transcrito, a comunicação por meio da
comida atingia não somente a Pedro, mas a todos os comensais, que, de acordo com
seus princípios, reagiam de modo mais ou menos intenso. Assim, Gertrudis, invadida
pela mesma sensação de calor, não consegue controlar seus instintos de
sensualidade e entrega-se a um oficial do exército revolucionário, com quem vai
embora do rancho. Logicamente, em Mamá Elena os efeitos eram menos perceptíveis,
uma vez que ela controlava até os próprios sentimentos e atitudes.
Cabe lembrar também que a cozinha é o espaço utilizado pela protagonista
para a escrita do “libro de cocina”, usado pela narradora como fonte de informações
para a construção da narrativa. A existência desse livro revela um ouro traço
importante da personagem: a prática da escrita. Tal aspecto torna interessante uma
comparação feita pela narradora: “[...] y así como un poeta juega con las palabras, así
ella jugaba a su antojo con los ingredientes y con las cantidades, obteniendo
resultados fenomenales” (ESQUIVEL, 2009, p. 64). Assim, além da atuação de Tita na
cozinha ser comparada ao procedimento do poeta diante das palavras, fica assinalado
na obra o envolvimento da protagonista com o mundo da escrita, envolvimento este
que seria continuado e aperfeiçoado pela sobrinha-neta, narradora da história, que,
vivendo num tempo de maior liberdade de atuação da mulher em âmbito geral, tem
condições de escrever sua obra manejando um discurso que, na época histórica de
Tita, era considerado pertencente apenas ao homem.
Ainda com relação à prática da escrita pela protagonista, chama atenção o
trecho: “[...] no podía evitar la sensación de transgredir las fórmulas tan rígidas que su
madre quería imponerle dentro de la cocina... y de la vida” (ESQUIVEL, 2009, p. 171).
697
Tal comentário permite corroborar a tendência de Tita à transgressão de fórmulas préestabelecidas, fórmulas estas que podem ser pensadas não somente como as receitas
que preparava e a tradição familiar, mas também como a própria escrita que produzia
dentro da cozinha e que, mais tarde, seria finalizada ou aperfeiçoada pela sobrinhaneta. A partir dessa perspectiva convém lembrar que, em termos formais, a obra
apresenta uma mescla de gêneros textuais, que perpassa o romance convencional, o
folhetim e o diário, dentre outros, o que denota a liberdade textual peculiar à pósmodernidade – época histórica em que vive a narradora da história.
Outro traço que se destaca na trajetória de Tita é a sua paradoxal experiência
materna. Mesmo sendo solteira e não tendo filhos, é ela quem amamenta o primeiro
sobrinho, Roberto, filho de Rosaura e Pedro. Tita faz o parto da irmã, amamenta o
sobrinho com o leite que, por amor, brota de seu corpo, e leva o sobrinho ao batizado;
esses atos, somados ao amor especial que desenvolve pelo bebê, permitem à
protagonista realizar-se como mãe, sem nunca tê-lo, de fato, sido. A experiência
materna, por assim dizer, será repetida posteriormente, quando Tita cuida da segunda
sobrinha, Esperanza, a quem educa e alimenta – desta vez, não com leite próprio,
mas com alimentos que prepara – e por meio de quem consegue ver concretizada sua
vitória na luta pelo fim da opressiva tradição familiar.
Percebendo a ligação entre o primeiro bebê, Pedro e Tita, Mamá Elena faz
com que Rosaura, o marido e o filho se mudem do rancho, para afastá-los de Tita. Tal
fato causa à protagonista extremo sofrimento, que, pouco tempo depois, é
intensificado, ao chegar a notícia de que Roberto morrera, pois não tinham conseguido
alimentá-lo, como Tita fazia. A dor diante da morte do sobrinho é tão intensa que a
protagonista tem um acesso de raiva e desacata a ordem da mãe, de que ninguém
chorasse pelo acontecido: “– ¡Mire lo que hago con tus órdenes!¡Ya me cansé!¡Ya me
cansé de obedecerla! [...] ¡Usted es la culpable de la muerte de Roberto!” (ESQUIVEL,
2009, p. 90).
Tais palavras representam a situação de maior enfrentamento de Tita em
relação à mãe e reforçam o caráter contestador da protagonista. Após esse episódio,
Tita é considerada louca e levada do rancho, a pedido da mãe, pelo Dr. Brown, para
um tratamento. No entanto, ao contrário de internar Tita em um sanatório, John Brown
a mantém em sua casa, onde oferece apoio, compreensão e tranquilidade para sua
recuperação. Esse é um fato extremamente importante na construção da personagem,
pois é a partir daí que ela passa a viver fora dos desmandos de Mamá Elena e,
698
portanto, a vivenciar situações que lhe proporcionam paz e liberdade, ao contrário do
que acontecia no rancho.
Depois de algum tempo sob os cuidados de Dr. Brown, Tita se recupera e
deseja não mais voltar a viver sob as imposições da mãe. No entanto, ocorre uma
invasão ao rancho, em que Mamá Elena é gravemente ferida, ficando impossibilitada
de andar. Diante de tal fato, Tita se vê obrigada a retornar à antiga casa e
desempenhar o papel que a tradição lhe conferia: cuidar da mãe enferma. Assim,
passa a tomar conta de Mamá Elena que, mesmo acamada, continua exercendo seu
autoritarismo, ao que Tita, pela situação, dessa vez precisava suportar calada.
Nesse contexto, destaca-se uma vez mais a importante relação entre Tita e a
cozinha. A protagonista reassume sua função de cozinhar para os que restavam no
rancho, mas a mãe, que alegava sentir-se mal após as refeições, passa a rejeitar a
comida, acusando a filha de tentar envenená-la. A partir disso, são contratadas várias
cozinheiras, mas nenhuma é aprovada por Mamá Elena. Tita, então, segue
cozinhando para a mãe, que, logo que comia, tomava um vomitório, prática que após
algum tempo a leva à morte. Tal aspecto ressalta a ideia sobre o poder exercido por
Tita através do preparo da comida, poder que jamais seria aceito por Mamá Elena –
daí ela não aceitar ser alimentada com a comida preparada pela filha.
Após a morte de Mamá Elena, Pedro e Rosaura – grávida pela segunda vez –
voltam a viver no rancho e logo nasce Esperanza. Tita, que, como ocorrera com
Roberto, é encarregada da alimentação da sobrinha, procede como Nacha, quando de
seu próprio nascimento: alimenta Esperanza com chás e praticamente cria a menina
no ambiente da cozinha, proporcionando-lhe a vivência e consequente aprendizado de
toda a riqueza simbolizada por este espaço. É interessante apontar que Tita interfere,
inclusive, na escolha do nome da sobrinha, marcando, com o significado desse nome,
o nascimento de uma geração que não seria fadada a imposições desmedidas.
Rosaura fica estéril após o parto e declara que a filha terá de seguir a tradição
familiar, como aconteceu com Tita, ou seja, teria de ficar solteira para cuidar da mãe.
A postura da irmã deixa a protagonista revoltada e ainda mais sedenta pela ruptura da
tradição. Como de costume, Tita refletia seus sentimentos nos alimentos que
preparava, de maneira que Rosaura não conseguia, literalmente, digerir a comida feita
pela irmã, passando a sofrer de graves problemas estomacais, que a levam à morte.
A morte das duas figuras representativas da tradição familiar simboliza o
início de um novo tempo, de liberdade de escolha e realização pessoal, e denota a
ruptura da tradição familiar, que culmina no casamento de Esperanza com Alex, filho
699
do Dr. Brown, o homem a quem amava. Nesse contexto, é possível vislumbrar outro
traço importante na construção de Tita: sua realização por meio do casamento da
sobrinha:
El haber logrado la boda entre Alex y Esperanza era el mayor triunfo
de Tita. Qué orgullosa se sentía de ver a Esperanza tan segura de sí
misma, tan inteligente, tan preparada, tan feliz, tan capaz, pero al
mismo tiempo tan femenina y tan mujer en el más amplio sentido de
la palabra (ESQUIVEL, 2009, p. 204).
A realização de Tita marca a vitória da modernidade sobre a tradição, razão
por que a protagonista tanto lutou e cujos benefícios seriam usufruídos pela sobrinha
Esperanza e pelas mulheres das gerações seguintes, inclusive a da sobrinha-neta.
Logo após o casamento de Esperanza e Alex, ocorrido no último capítulo da
obra, Tita e Pedro, amantes há anos com o consentimento de Rosaura, que exigia
somente que as aparências fossem mantidas, “Por primera vez en la vida podían
amarse libremente. Por muchos años fue necesario tomar una serie de precauciones
[...]. Desde ahora eso pertenecía al pasado” (ESQUIVEL, 2009, p. 207). Após viverem
uma intensa noite de amor, Tita e Pedro morrem, fato que parece atribuir ou confirmar
à protagonista o papel de lutar não em benefício próprio, mas das mulheres em geral.
Considerações finais
Pelo exposto, é possível concluir que, em Como agua para chocolate, o
relacionamento amoroso entre Tita e Pedro cede lugar à trajetória de luta da
protagonista pela eliminação do tradicionalismo familiar, cujo resultado, numa esfera
mais ampla, é a conquista do direito da mulher de fazer suas próprias escolhas.
A partir da construção da protagonista é possível constatar que, mesmo
diante dos obstáculos impostos pela mãe, símbolo da tradição familiar, por meio de
sua atuação na cozinha Tita consegue realizar-se no amor e, mais que isso,
conquistar uma liberdade que será vivida de maneira mais plena pelas gerações
seguintes de mulheres. Nesse âmbito, a cozinha recebe na obra um valor especial,
significando, dentre outros aspectos, um espaço de comunicação criado pela
protagonista para a expressão de seus sentimentos e ideias.
Tendo em vista a obra como um todo é possível vislumbrar a identificação
existente entre Tita e Nacha, identificação que será continuada na sobrinha de Tita,
Esperanza, e na filha desta, sobrinha-neta de Tita e narradora da história. Assim,
Nacha, Tita, Esperanza e a narradora são mulheres que, cada uma a seu modo, e
700
tendo em comum a cozinha, constituem uma corrente que simboliza a luta pelo direito
de voz à mulher.
Também é possível verificar uma relação de identidade entre Rosaura e
Mamá
Elena:
ambas
eram
defensoras
do
tradicionalismo
e extremamente
preocupadas com as aparências. Rosaura e a mãe morrem, assim como a tradição
familiar que ambas defendiam. Tita também morre, mas numa situação bem diferente
da mãe e da irmã, e deixando como herança não somente à sobrinha, mas às futuras
gerações de mulheres da família De la Garza – e, por extensão, ao mundo – a
liberdade de viver o amor.
Referências bibliográficas
CANDIDO, Antonio. A personagem no romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A
personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 51-80.
ESQUIVEL, Laura. Como agua para chocolate. 14. ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2009.
HIRATA, Helena [et al.] (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora da
UNESP, 2009.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 4. ed. Coimbra:
Almedina, 1994.
SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA,
Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio
de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57.
701
Download

Considerações sobre a construção da protagonista Tita em