Ser um Não-Ser, eis a imposição! Paulo Roberto dos Santos da Silva1 Esta proposta de discussão tem como objetivo trazer a superfície a supressão, provocada pelo racismo, da subjetividade masculina de jovens negros. Demonstrar, a partir da construção de sujeito elaborada por Foucault, como o processo de subjetivação de jovens negros na escola Rômulo Galvão2, na sua busca de se tornar sujeito, é visto como um risco pelo pensamento racista branco, como esses jovens se veem afastados, ceifados da possibilidade de criar seus modos de posicionamentos, sua forma de ser e estar, de agenciar sua condição de existência como humanos no mundo moderno. Introdução Ao propor sua elaboração teórica acerca do que vinha a ser sua concepção de sujeito, Foucault nos mostra que este, antes de tudo, é uma produção histórica, moldada pelas relações de poder, atravessadas, porém pela possibilidade de resistência imposta pela estrutura social, influência esta que Foucault busca nos antigos, cuja estruturação de si, segundo o teórico, era feita através da produção ética (relação consigo mesmo), possibilidade de escolha, em que os antigos buscavam consolidar o seu ser no ideal de vida bela. Percebe-se que não existe em Foucault um sujeito pré-estabelecido do qual emanaria as relações de poder. O sujeito do conhecimento é constituído, produzido dentro de uma conjunção de estratégias de poder. Ou seja, o sujeito é um produto das relações de poder, não seu produtor. Não há um sujeito essencial que estaria alienado por ideologias, por relações de poder que encobririam sua visão da realidade. O sujeito do conhecimento é produzido pelas relações de poder, ou melhor, o que chamamos sujeito é um enunciado social. Dessa forma podemos chamar os indivíduos de loucos, normais, gordos, revolucionários, sujeito deste ou daquele discurso que será reclamado pela medicina, pela psicologia, pelas ciências sociais. (PEZ, p. 2). 1 Discente do 7° semestre do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. 2 Uma das escolas onde ocorrem as atividades de pesquisa do Grupo Brincadeira de Negão. Partindo deste pressuposto somos levados a crer que esta produção de sujeito não contempla, de todo, o negro. No seu processo de subjetivação o jovem negro, desde o período da escravidão, até a tão famigerada modernidade, tem como encargo a supressão da sua existência, da sua condição ética, do manejo, monopólio da relação consigo mesmo, de escolha para si, de posicionamento, uma vez que seu processo de subjetivação vai de encontro a moral estabelecida, fere, para a estrutura branca, racista e elitista vigente, os seus princípios, sua lógica de mundo. A perspectiva de sujeito Foucaultiana, nesse sentido, é capaz de nos apresentar, ainda que estes sejam construídos numa relação de forças-poder com a sociedade, um ser de força, capaz de resistir, de agenciar sua existência, ante as imposições sociais, o que, para o sujeito negro, infelizmente, ainda é muito caro e encontra seu limite. A problematização da elaboração teórica de sujeito proposta por Foucault, como nos apresenta (PEZ) “O sujeito seria um composto histórico. Uma determinada identidade produzida por forças em um determinado período histórico”, fazendo relação com o sujeito jovem negro moderno, é necessária para que possamos enxergar a perseguição incessante que o racismo impetra contra estes jovens, numa tentativa paranoica de lhes furtar, a todo momento, seus modos de posicionar-existir no e com o mundo. A produção do ser negro, nesse sentido, na sociedade moderna, ainda é permeada pela negação de si mesmo, pelo condição e impossibilidade de existir como sujeito, como ser, tal qual o homem branco. Eu não estou dizendo que nós acolhemos a profecia de nossa morte coletiva. Estou argumentado que a ameaça de nossa morte coletiva, uma ameaça em resposta ao nosso gesto coletivo – nossa existência (living) – vontade, nos fez sentir como se estivéssemos vivos, como se possuíssemos o que, de fato, não possuímos, vida humana, como oposta a vida negra ( que é sempre já “morte substitutiva” , como sempre um modo “fatal de estar vivo”). Poderíamos morrer porque estávamos vivos... (WILDERSON, p. 5. 2008). O desenvolvimento do sujeito negro, neste sentido, está dentro e fora, ao mesmo tempo, da lógica Foucaultiana, pois, os processos de resistências, de escolhas para si de uma vida bela, como propunha Foucault, produzido pelo jovem negro, é sempre mais vigiado, evidenciado como um fator de risco para sociedade. Pois, bem como aponta (DELEUZE apud FONSECA, 2012. P 10) “O que conta, para Foucault, é que a subjetivação se distingue de toda moral, de todo código moral: ela é ética e estética, por oposição à moral que participa do saber e do poder”. Deste modo, se o processo de subjetivação já é em si um enfrentamento a estrutura social posta e que nos é imposta, já significa uma insurgência por parte do sujeito, o processo de subjetivação negra, circunda na sociedade moderna, como modos de existir, de ser sujeito, de forma perturbadora, significando, para a paranoia racista, um risco mais elevado a moral estabelecida. Ou seja, a produção do homem negro na sociedade brasileira, foi e continua ocorrendo num contexto de extremo encarceramento, obra esta de elevada garantia dos privilégios da sociedade branca, burguesa e racista, sustentáculo do tão famigerado projeto civilizacional. 1- O racismo estrutural e a negação do negro O modo como a sociedade brasileira constituiu o seu imaginário acerca da população negra, ao longo da história, deixou e, infelizmente, ainda deixará marcas profundamente enraizadas sobre como essa parcela da população deve ser considerada, como seus corpos devem ser tratados em dias atuais. Não há como negar que a reprodução e prolongamento do racismo em nossa sociedade tenha tido em seu passado o marco zero, o seu início e continuação. É no nosso passado escravocrata que, possivelmente, encontraremos os porquês de tanto nojo, asco, aversão a população negra, a sua condição de humanização. Esse passado foi estruturado de tal modo que é falacioso admitirmos que a sua intenção era ser superado, não se arrastar até o presente. Fruto de uma visão desumanizadora, o corpo negro, o jovem negro vê-se ainda hoje, acorrentado, preso, enclausurado a um imaginário muito similar a época de escravidão, onde seus passos, sua lógica de estar e ser no mundo eram vistas como irracionais, selvagens, primitivas, fator de extrema animalidade e atraso para os sonhos de avanço social da elite racista e branca brasileira. Frutos de um passado recente, que insistentemente, se recobra, se reitera, a juventude negra, em dias atuais, tem sido uma das mais atingidas pelas práticas da exclusão racista. O racismo brasileiro apresenta-se em dois momentos: um, anterior, caracterizado pela publicização da separação dos diferentes grupos étnicos nos espaços públicos e privados; outro, contemporâneo, demarcado pela segregação através de mecanismos psicológicos de inferiorização e dos mecanismos de mercado. Situa que após a escravidão o racismo consolidou- se através da pobreza, da destituição do lugar dos afrodescendentes na cultura e na economia, e da violência verbal calcada nos estigmas de cor da pele e classe, manifestando-se nas falas que incorporam a inferioridade cultural dos afrodescendentes. (GUIMARÃES apud CHAVES, 2003, p. 12). Em todos os âmbitos, em que se foi possível, o racismo brasileiro, guiado pela elite branca, se fez presença veemente para consolidação da exclusão negra, gerando um estado de obstrução profunda, capaz de se arrastar até a tão afamada modernidade, tal qual a força obstrutiva estrutural tempos de outrora. A delimitação do racismo como modalidade violência estrutural requer a conceituação desse termo. RISTUM (2001) a concebe como aquela produzida pelo Estado, pelas instituições sociais e organizações da sociedade, que impinge opressão a pessoas, a grupos, a classes sociais e a nações. (RUSTIM apud CHAVES. P. 11, 2003). Deste modo, não há como negar que a nossa sociedade se erigiu alicerçada a essa lógica de racismo estrutural, quando, mesmo com algumas garantias de acesso sendo alcançadas, assistimos a tanto rejeição, repúdio, negação a condição de humanização, de sujeito, buscada pelo jovem negro, quando vemos, nos inúmeros índices que reproduzem a desigualdade social, a maior parte dos indivíduos, de modo permanente, sendo negros. (...) o racismo contra o negro está presente em discursos e práticas sociais, embora não seja reconhecido juridicamente. Salienta que, através da prática discursiva nacionalista da sua negação, retira-se a legitimidade da discriminação e da segregação, porém a referida estratégia não elimina a sua presença no dia-a-dia. (CHAVES, p. 12, 2003). 2- Negro Drama: “Tenta ver E não vê nada A não ser uma estrela longe, meio ofuscada”3 A juventude, antecipada por outras fases geracionais, cuja vivência bem estruturada é condição relevante para o alcance qualitativo e mais humano da vida adulta, foi e tem sido um tormento, uma presença perversa e ausente na vida do negro em nossa sociedade. Desde a mais tenra idade o homem negro, em sua maioria, é encarcerado num ambiente hostil, dilacerador de boa parte de suas forças, de suas potencialidades. Esmagado, ele se nota afundado numa realidade que o gesta para ser sempre correria, fuga em e de si mesmo, um ser que não pode ser, que é obrigado a ir suprimindo sua existência, sua subjetividade ante aos cercos impostos pelo racismo vociferador. 3 Título e trecho da Canção “Negro Drama” do Grupo de Rapper Racionais MC”s. Estas desigualdades têm início na infância destes homens. Os meninos pobres e negros são vistos como problemáticos e, em geral irrecuperáveis, fruto de uma família igualmente problemática, afinal ele oriundo de uma família que se sabe de antemão que o pai é ausente. Eles são menos encorajados e elogiados por seus professores/as que as meninas negras e brancas e menos também que os meninos brancos (Carvalho, 2004), com isso desde muito jovens os meninos negros são vistos como um problema que não mereceria mais investimentos, incluindo aí o afetivo. Lembremos das declarações do governador do estado do Rio de Janeiro que sugeriu aborto como forma de prevenir a criminalidade. (SOUZA, 2009, p.112). Reflexo de um contexto histórico que insiste em reiterar sua negação, o homem negro, constituído por um passado de ausências, fracassos atribuídos a si mesmo, sem, contudo, a sua participação, é um símbolo, no presente moderno, de perseguição intransigente, intolerante de sua vontade de ser e estar no mundo. É um não ser. WILDERSON (2008) “Experimentamos uma impossibilidade transcendente: um momento de negritude- como- presença (Blackness-as-Presence) em um mundo sobredeterminado pela negritude-como-ausência (Blackness-as-Absence). Sugado por todos os lados, ele se vê impedido, em todas as possíveis esferas sociais, de exercer seus desejos, suas edificações no mundo de forma igual. Diante de tal condição de estar no mundo, o homem negro, espremido pelas práticas, baseadas nas representações raciais, cujo avanço no mundo moderno tem se mostrado cada vez mais desumanizador e vertiginoso, é acobertado por um mundo definhado, permeado de incertezas, malogros, medos. Um mundo, cujas portas, antes mesmo da possibilidade de serem batidas, lhes é fechada, impedida de ser saída para suas angústias, alimentando-se, deste modo, a triste verdade em voga da existência negra, como aponta PINHO (2014) “Nossa morte-em-vida é condição de possibilidade para a branquidade na nação mestiça”. Nas instituições educacionais, saúde e, de forma um tanto mais recente, como temos visto através do bum gerado pelos inúmeros casos de racismo, nos campos de futebol e/ou no consolidado cenário esportivo, também somos capazes de enxergar, sem, infelizmente, muitas vezes passar disto, meros telespectadores, o quanto a sociedade brasileira e mundial rechaça a inserção e humanização da figura do homem negro. Toda a estrutura social é erigida sobre as bases do racismo histórico, cuja consequência é a obstrução da historicização e mudança da realidade do povo negro. Estes, tal qual se apregoava nos discursos de verdades científicas do século XIX, não podem passar de mera composição animal, não podem alcançar o estágio de humanos, de civilidade, racionalidade branca, pois são negros, por simplesmente sê-lo, não avançam com a história, estão e deverão ficar acorrentados ao ideário, ao imaginário que os subjugou a tornarem-se escravos, o ideal de selvagens. Em el ocidente moderno, pocas psiciones de sujeitos o subjetividades, han sido tan perseguidas y controladas, esteriotipadas, violadas, encarceladas, y han atraido tanto odio, desconfianza, rechazo, asco o descalificacion, como masculinidades negras. (PINHO, 2014, p. 1). Uma das principais consequências negativas de toda essa opressão que subjuga o homem negro é a perseguição da sua condição de sujeito. Apesar de existirem os distintos modos de resistência impetrados pelos jovens negros contra o racismo, a caça aos vossos corpos se eleva na proporção direta com que os mesmos vão tentando reinventar sua subjetivação fora da lógica moralista branca e racista. Suas músicas, suas danças. Enfim, os modos como os jovens negros encontram para tentar existir no mundo, para o injustificado racismo tão apregoado, perturba, de moda a por em xeque, todo o dito esforço moralista da elite branca brasileira. Jack Halberstam nos ajuda a entender “Os subcomuns/“undercommons” constituem um espaço e tempo que já está aqui." E como lugar de crítica descolonial, vernácula, não é um retorno fundacional, ou nostalgia, mas um além, que já está aqui. Entre nós. “I see a new world of black men." Alguns enxergam a brecha que o pagode significa. Um lapso, uma ruptura semiótica, descolonial e selvagem. Assédio ao “settled” ( “estabelecido”). (PINHO, 2014, p.4). Ao propor seu ideário de sujeito, a partir de um estudo genealógico, Foucault nos dá a certeza de que todo sujeito detém poder, é portador, digamos, do potencial de resistência frente as imposições sociais. Só que, ao trazermos isto para a realidade do jovem homem negro e pobre, somos capazes de admitir, porém, com muita cautela, que a teoria foulcaultiana engloba, mas, não de todo essa parcela tão violentada da sociedade. O homem negro, diferente de outros, vê, com uma frequência descomunal, sua força sendo reprimida, abocanhada pelo estado vigilante racista. Chegam a produzir suas inúmeras resistências, mas, são impedidos, em grande maioria, ceifadosassassinados, de sua possibilidade de sustentação dos seus modos de existir, de ser. 3- Etnografia: “Fugindo de si para tentar existir”. A equipe de pesquisadores do Grupo Brincadeira de Negão: Subjetividade e identidade entre jovens negros na Bahia, em um dos seus locais de pesquisa, a Escola Estadual Rômulo Galvão, localizada na cidade de São Félix, no Recôncavo baiano, tem, constatado, de forma gritante, essa triste forma de supressão e rejeição da subjetividade negra masculina praticada pelo racismo, que também atravessa, em altíssimo nível, a instituição educacional. Muitos dos jovens que fizeram e vem fazendo parte de nossas atividades de pesquisa, em suas participações, nos faz defrontar, de modo escancarado e/ou velado, sutil, como também se apresenta o racismo, as suas diversas dificuldades de estabelecimento social. Boa parte possui uma complexa relação com a escola, são jovens que, para além de outras possibilidades de análises existentes, nos demonstram um desencantamento com o universo escolar, fruto, tanto das já tão propagadas faltas de estruturas que recaem sobre o ensino público em nosso país e, por que não dizer, em maior medida o Nordeste, com um aumento vertiginoso de descaso na Bahia, como, junto a isso de um problema que lhes é anterior, cuja mescla é capaz de tornar a vida desses sujeitos em um misto de desencantamentos e conflitos, numa busca arriscada por uma transformação imediata de suas condições de invisibilidade social e abandono, gestada pela presença da discriminação racial. Estes dois aspectos entrelaçados, quase que de modo inato-imanente na realidade desses jovens negros, são um dos principais fatores de evasão não apenas da estrutura escolar, do sistema educacional, mas, da esperança de que este dado local, esta instituição reprodutora de tantas desigualdades e, da maior delas, o preconceito racial que ignora a potencialidade, a racionalização negra, produzindo, deste modo, numa relação de poder, esse sujeito negro masculino assujeitado, afastado da construção de estudante, de futuro intelectual, venha fazer parte do rol de saídas para uma vida mais digna, mais humana. A resistência, ainda que acompanhada, por parte de alguns sujeitos de pesquisa em entrevistas, por elogios ao universo educacional a que estão expostos, no Rômulo Galvão, salta aos nossos olhos (pesquisador@s) endossada pela aterradora verdade tão reproduzida no sistema educacional, a ideia de falta de interesse por parte dos homens, em sua maioria, negros. Como podemos observar nesta resposta sobre o que um desses participantes acha da escola e de estudar: “E- Que é que você acha da escola? S- Legal. E- E de estudar, você gosta de estudar? S- Mais ou menos. Na verdade eu não gosto, né! Mas tem que vim!. Em outro momento voltamos a perguntá-lo, de modo um tanto distinto, sobre o interesse pela escola, ele nos deixa escapar o quanto é desanimador, mas, que precisa ir e, o quanto sua mãe, na defesa do benefício alcançado pelo governo federal, com o Bolsa Família, o incentiva a ir a escola. “E- E as aulas, você gosta? S- Gosto, né. Gostar eu não gosto, mas tem que vim, né. (Risos). E- Mas você tem que vim, seus pais forçam em casa pra você vim? S- Não, sou minha mãe. E- Sua mãe. E sua mão força dizendo o quê? S- Ah, tem que ir por causa do bolsa família senão corta. Ela agora tá desempregada, mas, ela trabalha também. Quando ela tá desempregada só dependia do bolsa família. Numa outra entrevista um dos meninos deixam escapar um menosprezo em relação a possibilidade em atender ao desejo de ser médico, pedido pela avó. Isso nos mostra o quanto, para além de outras questões, os sonhos desses jovens homens negros e pobres é diminuído, desesperançado, ceifados pela certeza de que o seu devido lugar é a subjugação ao invés de locais de mando. “E- Seu maior sonho? M- Antigamente eu tinha sonho de ser jogador de futebol, velho! Mas, fui crescendo e vi que não dava, né. (risos). Agora, fazer uma faculdade e seguir em frente. Eu nem sei que carreira eu quero seguir, uma profissão! Minha Vó é doida pra eu ser médico, é doida pra pagar uma faculdade pra mim! Mas, se eu for estudar, estudar, você é doido! Tô querendo servir ao exército, não sei, tô pensando aí! Uma outra relevante questão, ligada a falta de interesse deles com a vida escolar, que ajuda a produzir nesses jovens uma relação de desconfiança, de conflito com o mundo que os permeia, cuja apontamento foi quase unânime, foi a certeza da existência do racismo em suas vidas, quando diretamente atingindo-os, atingem a seus amigos em situações em que eles se encontram. Como podemos vê em outro trecho de uma das entrevistas: E- E na sua cidade, você acha que existe racismo aqui? S- Ah, existe muito! E- Você poderia dizer onde é que você percebe que existe? E o que é racismo pra você? S- O que é racismo pra mim, assim... Quando tá discriminando aquela pessoa, chamando ela de negra, negra não, de preto, pobre, fudido. Isso pra mim é racismo. E- E onde você percebe? S- Assim, quando os policiais vão fazer assim, tipo dar um baculejo... Teve uma vez mesmo que eu tava ali no porto sentado, Tava eu, o único escurinho que tinha era eu, o resto tudo era branquinho. Com os branquinhos ele não falou nada, só ficou... Só cismou com minha cara. Em outra entrevista um dos jovens participantes chega a ser mais categórico falando sobre a existência do racismo e, também, deixa escapar sua desilusão em relação a superação desta prática. E- Você acha que sua cidade tem racismo? M- Com certeza! Aonde que não tem? Em todo lugar tem! E- Você conseguiria dizer em que locais você percebe o racismo? M- Mais aqui no centro, aqui. A galera do morro quando desce, a galera daqui começa a discriminar. Não fala na frente, mas a gente sente, tá ligado?! Não só pela cor, mas também pelo jeito de se vestir. Tem essas coisas! E- Você conseguiria dizer o que é racismo em sua opinião? M- Eu acho que é falta de Deus no coração, velho! Não devia existir não, negócio de racismo. Parece que agora tá pior, aí o negócio de Daniel Alves aí! Um país que diz que é civilizado, fazendo aquilo ali! E- Você acha que o racismo não vai acabar tão cedo? M- Não vai acabar não, nunca! Igual ao tráfico! E- Porque você acha isso? M- Porque a tendência é só piorar. O mundo, Deus me perdoe, não tem mais jeito não (risos). Só Jesus passando a borracha e desenhando tudo de novo! Quando perguntados sobre como eles se autodeclaravam enquanto cor, mais uma vez pudemos notar a complexidade e violência com que o racismo os atravessa, os impedindo, conflituosamente, de se entender como negros, de se posicionar como tal. Muitos usaram a categoria morena, indígena, parda, num evidente exercício de conformação e alívio diante da cor que mais poderia lhes humanizar. “E- Sua cor, você se define como? M- Me defino moreno, mas, queria ser negro, velho! Tenho uma admiração por negro, velho”! Este outro entrevistado, ao ser perguntado sobre sua cor, inicialmente, chega a criar a categoria chocolate, em meio a alguns risos, para depois se colocar como pardo. E- E a sua cor? Você se considera o quê? L- Sei lá.. E- É uma constatação sua. L- Sei lá... Chocolate (risos). E- Temos algumas classificações usados pelo IBGE, você se colocaria em qual das identificações? L- Acho que pardo, mas, toda vez que eu converso com meus colegas eu digo. Eu tenho a cor que tenho, mas, se eu fosse negro, eu teria o maior orgulho! E- Então você se considera pardo? L- É! O que nos é mais intrigante, por que não dizer paradoxal, é que, boa parte deles chegaram a afirmar, quando perguntado sobre a cor que impera sobre as pessoas da cidade, do bairro e da família, que era a cor negra. No entanto, ao se autodeclararem, eles se colocam fora. Como aponta um dos entrevistados: E- Qual a cor da maioria das pessoas da sua cidade? M- Negra! E- Seu bairro também? M- É! E- Sua família? M- É, minha família a maioria é negra também! Diante deste quadro de opressão a que também estão, de modo desolador, expostos os corpos, as subjetividades destes jovens negros da cidade de São Félix, não há como não consideramos o quanto esses paradoxos e/ou conflitos, vivenciados pelos mesmos, no tocante a identificação, a resistência em se autodeclarar como sujeitos negros, tenham como pano de fundo a perversa e profunda influência, operada pelo racismo, enclausurando-os num sistema de representação racial confuso, sempre a ser negado para que se afaste todo o fardo e farto sofrimento que acompanha o corpo negro em nossa sociedade. Como nos aponta Pinho apud Newton (2014) “O negro dos estratos inferiores é um homem de confusão”. O que ele faz dessa confusão é o que o constitui, ou não, como um agente. Considerações Finais O pressuposto teórico apresentado por Foucault, acerca de como se constitui os sujeitos em cada sociedade, nos norteia e, para além disso, contribui para que, junto e ademais do que nos aponta este teórico, pensemos a triste condição que atravessa o sujeito jovem negro no estabelecimento de sua subjetividade. O modo como o sujeito negro é inserido em nossa sociedade, já lhes coloca, desde cedo, numa condição de subalternidade, muitas vezes, frustrante, num estado, como bem sabemos, de sobrevivência permeada por inúmeras incertezas, medos e dúvidas acerca da sua existência no viver social. As relações de poder que produz o homem negro o coloca numa condição de extrema desconfiança frente a sociedade, fazendo com que a sua forma de subjetivar a existência seja vista, a todo instante, pelo racismo de plantão, como um risco, como um problema a ser solucionado imediatamente. Deste modo, esses jovens negros veem suas vidas se transformarem num desesperador drama todos os dias, são embarcados num discurso de verdade que os transforma nesse “inimigo inconciliável” (PINHO, 2014), fruto de um sistema de representação racial que os torna sempre e/ou em maior medida, em sujeição, corpos matáveis. No regime de representações patológicas do corpo negro, delineado na seção anterior, a morte de jovens negros e negras nas periferias urbanas é um rito de purificação da sociedade contra os ditos “maus”. A sua morte, portanto, deve ser contextualizada no conjunto de ideias e práticas que desumaniza o corpo negro de modo tal que, por não merecer viver, sua morte não represente nenhuma incongruência com a defesa da paz e dos direitos humanos. (AMPARO, 2010, p. 570). Neste sentido, o que tem restado e se propagado como uma das únicas verdades, também, para os jovens negros da cidade de São Félix, sujeitos participantes e construtores de nossa pesquisa, são, ainda, as reificadas, reatualizadas correntes que, atravessando a história e suas transformações, desemboca nos corpos dessa juventude, obstruindo-lhes, a todo instante, desde a mínima até a máxima possibilidade de existir, sob a égide do ideal racista de animalização dos corpos negros que se arrasta desde tempos de outrora até os nossos dias, nos convencendo de que, como afirma PINHO (2014) “Nós, os “embarcados." Alienados ao nascer, estamos aqui e mais além, em nenhum outro lugar. Quilombo. Ori. Fora do espaço da História (...)Em meio ao calor dos nossos corpos. E, bem como sabemos, estar fora da história, em lugar algum, pode e tem significado, ao menos para os negros, a impossibilidade de transformação e suplantação da condição de ser e/ou de si mesmo, pois, estar fora da história, é estar fora da possibilidade de existir no mundo real e concreto. Referências ALVES, Jaime do Amparo. À sombra da morte: juventude negra e violência letal em São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. Bahia anal. dados, Salvador, v. 20, n. 4, p. 563-578. Out/dez. 2010. CHAVES, E. S. O racismo contra o negro e a aprendizagem cultural. Rev. Brus. Cresc. Desenv. Human., São Paulo 13(2) 11-19, 2003. FONSECA, J. P. A. Considerações sobre a constituição do sujeito, do cuidado de si no pensamento de Michael Foucault. Porto Alegra. V. 57. Pág. 143 a 152. 2012. NEWTON, H. P. Medo e Dúvida. May 15, 1967” In. ___. To Die for the People. Edited by MORRISON, Toni. City Light Books. San Francisco. 2009. Pp. 77--‐ 79. PEZ, T. D. P. 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