Helen Faganello
“uma virtude paradoxal dos livros é a de nos abstrair do mundo para nele encontrar algum sentido” Daniel Pennac
A paixão pelos livros é uma velha particularidade humana, tão antiga quanto a própria existência dos mesmos. A
bibliomania, essa espécie de compulsão em ler e/ou possuir livros, pode proporcionar a quem por ela é acometido,
prazeres sutis e inesgotáveis.
É inegável, no entanto, que desenvolvemos e cultivamos uma espécie de apreço pelo livro, também como objeto. O
homem (ainda) é profundamente ligado ao objeto livro. O livro impresso é um veículo “quente”, tem determinado cheiro
e consistência, aciona outros sentidos além da visão. Talvez por isso seja recorrente a associação da noção de fetiche
à obra impressa, a estes objetos de desejo que anseiam ser possuídos. Possuí-los equivaleria não apenas ao acesso
ao conhecimento e informação, mas a dete-los num grau simbólico, sem necessariamente absorve-los ou assimilá-los;
que atire a primeira pedra aquele que nunca comprou um livro e não o leu, saciado pelo simples prazer em tê-lo ali ao
seu alcance, na prateleira da sala...
Ter livros envolve, portanto, uma dimensão de ordem estética e afetiva. Para além do prazer específico que deriva do
contato direto com o veículo, os livros por vezes nos fazem sentir parte deles, a tal ponto que podem inverter sutilmente
a dinâmica de “pertencimento” prévia; e dessa forma acabam por revelar muito da personalidade de quem os possui,
configurando-se em verdadeiros “retratos” informais.
Se manuseá-los ou marca-los com anotações diz muito de quem os possui, assinalando em alguma medida índices de
afetividade, é o ato de tê-los exibidos numa estante, contudo, que expressa com maior intensidade e concisão a
personalidade de seu proprietário. Afinal, não é raro que ao nos depararmos com livros na casa de alguém tenhamos
condições de mergulhar, ainda que de modo inconsistente e permeado pela subjetividade, no universo de interesses
daquela pessoa. Nem é preciso saber precisamente quantos daqueles volumes foram de fato lidos, e com que grau de
envolvimento, basta vê-los ali, enfileirados ou empilhados, seus autores, gêneros, quantidade ou mesmo o modo como
estão dispostos na estante para arriscarmos uma opinião sobre quem os possui.
Livros de arte naturalmente não escapam a esta definição, e dizem muito de seus felizes proprietários; o tema sempre
delicado do gosto, das preferencias e afinidades estéticas pessoais aflora de imediato nas capas e lombadas de
publicações deste tipo. Trata-se de uma categoria literária que certamente encabeçaria uma hipotética listagem de
“livros-fetiche”; fetiche esse traduzido não apenas em sua materialidade caracteristicamente sedutora, em edições de
alto requinte visual, como potencializado pela impossibilidade de acesso aos mesmos para boa parte de seu público
leitor em potencial.
Em todo caso, em plena era da hegemonia da tecnologia eletrônica e digital, a tendência a recuperar o prazer em
possuir um livro impresso como objeto estético apresenta-se como uma agradável prática de resistência – embora de
caráter mais exclusivista que o desejável. E, por que não, da reafirmação de valores e afetividades.
Guy Amado, 2005.
Guy Amado, 37 anos, é crítico e pesquisador em arte contemporânea. Mestrando em História da Arte pela ECA-USP, integra o
corpo editorial da Revista Numero e colabora para publicações especializadas do setor. É coordenador curatorial do Projeto
ArteNEXO [São Paulo], atualmente com as atividades interrompidas.
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