Analfabeto: Ser e Não Ser MARANHÃO, Helena Severiano Ponce "... ele só tá analfabeto porque nenhum dos que tem deu cobertura de tirar aquele nome trágico de analfabeto dele..." (depoimento de um carregador autônomo na CEASA de Irajá)1 I A opção por estudar as representações sociais de indivíduos que procuram um programa de alfabetização de adultos foi, de modo mais imediato, decorrência de meu engajamento profissional em uma organização pública destinada a prover este tipo de serviço educacional2. O contato proporcionado, por alguns anos de trabalho, com a problemática do adulto analfabeto foi acentuando meu interesse em examinar certas impressões, intuições, observações que apontavam para o significado “especial” que a experiência da alfabetização parecia assumir para esta categoria de pessoa. Mesmo que a busca da alfabetização seja, logicamente, motivada pela necessidade de aquisição do código escrito para “transitar” com maior segurança numa sociedade letrada, ela parecia também estar carregada de significados que a transformavam num momento crucial de “reconstituição” da identidade destes indivíduos que, insistentemente, se sensibilizavam – após um dia de trabalho e, às vezes, se engajando repetidamente no curso – por uma oferta educacional que teve sua trajetória mais marcada pela precariedade dos resultados alcançados. Vendo esta rotina, a indagação mais simples e imediata que surgia era por que aqueles adultos – que já deviam estar cansados dos tantos “fracassos” que o ineficiente sistema de ensino do país se encarregou de jogar em suas costas – continuavam aderindo a mais uma oferta educativa de qualidade duvidosa. O que mais estaria em jogo para mantê-los naquelas classes de alfabetização? Em que medida esta busca “decidida” pela 1 CEASA - Central de Abastecimento do Grande Rio S.A. 2 A partir de 25/11/85, a Fundação Movimento Brasileiro de Alfabetização - Mobral passou a denominar-se Fundação Nacional para Educação de Jovens e Adultos - Educar, extinta em 1990. alfabetização podia também revelar como eles se percebem e se posicionam frente à sociedade e como avaliam o lugar que esta lhes tem destinado? Ao mesmo tempo, interessava examinar como indivíduos que pertencem às classes subalternas e são relativamente excluídos do ponto de vista educacional e político interpretam a sociedade em que vivemos e, em particular, como avaliam dimensões da organização política (por exemplo, entre outras: eleições, cidadão, associações de moradores, partidos políticos, etc) . Assim, a pesquisa contemplou, por um lado, as representações sobre o analfabetismo de indivíduos em processo de alfabetização e, por outro lado, suas representações a respeito da sociedade e da política enquanto membros das camadas pobres3. Busco, pois, averiguar certas percepções, opiniões e crenças de 30 indivíduos que participaram, no ano de 1984, de seis classes de alfabetização do Mobral, localizadas nas seguintes áreas da Região Metropolitana do Grande Rio (nas quais também residiam os informantes): Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, subúrbios de Santa Cruz e de Irajá e município de Duque de Caxias. Cabe, igualmente, considerar, antes de tudo, que eles estão na base da pirâmide de renda (mais ou menos três salários mínimos); exercem ocupações manuais semi ou não qualificadas; vivem, em sua maioria, em áreas carentes de equipamentos sociais básicos e em precárias habitações; e estão relativamente excluídos do gozo de direitos da cidadania. Considero essencial ter em mente, para bem demarcar o contexto de estudo e de produção das representações analisadas, que os temas abordados e as estratégias adotadas foram selecionadas não só em função das circunstâncias objetivas que determinavam a forma de conduzir esta pesquisa, como também sob a influência do debate ideológico que naquele momento se travava e até hoje se trava no país – especialmente em certos meios políticos e intelectuais – a propósito do papel fundamental que a sociedade civil organizada cumpre no processo de consolidação de uma ordem democrática e que, em nosso caso particular, passa ainda pela universalização de direitos mínimos da cidadania contemporânea. 3 As idéias aqui apresentadas têm como referência minha Tese de Mestrado em Ciência Política, intitulada Trançando Discursos: Pobreza, Política, Sociedade, Rio de Janeiro, Iuperj,1990. Neste estudo abordei vários aspectos, pois visava conhecer concepções a respeito da sociedade e da política. Entretanto, neste 2 Estudar indivíduos que não são apenas definidos pelo lugar que ocupam na estrutura social implica considerar como vivenciam a condição que os distingue em relação aos demais grupos e classes sociais. Não obstante, o estudo de suas crenças não representa somente o exame das concepções de uma categoria particular de pessoas, mas também diz respeito ao modo como estes sujeitos, enquanto trabalhadores manuais urbanos, percebem, experimentam e se posicionam frente a determinadas práticas sociais. Como um grupo dentre estes trabalhadores lida com uma situação que tanto os diferencia das classes socialmente superiores quanto os especifica face a seus pares? Quando realizei esta pesquisa, ser adulto analfabeto significava, notoriamente, pertencer ao grupo mais excluído da política em nossa sociedade. Como sabemos, do ponto de vista legal, seus direitos políticos não eram reconhecidos. Interessava, pois, examinar qual o entendimento da política para indivíduos que tinham acesso limitado a este tipo de experiência. Suas impressões foram colhidas, entre novembro de 1984 e maio de 1985, por meio de entrevistas domiciliares, conduzidas a partir de um roteiro com temas previamente definidos e com questões semi-estruturadas. Entretanto, conforme iam desenvolvendo seus depoimentos, outras indagações eram suscitadas pelo modo como eles refletiam sobre as questões propostas. Assim, o quanto fosse possível, explorava-se a maneira como eles encaminhavam sua reflexão, visto que interessava, sobretudo, conhecer as referências ou valores sociais que informam suas representações4. II É plausível supor que não existe uma maneira única e exclusiva de conceituar os estados de analfabeto e de alfabetizado, em nossa sociedade. Evidentemente, não estou negando a existência de uma conceituação mais ou menos predominante que, em linhas gerais, define como alfabetizada a pessoa que domina os códigos da leitura e da escrita e o registro de cálculos elementares. Entendo que operar estes códigos básicos significa uma capacidade relativa de se apropriar das mensagens por eles veiculadas, como também de repassá-las a outros indivíduos, estabelecendo assim uma rede de artigo, pretendo me deter em questões que discutem a relação entre o analfabeto e o mundo letrado. Tratarei dos significados das experiências do analfabetismo e da alfabetização. 4 Os 30 depoimentos somaram cerca de 60 horas de gravação que, ao serem transcritas, totalizaram aproximadamente 1.500 laudas datilografadas. 3 comunicação. Portanto, alfabetizado é aquele que está capacitado para interagir neste processo específico de comunicação. Tecnicamente, o conceito de analfabetismo se opõe a esta conceituação. No entanto, a visão social do que é ser analfabeto não se esgota nesta simples oposição e sua apreensão depende de diversos contextos e de várias categorias e predicados que são articulados pelas diferentes classes, camadas ou grupos sociais. O foco principal da análise incide sobre as imagens propostas para categorizar socialmente o analfabeto, examinando as motivações de ordem social e pessoal e os motivos de ordem prática apresentados para a participação em classes de alfabetização de adultos, ou seja, no seu dizer, "para estudar", e buscando ponderar em que medida o modo como representam o status de analfabeto concerne também ao seu posicionamento frente à sociedade e ao lugar social que ocupam. Por outro lado, no que se refere aos aspectos estritamente técnicos da definição de analfabeto - ausência da leitura, escrita e registro de cálculos elementares - os sujeitos em estudo tendem a se sentir mais à vontade para tratar do tema, recorrendo em muitos casos à auto-identificação. Quando, porém, se introduz o termo analfabeto, sua categorização assume uma abrangência social e dimensão emocional que se revelam pelo recorrente "ser e não ser" que permeia seus depoimentos. A possibilidade de estigmatização surge de uma discrepância específica entre identidade social virtual e identidade social real, sendo, então, percebida enquanto categoria e atributo negativo (cf. Goffman, 1975)5. Para esmiuçar os predicados, termos e expressões relacionados à categoria analfabeto, optei por classificá-los em quatro eixos que visam ressaltar aspectos variados que são, logicamente, complementares entre si, ou não excludentes, e que evidenciam as muitas facetas da vivência estigmatizada do analfabeto. Tal organização busca salientar: em primeiro lugar, um plano geral que qualifica diretamente o analfabeto e a situação conseqüente desta qualificação, demarcando assim sua identidade social; em segundo lugar, um plano particular que expõe a vivência específica do estigma, a partir dos termos e expressões que se referem à interação entre o analfabeto e os " outros", como também dos que revelam seu sentimento com respeito a esta vivência. Este último plano, com 5 Sobre estruturação da identidade: Gurvitch (1950); Mead (s.d.); Erickson (1976); Lacan (1978); e no que se refere aos aspectos predominantemente políticos e coletivos: Gramsci (1978); Landi (1979). 4 seus dois eixos de classificação, trata mais proximamente do que Goffman (op.cit.) define como identidade pessoal e identidade experimentada. No que concerne à interação entre estigmatizados e "normais", os sujeitos em estudo expõem as respostas que recebem da sociedade em relação à discrepância revelada por sua identidade pessoal; e no que se refere à descrição de seus sentimentos, eles estão revelando os modelos de identidade por eles internalizados. Os termos "cego" e "não sabe nada" são os mais freqüentes e referem-se, imediatamente, em suas apreciações, a "não saber ler" e "assinar o nome". Parece interessante salientar que a cegueira - uma deficiência física - é também um estigma. No caso da frase “não sabe nada”, tanto é usada para indicar a incapacidade de “assinar o nome” e, secundariamente, o desconhecimento da leitura, como pode abranger aspectos mais amplos da vivência de um dado indivíduo; por exemplo: “não tem noção/visão da vida”, “não sabe nem o que é o mundo”, etc. Os termos utilizados para definir o analfabeto são homogêneos e recorrentes, indicando uma elevada freqüência de características negativas semelhantes para categorizar este tipo de pessoa. O predicado “cego” equivale a inúmeras frases que elucidam a comparação entre o analfabetismo e a cegueira; por exemplo: “não enxerga nada”, “não sabe aonde pisar”, “não sabe andar/mexer”, “perde mesmo o sentido”. Esta comparação indica a condição de dependência do analfabeto, explicitada entre os termos propostos. Tal condição é reafirmada, de modo categórico, quando o analfabeto é percebido como alguém incapaz para ações autônomas, mas apenas capaz para imitações: “anda por ver os outros andar”, “come por ver”. Outros predicados sugerem uma percepção do analfabeto como alguém que estaria entre o mundo “selvagem” ou animal e o mundo humano. Ou, ainda, seria aquele que está entre os “desclassificados”, “inferiores”, “inúteis”, “baixos”, “diminuídos”, “pobres”; por um lado, afirmando, no contexto do discurso, sua posição-limite no mundo humano e, por outro, aludindo à sua posição na estrutura social. O analfabeto é aquele que não tem possibilidade de melhorar sua condição de vida e por isso é alguém que tem uma situação “muito ruim”, “perdida” e “sem saída mesmo”. Tais apreciações, além de obviamente se pautarem sobre a realidade, revelam que esta categorização pertence mais às diferenças baseadas na estrutura de classes. 5 O termo “vergonha” é um dos mais freqüentes e é usado tanto para falar da situação vivida pelo analfabeto quanto do seu sentimento diante desta situação. Os termos “muito ruim”, “péssimo”, “horrível”, triste” também são muito freqüentes. Cabe, agora, considerar o plano que estou denominando particular - relativo aos termos que explicitam a vivência específica do estigma - organizado em dois eixos: o primeiro trata de como os entrevistados avaliam a interação entre o analfabeto e o “outro”; e o segundo concerne aos termos que descrevem como o analfabeto se sente. Ficam evidenciados dois recursos muito presentes na fala dos sujeitos entrevistados: às vezes, recorrem à auto-identificação ou ao distanciamento frente a esta categorização. Isto decorre tanto da sua percepção sobre os limites que distinguem o analfabeto de quem não é analfabeto (o que mais adiante será detalhado) quanto da carga intensamente depreciativa dos termos utilizados. Isto impede uma associação imediata entre a sua pessoa e estes atributos negativos, em função da necessidade de preservação de sua auto-estima, por um lado, e como conseqüência de uma avaliação objetiva de sua experiência de vida, por outro lado. A partir dos termos que expressam a interação entre os analfabetos e os nãoanalfabetos6, torna-se ainda mais evidente a estigmatização como também a ambivalência de identidade que decorre desta vivência, pois se, por um lado, a pessoa analfabeta é percebida por estes sujeitos em processo de alfabetização de modo tão depreciativo, por outro, eles revelam e avaliam como é degradante esta vivência. Por exemplo, algumas expressões que retratam aspectos desta interação: “passado para trás”, “enganado”, “desprezado”, “prejudicado”, “debocham/desmoralizam/xingam”, etc. Dependendo do modo como o sujeito procura se auto-classificar e dos critérios que utiliza para distinguir analfabetos e não-analfabetos, ele tentará ou não se distanciar da primeira condição. Em outras palavras, identificar-se-á, explicitamente ou não, no contexto discursivo, com a vivência degradante que relata sobre a interação que os “outros” mantêm com o analfabeto. Por exemplo: devido à carga muito depreciativa que o termo analfabeto sugere, um sujeito em processo de alfabetização se sente, em alguns 6 Utilizo esta última denominação não só na medida em que o termo alfabetizado não faz parte do repertório vocabular dos entrevistados – muito raramente reconhecem seu significado -; mas também porque estas categorias, que são, muitas vezes, tecnicamente definidas como extremas ou opostas, não são assim pensadas por estes sujeitos. 6 casos, impossibilitado emocionalmente de admitir esta condição. No entanto, este mesmo sujeito define como não-analfabeto aquele que “sabe ler e/ou escrever”; porém, no desenrolar da reflexão proporcionada pelo momento da entrevista, ele se defronta com a contradição entre a sua busca de se auto-classificar de não-analfabeto e a sua situação real de não saber ler e/ou escrever. Assim, tentará mediar esta contradição através do controle de informação, isto é, da simulação de distanciamento frente à condição de analfabeto. Outra situação observada concerne à definição do não-analfabeto como aquele que “sabe assinar o nome”, e como o entrevistado em questão é capaz de desenhar sua assinatura, ele se auto-classifica de não-analfabeto. Neste caso, embora tecnicamente ele seja de fato um analfabeto, ele se distancia desta condição, porque seu critério básico de distinção é a capacidade de assinar o próprio nome. O segundo eixo de classificação do plano particular destaca os termos que manifestam claramente os sentimentos do analfabeto frente à condição de estigmatizado, por exemplo: “passa decepção/mau pedaço/ansiedade”, “muito chato/chateado”, “sufoco terrível”, “revolta”, “frustração”, desânimo”, ”tristeza”, “sente-se inferior/constrangido”, “meio acanhado/sem graça”, “perdido”, “raiva”, medo, etc. Estes sentimentos são vividos como conseqüência da discrepância entre identidade social virtual e identidade social real, da não adequação entre a identidade social esperada e a identidade pessoal possuída e de seus efeitos sobre a interação, e expressam as emoções experimentadas, no passado ou no presente, pelos sujeitos entrevistados. A partir dos eixos de classificação, que pretenderam, para fins descritivos, esmiuçar o conteúdo social da categoria analfabeto, nota-se como a deficiência das habilidades da leitura, escrita e cálculo importa em adicionar outras deficiências a um dado indivíduo. Claro que em nossa sociedade ser analfabeto supõe uma carência anterior, abrangente e determinante - a pobreza – que dota também de conteúdo sua desqualificação. Nesta medida, é plausível imaginar que esteja subjacente uma estigmatização da pobreza. O processo social do estigma concerne, igualmente, a uma série de racionalizações que permitem ordenar outras diferenças tais como as de classe social (Goffman, op. cit.); tanto do ponto de vista do estigmatizado, na medida que ele incorpora os modelos de identidade predominantes, quanto dos não-estigmatizados. 7 De um ponto de vista mais restrito, retomando a desqualificação que a ausência da leitura e escrita suscita, observa-se que os mesmos predicados, termos e frases, isto é, atributos, estão relacionados, de modo equivalente, tanto às expressões “não sabe assinar o nome, ler e/ou escrever” quanto à palavra analfabeto. Tal observação parece óbvia, mas a registro para assinalar que a categorização de “cunho social”, ou seja, que reflete o sistema predominante de diferenciação e discriminação social envolve, de modo permanente, nas representações destes sujeitos, a categorização que se refere mais diretamente à ausência da capacidade de ler, escrever e executar certos cálculos. Não obstante, esta óbvia, porém relativa, equivalência não invalida a observação feita de que e´ menos desconfortável assumir que “não sabe ler e/ou escrever” do que se reconhecer como analfabeto. Tal equivalência relativa apenas reforça o caráter estigmatizador desta categoria. Considerando um ponto de vista mais amplo, o que se vem ponderando também se manifesta, na linguagem corriqueira, quando chamamos ou classificamos alguém, que sabe até ler e escrever, de analfabeto. Deixamos, desta forma, implícitas diferenciações que transitam desde qualidades inerentes até qualidades adquiridas, ou seja, tanto de ordem substantiva quanto adjetiva. Por exemplo, em relação a alguém que é tecnicamente alfabetizado, a qualificação de analfabeto pode estar significando que ele é, por seus atributos naturais ou orgânicos, um incapaz, ou pode estar significando que ele desconhece um determinado assunto. Nos dois casos está-se utilizando o termo como sinônimo de ignorante, só que, no primeiro caso, ele é abrangente e absoluto e, no segundo, ele é restrito e relativo. Ainda a título de comparação, quando recorremos à expressão “analfabeto de pai e mãe”, pretendemos por meio de uma referência à hereditariedade (em particular do ponto de vista genético, mas não exclusivamente) definir de modo substantivo um indivíduo; isto é, trata-se de alguém que, por suas qualidades inerentes e pessoais, entendemos ser intelectualmente inferior. Os depoimentos, além de evidenciarem a desvalorização social e conseqüente vivência estigmatizada do analfabeto, explicitam também os limites mínimos, do ponto de vista dos sujeitos entrevistados, para demarcar o que eles denominam de “analfabeto de uma vez”, “analfabeto em tudo”, “tão analfabeto”, “completamente analfabeto”. Eles 8 propõem uma classificação, onde certos critérios para distinguir o analfabeto do nãoanalfabeto, são tratados, em alguns casos, isoladamente e, em outros, combinadamente, dependendo tanto de seu auto-reconhecimento quanto da situação a que se referem. Assim, ser “educado”, no sentido de boas maneiras, “saber se comunicar/conversar com as pessoas”, “conhecer as letras”, saber se deslocar no espaço urbano, “estar fazendo a alfabetização” são critérios mínimos a que recorrem para não se classificarem de totalmente analfabetos. Entretanto, o critério mínimo mais recorrente para indicar um relativo distanciamento em relação ao analfabeto absoluto é a capacidade de “assinar o nome”. Por isso, a “assinatura” é uma aptidão muito valorizada entre os entrevistados. Porém, a busca desta capacidade não foi o motivo principal que os atraiu para alfabetização, pois a maioria deles já detinha esta habilidade antes de freqüentar o curso e, de modo geral, foi o que aprenderam durante sua breve passagem pela escola na infância ou adolescência. Portanto, ao valorizarem tal capacidade estão também considerando a razão primeira que levaria um adulto a “estudar”. “Assinar o nome” se constitui na possibilidade de encobrir o reconhecimento público da condição de analfabeto, isto é, evita “botar o dedão”. Os entrevistados indicam, assim, o primeiro grau de necessidade que elimina o vexame da impressão digital, e ao mesmo tempo, delimitam o indicador básico de distinção dos que são “analfabeto de uma vez”. A impressão digital, conforme comenta Goffman (op.cit), é um recurso de identificação das grandes organizações modernas (de massa) e de caráter impessoal. Não obstante, em uma sociedade letrada com um contigente expressivo de analfabetos – que, sobretudo, se identificam burocraticamente por meio deste recurso – seu uso denuncia esta condição estigmatizada; já que se constitui em um signo que revela uma desvantagem, deficiência ou carência de quem o possui. Deste modo, a impressão digital passa a ser percebida como um “símbolo de estigma”; enquanto a a “assinatura do nome” representa uma “marca ou apoio positivo de identidade”. É, pois, nesta medida que a habilidade de assinar (desenhar) o nome se transforma em um recurso “desindentificador”, possibilitando manipular e controlar, mesmo que precária e provisoriamente, a informação sobre a identidade social e pessoal de analfabeto. 9 Por outro lado, o fato de os sujeitos entrevistados evitarem a auto-denominação de analfabetos, recorrendo à expressão “não sabe ler”, pode ser, em certo sentido, interpretado como um recurso de “desidentificação”, na medida em que declarar que não detêm a habilidade da leitura importa em assumir menor desgaste pessoal, restringindo, assim, a carência a uma dimensão estritamente técnica em oposição ao extenso conteúdo social desvalorizador que a categoria analfabeto sugere. Até o momento, considerando a questão do analfabetismo, tenho tratado das motivações de ordem social e pessoal, ou seja, aquelas que se referem à identidade de um dado indivíduo. Cabe, contudo, não esquecer que o fato objetivo destes sujeitos viverem em uma sociedade moderna e complexa torna o domínio do código escrito, se não essencial, extremamente relevante. Os sujeitos que foram entrevistados são, por suposto, pessoas inclinadas a expressarem uma valorização negativa acerca do status de analfabeto: o fato de se engajarem em um programa de alfabetização de adultos é indício desta predisposição, além de responder às necessidades concretas e cotidianas, com que eles se defrontam para reproduzir suas vidas nos parâmetros de uma ordem social baseada na racionalidade legal-burocrática. Esta predisposição revela que estes sujeitos têm profundamente internalizados os modelos de identidade (social e pessoal) predominantes em nossa sociedade. Ao enunciarem imagens que desqualificam o analfabeto, estão apenas reproduzindo valores socialmente consagrados, ou seja, aqueles difundidos entre todos os grupos, camadas e classes da sociedade. Como já tive oportunidade de mencionar, o estigma é um processo social que revela o sistema de diferenciação e discriminação dominante. Logicamente, o estigma do analfabetismo só pode ter vigência em sociedades letradas. No entanto, cabe ressaltar que a desvantagem representada pelo status de analfabeto não surge historicamente com o advento destas sociedades que, como é sabido, existem desde a Antiguidade; mas, sim, como conseqüência da expansão de um tipo de racionalidade que é inerente ao desenvolvimento capitalista e que, ao tornar crescentemente mais complexa a divisão social do trabalho, tende também a ampliar e generalizar a comunicação baseada no código escrito. Portanto, na medida da extensão deste tipo de racionalidade econômica e 10 social é que esta desvantagem passa a assumir cada vez mais um significado estigmatizador. Outras evidências aparecem, nos depoimentos colhidos, indicando que estes sujeitos em processo de alfabetização tendem a acionar estratégias de interação que se aproximam do que Goffman define como recursos de manipulação e controle da informação – específicos da relação entre estigmatizados e “normais”. Em decorrência das “... grandes gratificações trazidas pelo fato de ser normal, quase todos os que estão numa posição em que o encobrimento é necessário tentarão fazê-lo em alguma ocasião” (Goffman, op. cit., p. 86). Em vista destas questões, buscarei descrever aspectos relativos às formas de interação sugeridas pelos sujeitos entrevistados. Tratarei da possibilidade, com que se defrontam as pessoas “desacreditáveis”, de “executar” planos de ação alternativos, no que concerne ao ocultamento ou à revelação de sua desvantagem, frente aos “outros”. Em relação ao artifício de manipulação da informação, serão enfocadas duas perspectivas inter-relacionadas. Uma descreve quando este se exerce no decorrer da entrevista, pois não podemos esquecer que esta situação é um momento interativo e que, neste caso, é mais um momento em que estigmatizados (analfabetos ou indivíduos em processo de alfabetização) se defrontam com “normais” (alfabetizados). A outra perspectiva concerne ao relato de situações sociais experimentadas em sua vida diária, onde recorrem ao controle da informação acerca de seu atributo desvalorizado. A primeira somente ocorreu entre alguns homens entrevistados, que assumiram uma atitude discursiva ambígua no decorrer da entrevista, simulando certo distanciamento em relação à condição de analfabeto. Tal ambigüidade pode ser traduzida como acionar uma estratégia de manipulação e controle da informação, no próprio momento da entrevista. Mesmo que tenhamos observado que estes sujeitos recorrem a vários critérios para distinguir o analfabeto do não-analfabeto e que estes critérios são, dependendo do contexto, usados isolada ou combinadamente , esta atitude ambígua poderia, em alguns casos, ser um recurso para obstruir a apreensão sobre o estágio em que se percebiam em termos de “graus de alfabetização”. Isto porque, em certos momentos, indicavam suas necessidades, insinuando, assim, carências em relação às habilidades básicas da leitura, 11 escrita e cálculo e, em outros momentos, quase subestimavam as mesmas carências que desvalorizam tanto o analfabeto. Claro que a ambigüidade discursiva traduz a ambivalência de identidade gerada, sobretudo, pela percepção altamente negativa do estado de analfabeto. Por exemplo, alguns entrevistados chegaram a produzir definições sobre este estado, que dispensavam a ausência da habilidade da leitura como um dos indicadores. A observação da tentativa de encobrimento durante a entrevista foi também possível devido à perda do controle da informação porque, no decorrer de uma longa conversa, a própria tensão, gerada pela preocupação em distanciar-se da categorização depreciativa de analfabeto, produz “contradição” no discurso destes sujeitos. É interessante recordar que o primeiro contato com estes informantes ocorreu na classe de alfabetização, sendo, portanto, razoável que eles, no mínimo, suspeitassem do meu conhecimento sobre sua carência na leitura e na escrita. Mesmo assim, transparecia, em alguns casos, um certo mal-estar para tratar da situação do analfabeto. Um dos entrevistados parece exemplar no que concerne à busca de distanciamento e, em alguns momentos, até um certo encobrimento da condição de analfabeto. Em relação ao distanciamento, ele utilizou, como os demais, o recurso de referir-se na terceira pessoa quando tratava da categoria analfabeto. Desenvolveu quase todo o seu depoimento assumindo uma postura externa, ou seja, como se fizesse considerações sobre um objeto afastado de sua realidade, seja passado ou presente. Só, ao final, relaxando-se da tensão até então contida, explicitou uma identificação, ao explicar sua escolha pelo curso de alfabetização do Mobral. Outro indicador da tensão gerada, nestas entrevistas, para tratar da situação do analfabeto, que observei em vários depoimentos, são as recorrentes pausas, tosses, pigarros, frases reticentes, seguidas interrupções de frases iniciadas na primeira pessoa do singular para modificá-las para a terceira pessoa. No que se refere a um certo encobrimento, o tratamento, por parte destes entrevistados, parece dúbio, porque se, por um lado, é possível dizer que se “lê um pouquinho” e que se quer “aprender mais”, por outro lado, quando tal reflexão se associa à categoria analfabeto, produz-se um distanciamento e, em alguns casos, uma quase rejeição desta condição. 12 Enquanto o artifício do distanciamento e da ambigüidade foi observado entre alguns entrevistados do sexo masculino, o mesmo não ocorreu com as mulheres. Elas não recorreram a uma relativa simulação frente à condição de analfabeto, mas se identificaram e, as vezes, explicitamente se autocategorizaram. Estas diferenças de comportamento permitem sugerir que a condição de “estigmatizável”, no caso analfabeto, talvez, pese mais do ponto de vista cultural e emocional para os homens. Tal fato se explica pela própria expectativa social diferencial frente a homens e mulheres, em nossa sociedade. Enquanto culturalmente é proposto para o homem um modelo de capacidade e de potência em diversas áreas da vida social, para mulher o mesmo não ocorre, sendo até “natural” que ela tenha deficiências e carências diante de muitas das demandas da sociedade. Enfim, a mulher foi educada para conviver melhor com suas carências, já que é percebida como um ser “naturalmente” dependente, deficiente, incompleto quando comparado com o homem. Mencionarei agora o uso da estratégia de manipulação e de controle da informação em outras situações sociais experimentadas por estes sujeitos. Como se trata de pessoas “desacreditáveis”, o recurso especialmente acionado é a tentativa de encobrimento de sua condição de analfabeto. Por exemplo, “saber falar as coisas” e ter facilidade para deslocar-se no espaço urbano são recursos que servem para encobrir a ausência da leitura e da escrita, permitindo assim controlar a informação sobre esta desvantagem. Se, por um lado, o recurso ao encobrimento é mais uma evidência de que estes sujeitos se percebem como portadores de uma identidade social deteriorada; por outro lado, é nesta justa medida que eles lançam mão de apreciações que relativizam sua desqualificação. A busca de revalorizar o analfabeto reflete igualmente a ambivalência de identidade que é vivenciada pelas pessoas estigmatizadas. Pois a adesão aos valores que informam os modelos predominantes de identidade em nossa sociedade “choca-se”, em certo sentido, com a avaliação de si próprio, gerando oscilações de identificação que se revelam tanto pela visão depreciativa que suscita um sentimento de vergonha e de constrangimento, quanto pela recuperação de qualidades positivas a fim de resgatar sua identidade pessoal e experimentada. 13 Veremos, por meio da afirmação de que certas qualidades valorizadas são também encontradas entre os analfabetos, um resgate desta categoria de pessoas. Em seus depoimentos buscam valorizar a experiência, a “arte”, o “entendimento”, a “inteligência”, enfim, a capacidade de trabalho do analfabeto. Esta revalorização decorre, evidentemente, da necessidade de conciliar sua auto-estima (passada ou presente) com as imagens desprovidas de valor positivo que enunciaram para categorizar o analfabeto. Propõem, assim, mediações que reforçam a observação de que o estigmatizado “... pode vir a reafirmar as limitações dos normais...” (Goffman, op. cit., p. 21). Acompanhando as apreciações destes entrevistados desde sua percepção e classificação negativa do analfabeto até o momento de revalorização desta categoria, notamos, de um modo geral, que aqueles que mais depreciam este status, procurando, às vezes, se distinguir desta identidade social, tendem, com maior freqüência, a acionar considerações que pretendem relativizar as imagens propostas. Pode-se sugerir como tendência, entre os informantes, que quanto maior a estigmatização da categoria analfabeto, maior será a necessidade de sua revalorização. Em outras palavras, quanto mais um indivíduo se percebe enquanto portador de um atributo passível de estigmatização, mais intensamente ele procurará, no decorrer de seu depoimento, resgatar algumas “vantagens” relativas frente aos não portadores deste atributo. Tenho relacionado a estratégia de revalorização, presente no discurso destes sujeitos, à necessidade de preservar sua auto-estima. Não obstante, cabe também enfatizar que estes entrevistados pertencentes às camadas pobres, apesar de todas as adversidades, são capazes de garantir sua sobrevivência e a de seus familiares, ou seja, de reproduzir suas vidas. Assim, sua própria experiência se constitui em um dado real e palpável, que justifica o resgate de sua capacidade frente a condições de existência bem adversas. Mas, a despeito disso, eles mantêm uma penosa convivência com facetas de sua identidade. O engajamento na alfabetização revela também uma das questões centrais de suas vidas – a busca de “aceitação”. No entanto, o que acontece com freqüência, “... não é aquisição de um status completamente normal, mas uma transformação do ego: alguém que tinha um defeito particular se transforma em alguém que tem provas de tê-lo corrigido” (Goffman, op. cit., p. 18). 14 Os entrevistados referem-se de modo significativo à experiência de conclusão do curso de alfabetização, enquanto um momento privilegiado de comprovação da aquisição deste novo status, isto é, do processo de transformação da imagem que eles têm de si mesmos, iniciado quando entraram para as classes de alfabetização. Se, por um lado, estar na alfabetização é um momento de reforço da vivência do estigma, por outro, é pelo aprofundamento desta vivência que é possível “superá-la”; ou seja, adquirir uma experiência que comprova e certifica a passagem da condição de estigmatizado para a de alguém que carrega o estigma em seu passado, enfim, em sua biografia, mas que doravante, se quiser, poderá deixá-lo no fundo da memória como certas lembranças que preferimos “esquecer”. Os informantes foram unânimes em considerar que adultos analfabetos ou em processo de alfabetização “portam” uma identidade social deteriorada, deixando bem evidente que, em nossa sociedade, estas pessoas são, no mínimo, potencialmente “estigmatizáveis”. Seus depoimentos não só traduzem uma classificação social negativa do analfabeto como também transmitem uma ambivalência de identidade que, entre alguns, é reafirmada pela tentativa de simular distanciamento desta categorização. Pois, como vimos, este significante não serve apenas para denominar aquele que desconhece o código escrito, mas está completamente carregado de valores negativos e de sentidos pejorativos que, se assumidos em sua totalidade, “aniquilariam” a experiência individual e social destes sujeitos; ou seja, ele representa um signo de estigma. 15