Anais do VIII Seminário de Iniciação Científica SóLetras – CLCA – UENP/CJ - ISSN 18089216
O ESPAÇO NA NARRATIVA CONTEMPORÂNEA: UM ESTUDO NO CONTO
ABERRAÇÃO
Adriana Gisele Estevão
(G-UENP/CLCA-CJ)
Adenize Franco
(Orientadora-UENP/CLCA-CJ)
Introdução
Personagens em constante movimentação, multiplicidade de vozes,
dessacralização da obra e texto aberto colocam a literatura brasileira contemporânea em
sintonia com as teorias pós-modernas, que associam essas características aos avanços
científicos e às transformações socioeconômicas que vem ocorrendo desde o último século.
A partir de 1970, principalmente nas duas últimas décadas, a literatura
brasileira passa a ser produzida centrada nos moldes da vida urbana tendo como cenário as
grandes cidades que substituem o romance regionalista e trazem à tona novas problemáticas,
ainda que a intenção não seja a de denúncia.
Sob o pano de fundo das mudanças ocorridas na sociedade globalizada, o
espaço no qual acontecem as narrativas, ou seja, o espaço urbano que segrega e oprime as
pessoas, é responsável pela transformação dos indivíduos em sujeitos vazios, solitários e
angustiados perante todos os problemas sociais e existenciais desencadeados pelas
transformações ocorridas.
Por esse viés, nosso trabalho procura refletir como a categoria espaço pode
ser observada a partir do conto Aberração (1993), de Bernardo Carvalho, já que o espaço
agora não é mais concebido somente como geografia, como região, mas como elemento
constituinte de personalidade.
O espaço, como categoria estrutural na composição de um texto, segundo
Santos e Oliveira (2001), é definido como o conjunto de indicações, sejam elas concretas ou
abstratas, que fazem tal personagem e até mesmo tal obra existir, já que é impossível “ser sem
estar”, ou seja, algo só existe porque conseguimos situá-lo, porque conseguimos construir um
lugar para este ser e dessa forma atribuímos a condição de “estar”, estar em algum lugar, de
algum modo, com alguém.
Ainda segundo esses autores, quando temos um personagem ficcional, sua
existência só é possibilitada pelo seu posicionamento em relação a outros elementos da
narrativa.
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Dessa maneira, concebendo o espaço como um quadro de posicionamentos
relativos e sabendo que sujeito e espaço se acham interligados, hoje mais do que nunca esse
elemento deve ser pensado como o responsável pela constituição da personalidade, e se o
espaço é essencialmente conturbado e não permite a fixação e a estabilidade, há
necessariamente a perda de referenciais e a necessidade da desterritorialização, que provoca o
surgimento de personalidades deslocadas. Segundo Santos e Oliveira (2001),
No cenário urbano o sujeito se dissemina em múltiplos papéis. A cidade se apresenta
como um tabuleiro de xadrez em que identificações e movimentos emergentes se
cruzam. Nessa cartografia, se esboça uma nova figura: a do estrangeiro na própria
terra, aquele que experimente viver nas bordas de um palco de migrações, de etnias,
de subjetividades. O habitante do espaço urbano é concebido como um sujeito
rasurado, deslocado. É alguém que, se sabendo estrangeiro, renuncia a qualquer
pretensão de totalidade, de completude, pois já não há mais nem centro nem
periferia fixos e delimitados, mas um campo de batalha onde fervilham diferenças e
traços multiculturais. (SANTOS, OLIVEIRA, 2001, p.88)
Assim, o espaço social passa a influenciar ainda mais o espaço psicológico
que se constrói a partir de deslocamentos e perdas, diante de personagens que se revelam
sensíveis à paisagem.
Análise espacial no conto
Nas obras de Bernardo Carvalho, encontramos identidades instáveis,
paranoicas e subvertidas que retratam a condição humana diante das perdas e dos
deslocamentos. Desse modo, as obras de Bernardo Carvalho em sintonia com os tempos pósmodernos, apresentam a situação de desterritorialização e de fragmentação na qual vivem os
sujeitos contemporâneos. Em Aberração isso se comprova.
Narrado em primeira pessoa, em uma narrativa não linear, que recorre à
memória do narrador, ou melhor, a não memória, já que durante toda a narrativa ele nos conta
o que aconteceu, mas afirma que não se lembra de nada, o conto Aberração nos apresenta a
busca obsessiva de um homem pela sua tia desaparecida. Nessa procura ele não poupa
esforços e seus comportamentos são apresentados fora do padrão da normalidade. Uma
obsessão que se iniciou em Amsterdam ao ver a foto da suposta tia desaparecida em um
cartão postal e que percorre vários espaços para atingir seu objetivo, o qual nós não sabemos
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se foi alcançado ou não, já que as atitudes do narrador nos obrigam a duvidar de tudo o que
ele narra.
“Tudo se embaçou agora. Logo agora que estou aqui, parado, com os braços
caídos na frente destes olhares estarrecidos” (CARVALHO, 1993, p.145), com essa frase o
narrador-personagem inicia o conto. Já nessa primeira passagem podemos perceber a ideia de
localização com a palavra “aqui”, que nos leva a entender que o narrador inicia o texto no
presente, já que diz que está “aqui... agora”, mas recorre à sua memória para narrar algo que
já aconteceu. Porém não sabemos ainda qual é o espaço onde ele narra, e esse espaço só se
revelará no final do conto.
Em seguida, retornando ao seu passado, o narrador nos transporta para outro
espaço, o StedelijkMuseum de Amsterdam. Esse museu é responsável, segundo o próprio
narrador, pela sua obsessão já que foi nesse espaço que o narrador iniciou a busca. No museu
o personagem se apresenta desconsertado, aquele espaço causa-lhe ao mesmo tempo
estranheza e excitação,
Só queria ficar mais umas horas ali dentro. Desde a primeira vez tinha sido assim.
Ao contrário dos outros, aquele museu me excitava - no sentido menos figurado da
palavra. Talvez fossem as paredes brancas e os quadros, mas eram como em toda
parte. Era um desvario no meio de toda aquela calma: de sala em sala, de repente
começava e era como se eu tivesse perdido todos os limites, todos os critérios.
(CARVALHO, 1993, p.146)
A passagem acima comprova que o espaço é introdutório de uma
perturbação que vai acompanhá-lo durante toda a narrativa.
Posteriormente o conto é ambientado na lojinha de souvenirs do museu,
lugar no qual o narrador encontrará a primeira pista que o conduzirá ao seu Graal, ou seja, a
tia desaparecida. Nessa lojinha ele encontra um cartão postal, cartão este que o liga ao
passado, que traz sensação de familiaridade e que o impulsiona em sua incansável busca.
A respeito da importância do espaço nessa narrativa, encontramos que
É oportuno fazer uma distinção não carente de interesse entre os casos em que o
espaço propicia a ação e os casos em que, mais decisivamente provoca-a. Aparece o
espaço como provocador da ação nos relatos onde a personagem, não empenhada em
conduzir a própria vida-ou uma parte de sua vida- vê-se à mercê de fatores que lhe
são estranhos. O espaço em tal caso, interfere como um libertador de energias
secretas e que surpreendem, inclusive a própria personagem.(LINS, 1976,p.100)
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Podemos considerar que toda a excitação causada pela ida ao museu e ao
mesmo tempo o encontro do cartão-postal na lojinha de souvenirs, são exemplos da complexa
ligação entre personagem e espaço, na qual o último é responsável pelos atos do primeiro.
No verso do mencionado cartão, através da inscrição “Alain Déguy, 1960,
Rio de Janeiro”, (CARVALHO, 1993, p.149) temos a apresentação de outro espaço e agora a
cidade do Rio de Janeiro, para onde o narrador se encaminha, é que passa a ser o espaço
construído na narrativa.
O narrador se apresenta de maneira estranha com relação à cidade “Não sei
quando começou o meu problema com a cidade. Foi aos poucos. Houve um tempo em que
nem conseguia ouvir falar nela.” (CARVALHO, 1993, p.149) Percebemos então que a cidade
contemporânea incomoda, não sendo mais um ambiente calmo e pacífico, e sim marcado pela
violência e pala injustiça. Todo esse ambiente agitado colabora para o estranhamento dos
personagens.
A segunda parte do conto mostra a chegada do narrador ao Rio de Janeiro e
o quanto esse lugar causa desconforto a ele.
Devo ter atravessado o Atlântico com aquela foto nas mãos, dormido com ela entre
os dedos, acordado com os primeiros raios de sol entrando por uma janela do outro
lado do avião, sorrido com aquela foto ligeiramente amassada (por causa da noite)
nas mãos enquanto o avião se preparava para pousar no Rio. E enquanto a observava
devo ter esquecido o meu horror pela cidade já aos meus pés, por muito pouco,
esquecido o fedor e a lama dos mangues que brilhava com o sol da manhã.
Esquecido o lodo e a sujeira e as palavras em cima do lodo e da sujeira.
(CARVALHO, 1993, p.153)
O motivo pelo qual o narrador se encaminha ao Rio de Janeiro é a busca
pelo fotógrafo do cartão postal, que o narrador em sua obsessão associa ao desaparecimento
da tia.
Muitas vezes daí em diante devo ter procurado pelas imagens de Alain Déguy, por
todo lado, por todas as livrarias, pedindo aqui e ali a quem viajasse para trazer
álbuns, catálogos, qualquer coisa que tivesse suas fotos. Raramente consegui alguma
coisa. Ninguém nunca encontrava nada. Nas livrarias normalmente nem sabiam
quem era Alain Déguy. O mais estranho é que ele tenha estado no
Brasil.(CARVALHO, 1993, p.153)
Como vemos as ações do narrador continuam a ser guiadas pela procura e
no Rio de Janeiro ele consegue a confirmação, pelo menos para ele, de que a moça do cartãopostal e sua tia são a mesma pessoa. Trilhando sua busca, descobre que sua tia morreu em um
acidente com um bimotor na divisa de Minas Gerais, assim as ligações dela com o fotógrafo
vão ficando mais evidentes.
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Parece uma bobagem dizer que a cidade mais próxima se chamava Pirambeira, e
isso ninguém sabe por que, já que compreendia uma dezena de ruas espalhadas
numa planície que ia até o horizonte (...). O maior mistério era saber o que minha tia
desaparecida fazia em Pirambeira, no meio de uma planície na divisa de Minas,
meses depois de ter desaparecido. O que fazia num avião bimotor que decolou no
final da tarde do aeroclube de Pirambeira, se espatifou no meio das árvores e só foi
encontrado no dia seguinte. (CARVALHO, 1993, p.158)
Após encontrar pistas no local próximo ao acidente, o narrador faz uma
associação entre as pistas e um catálogo que encontrara em Nova York
Numa das viagens que acabei fazendo nesse meio tempo, uma viagem quase de
graça, em que tudo o que eu precisava era levar a Nova York um pacote para alguém
que nem conhecia, encontrei finalmente, numa livrarias, o catálogo da exposição que
Alain Déguy tinha feito na BurdenGallery havia dez anos. Era um catálogo estranho
porque não tinha títulos ou legendas, apenas o nome do fotógrafo na capa e as datas
de cada foto (...). O que mais me assustou mesmo foi a foto estampada na capa e
descobrir, ao abri-lo, que todas, absolutamente todas as fotos do catálogo,
enquadravam a carcaça de um avião arrebentado no meio das
árvores.(CARVALHO, 1993, p.156)
Diante de todas essas movimentações, encontramos um sujeito desajustado,
mas que está muito próximo de desvendar o mistério. Entretanto, nem sabemos se existe de
fato um mistério, ou se não passa de mera alucinação de um sobrinho que teve um amor não
correspondido pela tia.
Além disso, não podemos nos esquecer de que perante todo esse trânsito
espacial, diante de toda essa mobilidade, o narrador, representante do sujeito pós-moderno,
encontra-se em uma situação transitória de si mesmo e não consegue se fixar em um território,
pois o mundo pós-moderno não permite estabilidade e as distâncias e fronteiras não existem
mais, como encontramos em Globalização: as consequências humanas, “As distâncias já não
importam, ao passo que a ideia de uma fronteira geográfica é cada vez mais difícil de
sustentar no ‘mundo real’” (Bauman, 1999, p.19).
Consoante essa situação, o narrador que está prestes a descobrir o paradeiro
de sua tia, dirige-se então para Búzios, em busca de um ex-namorado francês de sua tia,
chamado Marc Nori “A estrada de Búzios continua um horror. Talvez tenha melhorado um
pouco desde aquela época, porque asfaltaram, mas foi pior, porque, com o acesso mais fácil, é
a cidade que ficou um lixo”. (CARVALHO, 1993, p.163)
No trecho acima, além da mobilidade espacial podemos observar como é
feita a descrição do ambiente, ou seja, a cidade de Búzios, que em consonância com o espaço
urbano pós-moderno apresenta-nos a ideia da contradição deixada pela globalização. Se por
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um lado, como nos diz o narrador, a estrada tenha melhorado um pouco, graças ao asfalto, por
outro lado temos a degradação consequente do fácil acesso, transformando a cidade em um
lixo. Ambas as mudanças são reflexos do mundo contemporâneo e representam a dualidade
em que vive o sujeito pós-moderno.
Apoiado nas pistas que encontrou em Búzios e nos álbuns de Alain Déguy,
tudo fica muito claro para o narrador e na certeza de que a pessoa que morreu não é sua tia,
ele se desloca novamente: “Fiquei uma eternidade olhando aquelas fotos até que tudo
começou a fazer sentido. Como é que eles puderam? Como tiveram a coragem? Comprei
minha passagem para Paris no mesmo dia”. (CARVALHO, 1993, p.165)
Em outro espaço, Paris, o narrador continua empenhado em sua busca
A casa de pedra, com um anexo de madeira, como uma garagem, aparece no meio
das árvores, após uma descida em curva da estrada, depois de uns quinze minutos a
pé através de um campo de trigo. Passei pelo menos uma hora do outro lado da
estrada, escondido entre os arbustos, esperando o sol se pôr, à espreita dos
assassinos. [...] Decidiram comer do lado de fora, que estava quente. Colocaram a
mesa do lado de fora, num quintal ao lado da casa. (...) Agora estão numa casa no
Norte da França. Agora que estou aqui com os braços caídos na frente destes olhares
estarrecidos. (CARVALHO, 1993, p.168)
Notamos através das descrições de espaço e das pessoas que o compõe, que
o narrador encontrou o seu objeto de busca. Somente agora, no final do conto, descobrimos
que ele narra toda sua procura a partir desse lugar, já que o conto se inicia com a declaração
“Tudo se embaçou agora. Logo agora que estou aqui, parado, com os braços caídos na frente
destes olhares estarrecidos”. (CARVALHO, 1993, p.145), ou seja, a mesma declaração que se
faz presente várias vezes no decorrer da narrativa e que é apresentada no desfecho do conto.
Porém, durante toda a narrativa percebemos que sua busca permitiu que
ele se perdesse cada vez mais. Obcecado pela causa de encontrar a tia desaparecida que
certamente fora seu amor impossível, já que ao avançar em direção a ela o narrador declara
“(...) berro já no meio da estrada, com todas as minhas forças, porque apesar de tudo ainda
guardo este amor no meu peito: Titia!, e toda a minha história desaparece num instante.(
CARVALHO, 1993, p. 171), constatamos que essa mobilidade de espaço responde em grande
parte por sua identidade desconstruída, ou talvez em construção já que, em tempos pósmodernos, tanto espaço quanto identidade são categorias em transição, flexíveis e não
duradouras. No conto em estudo, observamos que a identidade do narrador é tão fluida que ele
nem mesmo se identifica, não sabemos o seu nome, temos só a ideia de um personagem
desajustado, prova evidente de uma identidade inconstante.
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Considerações finais
Como vimos, a literatura brasileira contemporânea tornou-se metropolitana
e, na breve análise que fizemos no conto Aberração, constatamos que não existe um espaço
único e estático, mas sim vários espaços que vão sendo construídos no decorrer da narrativa, a
partir de deslocamentos, que fazem com que a prosa contemporânea, apresente cada vez mais
narrativas em trânsito.
Dessa forma, se o espaço é transitório, outras categorias como tempo e
sujeito também apresentam certa desestabilidade, já que o constante trânsito espacial é
também responsável pela construção identitária dos sujeitos contemporâneos, como pudemos
perceber no conto em questão.
Destaco que o presente estudo é introdutório de uma pesquisa ainda em
desenvolvimento, que tem por objetivo um aprofundamento em relação ao espaço na narrativa
contemporânea.
Referências
BAUMAN, Z. Globalização: as consequências humanas. Trad. Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
CARVALHO, Bernardo. Aberração. São Paulo: Companhia das letras, 1993.
OLIVEIRA, Silvana Pessoa de; SANTOS, Luis Alberto Brandão. Sujeito, tempo e espaços
ficcionais: introdução à teoria da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
Para citar este artigo:
ESTEVÃO, Adriane Gisele. O espaço na narrativa contemporânea: um estudo do conto
Aberração. In: VIII SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos
Linguísticos e Literários. 2011. Anais... UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná –
Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2011. ISSN – 18089216. p. 483 – 489.
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