Ser um Não-Ser, eis a imposição!
Paulo Roberto dos Santos da Silva1
Esta proposta de discussão tem como objetivo trazer a superfície a supressão,
provocada pelo racismo, da subjetividade masculina de jovens negros. Demonstrar, a
partir da construção de sujeito elaborada por Foucault, como o processo de
subjetivação de jovens negros na escola Rômulo Galvão2, na sua busca de se tornar
sujeito, é visto como um risco pelo pensamento racista branco, como esses jovens se
veem afastados, ceifados da possibilidade de criar seus modos de posicionamentos,
sua forma de ser e estar, de agenciar sua condição de existência como humanos no
mundo moderno.
Introdução
Ao propor sua elaboração teórica acerca do que vinha a ser sua concepção de
sujeito, Foucault nos mostra que este, antes de tudo, é uma produção histórica,
moldada pelas relações de poder, atravessadas, porém pela possibilidade de resistência
imposta pela estrutura social, influência esta que Foucault busca nos antigos, cuja
estruturação de si, segundo o teórico, era feita através da produção ética (relação
consigo mesmo), possibilidade de escolha, em que os antigos buscavam consolidar o
seu ser no ideal de vida bela.
Percebe-se que não existe em Foucault um sujeito pré-estabelecido do qual
emanaria as relações de poder. O sujeito do conhecimento é constituído,
produzido dentro de uma conjunção de estratégias de poder. Ou seja, o
sujeito é um produto das relações de poder, não seu produtor. Não há um
sujeito essencial que estaria alienado por ideologias, por relações de poder
que encobririam sua visão da realidade. O sujeito do conhecimento é
produzido pelas relações de poder, ou melhor, o que chamamos sujeito é
um enunciado social. Dessa forma podemos chamar os indivíduos de
loucos, normais, gordos, revolucionários, sujeito deste ou daquele discurso
que será reclamado pela medicina, pela psicologia, pelas ciências sociais.
(PEZ, p. 2).
1
Discente do 7° semestre do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia.
2
Uma das escolas onde ocorrem as atividades de pesquisa do Grupo Brincadeira de Negão.
Partindo deste pressuposto somos levados a crer que esta produção de sujeito
não contempla, de todo, o negro. No seu processo de subjetivação o jovem negro,
desde o período da escravidão, até a tão famigerada modernidade, tem como encargo a
supressão da sua existência, da sua condição ética, do manejo, monopólio da relação
consigo mesmo, de escolha para si, de posicionamento, uma vez que seu processo de
subjetivação vai de encontro a moral estabelecida, fere, para a estrutura branca, racista
e elitista vigente, os seus princípios, sua lógica de mundo. A perspectiva de sujeito
Foucaultiana, nesse sentido, é capaz de nos apresentar, ainda que estes sejam
construídos numa relação de forças-poder com a sociedade, um ser de força, capaz de
resistir, de agenciar sua existência, ante as imposições sociais, o que, para o sujeito
negro, infelizmente, ainda é muito caro e encontra seu limite.
A problematização da elaboração teórica de sujeito proposta por Foucault,
como nos apresenta (PEZ) “O sujeito seria um composto histórico. Uma determinada
identidade produzida por forças em um determinado período histórico”,
fazendo relação com
o sujeito jovem negro moderno, é necessária para que possamos enxergar a
perseguição incessante que o racismo impetra contra estes jovens, numa tentativa
paranoica de lhes furtar, a todo momento, seus modos de posicionar-existir no e com o
mundo. A produção do ser negro, nesse sentido, na sociedade moderna, ainda é
permeada pela negação de si mesmo, pelo condição e impossibilidade de existir como
sujeito, como ser, tal qual o homem branco.
Eu não estou dizendo que nós acolhemos a profecia de nossa morte
coletiva. Estou argumentado que a ameaça de nossa morte coletiva, uma
ameaça em resposta ao nosso gesto coletivo – nossa existência (living) –
vontade, nos fez sentir como se estivéssemos vivos, como se possuíssemos
o que, de fato, não possuímos, vida humana, como oposta a vida negra (
que é sempre já “morte substitutiva” , como sempre um modo “fatal de
estar vivo”). Poderíamos morrer porque estávamos vivos... (WILDERSON,
p. 5. 2008).
O desenvolvimento do sujeito negro, neste sentido, está dentro e fora, ao
mesmo tempo, da lógica Foucaultiana, pois, os processos de resistências, de escolhas
para si de uma vida bela, como propunha Foucault, produzido pelo jovem negro, é
sempre mais vigiado, evidenciado como um fator de risco para sociedade. Pois, bem
como aponta (DELEUZE apud FONSECA, 2012. P 10) “O que conta, para Foucault,
é que a subjetivação se distingue de toda moral, de todo código moral: ela é ética e
estética, por oposição à moral que participa do saber e do poder”. Deste modo, se o
processo de subjetivação já é em si um enfrentamento a estrutura social posta e que
nos é imposta, já significa uma insurgência por parte do sujeito, o processo de
subjetivação negra, circunda na sociedade moderna, como modos de existir, de ser
sujeito, de forma perturbadora, significando, para a paranoia racista, um risco mais
elevado a moral estabelecida. Ou seja, a produção do homem negro na sociedade
brasileira, foi e continua ocorrendo num contexto de extremo encarceramento, obra
esta de elevada garantia dos privilégios da sociedade branca, burguesa e racista,
sustentáculo do tão famigerado projeto civilizacional.
1- O racismo estrutural e a negação do negro
O modo como a sociedade brasileira constituiu o seu imaginário acerca da
população negra, ao longo da história, deixou e, infelizmente, ainda deixará marcas
profundamente enraizadas sobre como essa parcela da população deve ser
considerada, como seus corpos devem ser tratados em dias atuais.
Não há como negar que a reprodução e prolongamento do racismo em nossa
sociedade tenha tido em seu passado o marco zero, o seu início e continuação. É no
nosso passado escravocrata que, possivelmente, encontraremos os porquês de tanto
nojo, asco, aversão a população negra, a sua condição de humanização. Esse passado
foi estruturado de tal modo que é falacioso admitirmos que a sua intenção era ser
superado, não se arrastar até o presente.
Fruto de uma visão desumanizadora, o corpo negro, o jovem negro vê-se ainda
hoje, acorrentado, preso, enclausurado a um imaginário muito similar a época de
escravidão, onde seus passos, sua lógica de estar e ser no mundo eram vistas como
irracionais, selvagens, primitivas, fator de extrema animalidade e atraso para os sonhos
de avanço social da elite racista e branca brasileira. Frutos de um passado recente, que
insistentemente, se recobra, se reitera, a juventude negra, em dias atuais, tem sido uma
das mais atingidas pelas práticas da exclusão racista.
O racismo brasileiro apresenta-se em dois momentos: um, anterior,
caracterizado pela publicização da separação dos diferentes grupos étnicos
nos espaços públicos e privados; outro, contemporâneo, demarcado pela
segregação através de mecanismos psicológicos de inferiorização e dos
mecanismos de mercado. Situa que após a escravidão o racismo
consolidou- se através da pobreza, da destituição do lugar dos afrodescendentes na cultura e na economia, e da violência verbal calcada nos
estigmas de cor da pele e classe, manifestando-se nas falas que incorporam
a inferioridade cultural dos afrodescendentes. (GUIMARÃES apud
CHAVES, 2003, p. 12).
Em todos os âmbitos, em que se foi possível, o racismo brasileiro, guiado pela
elite branca, se fez presença veemente para consolidação da exclusão negra, gerando
um estado de obstrução profunda, capaz de se arrastar até a tão afamada modernidade,
tal qual a força obstrutiva estrutural tempos de outrora.
A delimitação do racismo como modalidade violência estrutural requer a
conceituação desse termo. RISTUM (2001) a concebe como aquela
produzida pelo Estado, pelas instituições sociais e organizações da
sociedade, que impinge opressão a pessoas, a grupos, a classes sociais e a
nações. (RUSTIM apud CHAVES. P. 11, 2003).
Deste modo, não há como negar que a nossa sociedade se erigiu alicerçada a
essa lógica de racismo estrutural, quando, mesmo com algumas garantias de acesso
sendo alcançadas, assistimos a tanto rejeição, repúdio, negação a condição de
humanização, de sujeito, buscada pelo jovem negro, quando vemos, nos inúmeros
índices que reproduzem a desigualdade social, a maior parte dos indivíduos, de modo
permanente, sendo negros.
(...) o racismo contra o negro está presente em discursos e práticas sociais,
embora não seja reconhecido juridicamente. Salienta que, através da prática
discursiva nacionalista da sua negação, retira-se a legitimidade da
discriminação e da segregação, porém a referida estratégia não elimina a
sua presença no dia-a-dia. (CHAVES, p. 12, 2003).
2- Negro Drama: “Tenta ver E não vê nada A não ser uma estrela longe, meio
ofuscada”3
A juventude, antecipada por outras fases geracionais, cuja vivência bem
estruturada é condição relevante para o alcance qualitativo e mais humano da vida
adulta, foi e tem sido um tormento, uma presença perversa e ausente na vida do negro
em nossa sociedade. Desde a mais tenra idade o homem negro, em sua maioria, é
encarcerado num ambiente hostil, dilacerador de boa parte de suas forças, de suas
potencialidades. Esmagado, ele se nota afundado numa realidade que o gesta para ser
sempre correria, fuga em e de si mesmo, um ser que não pode ser, que é obrigado a ir
suprimindo sua existência, sua subjetividade ante aos cercos impostos pelo racismo
vociferador.
3
Título e trecho da Canção “Negro Drama” do Grupo de Rapper Racionais MC”s.
Estas desigualdades têm início na infância destes homens. Os meninos
pobres e negros são vistos como problemáticos e, em geral irrecuperáveis,
fruto de uma família igualmente problemática, afinal ele oriundo de uma
família que se sabe de antemão que o pai é ausente. Eles são menos
encorajados e elogiados por seus professores/as que as meninas negras e
brancas e menos também que os meninos brancos (Carvalho, 2004), com
isso desde muito jovens os meninos negros são vistos como um problema
que não mereceria mais investimentos, incluindo aí o afetivo. Lembremos
das declarações do governador do estado do Rio de Janeiro que sugeriu
aborto como forma de prevenir a criminalidade. (SOUZA, 2009, p.112).
Reflexo de um contexto histórico que insiste em reiterar sua negação, o homem
negro, constituído por um passado de ausências, fracassos atribuídos a si mesmo, sem,
contudo, a sua participação, é um símbolo, no presente moderno, de perseguição
intransigente, intolerante de sua vontade de ser e estar no mundo. É um não ser.
WILDERSON (2008) “Experimentamos uma impossibilidade transcendente: um
momento de negritude- como- presença (Blackness-as-Presence) em um mundo
sobredeterminado pela negritude-como-ausência (Blackness-as-Absence).
Sugado
por todos os lados, ele se vê impedido, em todas as possíveis esferas sociais, de
exercer seus desejos, suas edificações no mundo de forma igual.
Diante de tal condição de estar no mundo, o homem negro, espremido pelas
práticas, baseadas nas representações raciais, cujo avanço no mundo moderno tem se
mostrado cada vez mais desumanizador e vertiginoso, é acobertado por um mundo
definhado, permeado de incertezas, malogros, medos. Um mundo, cujas portas, antes
mesmo da possibilidade de serem batidas, lhes é fechada, impedida de ser saída para
suas angústias, alimentando-se, deste modo, a triste verdade em voga da existência
negra, como aponta PINHO (2014) “Nossa morte-em-vida é condição de
possibilidade para a branquidade na nação mestiça”.
Nas instituições educacionais, saúde e, de forma um tanto mais recente, como
temos visto através do bum gerado pelos inúmeros casos de racismo, nos campos de
futebol e/ou no consolidado cenário esportivo, também somos capazes de enxergar,
sem, infelizmente, muitas vezes passar disto, meros telespectadores, o quanto a
sociedade brasileira e mundial rechaça a inserção e humanização da figura do homem
negro. Toda a estrutura social é erigida sobre as bases do racismo histórico, cuja
consequência é a obstrução da historicização e mudança da realidade do povo negro.
Estes, tal qual se apregoava nos discursos de verdades científicas do século XIX, não
podem passar de mera composição animal, não podem alcançar o estágio de humanos,
de civilidade, racionalidade branca, pois são negros, por simplesmente sê-lo, não
avançam com a história, estão e deverão ficar acorrentados ao ideário, ao imaginário
que os subjugou a tornarem-se escravos, o ideal de selvagens.
Em el ocidente moderno, pocas psiciones de sujeitos o subjetividades, han
sido tan perseguidas y controladas, esteriotipadas, violadas, encarceladas, y
han atraido tanto odio, desconfianza, rechazo, asco o descalificacion, como
masculinidades negras. (PINHO, 2014, p. 1).
Uma das principais consequências negativas de toda essa opressão que subjuga
o homem negro é a perseguição da sua condição de sujeito. Apesar de existirem os
distintos modos de resistência impetrados pelos jovens negros contra o racismo, a caça
aos vossos corpos se eleva na proporção direta com que os mesmos vão tentando
reinventar sua subjetivação fora da lógica moralista branca e racista. Suas músicas,
suas danças. Enfim, os modos como os jovens negros encontram para tentar existir no
mundo, para o injustificado racismo tão apregoado, perturba, de moda a por em xeque,
todo o dito esforço moralista da elite branca brasileira.
Jack Halberstam nos ajuda a entender “Os subcomuns/“undercommons”
constituem um espaço e tempo que já está aqui." E como lugar de crítica
descolonial, vernácula, não é um retorno fundacional, ou nostalgia, mas um
além, que já está aqui. Entre nós. “I see a new world of black men." Alguns
enxergam a brecha que o pagode significa. Um lapso, uma ruptura
semiótica, descolonial e selvagem. Assédio ao “settled” ( “estabelecido”).
(PINHO, 2014, p.4).
Ao propor seu ideário de sujeito, a partir de um estudo genealógico, Foucault
nos dá a certeza de que todo sujeito detém poder, é portador, digamos, do potencial de
resistência frente as imposições sociais. Só que, ao trazermos isto para a realidade do
jovem homem negro e pobre, somos capazes de admitir, porém, com muita cautela,
que a teoria foulcaultiana engloba, mas, não de todo essa parcela tão violentada da
sociedade. O homem negro, diferente de outros, vê, com uma frequência descomunal,
sua força sendo reprimida, abocanhada pelo estado vigilante racista. Chegam a
produzir suas inúmeras resistências, mas, são impedidos, em grande maioria, ceifadosassassinados, de sua possibilidade de sustentação dos seus modos de existir, de ser.
3- Etnografia: “Fugindo de si para tentar existir”.
A equipe de pesquisadores do Grupo Brincadeira de Negão: Subjetividade e
identidade entre jovens negros na Bahia, em um dos seus locais de pesquisa, a Escola
Estadual Rômulo Galvão, localizada na cidade de São Félix, no Recôncavo baiano,
tem, constatado, de forma gritante, essa triste forma de supressão e rejeição da
subjetividade negra masculina praticada pelo racismo, que também atravessa, em
altíssimo nível, a instituição educacional. Muitos dos jovens que fizeram e vem
fazendo parte de nossas atividades de pesquisa, em suas participações, nos faz
defrontar, de modo escancarado e/ou velado, sutil, como também se apresenta o
racismo, as suas diversas dificuldades de estabelecimento social.
Boa parte possui uma complexa relação com a escola, são jovens que, para
além de outras possibilidades de análises existentes, nos demonstram um
desencantamento com o universo escolar, fruto, tanto das já tão propagadas faltas de
estruturas que recaem sobre o ensino público em nosso país e, por que não dizer, em
maior medida o Nordeste, com um aumento vertiginoso de descaso na Bahia, como,
junto a isso de um problema que lhes é anterior, cuja mescla é capaz de tornar a vida
desses sujeitos em um misto de desencantamentos e conflitos, numa busca arriscada
por uma transformação imediata de suas condições de invisibilidade social e
abandono, gestada pela presença da discriminação racial. Estes dois aspectos
entrelaçados, quase que de modo inato-imanente na realidade desses jovens negros,
são um dos principais fatores de evasão não apenas da estrutura escolar, do sistema
educacional, mas, da esperança de que este dado local, esta instituição reprodutora de
tantas desigualdades e, da maior delas, o preconceito racial que ignora a
potencialidade, a racionalização negra, produzindo, deste modo, numa relação de
poder, esse sujeito negro masculino assujeitado, afastado da construção de estudante,
de futuro intelectual, venha fazer parte do rol de saídas para uma vida mais digna,
mais humana.
A resistência, ainda que acompanhada, por parte de alguns sujeitos de pesquisa
em entrevistas, por elogios ao universo educacional a que estão expostos, no Rômulo
Galvão, salta aos nossos olhos (pesquisador@s) endossada pela aterradora verdade tão
reproduzida no sistema educacional, a ideia de falta de interesse por parte dos homens,
em sua maioria, negros. Como podemos observar nesta resposta sobre o que um desses
participantes acha da escola e de estudar: “E- Que é que você acha da escola? S-
Legal. E- E de estudar, você gosta de estudar? S- Mais ou menos. Na verdade eu não
gosto, né! Mas tem que vim!. Em outro momento voltamos a perguntá-lo, de modo um
tanto distinto, sobre o interesse pela escola, ele nos deixa escapar o quanto é
desanimador, mas, que precisa ir e, o quanto sua mãe, na defesa do benefício
alcançado pelo governo federal, com o Bolsa Família, o incentiva a ir a escola.
“E- E as aulas, você gosta?
S- Gosto, né. Gostar eu não gosto, mas tem que vim, né. (Risos).
E- Mas você tem que vim, seus pais forçam em casa pra você vim?
S- Não, sou minha mãe.
E- Sua mãe. E sua mão força dizendo o quê?
S- Ah, tem que ir por causa do bolsa família senão corta. Ela agora tá desempregada,
mas, ela trabalha também. Quando ela tá desempregada só dependia do bolsa família.
Numa outra entrevista um dos meninos deixam escapar um menosprezo em
relação a possibilidade em atender ao desejo de ser médico, pedido pela avó. Isso nos
mostra o quanto, para além de outras questões, os sonhos desses jovens homens negros
e pobres é diminuído, desesperançado, ceifados pela certeza de que o seu devido lugar
é a subjugação ao invés de locais de mando.
“E- Seu maior sonho? M- Antigamente eu tinha sonho de ser jogador de
futebol, velho! Mas, fui crescendo e vi que não dava, né. (risos). Agora, fazer uma
faculdade e seguir em frente. Eu nem sei que carreira eu quero seguir, uma profissão!
Minha Vó é doida pra eu ser médico, é doida pra pagar uma faculdade pra mim! Mas,
se eu for estudar, estudar, você é doido! Tô querendo servir ao exército, não sei, tô
pensando aí!
Uma outra relevante questão, ligada a falta de interesse deles com a vida
escolar, que ajuda a produzir nesses jovens uma relação de desconfiança, de conflito
com o mundo que os permeia, cuja apontamento foi quase unânime, foi a certeza da
existência do racismo em suas vidas, quando diretamente atingindo-os, atingem a seus
amigos em situações em que eles se encontram. Como podemos vê em outro trecho de
uma das entrevistas:
E- E na sua cidade, você acha que existe racismo aqui?
S- Ah, existe muito!
E- Você poderia dizer onde é que você percebe que existe? E o que é racismo pra
você?
S- O que é racismo pra mim, assim... Quando tá discriminando aquela pessoa,
chamando ela de negra, negra não, de preto, pobre, fudido. Isso pra mim é racismo.
E- E onde você percebe?
S- Assim, quando os policiais vão fazer assim, tipo dar um baculejo... Teve uma vez
mesmo que eu tava ali no porto sentado, Tava eu, o único escurinho que tinha era eu,
o resto tudo era branquinho. Com os branquinhos ele não falou nada, só ficou... Só
cismou com minha cara.
Em outra entrevista um dos jovens participantes chega a ser mais categórico
falando sobre a existência do racismo e, também, deixa escapar sua desilusão em
relação a superação desta prática.
E- Você acha que sua cidade tem racismo?
M- Com certeza! Aonde que não tem? Em todo lugar tem!
E- Você conseguiria dizer em que locais você percebe o racismo?
M- Mais aqui no centro, aqui. A galera do morro quando desce, a galera daqui
começa a discriminar. Não fala na frente, mas a gente sente, tá ligado?! Não só pela
cor, mas também pelo jeito de se vestir. Tem essas coisas!
E- Você conseguiria dizer o que é racismo em sua opinião?
M- Eu acho que é falta de Deus no coração, velho! Não devia existir não, negócio de
racismo. Parece que agora tá pior, aí o negócio de Daniel Alves aí! Um país que diz
que é civilizado, fazendo aquilo ali!
E- Você acha que o racismo não vai acabar tão cedo?
M- Não vai acabar não, nunca! Igual ao tráfico!
E- Porque você acha isso?
M- Porque a tendência é só piorar. O mundo, Deus me perdoe, não tem mais jeito não
(risos). Só Jesus passando a borracha e desenhando tudo de novo!
Quando perguntados sobre como eles se autodeclaravam enquanto cor, mais
uma vez pudemos notar a complexidade e violência com que o racismo os atravessa,
os impedindo, conflituosamente, de se entender como negros, de se posicionar como
tal. Muitos usaram a categoria morena, indígena, parda, num evidente exercício de
conformação e alívio diante da cor que mais poderia lhes humanizar. “E- Sua cor, você
se define como? M- Me defino moreno, mas, queria ser negro, velho! Tenho uma
admiração por negro, velho”!
Este outro entrevistado, ao ser perguntado sobre sua cor, inicialmente, chega a
criar a categoria chocolate, em meio a alguns risos, para depois se colocar como pardo.
E- E a sua cor? Você se considera o quê?
L- Sei lá..
E- É uma constatação sua.
L- Sei lá... Chocolate (risos).
E- Temos algumas classificações usados pelo IBGE, você se colocaria em qual das
identificações?
L- Acho que pardo, mas, toda vez que eu converso com meus colegas eu digo. Eu
tenho a cor que tenho, mas, se eu fosse negro, eu teria o maior orgulho!
E- Então você se considera pardo?
L- É!
O que nos é mais intrigante, por que não dizer paradoxal, é que, boa parte deles
chegaram a afirmar, quando perguntado sobre a cor que impera sobre as pessoas da
cidade, do bairro e da família, que era a cor negra. No entanto, ao se autodeclararem,
eles se colocam fora. Como aponta um dos entrevistados:
E- Qual a cor da maioria das pessoas da sua cidade?
M- Negra!
E- Seu bairro também?
M- É!
E- Sua família?
M- É, minha família a maioria é negra também!
Diante deste quadro de opressão a que também estão, de modo desolador,
expostos os corpos, as subjetividades destes jovens negros da cidade de São Félix, não
há como não consideramos o quanto esses paradoxos e/ou conflitos, vivenciados pelos
mesmos, no tocante a identificação, a resistência em se autodeclarar como sujeitos
negros, tenham como pano de fundo a perversa e profunda influência, operada pelo
racismo, enclausurando-os num sistema de representação racial confuso, sempre a ser
negado para que se afaste todo o fardo e farto sofrimento que acompanha o corpo
negro em nossa sociedade. Como nos aponta Pinho apud Newton (2014) “O negro dos
estratos inferiores é um homem de confusão”. O que ele faz dessa confusão é o que o
constitui, ou não, como um agente.
Considerações Finais
O pressuposto teórico apresentado por Foucault, acerca de como se constitui os
sujeitos em cada sociedade, nos norteia e, para além disso, contribui para que, junto e
ademais do que nos aponta este teórico, pensemos a triste condição que atravessa o
sujeito jovem negro no estabelecimento de sua subjetividade. O modo como o sujeito
negro é inserido em nossa sociedade, já lhes coloca, desde cedo, numa condição de
subalternidade, muitas vezes, frustrante, num estado, como bem sabemos, de
sobrevivência permeada por inúmeras incertezas, medos e dúvidas acerca da sua
existência no viver social.
As relações de poder que produz o homem negro o coloca numa condição de
extrema desconfiança frente a sociedade, fazendo com que a sua forma de subjetivar a
existência seja vista, a todo instante, pelo racismo de plantão, como um risco, como
um problema a ser solucionado imediatamente. Deste modo, esses jovens negros veem
suas vidas se transformarem num desesperador drama todos os dias, são embarcados
num discurso de verdade que os transforma nesse “inimigo inconciliável” (PINHO,
2014), fruto de um sistema de representação racial que os torna sempre e/ou em maior
medida, em sujeição, corpos matáveis.
No regime de representações patológicas do corpo negro, delineado na
seção anterior, a morte de jovens negros e negras nas periferias urbanas é
um rito de purificação da sociedade contra os ditos “maus”. A sua morte,
portanto, deve ser contextualizada no conjunto de ideias e práticas
que desumaniza o corpo negro de modo tal que, por não merecer viver, sua
morte não represente nenhuma incongruência com a defesa da paz e dos
direitos humanos. (AMPARO, 2010, p. 570).
Neste sentido, o que tem restado e se propagado como uma das únicas
verdades, também, para os jovens negros da cidade de São Félix, sujeitos participantes
e construtores de nossa pesquisa, são, ainda, as reificadas, reatualizadas correntes que,
atravessando a história e suas transformações, desemboca nos corpos dessa juventude,
obstruindo-lhes, a todo instante, desde a mínima até a máxima possibilidade de existir,
sob a égide do ideal racista de animalização dos corpos negros que se arrasta desde
tempos de outrora até os nossos dias, nos convencendo de que, como afirma PINHO
(2014) “Nós, os “embarcados." Alienados ao nascer, estamos aqui e mais além, em
nenhum outro lugar. Quilombo. Ori. Fora do espaço da História (...)Em meio ao calor
dos nossos corpos. E, bem como sabemos, estar fora da história, em lugar algum, pode
e tem significado, ao menos para os negros, a impossibilidade de transformação e
suplantação da condição de ser e/ou de si mesmo, pois, estar fora da história, é estar
fora da possibilidade de existir no mundo real e concreto.
Referências
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