II Colóquio da Pós-Graduação em Letras UNESP – Campus de Assis ISSN: 2178-3683 www.assis.unesp.br/coloquioletras [email protected] CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO DA PROTAGONISTA TITA EM COMO AGUA PARA CHOCOLATE (1989), DE LAURA ESQUIVEL Kátia Rodrigues Mello Miranda (Doutoranda – UNESP/Assis) RESUMO: O romance Como agua para chocolate (1989), da escritora mexicana Laura Esquivel, apresenta a história da protagonista Tita, que, por ser a caçula de três irmãs, deve cumprir a tradição familiar de não casar-se para cuidar da mãe até sua morte. Mesmo revoltada com a situação, Tita, que vive uma intensa paixão correspondida, não tem outra alternativa senão ficar solteira. No entanto, a trajetória da personagem ganha especial relevo, uma vez que Tita apresenta características e atitudes que contrariam a tradição familiar. A narração da história é feita pela sobrinha-neta da protagonista, que, anos após a morte da tia-avó, e tomando por base o livro de cozinha escrito por esta e os fragmentos da memória familiar, relata a história de Tita. Nesse contexto, o presente trabalho pretende destacar alguns traços constitutivos da protagonista e de sua trajetória de luta pela ruptura da tradição. PALAVRAS-CHAVE: Literatura hispano-americana; Laura Esquivel; personagem feminina. Introdução Publicado em 1989, o romance Como agua para chocolate, da mexicana Laura Esquivel, obteve grande sucesso de vendas, foi traduzido para diversas línguas e também adaptado para o cinema. Embora não sejam apresentadas datas precisas, por meio de alguns indícios é possível verificar que a narrativa se passa entre os últimos anos do século XIX e as primeiras décadas do século XX, coincidindo a maior parte de sua ação com a Revolução Mexicana. A narrativa tem como pano de fundo esse contexto e nela se destacam ideias relacionadas à consciência patriarcal característica do período. Em Como agua para chocolate predominam as personagens do sexo feminino, fator que desperta a atenção para a construção dessas personagens, por meio das quais é possível evidenciar diferentes posturas das mulheres com relação ao tradicionalismo que marca a época. Categoria fundamental da estrutura narrativa, a personagem, conforme enfatiza Antonio Candido (1987, p. 55), é uma criação que “comunica a impressão da mais legítima verdade existencial”, o que ratifica a importância do estudo dessa 688 categoria para a análise de uma obra literária. Diante disso, o presente trabalho tem por objetivo pontuar alguns aspectos da construção da personagem Tita, protagonista do romance, de modo a compor um esboço que sirva de suporte para reflexões futuras. Vale assinalar que nossas considerações a respeito da construção da protagonista partem de uma perspectiva de cunho social, em consonância com as ideias expostas por Elaine Showalter no estudo “A crítica feminista no território selvagem”, que constitui parte da obra Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (1994). 1. A história do romance e o romance da história A obra é dividida em doze capítulos, correspondentes aos meses do ano apresentados em ordem crescente, ou seja, o primeiro capítulo se intitula Janeiro, o segundo, Fevereiro, e assim por diante. Cada capítulo é iniciado por uma receita, introduzida da maneira convencional: inicialmente, são relacionados os “Ingredientes” e, em seguida, é anunciada a “Manera de hacerse”. As explicações sobre o preparo dos pratos são mescladas à narração da história, e, a partir de cada receita, são narrados fatos associados à memória do momento em que o prato foi servido. Sendo assim, há na obra a presença da linguagem descritiva, própria das receitas, e da narrativa, para o relato dos acontecimentos. Ao final de cada capítulo aparece a expressão “Continuará”, com o anúncio da “Siguiente receta”. Podemos dizer que tal estrutura seja uma paródia do folhetim, publicação comum nos periódicos da época do Romantismo, que teve grande êxito de meados do século XIX até as primeiras décadas do século XX (MEYER, 1996). Em linhas gerais, o romance folhetim apresentava narrativas de fácil compreensão que vinham publicadas de modo fracionado, funcionando, assim, como chamariz para a aquisição dos números seguintes dos periódicos. Esse caráter de publicação fragmentada, assim como o conteúdo do livro, é assinalado na obra de Esquivel desde o subtítulo: “Novela de entregas mensuales, con recetas, amores y remédios caseros”. No entanto, a obra foi publicada diretamente em volume, fato que permite pensar a estruturação fragmentária como uma espécie de paródia – grosso modo dizendo – da publicação folhetinesca. Também era comum no romance folhetim o estabelecimento de diálogo explícito com o leitor, possivelmente não só como estilo de escrita, mas também como 689 uma das estratégias comerciais de vinculação do leitor à publicação. Esse tom dialógico pode ser observado em Como agua para chocolate, como demonstra o seguinte fragmento do primeiro parágrafo da narrativa: “Les sugiero ponerse un pequeño trozo de cebolla en la molera [...]. No sé si a ustedes les ha pasado pero a mí la mera verdad sí” (ESQUIVEL, 2009, p. 11). O principal público leitor do romance folhetim era o feminino, que, ao longo do século XIX, foi apresentando maior acesso ao letramento e consequente interesse pela leitura. Assim, para atender às expectativas das leitoras, bem como da estrutura social vigente, as histórias veiculadas nesse tipo de publicação geralmente possuíam estruturas simples, de fácil leitura, e traziam histórias de amor, cujas personagens femininas eram cordatas e submissas, de modo a reforçar, portanto, o modelo patriarcal predominante na época. Com relação aos aspectos de estrutura e conteúdo, podemos pensar que, numa leitura mais linear, Como agua para chocolate atende, de certo modo, ao pressuposto do romance folhetim, já que apresenta uma estrutura aparentemente simples e uma história cujo eixo principal é o amor. No entanto, numa leitura mais atenta é possível verificar no romance sofisticada elaboração estrutural e, sobretudo, aspectos que chamam atenção quanto à situação de desvantagem social da mulher da época. No tocante à narração é possível verificar na obra vários níveis narrativos. No principal deles surge a voz da sobrinha-neta da protagonista Tita: “Mamá decía que [...] yo soy igual de sensible a la cebolla que Tita, mi tía abuela” (ESQUIVEL, 2009, p. 11). Essa narradora revela seu parentesco e identificação com a protagonista, mas não o seu nome e nem fornece aspectos peculiares de sua própria história – ao menos não extensiva e declaradamente –, o que permite deduzir que seu interesse primordial é o de oferecer o relato da trajetória de sua tia-avó. O espaço primordial da história é o rancho da família De la Garza, onde a protagonista vive com a mãe, as irmãs Rosaura e Gertrudis, a cozinheira Nacha, a empregada Chencha e alguns outros empregados, encarregados de trabalhar nas terras da família. Viúva desde o nascimento de Tita, a autoritária Mamá Elena comanda o rancho, as filhas e os empregados com extrema rigidez, criando suas próprias regras e exigindo a obediência de todos. Tita, aos quinze anos, passa a viver com Pedro uma intensa paixão correspondida; no entanto, Mamá Elena, que representa na obra o poder patriarcal, impede-a de casar-se com ele, condenando-a a 690 cumprir a tradição familiar, segundo a qual a filha caçula deveria permanecer solteira para cuidar da mãe. Convém esclarecer que a ideia de patriarcalismo é posta aqui de acordo com a acepção do termo “Patriarcado”, exposto no Dicionário crítico do feminismo (2009, p. 173): “Nessa [...] acepção feminista, o patriarcado designa uma formação social em que os homens têm o poder, ou ainda, mais simplesmente, o poder é dos homens”. Mesmo sendo mulher, Mamá Elena pode ser vista como representante patriarcal, uma vez que, após a morte do marido, torna-se a responsável pelo rancho e pela família, sobre os quais exerce poder total. Assim, Mamá Elena oferece a mão de Rosaura, a filha mais velha, a Pedro, que, com a intenção de ficar próximo de Tita, aceita, e, após o casamento, vem morar no rancho. Devido à morte da cozinheira Nacha, a protagonista passa a cozinhar para toda a família e, a partir de sua atuação no espaço da cozinha, que não estava sob o controle da mãe, ela estabelece um código de comunicação amorosa com Pedro, através dos alimentos que prepara. Porém, percebendo que o amor entre Tita e o cunhado ainda se mantinha, Mamá Elena age para separá-los. Após uma trajetória intensamente marcada pelo anseio de ruptura com a tradição familiar, Tita conquista a liberdade para a realização amorosa, que será vivida de modo mais pleno pelas mulheres a partir da geração da sobrinha Esperanza, a quem, ao contrário do que acontece com Tita, é permitido casar-se com o homem que ama. Como não conviveu com a protagonista e nem presenciou os acontecimentos que expõe, a sobrinha-neta de Tita, na condição de narradora, vale-se de dois elementos principais, ambos de caráter fragmentário ou lacunar, para a construção de seu relato e, por conseguinte, da imagem de Tita: a memória familiar e o “libro de cocina”, encontrado nos restos do incêndio em que morrera Tita e deixado à narradora como herança por sua mãe, Esperanza, conforme é possível verificar no seguinte trecho dos parágrafos finais da narração: Una capa de ceniza [...] cubría todo el rancho. Cuando Esperanza, mi madre, regresó de su viaje de bodas, sólo encontró bajo los restos de lo que fue el rancho este libro de cocina que me heredó al morir y que narra en cada una de sus recetas esta historia de amor enterrada. Dicen que bajo las cenizas floreció todo tipo de vida, convirtiendo ese terreno en el más fértil de la región. Durante mi niñez yo tuve la fortuna de gozar de las deliciosas frutas y verduras que ahí se producían (ESQUIVEL, 2009, p. 210). No trecho transcrito é possível constatar não somente que a narradora desfruta dos benefícios proporcionados pela história de luta da tia-avó, mas também a 691 utilização do livro de cozinha e da memória familiar na construção do relato, esta última evidenciada por meio do vocábulo “Dicen”, que aparece diversas vezes no decorrer da narração, desde o primeiro parágrafo. Ao “desenterrar” a história de amor da tia-avó, a narradora revela a trajetória de uma mulher que, mais do que simplesmente viver uma história de amor proibido, lutou pela ruptura de uma tradição castradora e silenciadora da voz e vontade feminina. É interessante pontuar que a narradora não tem participação direta na história da protagonista, uma vez que nasce após os fatos narrados. No entanto, por pertencer à família de Tita, vemos que a participação dessa narradora não pode ser totalmente desvinculada da história narrada, já que nela é apresentado o percurso de uma conquista – a da ruptura com a tradição – que será desfrutada a partir da geração de Esperanza, mãe da narradora e, consequentemente, por esta. Em outras palavras, a narradora não é testemunha direta dos fatos que relata, mas pertence a uma geração que se beneficia dos resultados da trajetória da protagonista, o que estabelece entre essa narradora e a história que relata um vínculo de continuidade que não pode ser desconsiderado. Diante disso, é possível entrever a caracterização da narradora de Como agua para chocolate a partir de dois ângulos. O primeiro apresenta seu posicionamento em relação não aos fatos relatados a respeito Tita, mas à história do livro em si, ou seja, das condições de organização, produção e constituição do relato enquanto obra. Nesta perspectiva, a narradora possui fundamental importância, uma vez que é nas mãos dela em que vão parar os restos do livro de cozinha de Tita, a partir dos quais se faz possível a (re)construção da trajetória da protagonista. Embora não seja este o principal objeto de discussão no presente artigo, vale apontar que, nesse âmbito, a narradora pode ser identificada como um alter-ego da autora, ou seja, a produtora da obra. De outro ângulo, vemos que essa narradora é, ainda, detentora da memória familiar, na qual também se baseia para a construção do relato. Assim, é possível inferir que, para ter material suficiente para resgatar a história de amor “enterrada”, a narradora, que não conviveu com Tita, nem participou diretamente dos acontecimentos que narra, lançou mão, além da consulta ao livro de cozinha escrito pela tia-avó, de relatos daqueles que conheceram a protagonista, ou seja, de informações advindas da memória familiar, fornecidas possivelmente por seus pais – sobretudo por sua mãe, Esperanza, que foi educada por Tita e a primeira a desfrutar inteiramente da liberdade pela qual a protagonista lutou –, entre outros. 692 Assim, podemos dizer que a narradora é personagem fundamental da história do livro enquanto relato organizado, mas não pertence de forma direta à história narrada, ou seja, a trajetória de amor e luta de Tita. Tendo em vista o que foi observado, é possível concluir que a história de Tita é narrada a partir de pelo menos dois tipos de fragmentos: relatos escritos – constituídos pelos restos do livro de cozinha de Tita – e relatos orais – adquiridos pela narradora a partir da memória familiar. Sob tal prisma, para ser apresentada ao leitor, a protagonista precisou ser, mais do que construída, reconstruída pela narradora. Desse modo, ao ser construída a partir de fragmentos, é possível dizer que não existe uma visão unívoca a respeito de Tita enquanto personagem da história familiar da narradora, mas que essa visão é completada pela narradora, que, além de coligir os restos do livro de cozinha e da memória familiar, possui as próprias ideias, convicções e ponto de vista, e pertence a um tempo futuro, em que a mulher tem total liberdade no manejo do discurso. Em linhas gerais, resulta disso tudo a existência em Como agua para chocolate de um processo de mise en abyme, em que podem ser observadas duas histórias principais: a primeira seria a da narradora, que acontece após a morte de Tita, e, portanto, é posterior à história de amor e luta relatada, e a segunda seria a história Tita, em que a narradora recupera a trajetória da tia-avó, cujo desfecho possibilitou que a história da narradora – a primeira história – fosse como é, ou seja, livre das amarras da tradição. 2. O amor, a cozinha e outros ingredientes A construção da personagem Tita se dá, basicamente, em torno de dois elementos essenciais: o amor e a cozinha. Juntos, esses elementos serão os eixos principais que nortearão a trajetória da protagonista, marcada por um movimento de inconformidade, questionamento e ruptura da tradição familiar que oprimia as mulheres. Nascida em algum momento impreciso do final do século XIX, Tita vive em uma sociedade patriarcalista e passa sua juventude – a que praticamente correspondem onze dos doze capítulos da obra – em meio aos acontecimentos da Revolução Mexicana e, principalmente, sob o jugo de uma tradição familiar à qual questiona, mas que, por quase toda a sua vida, tem de obedecer. 693 A narrativa se inicia com uma apresentação de Tita em que fica assinalado o forte laço existente entre a cozinha e a protagonista: “Tita arribó a este mundo prematuramente, sobre la mesa de la cocina [...] nació llorando de antemano, tal vez porque ella sabía que [...] en esta vida le estaba negado el matrimonio” (ESQUIVEL, 2009, p. 11). Dois dias após o nascimento de Tita, Mamá Elena fica viúva e perde o leite; desde então, passa a preocupar-se com o comando do rancho e da família, deixando os cuidados e alimentação da recém-nascida a cargo de Nacha, antiga cozinheira do rancho. A partir desse contexto, é possível vislumbrar outras importantes características constitutivas da protagonista, delineadas desde seu nascimento: a tristeza, o pranto, o sofrimento, a rejeição por parte da mãe e a alimentação recebida de Nacha, a quem: [...] se consideraba la más capacitada para ‘formarle el estómago a la inocente criaturita’, a pesar de que nunca se casó ni tuvo hijos. Ni siquiera sabía leer ni escribir, pero sí sobre cocina tenía tan profundos conocimientos como la que más (ESQUIVEL, 2009, p. 12). A partir de então, os vínculos entre Tita e a cozinha tornam-se cada vez mais sólidos, uma vez que a menina passa a maior parte do tempo nesse espaço, ao lado daquela que seria para ela mais que uma mãe. É com Nacha que Tita aprende sobre a vida e sobre o amor; é dela que recebe o alimento não só para o desenvolvimento físico, mas, principalmente, para a formação de uma consciência em que não havia lugar para a proibição do amor e da felicidade. Nesse âmbito, merece especial atenção a figura de Nacha: a cozinheira, mesmo sendo analfabeta, transmite a Tita todo seu conhecimento da arte culinária, de modo a simbolizar na obra a importância da tradição oral. Desde a infância, Tita se diferencia das irmãs, Rosaura e Gertrudis, que são totalmente submissas às ordens da mãe e conformam-se com a atuação restrita ao ambiente privado. Já Tita, que domina por completo a cozinha – seu espaço de atuação maior e pertencente ao universo privado –, apresenta atitudes de transgressão, que denotam o anseio de ampliar esse espaço fechado e transitar também pelo espaço aberto: [...] a los nueve años de edad se había ido de pinta con los niños del pueblo. Tenía prohibido jugar con varones, pero ya estaba harta de los juegos con sus hermanas. Se fueron a la orilla del río grande para ver quién era capaz de cruzarlo a nado, en el menor tiempo. Qué placer sintió [...] al ser la ganadora. 694 Otro de sus grandes triunfos [...] tenía catorce años y paseaba en carretela acompañada de sus hermanas [...]. Los caballos salieron corriendo [...] El cochero perdió el control del vehículo. Tita [...] lo pudo dominar a los cuatro caballos. Cuando algunos hombres del pueblo las alcanzaron para ayudarlas, se admiraron de la hazaña de Tita. En el pueblo la recibieron como a una heroína (ESQUIVEL, 2009, p. 37-8). A partir de tais feitos tornam-se evidentes características fundamentais na construção de Tita, como a atitude, a coragem e o instinto de luta em situações de dificuldade, a ponto de causar a admiração dos homens. Outro elemento crucial na construção da personagem é o anseio pela ruptura de regras. Um exemplo disso se dá quando ela, ao costurar um vestido, muda os procedimentos; em consequência, é fortemente repreendida pela mãe, e, ao tentar contestá-la, é silenciada: “¿Vamos a empezar otra vez con la rebeldía? Ya bastante tenías con la de haberte atrevido a coser rompiendo las reglas” (ESQUIVEL, 2009, p. 17). Neste trecho também fica clara a intolerância de Mamá Elena diante de qualquer situação de questionamento de suas ordens. Aos quinze anos, Tita começa a viver uma paixão correspondida por Pedro, que viria a ser o amor de toda a sua vida. No entanto, Mamá Elena tira da protagonista qualquer esperança quanto a casamento, situação em que Tita, novamente sem êxito, tenta contestar a ordem da mãe: – Sabes muy bien que por ser la más chica de las mujeres a ti te corresponde cuidarme hasta el día de mi muerte. [...] – Pero es que yo opino que... – ¡Tú no opinas nada y se acabó! Nunca, por generaciones, nadie en mi familia ha protestado ante esta costumbre y no va a ser una de mis hijas quien lo haga (ESQUIVEL, 2009, p. 16). Dessa forma, são revelados outros traços fundamentais da protagonista: o questionamento e o inconformismo no tocante à tradição familiar, elementos confirmados no seguinte fragmento: [...] Tita no estaba conforme. Una gran cantidad de dudas e inquietudes acudían a su mente. Por ejemplo, le gustaría tener conocimiento de quién había iniciado esta tradición familiar. [...] quería saber, ¿cuáles fueron las investigaciones que se llevaron a cabo para concluir que la hija menor era la más indicada para velar por su madre y no la hija mayor? ¿Se había tomado alguna vez en cuenta la opinión de las hijas afectadas? ¿Les estaba permitido al menos, si es que no se podía casar, conocer el amor? ¿O ni siquiera eso? (ESQUIVEL, 2009, p. 16-7). O fato de Pedro aceitar casar-se com Rosaura, mesmo sendo para ficar próximo a Tita, causa a ela grande tristeza e frustração. No entanto, a narradora 695 sentencia a respeito de Tita: “El papel de perdedora no se había escrito para ella” (ESQUIVEL, 2009, p. 37). Tal afirmação, proferida em meio à narração do momento em que a protagonista tenta disfarçar o extremo sofrimento pelo casamento entre o homem de sua vida com sua irmã, prenuncia o desfecho da história, em que Tita, após muita luta, consegue romper com a tradição familiar. Assim, mesmo passando por várias dificuldades, a personagem é marcada desde o início pela vitória. No dia do casamento de Pedro e Rosaura acontecem fatos importantes, que também revelam características essenciais da construção da protagonista. Encarregada, como castigo, de ajudar Nacha nos preparativos para o banquete, Tita, muito triste, derrama lágrimas na massa do bolo de casamento. Ao comerem o bolo, todos os convidados apresentam reações: Una inmensa nostalgia se adueñaba de todos los presentes en cuanto le daban el primer bocado al pastel. [...] el llanto fue el primer síntoma de una intoxicación rara que tenía algo que ver con una melancolía y frustración que hizo presa de todos los invitados y los hizo terminar en el patio, los corrales y los baños añorando cada uno el amor de su vida. Ni uno solo escapó del hechizo [...]. (ESQUIVEL, 2009, p. 39). Fica assinalada uma característica fundamental da personagem: o poder mágico e transformador de sua comida. Através dos alimentos que preparava, Tita conseguia não só expressar seus sentimentos, mas fazer com que os comensais sentissem o mesmo que ela. Isso acontece em várias passagens do romance, o que atribui à comida preparada pela protagonista o caráter de meio de comunicação ou expressão de sua voz, calada pelo autoritarismo da mãe. Logo após o desfecho da festa de casamento, Nacha é encontrada morta. A partir de então Tita, seguindo as ordens de Mamá Elena, assume a cozinha do rancho: “[...] Tita era entre todas las mujeres de la casa la más capacitada para ocupar el puesto vacante de la cocina, y ahí escapaban de su [de Mamá Elena] riguroso control los sabores, los olores, las texturas y lo que más éstas pudieran provocar” (ESQUIVEL, 2009, p. 45). Assim, a mãe, sem dar-se conta, lança Tita no espaço da cozinha que, a despeito de ser considerado de submissão, para ela representa um lugar de comunicação e atuação livre. De tal maneira, a cozinha se revela como um local de subversão e, portanto, tem reforçado seu papel crucial na trajetória da protagonista. No tocante à significação da cozinha dentro da obra, é possível pensar nas ideias que Elaine Showalter expõe a respeito da “zona selvagem”, que, “espacialmente [...] significa uma área só de mulheres, um lugar proibido para os homens 696 (SHOWALTER, 1994, p. 48). Assim, a cozinha de Tita pode ser vista como esta zona selvagem, que está fora do campo de ação de Mamá Elena – representante, na obra, do poder patriarcal. Neste espaço desconhecido pelo elemento dominante, a protagonista tem total liberdade de atuação e é nele que prepara os pratos por meio dos quais comunica seus sentimentos. Um exemplo notável, que atesta o caráter de comunicação por meio da comida, ocorre quando Tita prepara um prato com as rosas que ganha de Pedro, então já casado com Rosaura, mas ainda e sempre apaixonado pela protagonista: [...] un extraño fenómeno [...] penetraba en el cuerpo de Pedro, voluptuosa, aromática, calurosa, completamente sensual. Parecía que habían descubierto un código nuevo de comunicación en el que Tita era la emisora, Pedro el receptor y Gertrudis la afortunada en quien se sintetizaba esta singular relación sexual, a través de la comida (ESQUIVEL, 2009, p. 50). Como é possível constatar no trecho transcrito, a comunicação por meio da comida atingia não somente a Pedro, mas a todos os comensais, que, de acordo com seus princípios, reagiam de modo mais ou menos intenso. Assim, Gertrudis, invadida pela mesma sensação de calor, não consegue controlar seus instintos de sensualidade e entrega-se a um oficial do exército revolucionário, com quem vai embora do rancho. Logicamente, em Mamá Elena os efeitos eram menos perceptíveis, uma vez que ela controlava até os próprios sentimentos e atitudes. Cabe lembrar também que a cozinha é o espaço utilizado pela protagonista para a escrita do “libro de cocina”, usado pela narradora como fonte de informações para a construção da narrativa. A existência desse livro revela um ouro traço importante da personagem: a prática da escrita. Tal aspecto torna interessante uma comparação feita pela narradora: “[...] y así como un poeta juega con las palabras, así ella jugaba a su antojo con los ingredientes y con las cantidades, obteniendo resultados fenomenales” (ESQUIVEL, 2009, p. 64). Assim, além da atuação de Tita na cozinha ser comparada ao procedimento do poeta diante das palavras, fica assinalado na obra o envolvimento da protagonista com o mundo da escrita, envolvimento este que seria continuado e aperfeiçoado pela sobrinha-neta, narradora da história, que, vivendo num tempo de maior liberdade de atuação da mulher em âmbito geral, tem condições de escrever sua obra manejando um discurso que, na época histórica de Tita, era considerado pertencente apenas ao homem. Ainda com relação à prática da escrita pela protagonista, chama atenção o trecho: “[...] no podía evitar la sensación de transgredir las fórmulas tan rígidas que su madre quería imponerle dentro de la cocina... y de la vida” (ESQUIVEL, 2009, p. 171). 697 Tal comentário permite corroborar a tendência de Tita à transgressão de fórmulas préestabelecidas, fórmulas estas que podem ser pensadas não somente como as receitas que preparava e a tradição familiar, mas também como a própria escrita que produzia dentro da cozinha e que, mais tarde, seria finalizada ou aperfeiçoada pela sobrinhaneta. A partir dessa perspectiva convém lembrar que, em termos formais, a obra apresenta uma mescla de gêneros textuais, que perpassa o romance convencional, o folhetim e o diário, dentre outros, o que denota a liberdade textual peculiar à pósmodernidade – época histórica em que vive a narradora da história. Outro traço que se destaca na trajetória de Tita é a sua paradoxal experiência materna. Mesmo sendo solteira e não tendo filhos, é ela quem amamenta o primeiro sobrinho, Roberto, filho de Rosaura e Pedro. Tita faz o parto da irmã, amamenta o sobrinho com o leite que, por amor, brota de seu corpo, e leva o sobrinho ao batizado; esses atos, somados ao amor especial que desenvolve pelo bebê, permitem à protagonista realizar-se como mãe, sem nunca tê-lo, de fato, sido. A experiência materna, por assim dizer, será repetida posteriormente, quando Tita cuida da segunda sobrinha, Esperanza, a quem educa e alimenta – desta vez, não com leite próprio, mas com alimentos que prepara – e por meio de quem consegue ver concretizada sua vitória na luta pelo fim da opressiva tradição familiar. Percebendo a ligação entre o primeiro bebê, Pedro e Tita, Mamá Elena faz com que Rosaura, o marido e o filho se mudem do rancho, para afastá-los de Tita. Tal fato causa à protagonista extremo sofrimento, que, pouco tempo depois, é intensificado, ao chegar a notícia de que Roberto morrera, pois não tinham conseguido alimentá-lo, como Tita fazia. A dor diante da morte do sobrinho é tão intensa que a protagonista tem um acesso de raiva e desacata a ordem da mãe, de que ninguém chorasse pelo acontecido: “– ¡Mire lo que hago con tus órdenes!¡Ya me cansé!¡Ya me cansé de obedecerla! [...] ¡Usted es la culpable de la muerte de Roberto!” (ESQUIVEL, 2009, p. 90). Tais palavras representam a situação de maior enfrentamento de Tita em relação à mãe e reforçam o caráter contestador da protagonista. Após esse episódio, Tita é considerada louca e levada do rancho, a pedido da mãe, pelo Dr. Brown, para um tratamento. No entanto, ao contrário de internar Tita em um sanatório, John Brown a mantém em sua casa, onde oferece apoio, compreensão e tranquilidade para sua recuperação. Esse é um fato extremamente importante na construção da personagem, pois é a partir daí que ela passa a viver fora dos desmandos de Mamá Elena e, 698 portanto, a vivenciar situações que lhe proporcionam paz e liberdade, ao contrário do que acontecia no rancho. Depois de algum tempo sob os cuidados de Dr. Brown, Tita se recupera e deseja não mais voltar a viver sob as imposições da mãe. No entanto, ocorre uma invasão ao rancho, em que Mamá Elena é gravemente ferida, ficando impossibilitada de andar. Diante de tal fato, Tita se vê obrigada a retornar à antiga casa e desempenhar o papel que a tradição lhe conferia: cuidar da mãe enferma. Assim, passa a tomar conta de Mamá Elena que, mesmo acamada, continua exercendo seu autoritarismo, ao que Tita, pela situação, dessa vez precisava suportar calada. Nesse contexto, destaca-se uma vez mais a importante relação entre Tita e a cozinha. A protagonista reassume sua função de cozinhar para os que restavam no rancho, mas a mãe, que alegava sentir-se mal após as refeições, passa a rejeitar a comida, acusando a filha de tentar envenená-la. A partir disso, são contratadas várias cozinheiras, mas nenhuma é aprovada por Mamá Elena. Tita, então, segue cozinhando para a mãe, que, logo que comia, tomava um vomitório, prática que após algum tempo a leva à morte. Tal aspecto ressalta a ideia sobre o poder exercido por Tita através do preparo da comida, poder que jamais seria aceito por Mamá Elena – daí ela não aceitar ser alimentada com a comida preparada pela filha. Após a morte de Mamá Elena, Pedro e Rosaura – grávida pela segunda vez – voltam a viver no rancho e logo nasce Esperanza. Tita, que, como ocorrera com Roberto, é encarregada da alimentação da sobrinha, procede como Nacha, quando de seu próprio nascimento: alimenta Esperanza com chás e praticamente cria a menina no ambiente da cozinha, proporcionando-lhe a vivência e consequente aprendizado de toda a riqueza simbolizada por este espaço. É interessante apontar que Tita interfere, inclusive, na escolha do nome da sobrinha, marcando, com o significado desse nome, o nascimento de uma geração que não seria fadada a imposições desmedidas. Rosaura fica estéril após o parto e declara que a filha terá de seguir a tradição familiar, como aconteceu com Tita, ou seja, teria de ficar solteira para cuidar da mãe. A postura da irmã deixa a protagonista revoltada e ainda mais sedenta pela ruptura da tradição. Como de costume, Tita refletia seus sentimentos nos alimentos que preparava, de maneira que Rosaura não conseguia, literalmente, digerir a comida feita pela irmã, passando a sofrer de graves problemas estomacais, que a levam à morte. A morte das duas figuras representativas da tradição familiar simboliza o início de um novo tempo, de liberdade de escolha e realização pessoal, e denota a ruptura da tradição familiar, que culmina no casamento de Esperanza com Alex, filho 699 do Dr. Brown, o homem a quem amava. Nesse contexto, é possível vislumbrar outro traço importante na construção de Tita: sua realização por meio do casamento da sobrinha: El haber logrado la boda entre Alex y Esperanza era el mayor triunfo de Tita. Qué orgullosa se sentía de ver a Esperanza tan segura de sí misma, tan inteligente, tan preparada, tan feliz, tan capaz, pero al mismo tiempo tan femenina y tan mujer en el más amplio sentido de la palabra (ESQUIVEL, 2009, p. 204). A realização de Tita marca a vitória da modernidade sobre a tradição, razão por que a protagonista tanto lutou e cujos benefícios seriam usufruídos pela sobrinha Esperanza e pelas mulheres das gerações seguintes, inclusive a da sobrinha-neta. Logo após o casamento de Esperanza e Alex, ocorrido no último capítulo da obra, Tita e Pedro, amantes há anos com o consentimento de Rosaura, que exigia somente que as aparências fossem mantidas, “Por primera vez en la vida podían amarse libremente. Por muchos años fue necesario tomar una serie de precauciones [...]. Desde ahora eso pertenecía al pasado” (ESQUIVEL, 2009, p. 207). Após viverem uma intensa noite de amor, Tita e Pedro morrem, fato que parece atribuir ou confirmar à protagonista o papel de lutar não em benefício próprio, mas das mulheres em geral. Considerações finais Pelo exposto, é possível concluir que, em Como agua para chocolate, o relacionamento amoroso entre Tita e Pedro cede lugar à trajetória de luta da protagonista pela eliminação do tradicionalismo familiar, cujo resultado, numa esfera mais ampla, é a conquista do direito da mulher de fazer suas próprias escolhas. A partir da construção da protagonista é possível constatar que, mesmo diante dos obstáculos impostos pela mãe, símbolo da tradição familiar, por meio de sua atuação na cozinha Tita consegue realizar-se no amor e, mais que isso, conquistar uma liberdade que será vivida de maneira mais plena pelas gerações seguintes de mulheres. Nesse âmbito, a cozinha recebe na obra um valor especial, significando, dentre outros aspectos, um espaço de comunicação criado pela protagonista para a expressão de seus sentimentos e ideias. Tendo em vista a obra como um todo é possível vislumbrar a identificação existente entre Tita e Nacha, identificação que será continuada na sobrinha de Tita, Esperanza, e na filha desta, sobrinha-neta de Tita e narradora da história. Assim, Nacha, Tita, Esperanza e a narradora são mulheres que, cada uma a seu modo, e 700 tendo em comum a cozinha, constituem uma corrente que simboliza a luta pelo direito de voz à mulher. Também é possível verificar uma relação de identidade entre Rosaura e Mamá Elena: ambas eram defensoras do tradicionalismo e extremamente preocupadas com as aparências. Rosaura e a mãe morrem, assim como a tradição familiar que ambas defendiam. Tita também morre, mas numa situação bem diferente da mãe e da irmã, e deixando como herança não somente à sobrinha, mas às futuras gerações de mulheres da família De la Garza – e, por extensão, ao mundo – a liberdade de viver o amor. Referências bibliográficas CANDIDO, Antonio. A personagem no romance. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1987. p. 51-80. ESQUIVEL, Laura. Como agua para chocolate. 14. ed. Buenos Aires: Debolsillo, 2009. HIRATA, Helena [et al.] (orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora da UNESP, 2009. MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. 4. ed. Coimbra: Almedina, 1994. SHOWALTER, Elaine. A crítica feminista no território selvagem. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 23-57. 701