EDITORIAL
O
s escritos que compõe a seção temática desta edição do Correio
foram produzidos a partir das discussões do cartel preparatório ao
“Relendo Freud e conversando sobre a APPOA” que, este ano, aborda
o texto “Fetichismo”.
O primeiro estudo feito por Freud sobre o fetichismo data de 1905, no
texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, onde não vai além de
sustentar que a escolha de um fetiche constitui efeito posterior a alguma
impressão sexual, via de regra, da primeira infância.
A partir de então, Freud começa a inserir notas sobre essa temática
em artigos clínicos até que, em 1927, publica “Fetichismo”, texto dedicado a
reunir e ampliar suas teorizações sobre essa forma específica de escolha
objetal.
Freud encontra nas teorias sexuais infantis a crença na existência do
pênis como possessão comum a todas as criaturas. Assim, as primeiras
impressões da ausência do pênis na menina são rejeitadas pelo menino,
pois o reconhecimento desta implicaria em sério risco a sua própria sexualidade. “Não, isso não pode ser verdade, pois se uma mulher foi castrada,
então meu próprio pênis está em perigo”, assim refere Freud ao pensamento
recorrente nos meninos.
Dessa forma, a ausência do pênis é percebida como resultado da
castração e, a partir de então, a criança se vê com a tarefa de realizar uma
construção psíquica que dê conta dessa nova realidade.
O fetichista freudiano é aquele que recusa a castração feminina, indo atrás de um substituto do pênis, mas não de um pênis qualquer,
pois, o que está em questão é justamente o pênis da mãe. Portanto, frente à
angústia de castração, o fetichista encontra uma forma singular de defesa,
elegendo um objeto substituto do pênis materno que evoque ao mesmo tempo sua presença e sua ausência. O objeto do fetiche é alçado à condição de
símbolo de uma presença sustentado pela ausência.
Essa angústia frente à castração faz Freud tomar a figura mitológica
da cabeça da Medusa como correlativa ao horror causado pela visão dos
órgãos genitais femininos, sendo a presença volumosa de serpentes uma
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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EDITORIAL
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multiplicação de símbolos fálicos destinados a mitigar o efeito terrorífico de
tal visão.
O trabalho em torno do texto “Fetichismo” tem trazido uma série de
questões ao debate. Ali, a recusa ou rejeição (Verleugnung) é estabelecida
como mecanismo presente na constituição do objeto do fetiche, o que leva a
interrogar sua relação com outras estruturas clínicas, já que Freud a associa
à psicose em alguns outros escritos. Outra discussão diz respeito à constituição do objeto fetiche a partir do campo da linguagem e da história do
sujeito, ultrapassando o campo escópico que parece determiná-lo à primeira
vista. E, ainda, tomando o contexto da cultura atual, cabe abordar a semelhança entre o fascínio produzido pelos objetos de gozo, aos quais temos
acesso tão imediato, e aquele exercido pelo objeto do fetiche.
Todas estas questões são trabalhadas nos textos que encontramos a
seguir e que também estão na pauta de nosso tradicional encontro em Canela, que acontece entre os dias 06 e 08 deste mês. Além de relermos e
discutirmos o texto de Freud, estaremos também conversando sobre a
APPOA, desta vez, tendo como eixo o tema “Lugar e responsabilidade: associados, instituição e polis”1.
1
Editorial escrito por Fernanda Breda e Maria Angela Bulhões, pela coordenação do “Relendo Freud”.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
RELENDO FREUD E
CONVERSANDO SOBRE A APPOA
DIAS 06, 07 E 08 DE JUNHO DE 2008
“FETICHISMO”
Mais uma vez Freud nos convoca a relê-lo. Neste ano, o texto escolhido para provocar a discussão é “Fetichismo”. Texto escrito em 1927, onde
Freud discute essa forma particular de eleição de objeto recomendando esse
estudo a todos que ainda possam duvidar da existência do complexo de
castração. Não se trata de um texto longo, mas reúne e amplia as formulações que Freud vinha articulando em torno desse tema desde “Os três Ensaios Sobre Sexualidade”. O cartel preparatório para o evento Relendo Freud
desse ano percorreu suas trilhas, encontrando, na riqueza de seus textos,
material para seguir percursos diversos. Assim, na tentativa de reconstruir o
caminho traçado na elaboração de conceitos tão caros à psicanálise, como
castração, recalque, recusa, objeto, desejo, fantasia… foram realizados trabalhos que refletem o debate em torno desse eixo. O diálogo com a clínica
manteve-se sempre como ponto importante de nossas discussões. A cabeça da Medusa, figura mitológica surgida nesse caminho, mostrou-se provocadora. Diante do terror da imagem, pensamos ser possível responder com
novas produções, novas imagens, novos significantes e idéias que provoquem o deslocamento do espectador da posição paralisada através da construção exigida pelo novo. Os trabalhos que vamos levar – entre nossos casacos e pulôveres rumo à serra gaúcha, se misturam com a disposição para a
¨conversa¨ a respeito do tema “Lugar e responsabilidade: associados, instituição e pólis”. Esse tema vem permeando as discussões nos mais diversos
fóruns de nossa instituição e estará presente no “Conversando sobre a
APPOA”. Preparem as malas (e não esqueçam da cuia para o chimarrão) e,
mais uma vez, tornaremos nosso tradicional encontro bastante acolhedor a
todos!
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NOTÍCIAS
NOTÍCIAS
VALORES DE HOSPEDAGEM
PROGRAMA
Sexta-feira – 06 de junho:
18h30min – Café de Boas vindas
19h30min – “Apresentando o texto”
Marieta Rodrigues
Sábado – 07 de junho:
9h30min – “Fetiche: um objeto-monumento”
Fernanda Pereira Breda
“Refém do objeto”
Maria Ângela Bulhões
10h30min – Intervalo – Coffee Break
10h45min – Conversando Sobre a APPOA*
Tarde Livre
CATEGORIAS
Laje de Pedra:
Vista Bosque
Vista Vale
Plátano
Suíte
Mountain Village:
Studio Premium
Suíte Premium
SINGLE
DUPLO
R$ 130,00
R$ 130,00
R$ 150,00
R$ 260,00
R$ 150,00
R$ 150,00
R$ 160,00
R$ 280,00
R$ 276,00
R$ 420,00
R$ 312,00
R$ 456,00
INSCRIÇÕES
As inscrições já podem ser feitas na secretaria da APPOA pelo valor de
R$40,00.
22h – Confraternização – Sala da Lareira
LOCAL
Domingo – 08 de junho:
9h30min – “Algumas notas sobre improvisos do Cartel”
Heloisa Marcon
“A constituição do objeto fetiche”
Norton Cezar da Rosa Jr.
10h30min – Intervalo
10h45min – Conversando sobre a APPOA
Laje de Pedra Hotel e Resort
Rua das Flores 222 – Serra Gaúcha – Canela – RS
Fone: (54) 3278.9000
Site: www.lajedepedra.com.br
*
Sugerimos a leitura da Ata de Fundação para o “Conversando sobre a
APPOA”
RESERVAS
Laje de Pedra Hotel e Resort
Fone: (54)3278.9000 – Toll Free: 0800.51.21.53
E-mail:[email protected]
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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NOTÍCIAS
BULHÕES, M. Â. Refém do objeto.
REFÉM DO OBJETO
A TELA E O DIVÃ
“I´ll be back”1
APROXIMAÇÕES E CONTRASTES
O seminário deste ano propõe a discussão de aproximações e contrastes entre filmes de diferentes épocas, mas com temáticas próximas.
Uma forma de lançar um olhar sobre as modificações do discurso cinematográfico, ao longo de sua história e, como a história de seu tempo é contada
pelo cinema. Será uma oportunidade de trabalhar conceitos psicanalíticos
que se articulem com essas diferenças e aproximações. Por exemplo: “ A
verdade tem estrutura de ficção” . Como uma ficção pode antecipar ou retratar uma história? Qual a função da letra e do discurso nesta narrativa que
articula dois elementos tão heterogêneos quanto o som e a imagem? Afinal
Histeria e história (como h ou H) tem apenas uma letra a diferenciá-las.
Assim, “Quanto mais quente melhor”, dialoga com “Jules et Jim” e
“Assalto ao trem pagador”, discute com “Tropa de elite” para que possamos
dar continuidade a estas e outras interrogações sobre as múltiplas influencias entre o divã e a tela.
Obs: Atenção para novo dia e horário. Sexta-feira, às 19h, na sede da
APPOA.
Programa:
13 de junho – Quanto mais quente melhor – dir. Billy Wilder
27 de junho – Jules et Jim – dir. François Truffaut
11 de jullho – Infiltrados – dir. Martin Scorcese
15 de agosto – Intriga Internacional – dir. Alfred Hitchcock
12 de setembro – Assalto ao trem pagador – dir. Roberto Farias
10 de outubro – Tropa de Elite – dir. José Padilha
Novembro – Divã e a tela especial – Cartola – dir. Lírio Ferreira
1
Frase proferida pelo cyborg Terminator que em sua forma humana responde com o nome
de Arnold Schwartznegger.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
Maria Ângela Bulhões
F
reud ([1927]2007) iniciou seu texto “Fetichismo” relatando ter atendido a um certo número de homens cuja escolha objetal era dominada
por um fetiche. Entretanto, chamava-lhe a atenção o fato de que esses homens não procuravam o tratamento em função de seu fetiche. Embora
o reconhecessem como uma anormalidade, eles raramente sentiam-no como
sinal de uma enfermidade.
Ele nos diz que, ao contrário, de maneira geral mostravam-se bastantes satisfeitos e eventualmente até louvavam o modo como o fetichismo lhes
facilitava a vida erótica. Desde o início, portanto, o fetichismo surge na clínica psicanalítica situado no campo da erótica masculina sem estar associado à condição de sofrimento. Essa foi a questão pela qual me interessei:
porque essa forma de gozo que não era reconhecida como enfermidade pelo
paciente causava interesse a Freud?
No texto “Fetichismo”, Freud esclarece que, em sua investigação psicanalítica do tema, chegou à conclusão de que o significado e o objetivo do
fetiche se mostravam sempre o mesmo: “um substituto do pênis”.
Esclarece que não se trata de um pênis qualquer, mas especificamente o pênis da mãe. Lembra-nos que, segundo as teorias sexuais infantis, o menino acredita que todos possuem pênis e só depois da visão dos
órgãos sexuais femininos se depara com sua ausência na realidade. Este
olhar que vê e se vê, inscreve a diferença sexual ao mesmo tempo numa
visão que divide (divisão). Assim, um pênis que ele imaginava em sua mãe
agora terá que ser abandonado.
Freud chama de terrorífica a visão que o menino tem dos órgãos
sexuais femininos e considera que esse terror pode fazê-lo recusar o reconhecimento da ausência do pênis, pois essa ausência o levaria a considerar
que seu próprio pênis encontra-se em perigo. O medo de perder o próprio
pênis – a ameaça de castração – vem do lado do pai. É aquele pai castrador
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SEÇÃO TEMÁTICA
que, através da ameaça, o faz abandonar a mãe. É desse abandono que se
trata: deixar a mãe para o seu rival com o objetivo de preservar seu próprio
pênis e, assim, a sua sexualidade. No texto, Freud não fala de luto, mas é
essa operação que deve acontecer, pois evoca a elaboração de uma perda.
O menino perdeu a guerra! Perdeu a mãe.
O que isso significa? Ele será sexuado, mesmo que ainda não esteja
definida a forma de sua sexuação. Na verdade, trata-se de um processo de
simbolização que o faz sair da experiência sensorial, da “visão do pênis que
falta na mãe” e ser lançado para além dessa ausência¨. Nesse além dessa
ausência encontra-se o objeto do desejo, quando lançado e relançado no
circuito pulsional do sujeito.
Freud considera que a grande maioria dos homens supera essa vivência,
seguindo sem grandes percalços em seu desenvolvimento sexual, realizando o abandono da sexualidade infantil e atingindo a sexualidade genital. Este
é o Freud desenvolvimentista.
O fetiche para ele surge como substituto do pênis materno, quando o
menino recusa-se a aceitar essa falta e agarra-se a um objeto que o protege
de sua perda. Mas esse objeto não é o pênis da mãe, transformou-se em um
signo. A ausência está presente no objeto e sexua o sujeito, que não é mais
o falo da mãe. Todavia, o fetiche é signo de seu poder, pois relativiza a perda:
não perdeu a guerra, apenas uma batalha. A diferença sexual existe e é
recusada. Existe na medida em que o menino inscreveu a ausência a partir
de sua percepção, ele viu, e é negada na medida em que cria artifícios (fetiche) para não enfrentar as conseqüências psíquicas de sua percepção. O
autor nos diz:¨ ele (fetiche) permanece como indício do triunfo sobre a ameaça de castração e como uma proteção contra ela¨ (Freud[1927]2007, p.163).
Encontrei no livro de Gerard Pommier (1992) “A Ordem Sexual: perversão desejo e gozo” idéias que complementam a leitura freudiana sobre o
tema do fetichismo. Pommier apresenta-nos o fetiche como um totem, símbolo de poder que serve para garantir a força na ausência do nome. O nome
considerado como aquilo que o pai transmite e possibilita ao sujeito simbolizar o falo para além do objeto fetiche. Portanto, o objeto do fetiche entraria
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BULHÕES, M. Â. Refém do objeto.
em cena quando, num primeiro tempo, o rival ainda aparecesse como o
terrível castrador (pai da horda). Nessa perspectiva, o fetiche inscreve-se na
economia psíquica no caminho da construção do Pai-do-nome, mas ainda
em um tempo em que o poder encontra-se ligado à presença real (do falo e do
pai). E retornará à cena na medida em que essa configuração esteja presente.
No texto “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” ([1905]1974),
anterior ao texto sobre fetichismo, no qual Freud começa a tratar desse
tema, ele afirma que a situação fetichista só se torna patológica quando o
anseio pelo fetiche passa além do ponto em que é meramente uma condição
necessária ligada ao objeto sexual e efetivamente toma lugar do objeto normal ou quando o fetiche se desliga de um determinado individuo e se transforma no único objeto sexual.
Vemos aqui um Freud bastante aberto às formas do exercício sexual
(principalmente para os padrões morais de sua época), ao não reduzir a
escolha do objeto sexual como condição para a situação patológica.
Se, por um lado, ele diz que a partir de suas observações o fetichista
é alguém que mantém uma permanente atitude de estranhamento frente aos
órgãos sexuais femininos, por outro, afirma que o fetichismo pode ser uma
escolha defensiva que possibilita o acesso sexual à figura feminina o que, de
outra forma, poderia não acontecer pela insuportabilidade da castração.
Pommier também vai guardar o termo perversão para a situação em que, a
partir da instância totêmica da paternidade, nada permite simbolizar o falo, a
não ser o fetiche.
Portanto, compreendo que para Freud e Pommier o fato de um homem estar às voltas com fetiches animando sua vida erótica não o vincula
diretamente a uma estrutura psicopatológica. Por isso, apesar do conceito
“fetichismo” aparecer sempre junto com o tema da perversão, pois são noções que possuem estreitas ligações, no entanto não se recobrem completamente.
No capítulo XIII do “Esboço de psicanálise” ([1940]1975), Freud afirma
que o fetichismo, com muita freqüência, é apenas parcialmente desenvolvido. Ele não governa exclusivamente a escolha de objeto, mas deixa lugar
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SEÇÃO TEMÁTICA
para um maior ou menor comportamento sexual normal; às vezes, na verdade, contenta-se com o desempenho de um papel modesto ou se limita a
uma mera alusão. Nos fetichistas, portanto, o desligamento do ego em relação à realidade do mundo externo nunca alcançou êxito completo.
Continuando nessa perspectiva, Freud afirma que a ternura e a hostilidade em relação ao fetiche, que correspondem à renegação e a aceitação
da castração, mesclam-se nos mais diferentes casos de fetichismo em proporções desiguais.
Os exemplos clínicos que Freud se permite apresentar, devido à dificuldade que o tema coloca para a divulgação de detalhes, não são casos de
perversão na forma como ele a define.
Cabe-nos, portanto, interrogar se o fetiche de alguma forma não faz
parte da história da sexualidade. Não de uma forma meramente
desenvolvimentista, mas como algo com o qual podemos ter certa familiaridade. Se os objetos do fetiche não estão de fato na cena sexual, mesmo
assim eles não fazem parte da cena da fantasia?
Pommier chega a propor que o fetichismo dá início tanto à escolha
sexuada como à perversão. Seria apenas um giro a mais o objeto fetiche
tornar-se o deslizante objeto do desejo? As calcinhas, meias de nylon, luvas, roupas de couro, cabelos, sapatos de salto alto...não encontram-se no
corolário sexual da maioria dos homens?
De qualquer modo, acabo me perguntando sobre o destino daquele
que não abandona imaginariamente o pênis da mãe, que mantém o fetiche
como signo de uma presença/ausência e que está disposto somente ao
abandono parcial em sua fixidez.
Isso interessa ao psicanalista de alguma forma?
É no texto “Fetichismo” que Freud inicia a construção do tema da
divisão do ego, logo após perceber que convivem normalmente duas versões
do mesmo fato. Numa versão, o pênis é mantido e protegido através do
fetiche e, em outra versão no mesmo tempo, a realidade da ausência é suportada. Ele chega a considerar que as duas atitudes podem persistir lado a
lado durante toda vida, sem se influenciarem mutuamente.
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BULHÕES, M. Â. Refém do objeto.
O conflito presente nessa situação, em que a percepção e o desejo
coexistem de modo contraditório, constrói uma forma intermediária de existência sob as leis do pensamento inconsciente. Ambas as partes interessadas recebem sua parcela de satisfação. Entretanto, freudianamente podemos considerar que essa divisão é capaz de produzir um mal estar e que o
ego, de alguma forma, acabe por pagar de maneira importante por esse
conflito.
Pois, em “Análise terminável e interminável”, Freud diz que os mecanismos de defesa servem ao propósito de manter afastados os perigos e que
são bem sucedidos nessa tarefa, sem que possamos imaginar passar sem
eles ao longo de nosso desenvolvimento. Todavia, considera que também
estes mecanismos podem transformar-se em perigos. ¨Às vezes se vê que o
ego paga um preço alto demais pelos serviços que os mecanismos de defesa lhe prestam¨.O dispêndio dinâmico necessário para mantê-los e as restrições ao ego que quase invariavelmente acarretam, mostram ser de pesado
ônus sobre a economia psíquica. Afinal, a neurose cobra seu preço! Mas
como definir o que seja um preço alto demais?
Sabemos o quanto é possível buscar a economia do desejo através de
montagens mais ou menos rígidas no exercício da vida e inclusive da vida
sexual.
Todavia, é importante não ocupar uma posição moralista para melhor
abordar o assunto da sexualidade nas suas mais variadas formas de existência. O psicanalista não tem a função de determinar a forma certa ou
errada de gozar. Mas, se existe algo que vale a pena lembrar sobre esse
assunto, é que na ausência de um desejo sustentado pela falta (pelo nome)
o sujeito corre o risco de desaparecer e tornar-se refém do objeto, tornandose prisioneiro de sua própria armadilha. Os objetos de gozo ao alcance das
mãos atualmente se parecem muito com o objeto do fetiche que cobra a
força de seu poder de cooptação. É o objeto que nos captura. O gozo instantâneo e único oferecido pela droga pode desvelar o vazio e a falta de condição para a simbolização. A força e a violência do apelo do objeto denunciam
o aprisionamento. A condição de alienação em relação ao objeto droga pode
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SEÇÃO TEMÁTICA
ser total (sujeito desaparece) ou parcial, lembrando-nos o que Freud nos
apresenta sobre a relação com o objeto fetiche.
Portanto, ao invés de uma posição de julgamento frente à forma de
gozo do sujeito vale considerar singularmente o preço que este paga por sua
alienação e a condição de engajamento em suas escolhas (sua posição
subjetiva).
Para finalizar, lembro que a força e a violência do apelo do objeto no
mundo contemporâneo denunciam aprisionamentos e, tal qual Freud, estamos
buscando respostas para as inquietudes de nosso tempo. Considerando o
que ele nos ensinou, vale a pena sempre lembrar que a guerra é imaginária,
que a batalha já foi perdida quando fomos expulsos do paraíso e que, a partir
daí, sexualizados nos inquietamos, mas ainda assim mais livres para gozar,
como nos bem prouver.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” [1905] Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1972.
______. “Esboço de Psicanálise” cap.XIII [1940-38].Obras Completas. Rio de
Janeiro:Imago,1975.
______. “Fetichismo” [1927] Escritos sobre a psicologia do inconsciente, Rio de
Janeiro:Imago,2007.
POMMIER, G. A ordem sexual:perversão desejo e gozo; Rio de Janeiro:Jorge
Zahar Ed.,1992.
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BREDA, F. P. Fetiche: um objeto...
FETICHE: UM OBJETO MONUMENTO
Fernanda Pereira Breda
N
os primeiros encontros do cartel preparatório ao “Relendo Freud”,
me perguntava por que motivo teríamos escolhido a retomada desse
texto para nossa discussão desse ano, e no que essa temática
poderia interessar à clínica que fazemos hoje. No texto “Fetichismo”, Freud
parte de casos clínicos. É no encontro com um certo tipo de escolha objetal
masculina, determinada pela eleição de um objeto fetiche, que se coloca a
escrever.
A dificuldade na abordagem desse texto parece dizer respeito à forma
ainda inconclusa mantida por Freud. Encontramos quase um ensaio, um
material em construção. Daí a importância de fazermos um certo percorrido
em sua obra, visitando outros artigos com essa mesma temática.
Proponho, para começarmos a pensar o estatuto do objeto tal como
aparece nos casos de fetichismo, a seguinte questão: O que teria feito com
que Freud, na tentativa de traçar as coordenadas do que seria essa manifestação encontrada em casos de analisandos masculinos, repetidas vezes se
avizinhasse à questão da psicose?
Abro essa discussão com essa interrogação, não só por sua insistência nos textos freudianos que abordam o tema do fetichismo, mas também
por me parecer interessante iniciá-la por um certo ângulo, diria, ‘obtuso’. O
percorrido freudiano em torno dessa temática nos deixa, em uma primeira
leitura, com a impressão de um ‘andar a deriva’, sem sabermos ao certo em
que direção somos conduzidos... Aos poucos, começam a surgir algumas
trilhas e, mais adiante, alguns caminhos; mas é só no decorrer de muitas idas
e vindas sobre o texto que percebemos que eles não estavam lá desde o inicio.
Em “Algumas conseqüências psíquicas”, texto de 1925, quando Freud
menciona o processo de rejeição (Verleugnung) utilizado pela menina face
ao encontro com sua própria castração, refere que esse mecanismo é muito
freqüente na infância, mas que sua permanência, na idade adulta, poderia
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significar o começo de uma psicose. Trata-se de uma frase inquietante que
não irá desenvolver nesse momento, mas que já aponta uma das direções do
andamento de seu trabalho. Recorto a seguir o trecho referido, por propor a
discussão do termo Verleugnung:
“A esperança de algum dia obter um pênis, apesar de tudo, e assim tornar-se semelhante a um homem, pode persistir até uma
idade incrivelmente tardia e transformar-se em motivo para ações
estranhas e doutra maneira inexplicáveis. Ou, ainda, pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‘rejeição’,
processo que, na vida mental das crianças, não parece incomum
nem muito perigoso, mas em um adulto significaria o começo de
uma psicose. Assim, uma menina pode recusar o fato de ser castrada, enrijecer-se na convicção de que realmente possui um pênis e subseqüentemente ser compelida a comportar-se como se
fosse homem”.
O termo recusa, rejeição (Verleugnung), é freqüentemente usado por
Freud quando aborda a posição frente à castração feminina, manifestada
nas teorias sexuais criadas pelas crianças pequenas.
Lembro que, desde a primeira vez que li esse artigo, essa frase que
relaciona recusa da castração e psicose me chamou atenção. Parecia-me
um pouco deslocada no texto, como que ‘lançada de pára-quedas’... Referência que, na continuidade da produção freudiana, adquire maior sentido.
Freud, nesse momento, pensava o mecanismo da Verleugnung como datado no desenvolvimento infantil, cuja permanência poderia levar a uma psicose. Associa a Verleugnung ao mecanismo presente na psicose, por encontrar, no viés da rejeição à realidade, semelhança em ambos os processos.
Esse texto é posterior ao “A perda da realidade na neurose e na psicose”(1924), onde apresenta discussão semelhante, marcando as diferenças
entre a neurose e a psicose no que diz respeito às substituições que o
psiquismo realiza a realidades indesejadas:
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BREDA, F. P. Fetiche: um objeto...
A possibilidade de criar substitutos a realidades indesejadas é dada
pela “existência do mundo da fantasia, uma área que, quando da instalação
do mundo da realidade, foi apartada do mundo externo real e desde então
‘poupada’ das duras exigências impostas pelas necessidades da vida. Esse
mundo da fantasia, sem dúvida, tem o mesmo papel na psicose. Também
aqui ele é repositório de onde são retirados os materiais, ou modelos, para a
construção da nova realidade. No entanto, se na psicose o novo e fantástico
mundo interior quer substituir a realidade externa, na neurose, tal como nas
brincadeiras de criança, esse mundo se sustenta sobre parte da realidade
(...) finalizemos, então, destacando que, tanto para a neurose quanto para a
psicose, deve ser considerada não somente a questão da perda da realidade, mas também da substituição da realidade.”
E ainda: “A neurose não renega (Verleugnung) a realidade, ela somente
não quer tomar conhecimento dela, a psicose renega e procura substituí-la.”
Sublinho, nesse fragmento, as diferenças, traçadas por Freud, no que
diz respeito a essas formações surgidas no lugar da realidade, provocando o
surgimento de uma ‘nova realidade’. O estatuto do que seria essa nova realidade e suas particularidades, seja na neurose ou na psicose, é justamente
o que parece estar tentando construir.
Não pretendo, nesse momento, me deter nessa discussão importante
que se abre em torno da fantasia, mas sim trabalhar o estatuto desse processo que vai se configurando como recusa\afastamento da realidade, simultaneamente ao surgimento de uma ‘nova realidade’ – para seguir na terminologia freudiana.
Temos então, mais adiante, o texto “Fetichismo”, em que aparece a
eleição de um objeto substitutivo a certa realidade indesejada, que se trata
propriamente da percepção da ausência do pênis na mulher, mais especificamente, do pênis na mãe. “Não se trata de um substituto para um pênis
qualquer, e sim para um pênis específico e muito especial que – embora
posteriormente perdido – foi importante na primeira infância”.
No texto “Fetichismo”, escrito em 1927, acompanhamos Freud novamente em certo diálogo com a psicose, aproximando, no mesmo movimento
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que afasta, o processo de recusa da realidade ao mecanismo encontrado na
psicose, mais especificamente no que diz respeito ao olhar. O menino, em
plena vigência da teoria hegemônica do falo, recusa tomar conhecimento do
fato percebido de que a mulher não tem pênis. Freud aqui recorre ao termo
‘escotomização’ para apontar diferença ao mecanismo presente na defesa
fetichista. Diz ele: “escotomização parece-me uma palavra especialmente
inapropriada, por sugerir que a percepção foi inteiramente apagada, de maneira que o resultado é o mesmo de quando uma impressão visual incide
sobre o ponto cego da retina”.
Na recusa, em comparação ao processo de escotomização, ocorre
uma diferença: a percepção fica conservada, colocando-se em jogo uma
ação particularmente enérgica para mantê-la rejeitada. De alguma forma lhe
parece importante relacionar, mesmo que para descartar, a referência à defesa psicótica: trata-se, no mecanismo da recusa, de uma construção teórica
ainda incipiente, mas que tateia, aproximando e se afastando, as arestas
próximas. Freud nos conduz a pensar que no fetichismo não estaria em jogo
o mesmo mecanismo presente nas psicoses, por não se tratar de uma imagem que cairia no ponto cego da retina... Mas de uma imagem que passaria
pela visão. Ao mesmo tempo em que a referência a uma certa cegueira no
olhar, mesmo que articulada à psicose, fica mencionada.
A visão dos genitais femininos é, desde muito tempo, problemática.
Temos notícia disso através da mitologia e mesmo através do uso em sociedades primitivas dos tapa-sexo cuja função é introduzir, como diz DidierWeil, um ‘véu humanizante’ ao mortífero do real. Há, no campo do olhar, um
invisível que é constituinte, que faz margem ao visível, evitando seu transbordamento. O velamento necessário do visível lança o sujeito em uma condição de proximidade constante ao seu desvelamento. Nesse espaço intermediário entre sujeito e realidade, para usar a linguagem freudiana, está a fantasia. Freud chama atenção, no texto “Fetichismo”, para a singularidade do
véu escolhido pelo fetichista, que parece ter particularidades.
Freud faz uso do conceito de recusa já trabalhado na psicose para
pensar essa forma de defesa do fetichista. E aqui entramos na temática do
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que poderia existir de traumático na abordagem da castração feminina. Frente ao desmoronamento da consistência da instância materna, desilusão de
completude, frente à impossibilidade de fazer ‘um’ com a mãe, ausência e
presença materna exigem nova configuração. Portanto, não mais como momentos de alternância em que a falta materna é relançada na espera de sua
próxima presença, a visão da falta na mãe força o sujeito a uma nova lógica:
a falta na presença. Há a passagem da falta da mãe para a falta na mãe.
Momento que, segundo Freud, é superado pela grande maioria das pessoas.
Parece que o fetichista evoca, a cada vez, esse encontro particular, que
Freud chamou de ‘figuração da cena da castração’, ou seja, esse encontro
com a castração e com seu apagamento.
Freud compara esse mecanismo aos casos de amnésia, em que a
memória ‘congela’ na última impressão anterior ao momento assustador
(Unheimlichen) e traumático.
O objeto substituto do pênis que não está mais lá, ou seja, o objeto
fetiche faz valer um momento anterior a castração, em que a lógica da ausência e presença em contigüidade, portanto em diacronia, ainda era possível. Daí a possibilidade de traduzir Verleugnung como desmentido.
A recusa no fetichista recai sobre a percepção (fato percebido) e impõe uma imagem em contigüidade: a do objeto fetiche. Este, por sua vez,
exige um extraordinário reforço de interesse, como se o olhar fosse ‘puxado’
constantemente em outra direção, para baixo das saias, tendo que produzir
uma espécie de ‘monumento’ que o mantenha longe dali. (Ou o olhar incide
no objeto-monumento, ou para baixo das saias, em diacronia). Assim, surge
essa estranha ‘fisgada’ no olhar em direção ao que poderíamos denominar
objeto-monumento. Concomitante, surge um estranhamento perante os órgãos genitais femininos reais. Como nos diz Freud, há o triunfo do desejo
sobre a ameaça de castração, apontando para uma solução intermediária
para o conflito entre percepção e desejo. Solução em que a sexuação ficaria
inconclusa.
Freud refere, mais adiante nesse texto, a presença de um movimento
de recuo do olhar, tornando possível voltar atrás naquilo que foi visto (em um
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SEÇÃO TEMÁTICA
movimento temporal que lança os ponteiros a um tempo anterior ao visto),
tornando possível voltar a uma posição anterior à visão traumática, produzindo um efeito de esquecimento, apagamento, da imagem da castração. No
entanto, por não se tratar da psicose, essa imagem passou pelo visto e
seguirá produzindo efeitos diversos e formações do inconsciente, como o
caso emblemático citado no texto do “Fetichismo” em que a “mirada” do
olhar sobre o nariz se transforma em um “brilho” no nariz. Aparece aqui
claramente esse deslocamento do olhar. Seu paciente, citado no texto, tendo passado os primeiros anos de sua vida em língua inglesa, recalca o glance
(vislumbre), juntamente com a recusa da percepção, e faz surgir em seu
lugar o significante alemão glanze (brilho) auf der Nase (sobre o nariz). Surgindo também aqui, um objeto-monumento: o nariz que brilha. Esse exemplo interessantíssimo nos faz pensar que, se a recusa recai sobre a percepção, surge ao mesmo tempo um deslocamento do significante e do olhar,
que se fixará em um outro objeto no lugar do pênis ausente. Um objeto que
produzirá, por sua vez, certo limite à sexualidade. Na insuficiência da
simbolização da relação terceira, o fetiche teria como função restringir o
exercício da sexualidade: não sendo mais possível o acesso a todas as
mulheres, mas só àquelas que portassem determinado objeto ou traço que
fizesse série na cadeia simbólica do sujeito, sendo eleito a partir da história
de cada um.
Mais adiante, nesse mesmo texto, Freud retoma a alusão à psicose,
dizendo que há processos de escotomização de parte da realidade que não
desencadeariam necessariamente uma psicose, apontando para sua semelhança com o mecanismo de recusa fetichista. E novamente irá dizer que na
infância não são raros esses processos. Segue dizendo então, tratar-se de
escotomizações parciais produzidas por conta do desejo, aproximando a
Verleugnung assim da neurose, sem contudo referir que, no fetichismo, a
‘realidade recusada’ é justamente a da visão da castração feminina. O objeto
fetiche faria junção de duas posições distintas: a que afirmaria a existência
do pênis na mulher (todos os seres têm pênis) e a que a negaria, ocorrendo
um deslocamento. Sob o manto do fetiche, se manteria, então, todas as
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possibilidades de escolha de objeto. Assim refere Freud no exemplo de seu
paciente que elegera como fetiche um suporte atlético que cobria os genitais,
ocultando a diferença entre os sexos, o que tornava possível a existência
concomitante de realidades de outra forma impossíveis (Será que a mulher
teria pênis? Será que não? Será que o homem seria castrado? Será que
não?). A defesa fetichista é anterior a uma escolha objetal propriamente
definida, em uma espécie de indiferenciação da posição sexuada.
Essa construção freudiana, ainda oscilante, aponta para um momento da psicanálise que vai se estabelecendo a partir dos elementos de que
dispõe. A interrogação segue: que mecanismo é esse presente nos casos
de fetichismo? Não é nem psicose, nem neurose... Embora Freud já esteja
lançando alguns elementos para a ‘posteridade’ avançar, parece que naquele
momento a psicanálise ainda não dispõe de uma construção que possa relançar a discussão em um outro patamar. Freud formula que algo ali se
assemelha à psicose – e talvez seja pela radicalidade do mecanismo de
recusa da realidade presente nos casos de fetichismo, reconhece também
não se tratar exatamente do recalcamento neurótico (ou do que chamou
Spaltung do sujeito), mas refere tratar-se de um mecanismo que recai particularmente sobre a visão dos genitais. A impressão que o texto nos causa é
ainda de poucos elementos para configurar diferenciações efetivas, mas que
de certa forma nos conduz, pelos vãos da teoria, a seguir pensando.
Para Freud, a recusa fetichista se assemelharia ao processo de cisão
do sujeito encontrado em muitas neuroses, onde aparece a possibilidade de
convivência com duas realidades antagônicas. No fetichista, a afirmação e a
negação da castração não são simultâneas, mas seriais... em série. A simultaneidade implica em um novo movimento, que exige certa assimilação
da falta, quase uma parada temporal, o nada que não aparece na escolha do
fetichista, pois atrás do véu, como pano de fundo, há a constante possibilidade de encontro com a mãe fálica, com o objeto que sou, com o objeto que a
completaria.
Assim, no lugar do véu da erótica, há um manto opaco impermeável
ao olhar, servindo de anteparo entre o sujeito e o objeto. Nas estruturas
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edípicas, há o nada, povoado de ideogramas que o sujeito se põe a decifrar...
um véu, uma seda, que em sua transparência faz o jogo da sedução, remetendo o sujeito constantemente a um mais além. No fetichista, o objeto se
duplica em uma série metonímica: calcinhas-sapatos-nariz-óculos… Cada
objeto já inscrito anteriormente em uma historicidade do sujeito. Cada objeto, protótipo de um pênis masculino – como nomeia Freud – comparável a
um valoroso troféu erguido na mais tenra infância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S. Fetichismo. Obras psicológicas de Sigmund Freud. Volume III. Rio de
Janeiro: Imago, 2007.
_____. A Cisão do Eu no processo de Defesa. Obras psicológicas de Sigmund
Freud. Volume III. Rio de Janeiro: Imago, 2007.
_____. Compendio del psicoanalisis. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva. 1981.
_____. Escision del yo em el processo de defensa. Madrid: Editorial Biblioteca
Nueva. 1981.
_____. A perda da realidade na Neurose e Psicose. Imago. Edição em CD.
_____. A organização genital infantil. Imago. Edição em CD.
_____. Três Ensaios para uma teoria sexual. Imago. Edição em CD.
DIDIER-WEILL, A. Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.
LACAN, J. O Seminário – Livro 4: A relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
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A constituição do objeto...
A CONSTITUIÇÃO DO OBJETO FETICHE
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
E
ste texto é fruto de um trabalho em cartel. Nosso ponto de partida foi
o clássico artigo de Freud (1927) “Fetichismo”. Leituras e releituras
se atualizam a partir de aberturas e possibilidades de trocas entre os
“cartelistas”. A transferência de trabalho e a responsabilidade com a formação impõem-se, situando cuidadosamente o seu ritmo. A noção de cuidado
com o texto e seus desdobramentos conceituais ao longo da obra, assim
como, com as traduções e diversidades de interpretações, revitalizam nossos investimentos e relançam novas questões.
Isto, por sua vez, protege-nos um pouco da tentação em demarcar os
limites de expressividade de um trabalho de releitura, pois como nos lembra
Calvino (1993): “um clássico é livro que nunca terminou de dizer aquilo que
tinha para dizer” (p.11). A experiência de cartel, mais uma vez, mostra-nos
que todo clássico possui uma imensurável dimensão do seu campo
enunciativo, delegando ao seu leitor o convite de um possível retorno, pois a
cada novo enfrentamento o sujeito pode se deparar com um texto que diz
mais daquilo que supostamente estimava dizer.
Neste artigo, proponho-me a interrogar a constituição do objeto fetiche e sua lógica de fixação, considerando as correlações entre o horror da
cena, a posição do sujeito e a cristalização do objeto. Inicialmente, faremos
uma breve passagem por alguns textos freudianos que versam sobre o tema.
Posteriormente, a partir de um fragmento clínico, à luz de algumas contribuições de Lacan – presentes no seminário: “A relação de objeto” –, problematizaremos a tese freudiana de que a escolha do fetiche decorre da fixação
da memória do sujeito nos últimos objetos que antecedem a percepção da
cena traumática: a falta de pênis da mulher.
Entendemos que a releitura de Lacan do texto de Freud, ajuda-nos a
conceber a constituição do objeto fetiche para além do campo eminentemente “escópico”. Como poderemos constatar, para Lacan a eleição do ob-
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jeto é “linguageira”. Ou seja, o elemento simbólico que irá constituir o fetiche, pode ser compreendido a partir da dimensão histórica do sujeito, especialmente, de um momento dessa história onde a imagem se fixa. Portanto,
ainda que o fetiche evidencie uma espécie de gozo “escópico” do corpo materno, sua lógica de constituição parece advir de uma matriz simbólica.
RELENDO FREUD
Ao nos depararmos com as primeiras formulações de Freud (1905)
sobre o fetichismo, no clássico “Três ensaios da teoria sexual” – em especial, no tópico em que aborda o fetichismo enquanto “substituição imprópria do
objeto sexual” – podemos constatar a sua preocupação em apontar que um
certo traço fetichista é constituinte da sexualidade. Freud está se referindo
aos casos em que o objeto sexual é substituído por outro que, apesar de
guardar certa relação com ele, é totalmente impróprio para servir enquanto
alvo sexual. Isto o leva a inicialmente supor uma diferenciação entre a dimensão normal e patológica em relação ao fetiche. Em aspectos gerais, este
divisor de águas estaria atrelado ao lugar que o objeto fetiche ocupa na economia libidinal do sujeito, a partir do valor endereçado a ele.
Diante disso, do ponto de vista freudiano, a vida sexual, de modo
geral, contempla certo grau de fetichismo. Neste sentido, pode-se dizer que
para a psicanálise, a concepção de fetiche em suas relações com a sexualidade, transcende a simples consideração de uma entidade patológica particular.
Feita a devida ponderação, Freud refere que o fetichismo normal ocorre quando o objeto, apesar de ocupar o lugar de substituto1 do alvo sexual,
possui alguma vinculação com uma cadeia associativa ligada a ele. Em ou-
1
“O substituto do objeto sexual geralmente é uma parte do corpo (os pés, os cabelos) muito
pouco apropriada para fins sexuais, ou então um objeto inanimado que mantém uma relação
demonstrável com a pessoa a quem substitui, de preferência com a sexualidade dela (um
artigo de vestuário, uma peça íntima). Comparou-se esse substituto em que o selvagem vê
seu deus incorporado”. (Freud, 1905, p. 144)
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tras palavras, o estado de enamoramento pelo objeto, ainda que materialize
uma espécie de fixação, possibilitaria um deslizamento metafórico do sujeito.
“O ponto de ligação com o normal é proporcionado pela supervalorização psicologicamente necessária do objeto sexual, que se
propaga inevitavelmente por tudo o que está associativamente ligado ao objeto. Então, certo grau desse fetichismo costuma ser
próprio do amor normal, em especial, nos estágios de
enamoramento em que o alvo sexual normal é inalcançável ou sua
satisfação parece impedida” (FREUD, 1905, p.142).
Logo após esta passagem, Freud cita Goethe, onde o sujeito, completamente tomado pelas chamas do amor, suplica algo que possa fazer
referência a sua amada: “traga-me de seu regaço um écharpe, por favor, uma
liga que aplaque esta sede de amor”(Goethe, Fausto, Parte I cena 7). Neste
momento, Freud é extremamente ilustrativo, mostrando-nos que em casos
de fetichismos normais, o objeto não representa apenas a si mesmo, ele faz
referência a alguma instância de sujeito.
Em contrapartida, o psicopatológico se dá quando o objeto fetiche
passa a materializar-se como único alvo, não possibilitando assim, ainda
que minimamente, uma transposição para a pessoa amada. Em sua absoluta condição inanimada, o sujeito se encontra capturado numa relação especular, a qual não supõe algo para além do objeto. Nestes casos, a fixação ao
objeto seria tamanha que implicaria uma espécie de recusa de reconhecimento de um sujeito no campo outro.
Encontraremos na citação a seguir, algumas formulações iniciais que
servirão para situar, posteriormente, o campo da perversão, justamente pela
evidência da dependência absoluta do sujeito pelo objeto fetiche, o que implica certa obtenção de gozo. Como poderemos perceber, Freud nos fala de
uma organização particular do desejo sexual, onde a satisfação não pode
ser atingida sem a presença e o uso de um objeto determinado. Vejamos:
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“O caso só se torna patológico quando o anseio pelo fetiche se fixa,
indo além da condição mencionada, e se coloca no lugar do alvo
sexual normal, e ainda, quando o fetiche se desprende de determinada pessoa e se torna o único objeto sexual. São essas as condições gerais para que meras variações da pulsão sexual se transformem em aberrações patológicas” (FREUD, 1905, p.144 –145).
Alguns anos mais tarde, no texto: “Uma lembrança de infância de
Leonardo da Vinci”, ele irá abordar o fetiche para além de suas vertentes de
“normalidade” e “psicopatologia”. Neste momento, seu interesse versa sobre
a questão do ordenamento lógico, pois o fetiche passa a ser concebido como
“substituto do falo na mãe”. O advento deste “objeto-substituto” seria conseqüência do momento em que o menino se defronta com a ausência de um
órgão real na mulher. O horror da castração, presentifica-se enquanto defesa
em face da percepção da ausência do pênis na mulher. Neste sentido, a
lógica psíquica inconsciente seria: se a mulher é castrada, a posse do pênis
do menino também estaria sob ameaça.
Segundo Freud, é com intuito de se precaver contra essa ameaça que
o menino recusaria a percepção da falta de pênis na mãe. É justamente por
isso que o fetiche passa a ser concebido como substituo do falo materno.
Estas formulações levaram Freud (1923) a considerar, em outro texto importante – “A organização genital infantil” – que, para ambos os sexos, está em
questão apenas um órgão genital: o masculino. Portanto, o que está presente não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia do “falo”.
Isto levaria as crianças a reagirem em suas primeiras impressões da
ausência de um pênis, rejeitando o fato e acreditando que elas realmente,
ainda assim, vêem um pênis. Inicialmente formulariam a hipótese que o pênis ainda é pequeno e ficará maior com o tempo, e assim, lentamente chegariam à conclusão de que ele estivera lá um dia e fora retirado. Diante disso,
a falta de um pênis é vista, novamente, como resultado da castração, ou
seja, é na problemática da castração que o fetiche se inscreve. Neste escrito, parece-nos evidente que a atribuição do falo à mãe – além de ser uma
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resposta à constatação de que deveria haver a presença de algo na ausência
percebida como faltante -, constitui-se também como uma espécie de resposta da criança face ao enigma da diferença dos sexos.
Os avanços das interrogações de Freud permitem-nos a compreensão da existência de um mecanismo psíquico por meio do qual a criança,
muito precocemente, protege-se da ameaça de castração, acreditando, temporariamente, na existência do falo materno. Entretanto, é somente em 1925,
no texto “Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre
os sexos”, que Freud irá usar o termo Verleugnung pela primeira vez.
Gradativamente, a noção de “recusa” deixa de ser específico do campo da
psicose, havendo assim, uma recusa da castração em casos de fetichismo.
Neste momento, parece-nos que a questão para Freud é sobre o que se
baseia a recusa em cada estrutura.
Em se tratando de fetichismo, a noção de recusa é compreendida
como um mecanismo de defesa diante de uma realidade percebida, mas
angustiadamente recusada pelo sujeito. É neste momento que o texto sobre
o “Fetichismo” parece-nos paradigmático na obra de Freud; pois além de
situar que a recusa em questão estaria centrada sobre a insuportabilidade
da realidade da castração, ele refere que o fetiche não é um apenas um
substituto para um pênis qualquer. Tratando-se na verdade de um substituto
do pênis da mulher (da mãe).
Diante disso, a função do objeto fetiche é proteger o sujeito do horror
da castração, substituindo o objeto que falta por outro da realidade. Sendo
assim, o objeto fetiche é, paradoxalmente, “um indício do triunfo sobre a
ameaça de castração e uma proteção contra ela”. Como nos lembra Freud:
o “horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação desse
substituto”, no qual o fetiche será o substituto do falo da mulher.
Ocorre que esta modalidade de recusa implica numa impossibilidade
do sujeito em assumir simbolicamente esta falta e admitir a diferença sexual. Esta impossibilidade o leva a reconhecer e recusar, simultaneamente, a
diferença dos sexos, ou seja, ter e não ter o pênis passa a coexistir, simultaneamente, no psiquismo do sujeito. Este mecanismo de defesa passará a
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ser constituinte de um sujeito situado num discurso perverso. A partir de
Freud, podemos supor que o funcionamento psíquico do fetichista evidencia
um paradoxo: a coexistência no nível intrapsíquico de dois componentes
psíquicos a princípio inconciliáveis, a saber, o reconhecimento da ausência
do pênis na mulher e a recusa da realidade desse reconhecimento.
REFLEXÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DO OBJETO FETICHE
Logo no primeiro parágrafo do texto sobre o “Fetichismo”, Freud nos
confronta com questões clínicas, mais precisamente, com a especificidade
da direção do tratamento em casos de fetichismos. Refere que nos últimos
anos teve a oportunidade de acolher em análise certo número de homens
cuja escolha objetal era dominada por um fetiche. A partir dessas experiências, fala-nos que essas pessoas não buscam tratamento em função de seu
fetiche, pois ainda que ele possa ser reconhecido pelo sujeito como anormalidade, raramente é sentido como o sintoma de uma doença que evidencie
algum registro de sofrimento. Para Freud, de modo geral, os fetichistas parecem satisfeitos com o seu fetiche.
Estas observações iniciais do texto nos fazem questionar: o que levaria um fetichista a buscar uma análise? E ainda, quais seriam as possibilidades de direção de tratamento? Parece-nos que ele deixou em aberto estas
questões no texto. Seguiremos sua prudência e deixaremos também em
suspenso essas questões. Vamos apenas nos deter em problematizar como
se dá a constituição do objeto fetiche.
Embora Freud seja cauteloso ao referir que não é sempre possível
descobrir com certeza o modo como o fetiche fora determinado, apresentanos sua hipótese:
“A instauração do fetiche interrompe um processo semelhante ao
que ocorre com o bloqueio da memória nos casos de amnésia
traumática. O interesse do individuo se detém no meio do caminho
e assume a forma de um fetiche; tal como nos casos de amnésia
traumática a memória congela na última impressão que precede o
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evento assustador [unheimlich] e traumático. Então, o pé ou o sapato – ou uma parte deles – devém sua preferência como fetiche –
a circunstâncias de que a curiosamente do menino, levou-lhe a ter
espiado os órgãos genitais da mulher de baixo para cima. [...] As
peças de roupa íntima tão freqüentemente escolhidas como fetiche cristalizam o momento de despir-se antes ainda de a mulher
ser destituída do falo” (FREUD, 1927, p.150).
Acreditamos que uma leitura possível da passagem do texto é que o
fetiche é constituído pelo objeto da última percepção antes da própria visão
traumática. Como se houvesse no fetichismo uma espécie de parada sobre
uma imagem, deixando o sujeito capturado por um resto ao qual ficará fixado. A interrupção na memória seria a sua proteção, pois ele viu e não viu que
a mulher não tem pênis. Então, a constituição do objeto fetiche é tanto a
evidência da manutenção do paradoxo, quanto a cristalização de um olhar
que retém em sua retina o apelo de um gozo em não se defrontar com a falta.
Como podemos perceber esse texto, brilhantemente, trata de lógica,
lógica do inconsciente, do início ao fim. Entretanto, no que se refere à constituição do objeto fetiche, vamos nos permitir, nesse momento, levantar outras hipóteses acerca de suas possibilidades de constituição. Nossa proposição é a seguinte: o objeto fetiche constitui-se em função de um significante
que a mãe endereça ao filho.
Com o intuito de refletir sobre esta proposição, trarei alguns fragmentos clínicos de um caso que atendi há alguns anos. Em função do presente
contexto, irei me limitar apenas aos aspectos que poderão contribuir nesta
discussão.
Acolhi em tratamento um sujeito que buscara análise porque as suas
companheiras, ao longo de sua vida amorosa, além de separarem-se dele,
acionavam-no juridicamente, reivindicando pensões generosas, o que parecia estar lhe causando problemas. Ainda que muito orgulhoso de suas
titulações, via-se compulsivamente envolvido com mulheres de formação intelectual limitada. Em relação às mulheres, seu discurso evidenciava uma
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espécie de roteiro fixo diante do desejo implacável de “formá-las” academicamente.
Apesar de reconhecer que fora bem sucedido em algumas situações,
esse roteiro conjugava-se diante daquilo que se apresentava como a única
forma – absolutamente a única – de atingir o orgasmo. Qual seja: era preciso
colocar o seu órgão sexual entre os pés de suas amadas. Quando conseguia realizar o “imperativo categórico” de seu desejo, fazia questão de dizer
que elas não precisavam fazer nada, além de ficarem quietas e imóveis.
Lacan na lição de 09/06/1954, no Seminário I, “Os escritos técnicos
de Freud”, a partir de sua leitura de Marcel Proust de “Em busca do tempo
perdido”, ao abordar especificamente o ciclo de Albertine2, mostra-nos que a
lógica do perverso situa-se “numa captação inesgotável do desejo do” outro,
jogando-o e fixando-o na condição de objeto inanimado. De acordo com Lacan,
podemos dizer que a fixação na imagem dos pés mostra-nos que o perverso
se encontra aprisionado em seu próprio fetiche, capturado3 por uma imagem
2
“Em Sodoma e Gomorra, o narrador entra no universo da inversão sexual, embora tenha
pensado em livrar-se de Albertine, passa a amá-la morbidamente e decide impedi-la que seja
contagiada por este mundo de depravações, mantendo-a seqüestrada em sua companhia.
No instante em que se convence que o amor como qualquer sentimento se degrada e destrói
com o passar do tempo, procura interromper este fluxo corrosivo, concluindo que é necessário abandonar Albertine. Isto ocorre exatamente no momento em que é avisado que a
moça acabara de fugir de sua casa. Então, aquilo que num primeiro momento lhe causa
mágoa pelo abandono, transforma-se em luto, ao saber que logo após a fuga, ela morreu”.(PY,
2002, p.11).
É a partir da relação do narrador com a Abertine que Lacan vai nos dizer: “O que é a
perversão? Ela não é simplesmente aberração em relação a critérios sociais, anomalia
contrária aos bons costumes, se bem que esse registro não esteja ausente [...]. Ela é outra
coisa na sua estrutura mesma. Não é por nada que se disse de certo número de tendências
perversas que são de um desejo que não ousa dizer seu nome. A perversão situa-se, com
efeito, no limite do registro do reconhecimento e é isso que a fixa, a estigmatiza como tal.
Estruturalmente, a perversão tal como a delineei para vocês no plano imaginário, só pode se
sustentar, em um estatuto precário que, a cada instante, do interior, é contestado para o
sujeito.” (LACAN, 1953, p.252)
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Lacan (1956) na lição do IX “A função do véu” nos fala que o fetiche é uma espécie de
materialização aguda do objeto.
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que impossibilita o reconhecimento de um sujeito, reduzindo-o à condição
de mero instrumento; ou seja, o outro está na condição inanimada. Insistimos nesta tese de Lacan de que “o outro está na condição de objeto inanimado”, justamente porque ela nos aponta alguns elementos para pensarmos
a lógica de um sujeito situado num discurso perverso.
No transcorrer da análise, lembra dos pares de sapatos comprados
para a sua mãe. Esta, em algum momento de sua infância, contou-lhe que
um tio tentou abusá-la quando ainda era menina; apesar de não ter tido
êxito, ele a perseguiu e a pegou pelos pés. Descalça, ela havia corrido e se
desvencilhado do tal agressor. Num determinado momento lhe ocorreu que
sua mãe julgava as feições de seu próprio corpo muito diferente das de seu
pai. Mas, o seu próprio pé, o que lhe rendia muito orgulho, era a única parte
de seu corpo igual a do pai.
Estes elementos nos levam a seguinte interrogação: a constituição
do objeto fetiche seria uma espécie de endereçamento da mãe ao seu filho,
na medida em que se trata de um “pedaço” do corpo erogenizado dela que
recai no imaginário deste? E ainda, este “pedaço” seria uma insígnia do
objeto de desejo da mãe que estaria fixado na geração anterior? Ou seja,
uma parte do corpo desejado do pai da mãe que recai no filho?
Lacan (1956), numa importante passagem do seminário “A relação de
objeto”, refere: “o que constitui o fetiche, o elemento simbólico que fixa o
fetiche e o projeta sobre o véu, é retirado especialmente da dimensão histórica. Este é o momento da história onde a imagem se fixa.” (p.159). Esta
formulação decorre de sua interpretação do texto de Freud sobre o
“Fetichismo”. A partir desta leitura, Lacan irá propor o fetiche tanto como a
matriz da perversão no que diz respeito a escolha de objeto perversa, quanto tentará nos mostrar que é possível também reconhecer no texto freudiano
as bases para pensarmos nas relações entre fetiche e falo materno. Mas,
além disso, ele ira chamar a nossa atenção às transformações lingüísticas, descentrando o foco daquilo que ele supunha um tanto reducionista,
ou seja, vincular a concepção de fetiche a supostas analogias ao campo
visual.
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“Antes de ir mais longe, vocês já podem ver todos os tipos de
coisas se esclarecerem, inclusive e até o fato de Freud nos dar
como primeiro exemplo de uma análise de fetichista essa maravilhosa história de trocadilho. Um senhor que passara sua primeira
infância na Inglaterra e que viera se tornar fetichista na Alemanha,
buscava sempre um pequeno brilho no nariz, que ele via, aliás, ein
Glanz auf der nase. Isso nada mais queria dizer senão um olhar
sobre o nariz, nariz este que era, naturalmente, um símbolo. A
expressão alemã só fazia transpor a expressão inglesa a glance at
the nose, que lhe vinha de seus primeiros anos. Vêem aqui entrar
em jogo, e projetar-se num ponto sobre o véu, a cadeia histórica,
que pode mesmo conter uma frase inteira e, bem mais ainda uma
frase numa língua esquecida” (LACAN, 1956-1957, p.161).
Ao citar a análise realizada por Freud da frase Glanz auf der nase,
Lacan, mostra-nos que os mecanismos da linguagem são elementos essenciais para compreensão da constituição do objeto fetiche, a partir de um
momento da história do sujeito, no qual a imagem se fixa. Isto o levará a
dizer que na perversão o que esta em questão é o sujeito esconder a falta fálica
da mãe. Para Lacan, o fetichista lançará mão de um véu cuja sua função é
paradoxal, pois de um lado ele esconde o nada que está para além do objeto
enquanto desejo do outro: a mãe não tem o falo; de outro, é ao mesmo tempo,
o lugar de projeção da imagem fixa do falo simbólico: a mãe tem o falo...
O véu para Lacan será o substituto do falo deslocado para o pé, o
sapato, etc... O fetiche será o substituto do falo faltante na mãe, ou seja, na
falta do falo simbólico o sujeito supervalorizará um objeto como falo imaginário. Entretanto, cabe ressaltar que Lacan irá fazer uma distinção entre pênis
e falo, lembrando-nos que o fetiche é o substituto deste, representando não
o órgão real, mas o pênis enquanto podendo faltar.
As observações de Lacan nos fazem compreender que a miséria psíquica do perverso o joga na condição de vítima do próprio objeto ao qual se
encontra aprisionado. O gozo perverso implica a ilusão da captura absoluta
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ROSA JR, N. C.
DAL
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DA.
A constituição do objeto...
do objeto, fixando-o em sua própria retina, recusando assim o nada que
possa existir para além deste. Em contrapartida, Lacan irá nos dizer que a
captura do objeto a (causa do desejo) é da ordem do impossível, ou seja, não
há imagem do olhar, porque o objeto a não é especularizável, não possui
nenhuma materialidade e, tampouco, pode ser tocado.
Como podemos constatar, Lacan, a partir de Freud, procura demonstrar que o objeto fetiche deve ser concebido pelo viés da linguagem. Nosso
estimado colega, Ivan Corrêa (2005), em seu livro “A escrita do sintoma”, no
capítulo “O despojamento do eu”, também irá nos dizer que o caso clínico
apresentado por Freud no texto “Fetichismo” é um exemplo da abordagem
psicanalítica do fetiche pelo viés da linguagem. Para Ivan, quando Freud fala
desse jovem paciente que elegeu como objeto fetiche um certo “brilho sobre
o nariz”, logo chamou a atenção que a formação desse fetiche seria conseqüência do fato do sujeito ter sido criado na Inglaterra e ido posteriormente
para Alemanha, onde parecia haver esquecido completamente sua língua
materna. A sensibilidade de Freud leva-o a ler esse fetiche como decorrente
de sua primeira infância, mostrando-nos que ele deveria ser lido em inglês e
não em alemão, ou seja, “o brilho sobre o nariz” – Glanz auf der Nase –, era
na verdade uma olhadela de relance dirigida ao nariz – Glance.
As observações de Ivan são preciosas. Neste mesmo capítulo, ele irá
abordar também as diferentes e divergentes leituras realizadas desse texto
de Freud e suas implicações clínicas. Para abordar estas questões, o autor
toma como referência uma palestra que assistira em Recife de um psicanalista armênio radicado em Nova York e, inclusive, fora presidente da sociedade de psicanálise daquela cidade. O conferencista em questão abordava o
caso de uma senhora – considerando-o como uma raridade de fetichismo
feminino – que ele havia atendido durante vinte anos e que elegera um “gato”
como objeto fetiche. Tratava-se de uma pessoa que, a cada relação sexual
com o marido, precisava da presença de um “gato” dentro do quarto. Ivan vai
dizer que, do ponto de vista freudiano, o fetiche se constitui enquanto tal na
medida em que, logicamente, ocupa o lugar do substituto do falo da mulher,
caso contrário, não se trata de fetiche.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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SEÇÃO TEMÁTICA
“[...] era uma senhora que a cada vez que tinha relação sexual com
o marido, tinha que ter um gato dentro do quarto. Ela só tinha
relações sexuais tendo um gato no quarto. Ele considerou isso,
um gato, como um objeto fetiche. Mas quando a gente vai ver o que
Freud diz do objeto fetiche, vê que Freud não fala de representação.
Freud diz que o fetiche é um -Ersatz der Phallus der Weibes –
substituto do falo da mulher”. É dessa forma que Freud caracteriza
o objeto fetiche. O objeto fetiche é um substituto do falo” (CORRÊA,
2005, p. 171).
Segundo Ivan, o nosso conferencista não escuta o “gato”, que a mulher tem no quarto na hora das relações sexuais, enquanto significante, ou
seja, o “gato” é um “gato” e ponto final e, inclusive, um fetiche. Neste sentido,
a questão acerca de como este significante se apresenta como um substituto do pênis, o palestrante não fala. Sendo assim, ele pode até representar,
mas não estava no lugar de substituto do pênis. Então, o “gato” no quarto é
mais concebível na condição de uma fantasia, do que propriamente de um
fetiche.
Neste artigo, procuramos abordar a questão da constituição do objeto
fetiche enquanto significante. Levantamos a hipótese de que o fetiche seria
uma espécie de endereçamento da mãe ao seu filho, na medida em que se
trata de um significante do corpo erogenizado dela que recai no imaginário
deste, uma espécie de insígnia do objeto de desejo da mãe que estaria
fixado na geração anterior. Reflexões à parte, como podemos perceber, o
tema do fetichismo trata de um terreno muito complexo, pois se de um lado
o fetichista se vê tomado por um excesso de brilho que produz cegueira
diante da impregnação do corpo materno; de outro, isso paradoxalmente,
apresenta-se como um recurso para se proteger face ao apagamento absoluto do outro.
Como mencionamos em nossa introdução, o texto sobre o “Fetichismo”
é um clássico.A cada leitura nos sentimos defrontados com novas interrogações. Portanto, o fetichista questiona o nosso precário saber sobre o olhar,
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A constituição do objeto...
pois de que ordem é esse olhar que faz um recorte muito específico de uma
parte que apaga, ou até mesmo, ofusca todo o resto? A leitura que Lacan faz
de Marx sobre o “fetiche da mercadoria”, parece-nos um caminho interessante para relançar estas questões.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CALVINO, Í. Por que ler os clássicos (1991). São Paulo: Companhia das Letras,
1993.
CORRÊA. I. A escrita do sintoma. Recife: CEF, 2OO6.
FREUD, S. Três ensaios da teoria sexual (1905). In: Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu editores, 2005. V. VII
_________. Fetichismo (1927). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu
editores, 2003. V.XXI.
_________. A organização genital infantil (1923) In: Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu editores, 2004. V. XIX.
_________. Algumas conseqüências psíquicas das diferenças anatômicas entre os sexos (1925). In: Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu editores,
2004. V. XIX.
_________.Esboço de psicanálise (1940[1938]). In. Obras completas. Buenos
Aires: Amorrortu editores, 2004. V. XXIII.
LACAN, J. O Seminário – Livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1996.
_________. O Seminário – Livro 4: A relação de objeto (1956-1957). Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1995.
_________. O Seminário – Livro 10: A angústia (1962-1963). Publicação não
comercial. Circulação Interna do Centro de Estudos Freudianos do Recife.
Recife: 1997.
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SEÇÃO TEMÁTICA
MARCON, H. Algumas notas...
ALGUMAS NOTAS SOBRE IMPROVISOS DO CARTEL
Heloisa Marcon
S
ei que um improviso musical não consegue ser repetido nem narrado
a alguém que não estava presente no momento de seu acontecimento.
Mesmo assim, achei que podia ter valor escrever um texto fazendo
uma espécie de relato de alguns momentos do trabalho do Cartel preparatório ao Relendo Freud deste ano. Algo como mapear os tons a partir dos
quais o improviso aconteceu.
Penso que pode ter valor na medida em que, seguindo a metáfora
musical, a base sobre a qual acontecem, “rolam” os improvisos são as escalas musicais, mas o modo como elas vão ser arranjadas depende, em cada
momento, de cada músico. No caso do nosso trabalho do cartel, as escalas
são os textos de Freud que estudamos a partir do tema do Fetichismo. Tais
textos são: “Fetichismo” (1927); “A organização genital infantil” (1923); dos
“Três ensaios da teoria sexual” (1905) nos detivemos na parte intitulada “Substituto inapropriado do objeto sexual. Fetichismo”; do “Esquema de Psicanálise” (1940 [1938]) nos detivemos no Capítulo VIII da Parte III intitulado “O
aparato psíquico e o mundo exterior”; “A cisão do eu no processo defensivo”
(1940 [1938]), até chegar no texto “A cabeça de Medusa” (1940 [1922]), que,
apesar de ter sido o último, foi o texto que, claramente, inspirou o cartaz
deste Relendo.
Assim que, improvisando agora eu, os convido a um passeio pelos
textos de Freud estudados pelo Cartel, a partir do que restou para mim das
questões as quais lembro que nos detivemos em nosso estudo e que, de
alguma forma, me fizeram questão.
na tradução em espanhol da Madrid quanto na em português da Imago – do
texto do “Fetichismo”. Nessa versão em português, não muito longe do início
do texto, encontramos o seguinte: “A mais antiga palavra de nossa terminologia psicanalítica, ‘repressão’, já se relaciona com esse processo patológico. Se quisermos diferenciar mais nitidamente a vicissitude da idéia como
distinta daquela do afeto, e reservar a palavra ‘Verdrängung’ [repressão] para
o afeto, então a palavra alemã correta para a vicissitude da idéia seria
‘Verleugnung’ [rejeição]”1. Todos que estranharam esses termos, estranharam a mesma coisa: parece que Freud fala de repressão ou recalque do
afeto, quando todos lembrávamos que o afeto é justo o que não é recalcado
ou reprimido e, por ficar livre da representação que foi recalcada, enganar.
Simone Kasper encontrou no Laplanche que se pode falar de repressão de
afeto, sim. Ficamos ainda sem saber o que pensar sobre este uso conceitual
de Freud até o momento em que conseguimos um precioso encontro com
Luis Fernando de Oliveira, que trouxe o texto em alemão bem como em
espanhol na tradução da Amorrortu (que é a que estou usando aqui neste
trabalho com exceção deste trecho da Imago). Mas, ao invés de, já de saída
nos aliviar dizendo que se tratava de um erro de tradução, ele confirma que o
que aparece ali, no alemão, é justamente a Verdrängung. Ele não entende a
nossa questão, o motivo pelo qual estávamos tão impressionados em encontrar a Verdrängung ali naquele contexto. Então, ele nos faz atentar para o
fato de Freud não dizer que há repressão ou recalque do afeto, mas de ele
pedir para reservarmos essa palavra para os destinos do afeto, e usarmos,
no caso do fetichismo, a palavra Verleugnung para os destinos das representações (e não idéias, como está na tradução em português, que usáramos
até então). Ele lembra de ser esta uma antiga construção freudiana: afetos e
representações, lado a lado. Neste momento surge, para mim, a possibilidade, então, de pensar que o afeto sinalize a presença de uma Verdrängung
¯
Um problema conceitual que pensamos, inicialmente, se tratar apenas de um problema de tradução, surgiu no Cartel quando da leitura – tanto
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1
Freud, 1927, 180, tradução em português da Imago Editora.
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SEÇÃO TEMÁTICA
MARCON, H. Algumas notas...
(que tem relação com a angústia), enquanto a representação é recusada.
Ok, é uma possibilidade de leitura. Mas afeto e representação de quê?
Comecemos do começo! Freud, no “Fetichismo”, enuncia que “(...) o
fetiche é um substituto do pênis (...)”,2 “(...) um pênis específico e muito
particular, que teve grande importância na primeira infância, mas se perdeu
mais tarde”.3 E continua dizendo que, na verdade, “(...) normalmente deveria
ter sido abandonado, mas justamente o fetiche se destina a preservá-lo de
seu sepultamento”.4 Chegando, então, à formulação de que “(...) o fetiche é o
substituto do falo da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou
e ao qual não quer renunciar - sabemos porquê”.5
¯¯
É no “A organização Genital Infantil (uma interpolação na teoria da
sexualidade)” que encontramos as razões que nos são familiares, isto é, o
‘porquê sabemos’ referido acima, por Freud. Tal texto freudiano apresenta as
pesquisas e as descobertas sexuais feitas pelos meninos.
Vou contar-lhes uma cena que me foi narrada:
No recreio, as crianças pequenas faziam fila para ir ao banheiro.
Mas mesmo estando ainda longe da sua vez de entrar as crianças
já estavam com as calças abaixadas. Um menino olhava para
seus genitais e, em seguida, olhava para os de sua coleguinha
que estava atrás dele na fila. Assim o fez por várias vezes, até que
2
Freud, 1927, 147, “(...) el fetiche es un sustituto del pene (...).”
Ibidem, 147, “(...) un pene determinado, muy particular, que ha tenido gran significatividad en
la primera infancia, pero se perdió más tarde.”
4
Ibidem, 147, “(...) normalmente debiera ser resignado, pero justamente el fetiche está
destinado a preservarlo de su sepultamiento.”
5
Ibidem, 148, “(...) el fetiche es el sustituto del falo de la mujer (de la madre) en que el
varoncito ha creído y al que no quiere renunciar - sabemos por qué.”
3
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disse para a coleguinha: “Eu tenho pinto, tu não tem!” A menina
olhou seus genitais e olhou o pênis do menino. Após um curto
tempo, respondeu, virando-se de costas para ele e com a mão em
sua bunda: “Tá, mas eu tenho bundinha!”
Dentre as descobertas sexuais dos meninos, encontramos, no texto
freudiano, justamente, uma “(...) visão casual dos genitais de uma irmãzinha
ou companheira de jogo(...)”6 “(...) que o pênis não é um patrimônio comum a
todos os seres semelhantes a ele”.7
O problema em relação a essa percepção para o menininho é que não
se trata de algo simples como pode parecer em termos formais ou lógicos:
reformular um juízo e formular, agora, a proposição adequada, isto é, que
corresponda à realidade de sua percepção (de que a mulher não tem pênis),
e, com isso, fica tudo bem. O fato de ter percebido que a mulher não tem
pênis o leva a formular diversas hipóteses: “(...) [o pênis] ainda seria pequeno
e vai crescer, e depois lentamente chegam à conclusão afetivamente significativa de que, sem dúvida, [o pênis] esteve presente e foi retirado depois”.8 A
última das hipóteses é, portanto, a castração (elas perderam o pênis) e a
que coloca o verdadeiro problema para o menino, porque contém a possibilidade da sua própria (do menino) castração. E é com isso que ele tem de se
ver, com a sua própria castração.
Trouxe aquele relato de cena das crianças no colégio porque me ajuda a pensar o quanto a castração é algo a ser construído. A diferença
anatômica é o assunto do diálogo entre o menino e a menina, mas, a percep-
6
Freud, 1923, 147, “(...) la visión casual de los genitales de una hermanita o compañerita de
juegos(...).”
7
Ibidem, 147, “(...) que el pene no es un patrimonio común de todos los seres semejantes a
él.”
8
Ibidem, 147, “(...) aún sería pequeño y ya va a crecer, y después, poco a poco, llegan a la
conclusión, afectivamente sustantiva, de que sin duda estuvo presente y luego fue removido.”
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ção dessa diferença não é algo tão facilmente assimilável quanto se poderia
pensar. Eu acho a resposta da menina muito engraçada porque, em resumo,
ela diz “tá bem, eu não tenho pênis, mas tenho outra coisa” e a continuação
deveria ser, para responder desde a lógica do menino, que ela também tem
algo que ele não tem. No entanto, ela aponta algo que, anatomicamente, os
dois têm, “bundinha”!
A relação com a falta e com a castração, portanto, não depende da
anatomia, não depende do real do corpo. Se fosse assim, a menininha, por
não ter pênis, deveria, desde sempre, ser castrada. E o que escuto é que ela
ainda precisa ter a “bundinha”, isto é, ter algo no lugar da falta.
Sonia Ogiba, oportunamente, sugeriu a leitura do texto de Ricardo
Rodulfo intitulado “¿Cómo, no hablar del afecto? ¿Cómo no hablar, del afecto?”
no qual encontramos que existem duas teorias do afeto em Freud. Na segunda delas “(...) a teoria do afeto se sinonimiza com uma teoria da angústia
(...)”.11 E, mais adiante, encontramos explicitamente “(...) os inesperados giros em relação ao afeto posteriores a 1920, o mais “esquecido” dos quais é
o que o converte no verdadeiro objeto da repressão, ponto frente ao qual
muitos analistas preferiram fazer-se de distraídos, renegatoriamente”.12 De
qualquer forma, trata-se de um giro...
¯¯¯
Uma outra questão levantada no trabalho do Cartel refere-se a pensar
o estatuto do objeto fetiche. Lembro que nos perguntávamos se havia relação do objeto fetiche com o objeto a e, naquele momento algo já me fazia
pensar que não. Depois, fazendo outras leituras, encontrei algo que tornava
essa questão mais clara. A partir do que Lacan formula na aula de 22 de
maio de 1963 do Seminário da Angústia sobre o objeto a voz, do fato de a voz
ser potencialmente separável do que é dito, do que é enunciado, chega-se
facilmente ao modo como isso foi escrito por Harari na sua “Introdução” ao
referido Seminário de Lacan: “A voz não se confunde com a fala; inversamente, cabe argüir que é precisamente o que lhe falta”.13 Conceber a voz – que é
um objeto a – como sendo o que falta à fala esclarece que o objeto fetiche
não é um abjeto a, dado que ele se coloca no lugar do pênis. A voz não está
no lugar da fala! A voz até vem junto com a fala, mas não no seu lugar, como
seu substituto; a voz vem como o que falta, como faltante em relação à fala.
¯¯¯¯
Retornemos ao texto do “Fetichismo” (1927) e para nosso problema
com a Verdrängung naquele contexto. Encontramos que “(...) o horror à castração ergueu um monumento recordatório com a criação deste substituto”.9
Temos, então, o ‘horror à castração’ como causa da construção desse substituto, objeto fetiche. E ainda que: “Como stigma indelebile da repressão que
se efetuou permanece, ainda, o estranhamento a respeito dos reais genitais
femininos, que não falta em nenhum fetichista”.10 Dessa forma, a Verdrängung
que não encontrávamos lugar, motivo ou sentido, surge agora de outra maneira: o horror da castração é reprimido e o afeto é transformado em
estranhamentoaos genitais femininos. Ao mesmo tempo, a representação
da percepção de que a mulher não tem pênis é recusada (Verleugnung).
Dessa forma, o destino do afeto de fato tem a ver com Verdrängung e o da
representação com Verleugnung, como havia dito Freud.
11
9
Freud, 1927, 149, “(...) el horror a la castración se ha erigido un monumento recordatorio
con la creación de este sustituto.”
10
Ibidem, 149, “Como stigma indelebile de la represión sobrevenida permanece, además, la
enajenación respecto de los reales genitales femeninos, que no falta en ningún fetichista.”
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Rodulfo, 2002, 5, “(...) la teoría del afecto se sinonimiza con una teoría de la angustia (...).”
Ibidem, 5, “(...)los inesperados giros en relación al afecto, posteriores a 1920, el más
“olvidado” de los cuales es el que lo convierte en el verdadero objeto de la represión, punto
frente al cual muchos analistas han preferido hacerse los distraídos, renegatoriamente.”
13
Harari, 1997, 189.
12
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¯¯¯¯¯
Fernanda Breda chamou a atenção para uma curiosa repetição: para
dar conta do mecanismo de defesa usado no fetichismo, Freud acaba trazendo à tona, diversas vezes, a psicose e seu mecanismo. Parece estranha
essa referência à diferença essencial entre neurose e psicose num artigo
sobre o fetichismo, no entanto, o caso clínico de dois jovens (não psicóticos)
que reconhecem e não reconhecem a morte de seus pais aproxima tal mecanismo do fetichismo e obriga Freud a repensar sua teoria, pois se trata,
nos dois casos (dos jovens e dos fetichistas), de se desligar de um fragmento da realidade (a morte do pai e a castração da mulher, respectivamente),
assim como ele supunha ocorrer na psicose. Mas o que ele descobre com
os caso destes jovens é que: “Dentro da vida anímica deles, apenas uma
corrente não tinha reconhecido a morte do pai; mas havia outra [corrente]
que tinha dado razão cabal a esse fato; co-existiam, uma ao lado da outra, a
atitude que estava de acordo com o desejo e a atitude de acordo com a
realidade”.14
É na parte já citada do “Esquema de Psicanálise” que Freud nomeia
de cisão psíquica este mecanismo no qual “se formam duas posturas psíquicas em vez de uma postura única (...). As duas coexistem, uma ao lado da
outra”.15
¯¯¯¯¯¯
No fetichismo, encontram-se as duas correntes lado a lado! Não consigo não me surpreender com essa “(...) atitude bicindida (...)”16!
“As duas reações contrapostas frente ao conflito, subsistirão como
núcleo de uma cisão do eu”17, afirma Freud no texto “A cisão do eu no processo defensivo”.
Dessa forma, vemos no fetichismo como “(...) a função sintética do
eu, que possui uma importância extraordinária, tem suas condições particulares e sucumbe a toda uma série de perturbações”.18
No fetichismo a perturbação é a percepção da ausência do pênis na
mulher, pois apesar do menino recusar esta percepção, ela não deixa de
produzir efeitos. O fetiche é, propriamente, efeito dessa percepção recusada!
Na raiz da formação do fetiche temos uma formação de compromisso
– como Freud havia já anunciado no texto “Fetichismo”, compromisso que
“resolve” o conflito entre o peso da percepção desagradável (de que a mulher
não tem pênis) e a força de seu contradesejo (de que ela seguisse tendo
pênis, como o menino até então pensava) – com a ajuda do deslocamento
(deslocamento do valor, do interesse, do significado do pênis para o objeto
fetiche). Mas essa resolução, bem de acordo com o que diz Freud, de que
só a morte é grátis19, tem como conseqüência a cisão do eu, pois só com o
eu cindido é possível duas premissas opostas, duas atitudes opostas, duas
posturas opostas, duas reações contrapostas (alguns dos termos usados
por Freud) subsistirem lado a lado durante toda a vida sem se influenciarem
reciprocamente! Dessa forma, com esse preço que paga o eu – sua cisão –
ele deixa ver o seu selo de origem que, parafraseando Freud, eu diria ser
‘Made in Isso”!
14
Ibidem, 151, “Dentro de la vida anímica de aquellos, sólo una corriente no había reconocido
la muerte del padre; pero existía otra que había dado cabal razón de ese hecho; coexistían,
una junto a la otra, la actitud acorde al deseo y la acorde a la realidad.”
15
Freud, 1940 [1938] A, 203-204, “Se formam dos posturas psíquicas en vez de una postura
única: la que toma en cuenta la realidad objetiva, la normal, y otra que bajo el influjo de lo
pulsional desase al yo de la realidad. Las dos coexisten una junto a la otra.”
16
Freud, 1927, 151, “(...) bi-escindida actitud (...).”
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17
Freud, 1940 [1938] B, 276, “Las dos reacciones contrapuestas frente al conflito subsistirán
como núcleo de una escisión del yo.”
18
Ibidem, 276, “La funcción sintética del yo, que posse una importancia tan extraordinaria,
tiene sus condiciones particulares y sucumbe a toda una serie de perturbaciones.”
19
Ibidem, 275.
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¯¯¯¯¯¯¯
O texto do “Fetichismo” inicia com um exemplo, que me surpreendeu
por sua natureza linguageira no sentido mais lacaniano possível deste termo. Freud conta de um jovem que “(...) tinha elevado à condição fetichista
certo ‘brilho no nariz’”.20 Este jovem cresceu na Inglaterra, ou seja, entrou na
linguagem a partir da língua inglesa e depois, quando foi morar na Alemanha,
acabou esquecendo quase completamente sua língua materna. Em inglês
vislumbre é glance, enquanto que em alemão, glanz é brilho. Assim que,
nessa operação de linguagem, o glance se transformou em Glanz auf der
Nase, dotando o nariz, que era o fetiche, “(...) do brilho luminoso que não era
perceptível a outros”.21 Interessante como o objeto nariz se manteve nessa
operação, alterando apenas a palavra que acompanha tal objeto: do ver, olhar,
vislumbrar o nariz, chega-se ao brilho, a uma certa luminosidade do mesmo.
A partir dessa surpresa para com esse exemplo tão do campo da
linguagem dado por Freud, Marieta Rodrigues contribuiu com a discussão,
lembrando do verbete ‘o fetiche como significante’, do Dicionário do Chemama.
Da mesma forma, num outro momento em que retomávamos este exemplo
de Freud, Norton Cezar Júnior trouxe um artigo de um livro de Ivan Correa,
que tratava justamente da questão do fetiche e sua relação com o campo do
significante. O autor enuncia crítica a um texto que apresentava um caso
descrito como de fetichismo:uma mulher só conseguia manter relações sexuais com seu parceiro com a condição de ter um “gato” dentro do quarto.
Para Ivan Correa, se não estou enganada, se tratava de apontar que o “gato”
dentro do quarto seria da ordem significante e não de um objeto fetiche.
Lembramos da diferença entre signo e significante: enquanto o signo representa algo (um objeto) para alguém (para um sujeito), um significante representa o sujeito frente a outro significante. O “gato” aparece mais do lado de
20
21
Freud, 1927, 147, “(...)había elevado a la condición fetichista cierto ‘brillo en la nariz’.”
Ibidem, 147, “(...) esa particular luz brillante que otros no podían percibir.”
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um significante que representa o sujeito frente a outro significante, isto é, o
“gato” é algo que não se sabe a que outro significante referir-se-ia para esta
mulher. Não sei para vocês, mas me parece óbvio que ela só faça sexo com
um “gato” no quarto! Tem algo de mais deslizante, mais frouxo nesse “gato”
no quarto que o caráter fetichista de um objeto evidencia. O objeto fetiche,
como vimos, é sempre (aí a rigidez ou fixidez deste objeto) um substituto
para o pênis da mulher e, nessa medida, representa este pênis para o fetichista. O objeto fetiche brilha (como o brilho do nariz!), agora, como um
signo. O fetiche é, portanto, o signo do pênis feminino para o fetichista.
¯¯¯¯¯¯¯¯
Em vários momentos do nosso trabalho no Cartel, nos detivemos no
caráter de monumento do objeto fetiche. Como já vimos, o próprio Freud, no
texto do “Fetichismo”, usa essa palavra para se referir ao fetiche, afirmando
que ele é um monumento recordatório erguido pelo horror da castração na
criação do substituto para o pênis da mulher. Apesar de estar correto, segundo Luis Fernando, traduzir Denkmal simplesmente por ‘monumento’ (como
está em português) ou como ‘monumento recordatório’ (como está em espanhol), parece mais fértil a tradução por “memorial”, proposta pelo colega.
Denk, pensamento; Denkmal, sendo assim algo como trazer para o pensamento. Trazer para o pensamento como possibilita um memorial. O fetiche
como um memorial.
O que é um memorial?
Memorial diz respeito à memória e a memorável (digno de permanecer
na memória).
Penso imediatamente num memorial de guerra. O memorial de guerra
é uma construção, uma obra, que visa a criar memória. Meio estranho, à
primeira vista, pensar numa guerra (as cenas da guerra em si) como algo
digno de permanecer na memória ou de se trazer para o pensamento. No
entanto, por paradoxal que seja, as guerras são momentos que não apenas
merecem como devem permanecer na memória. E isso em dois sentidos:
deve-se lembrar de uma guerra como algo que teve seu papel para que hoje
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43
SEÇÃO TEMÁTICA
vivamos do modo como vivemos e, também, devemos lembrar – justo para
não esquecer – de que aqueles horrores e barbáries participam, ainda, do
humano.
Já o fetiche é construído para proteger o menino contra a angústia ou
o horror da castração. No lugar da percepção da falta do pênis da mulher,
coloca um substituto, o objeto fetiche, que acaba por ser “(...) o signo do
triunfo sobre a ameaça de castração e da proteção contra ela”22. Mas, então,
por que trazer para o pensamento, por que fetiche como memorial? Porque a
ameaça de castração continua presente. Houve um triunfo sobre a ameaça
de castração, mas não foi um triunfo total, ele deve ser constantemente
atualizado. Não esqueçamos: uma das partes do eu vive numa boa, sem
medo, mas a parte que reconhece a percepção da falta de pênis na mulher é
constantemente ameaçada. Então o fetiche tem de ser constantemente trazido para o pensamento para seguir triunfando sobre a ameaça de castração, para proteger o sujeito da ameaça de castração e manter a “ordem”
psíquica cindida. Por isso ele é memorável, ou seja, digno de ser lembrado.
Entretanto, uma diferença que penso ser importante deve ser feita:
enquanto o memorial de guerra ajuda, com o ato de sua construção, a fazer
o sepultamento dos homens que nela morreram de maneira bárbara, o fetiche, ao contrário, com sua construção, “ajuda” a não sepultar o falo materno!
Memorial da angústia! Com o objetivo de proteger o menino contra a
angústia, será que, uma vez que é Denkmal, ou seja, que o fetiche é memorial,
ele não acaba, ao mesmo tempo em que faz a defesa contra a angústia de
castração também a traz à tona? E, com isso, não seria uma possível via de
trabalho numa análise, mesmo que secundária (pois que o fetiche não traz
sofrimento, mas satisfação)?
MARCON, H. Algumas notas...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S. Três ensaios da teoria sexual. In: Obras completas. Vol.7 (1901-05).
Buenos Aires: Amorrortu editores, 1994.
______. A cabeça de Medusa. In: Obras completas. v.18 (1920-22). Buenos Aires:
Amorrortu editores, 1994.
______. A organização genital infantil. In: Obras completas.v.19 (1923-25). Buenos
Aires: Amorrortu editores, 1994.
______. Esquema de Psicanálise. In: Obras completas. v.23 (1937-39). Buenos
Aires: Amorrortu editores, 1994.
______. Fetichismo. In: Obras completas. v.21 (1927-1931). Buenos Aires:
Amorrortu editores, 1994.
______. Fetichismo. In: Obras completas. v.XXI (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago
Editora Ltda., 1980.
HARARI, R. O seminário “A angústia”, de Lacan: uma introdução. Porto Alegre:
Artes e Oficios, 1997.
LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005, p.274.
RODULFO, R. ¿Cómo, no hablar del afecto? ¿ Cómo no hablar, del afecto?
Revista Actualidad Psicologia. Buenos Aires. Ano XXVII - Nº 296/2002.
22
Ibidem, 149, “(...) el signo del triunfo sobre la amenaza de castración y de la protección
contra ella.”
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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SEÇÃO DEBATES
SLAVUTZKY, A. O dever da memória.
O DEVER DA MEMÓRIA1
Abrão Slavutzky
A
história da humanidade começou com o dever da memória. O primeiro dever foi a construção de uma sepultura como homenagem a um
ente querido morto. A criação do túmulo, ocorrida há 50 mil anos, foi
um divisor de águas entre a natureza e a cultura, uma vez que o ritual funerário não é natural, pois os animais, quando morriam, ficavam na superfície. O
túmulo é também um sinal de identidade lingüística, pois o morto é individualizado, o que foi decisivo na construção da linguagem. A perda recebe então uma marca na terra e uma marca mnêmica, que vai construir o que virá a
ser a realidade psíquica. A tragédia Antígona, de Sófocles, representa a
importância desse ritual: o rei Creonte proíbe o enterro de Polinice. Antígona,
sua irmã, insistiu em enterrá-lo, mesmo sendo morta por isso.
O dever da memória evoca uma dimensão religiosa, no sentido de
relegere (Cícero), que é o de tornar a ler o passado. Este é indispensável à
manutenção da unidade de um grupo; na Bíblia, por exemplo, a ordem de
lembrar é onipresente através da palavra Zakhor. Aprendi com meu pai a
frase com que encerrava nossas conversas: “O passado ainda é o passado”.
Mas se o passado pesar muito, o sujeito fica melancólico, pois a sombra do
objeto perdido cai sobre o Eu. Nesse caso, a memória da perda não alivia,
mas gera uma tristeza constante. Hoje, por dever de memória do valor da
liberdade, recordo dois eventos: 68, o ano que retorna, quando milhares de
jovens lutaram por uma humanidade mais justa. Fiz parte daquela juventude
otimista, a geração 68, que imaginou poder transformar toda a sociedade.
Vinte anos depois, um dos líderes daquela rebelião, Dany Cohn-Bendit, fez
um balanço daqueles anos no livro “Nós que Amávamos tanto a Revolução”.
Alguns ideais ficaram distantes; entretanto, 68 retorna porque abriu espaços
para mudanças efetivas de valores nas relações humanas: hoje somos mais
livres. O outro acontecimento foi o Levante do Gueto de Varsóvia, iniciado no
dia 19 de abril de 1943, há 65 anos. Essa rebelião, feita por judeus, foi a
primeira revolta civil contra o nazismo. Centenas de jovens mal armados
desafiaram o exército alemão durante um mês, preferindo a morte na luta
aos campos de extermínio. Hoje é considerada uma das epopéias da humanidade, como a rebelião dos escravos comandada por Spartacus em Roma
ou a dos negros liderada por Zumbi aqui no Brasil. Temos o dever da memória com os que enriqueceram a sociedade com a solidariedade e a compaixão. Não só com os heróis famosos, mas com nossos familiares, muitos
vindos de terras distantes, que nos deram um nome, estudos e confiaram no
porvir. Um dia perguntei a Cyro Martins sobre seu amor pelo passado em sua
ficção, onde se refere a seu pai Bilo e seus amigos. Ele me disse que a
memória eram as raízes do escritor. Lembrar aqui o amigo Cyro, a geração
68 e os jovens do Gueto de Varsóvia, é criar pontes invisíveis pelas quais o
passado transita para o presente.
1
Texto publicado na edição online do jornal Zero Hora - edição online de 15 de abril de 2008
(n. 15572); zerohora.com
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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RESENHA
RESENHA
CRÍTICA DA IMAGINAÇÃO
INDOLENTE OU A LONGA
VIAGEM AO SAPATEIRO
Paulo Endo1
N
a bolha imensa que recobre os escuros
da imaginação, o futuro não é mais do
que o ar rarefeito que cada qual busca,
sofregamente, inalar em seus próprios pulmões.
Em tal lugar, outrora seguro e pacato, cada centímetro cúbico de oxigênio é disputado até a
morte.
A ninguém, dos que ali vivem e morrem,
ocorrerá lancetar com uma agulha de tricô (objeto em desuso) a enorme
bolha que cobre as cabeças e as almas condenadas por todos os efeitos da
asfixia.
Todos estão muito ocupados em respirar, evitando cada esforço adicional, cada pensamento desnecessário, cada palavra excessiva. A iminência
da morte e da aniquilação também gera o colapso da imaginação e a preguiça do pensamento. A partir daí, como provocar então “a experiência radical
de perfuração de futuros opacos e sombrios”?
Edson Sousa persegue esse alerta em seu livro “Uma Invenção da
Utopia”. Não há mais passado que legitime e explique a ausência de inquietação sobre o futuro. Todas as desculpas devem ser deitadas ao chão, e as
lamentações sobre o passado que não foi e o futuro que não será tornaramse há muito “imperativos do consenso” que é preciso perturbar. “A passividade anda de mãos dadas com a tristeza”, e essa tristeza não é mais do que
um copo, vazio de moedas, ao lado do corpo roto que mendiga.
1
Psicanalista, Professor Doutor do Instituto de Psicologia da USP. Membro do LAPPAP/
UFRGS - Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política.
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C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
Num mundo sem utopias não poderá haver responsabilização por nossos próprios fracassos, eles serão apenas lamentados e pranteados. Mas a
utopia, que Edson Sousa examina como um lapidador de pedras brutas, se
instaura na responsabilização do instante, na inquietude pelo impossível e
nas fendas do constituído.
É na potência do “poder constituinte” de Negri que o autor buscará as
chaves da “lógica que anima os processos de criação”. A equação é radical:
sem criação não há utopia. Todavia a criação deve ainda obedecer a duas
exigências fundamentais: sua dimensão política e, necessariamente, interminável, informe e insubordinada; e o deslocamento persistente do embate
com as entidades do poder constituído e suas sólidas camadas superpostas.
Portanto, o compromisso “com o amanhã” não é outra coisa senão
desejo de transposição. “Pensar é transpor”, frase emblema de Ernst Bloch
que percorre a reflexão do autor do começo ao fim e que restaura a mutualidade
constitutiva do pensamento, da criação e da desobediência.
Toda utopia que morre revela-se então como um simulacro de utopia,
como embuste aperfeiçoado e caro que degrada a imaginação e zomba do
porvir. As utopias que morrem - e há muitas sob a terra - não são utopias. A
“ruína dos saberes instituídos” e o fim das promessas não cumpridas não é
o fim das utopias, mas seu princípio.
Trata-se de uma posição que se radicaliza na crítica, não apenas ao
pensamento formal, mas também à arte como horizonte da forma e do conteúdo, como objeto de valor e como mercantilização do fazer criativo. Onde
estará a crise na arte? Crise que se funda no próprio território onde ela se
refaz inteira para, mais adiante, se desfazer novamente.
Imobilizado para perdurar, como restaurar o fazer artístico contínuo e
constituinte? Onde encontraremos a contrariedade e a desobediência na
arte e no artista?
Entre os objetos prestes a serem descartados, Sousa bate o pó da
utopia e reassegura o seu princípio ativo. Mas a utopia, como horizonte do
insuficiente e crítica do instante, exige mais do que a disposição para o
ofício. Ela se impõe como “invenção da vida”. Lá, na longa viagem até o
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
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RESENHA
AGENDA
sapateiro, descrita nas primeiras páginas de seu livro, com nossas mãos
repletas de objetos estragados, é que se evidencia o caminho da crise para
a qual os objetos velhos nos conduzem. Momento em que o sapateiro, diante dos objetos a consertar, desloca-se do homem descartável para homem
necessário, ao mesmo tempo em que impõe seu ofício e diagnostica sua
situação: Se os objetos não estragassem “eu não viveria”. Como sobreviveria
o sapateiro sem esse momento, imediatamente anterior à morte das coisas,
quando seu trabalho, sua vida e ele mesmo voltam a fazer sentido no universo dos objetos sem conserto e na melancolia de tudo que ‘não tem mais
jeito’. A Morte do sapateiro revela-se, portanto, como a morte de cada um de
nós.
Se a ruína da poesia após Auschwitz, que Theodor Adorno prognosticara, foi surpreendida e perturbada pela poesia de Paul Celan - palavras vivas
para dizer os mortos - foi ali mesmo, na terra imensa manchada de sangue,
que Celan fincou seus poemas e sua extraordinária força criadora. Lá onde
não havia mais nada a dizer, lá em meio aos corpos baldios, o poema de
Celan arrancou à força a palavra que nunca foi dita. É a essa experiência
limítrofe e inaudita de Celan que Edson Sousa nos aponta. Não à tarefa
heróica da superação, mas à experiência ordinária dos sucessivos
(re)começos e da esperança.
Pois então, nos versos de Celan, o murmúrio da utopia:
“Quem arranca do peito seu coração para a noite deseja
[a rosa.”
JUNHO – 2008
Dia
05, 12,
19 e 26
19
06 e 20
06, 13,
20 e 27
09 e 23
Hora
19h30min
Local
Sede da APPOA
Atividade
Reunião da Comissão de Eventos
21h
8h30min
14h30min
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Sede da APPOA
Reunião da Mesa Diretiva Aberta
Reunião da Comissão de Aperiódicos
Reunião da Comissão da Revista
20h30min
Sede da APPOA
Reunião da Comissão do Correio
PRÓXIMO NÚMERO
CINEMA
50
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
C. da APPOA, Porto Alegre, n. 169, jun. 2008.
51
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S U M Á R I O
EDITORIAL
NOTÍCIAS
SEÇÃO TEMÁTICA
REFÉM DO OBJETO
Maria Ângela Bulhões
FETICHE: UM OBJETO MONUMENTO
Fernanda Pereira Breda
1
3
7
JUNHO – 2008
7
13
A CONSTITUIÇÃO DO OBJETO FETICHE
Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr
21
ALGUMAS NOTAS SOBRE IMPROVISO
Heloisa Marcon
N° 169 – ANO XV
34
SEÇÃO DEBATES
O DEVER DA MEMÓRIA
Abrão Slavutzky
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RESENHA
CRÍTICA DA IMAGINAÇÃO INDOLENTE
OU A LONGA VIAGEM AO SAPATEIRO
48
AGENDA
51
46
48
RELENDO FREUD
“FETICHISMO”
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