A INQUISIÇÃO E A SUPRESSÃO DA HERESIA PELA FORÇA
1
Pe. Leonardo Lucian Dall Osto
1.1 Os antecedentes possibilitadores da Inquisição medieval
Depois de serem averiguados vários fatos que envolvem a Idade Média, não
permitindo, portanto, chamá-la de “idade das trevas”, analisaremos um aspecto muito
sombrio surgido neste período: a Inquisição.
O juízo sobre a Inquisição, (ou as inquisições se contemplarmos sua atuação
extremamente diversificada nas diversas regiões em que esteve instalada), não pode
prescindir de um acurado exame do contexto epocal, como já fora referido
precedentemente.
O período de atuação dos tribunais inquisitoriais é permeado por uma cultura
“cristianizada” em sua totalidade. O Ocidente é invariavelmente cristão. O cristianismo
que reerguera toda a civilização pós-império, impôs-se nas mentes e nos corações dos
homens do medievo. A vida girava em torno da religiosidade. As ordens religiosas
cresciam e prosperavam em número e em riquezas. Os governantes discutiam, muitas
vezes, a atuação dos clérigos e até dos papas, mas nunca se pensou, durante toda a
Idade Média, na constituição de uma igreja paralela. Em outras palavras, a sociedade
respirava uma homogeneidade religiosa, que lhe concedia uma identidade comum. O
diferente, o heterogêneo sempre pareceu agressivo e até diabólico.
Aquilo que hoje para nós é comum, o respeito pelo direito que os demais
possuem de serem diferentes e pensarem diferentemente da grande maioria, só passou a
existir a partir da segunda metade século XIX. Até então, a crença oficial de uma
determinada região ou país era obrigatória. Na França absolutista se dizia comumente
“uma fé, uma lei, um rei”. O antigo adágio non licet essere vos (não é licito que vocês
existam), aplicado outrora aos cristãos dentro do Império Romano, agora se punha a
favor destes contra os demais grupos. Tudo o que se opunha a constituição comum dos
povos era considerado como um “organismo estranho a ser expurgado”.
O cristianismo se tornou eixo central de uma civilização antes mitigada em
diversas culturas. Desde Teodósio I (380-395), que reverteu o cristianismo em religião
oficial do Império Romano, Igreja e Estado interligaram-se de forma a confundiram-se.
A Igreja sustentou o kosmus dentro do kaos social no Império Romano, reestruturou a
civilização após a queda de Roma, e constituiu um novo e sacro império. Esta
mentalidade em que Estado e Igreja estavam estreitamente unidos, e o Estado sempre
era cristão, chamou-se Cristandade. Cristandade era o grande império cristão, em que a
Igreja se considerava a “alma” do corpo social.
Diante disto é fácil notar como uma ofensa à Igreja era tida como uma ofensa ao
Estado, e vice-versa. Pois se a Igreja sustentava ser instituída por Cristo com vistas à
salvação dos homens, os reis e governantes também eram tidos como escolhidos por
Deus em suas funções régias. A alegoria das “duas espadas”, muito usada por teólogos e
juristas medievais afirmava que dois gládios existiam por ordem divina. O primeiro, o
gládio espiritual da excomunhão, estava nas mãos da Igreja e por ela devia ser
1
Sacerdote pertencente ao clero diocesano da Diocese de Caxias do Sul. Graduado em Filosofia pela
Universidade de Caxias do Sul e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
e pela Pontificia Università Lateranense de Roma. É mestrando em Teologia Sistemática pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é vigário paroquial nas Paróquias São Francisco
de Paula e N. Sra. das Graças, no município de São Francisco de Paula.
desembainhado. O segundo, o gládio temporal da força bélica, estava nas mãos dos
governantes que dele deviam tomar em defesa da Igreja e de seus interesses. Esta
alegoria foi desenvolvida por São Bernardo, sendo, subsequentemente, retomada por
vários teólogos e juristas papais.
Destarte, em um Estado que assumiu o cristianismo como religião oficial o
direito de liberdade religiosa é uma utopia. A Europa tendo sua parte oriental nas mãos
dos ortodoxos, e com suas fronteiras assediadas pelos povos mulçumanos, não podia se
dar ao luxo de permitir divisões internas. João Bernardino Gonzaga afirma:
Para os homens deste tempo, a existência no seio do corpo social de uma
minoria dissidente, da heresia, provoca uma reação profunda, quase visceral,
de intolerância. Não se pode senão recusar-lhe o direito à existência, procurar
eliminá-la pela persuasão, se possível, pela violência, se preciso, como o
organismo procura eliminar um germe nocivo.
Outro ponto importante de ser esclarecido é sobre o comportamento e os
padecimentos do povo em épocas difíceis. Muitos pensam que o povo se insurgiu contra
a atuação inquisitorial por seus rigores. Isso, em muitos momentos aconteceu, mas
nunca foi uma regra. Em geral a população acreditava que as justiças secular e
eclesiástica agiam corretamente. A sensibilidade da população medieval era muito
diferente da nossa sensibilidade. As pestes assolavam a Europa radicalmente. A Peste
Negra (1348-1351), por exemplo, devastou um terço da comunidade européia. Não se
conseguiu sequer enterrar todos os mortos, que ficavam apodrecendo ao relento. Em
certos lugares houve uma redução de 40% da população por infecções de origem
desconhecida. A fome dizimava regiões inteiras, sendo que na França um cronista
medieval afirmou haver fome, praticamente todos os anos em diversos locais. Assaltos e
pilhagens eram comuns, principalmente a viajantes. Os métodos medicinais e cirúrgicos
independiam de anestesias para todos os tipos de operações. A sensibilidade em relação
à dor era totalmente diferente da nossa. O povo estava acostumado a sofrer e a não ter
grandes expectativas de vida. Durante muito tempo a expectativa máxima de vida era de
40 a 45 anos. Pessoas de 30 anos eram já velhuscas. A morte não era, ao contrário de
hoje, mascarada e afastada. Em um ambiente tão rude e hostil o rigor foi aceito sem
contestações. Inclusive as execuções e torturas públicas constituíam-se em um grande
divertimento para o povo.
Diante deste quadro, deve-se recordar como a justiça foi aplicada nestes tempos.
O regime feudal, com a descentralização do poder civil, deixava as populações nas
mãos dos senhores feudais. Estes últimos se converteram e árbitros em todas as
questões jurídicas. Vigorava o sistema conhecido como “acusatório”. Neste um
queixoso se apresentava diante do senhor feudal acusando alguém. Ocorria então o
julgamento. As duas partes se apresentavam diante do juiz, e faziam sua queixa e sua
defesa, respectivamente. Tudo era feito através de fórmulas formais que não podiam ser
erradas ou mudadas. O juiz, no caso era um mero árbitro da regularidade do
procedimento. Caso não fosse descoberta a verdade, apelava-se, então para os já
relatados “ordálios” ou “juízo de Deus”.
Tudo muito precário, e se não houvesse crime flagrante, dificilmente se
encontravam culpados de vários crimes. A Igreja, então permitiu o sistema de
denunciatio. Neste qualquer pessoa, se qualquer classe social, podia denunciar outrem
ser ter sua identidade revelada. Esta foi a única forma que os plebeus tiveram de
queixarem das arbitrariedades de seus senhores. Em 1216, o papa Inocêncio III no IV
Concílio de Latrão, permitiu o procedimento per inquisitionem. Neste o juiz começou a
possuir a autoridade de abrir um processo sem acusador. Este último contava com três
características básicas: o juiz tinha autoridade decisória; o procedimento transcorria de
maneira secreta; procurava-se sempre extrair a confissão do réu.
Atrelado a isso está o fato de no século XII a Universidade de Bolonha ter
retomando o antigo direito romano. O chamado Corpus Iuris Civilis, reaparece com um
sistema legislativo ordenado e prático. Um novo modelo de justiça começara a se
implantar no Ocidente. O direito romano, porém, trazia um fruto podre consigo: a
tortura. É o período chamado de “vingança pública”. A lógica é simples de ser
compreendida. A confissão passou a ser considerada como a probatio probatissima.
Desse modo aquilo que for necessário para obtê-la é validado pelo Estado. Então
começa o largo uso da tortura. Um adágio em latim bem comunicava tal idéia: quaestio
est veritatis indagatio per tormentum.
1.2 As origens da Inquisição
Claro está, portanto, que o contexto epocal do medievo tardio era de rudeza e
brusquidão. Como já foi referido o crime contra a Igreja desenrolava-se como crime
contra o Estado. Foi então uma medida da época o procedimento que refreava tais
crimes.
Durante séculos a Igreja não usou da força para conter a ameaça provinda de
hereges. Suas únicas armas foram a oração, o exemplo e a pregação. Em seguida
surgiram tribunais diocesanos que deram inicio a processos contra hereges, apóstatas e
cismáticos. E em 1022 os primeiros hereges são enviados para a morte. Tal medida,
porém, fazia-se de maneira muito assistemática e intermitente.
Em fins do século XII a Igreja recebe um desafio descomunal. Espalha-se
primeiramente pela França, chegando depois a Alemanha e a Itália uma nova heresia
conhecida como catarismo. Os cátaros (perfeitos) ou albigenses (deve-se este nome por
sua grande influência na cidade de Albi, sul da França) pregavam uma doutrina
completamente avessa à doutrina católica. Retomando o maniqueísmo dos primeiros
séculos, os cátaros afirmavam a existência de dois princípios divinos: um deus bom,
criador dos espíritos e um mau criador da matéria. A humanidade começa quando o
deus mal cerra uma parte dos espíritos dentro da matéria, o que seria o pecado original.
Estes, cativos da matéria recorrem ao deus bom que, então, lhes envia um anjo de
aparência humana. É Jesus Cristo que vem ensinar uma maneira de libertação através do
jejum, da abstinência sexual, da pobreza, porque somente mortificando o corpo
poderiam alcançar a salvação. O próprio casamento era visto como um continuador da
obra maléfica através da procriação. Cometiam também a “endura” que eram
assassínios e suicídios visando a libertação da matéria.
Em todo o continente a heresia se alastrava. Os tribunais diocesanos eram
completamente deficientes, e como se não bastasse a heresia, os clérigos católicos
viviam num “relaxamento” moral muito grande que afastava o povo da Igreja.
Inocêncio III chegou a descrever os padres como “piores que animais refocilando-se em
seu próprio excremento” São Bernardo é enviado a Colônia e a França meridional, mas
seus esforços são em vão. O III Concílio de Latrão 1179 emite medidas rigorosas contra
os cátaros. Inocêncio III convoca em 1209 uma cruzada para o sul da França que acaba
por efetuar a chacina terrível. As tropas matam tanto cátaros como católicos, pois não
sabiam reconhecer quem era quem.
As medidas não são afrouxadas. Em 1215 o IV Concílio de Latrão procura
disciplinar o combate para evitar horrores, e procura instalar tribunais episcopais nas
dioceses para garantir o resultado da cruzada. O clero secular, porém, é insuficiente
nesta tarefa. Neste tempo surge um espanhol, mais tarde canonizado como São
Domingos de Gusmão. Muito austero, de vida disciplinar e pobre. Domingos e seus
seguidores são enviados para a França e, em 1216, o papa Inocêncio III lhes entrega um
tribunal. Em 1229 um Concílio em Tolosa dispõe que todos os fiéis devem seguir
normas de ortodoxia e que os infiéis devem ter tratamentos severos. Finalmente no ano
de 1231 um edito de Gregório IX cria o Santo Ofício formalmente. Assim a Inquisição
nasceu primeiramente atuando na França. Um ano após, na Alemanha, um decreto
imperial a estende para todo o império. Salvo a Inglaterra, que agiu de maneira a não
precisar deste tribunal.
O tribunal deixa, então de ser exclusivamente episcopal e passa a alçada do clero
regular, tendo a frente a Ordem do Pregadores, fundada por Domingos. Mais tarde a
Ordem dos Frades Menores de São Francisco de Assis também assumiu tribunais
inquisitoriais. Em 1263, percebendo a necessidade de centralizar os trabalhos, Urbano
VI nomeou um Inquisidor Geral, chamado João Caetano Ursino. Este cargo só foi
dissolvido em 1542 por Paulo III quando suas atribuições foram entregues à Inquisição
Romana.
A inquisição medieval passou a atuar no século XIII, findando seus trabalhos
com o advento da modernidade no século XV. Com o surgimento das monarquias
absolutistas, a inquisição toma novo alento e volta a trabalhar até ser extinta,
definitivamente, na primeira metade do século XIX.
1.3 Os procedimentos dos tribunais da Inquisição
Normalmente o tribunal possuía instalações fixas nas grandes cidades e
circulava entre as pequenas cidades. Quando chegava às cidades o primeiro ato era o de
mostrar sua presença, reunir os fiéis e exigir juramento, por parte de todos, de auxiliar
nas investigações.
Passava-se depois ao “tempo de graça”, geralmente de 15 a 30 dias em que os
culpados podiam se confessar e se purificar, recebendo penitencias que deviam ser
cumpridas rigorosamente, doando uma parte dos bens ao tribunal e ajudando a
identificar os demais hereges.
Escoando este período sem o comparecimento espontâneo do suspeito, o mesmo
era citado para se apresentar ao tribunal. Exigia-se que este jurasse fidelidade à Igreja e
colaborasse com os trabalhos, caso contrário seria considerado culpado. Submetiam-no,
em seguida o um acurado interrogatório, sendo tudo tomado por termo pelo escrivão.
Durante este período duas pessoas consideradas “idôneas” deveriam assistir o processo
para evitar exageros e mostrar seriedade. Esta era uma norma repetidamente lembrada
pelos papas sendo incorporada no Código Canônico.
Se o acusado protestava inocência havendo, porém, fortes indícios de
culpabilidade, o réu podia ser submetido a tortura ficando em prisão processual. Neste
ínterim de tempo, o acusado era visitado com freqüência pelo inquisidor, pelos seus
assistentes e até por pessoas comuns ou familiares na tentativa de persuadi-lo a
confessar e se arrepender de seu crime. O procedimento, então, se encerrava com a
sentença absolutória ou condenatória. O inquisidor, porém, não podia decretar penas
graves sem a presença do bispo.
O processo culminava em cerimônias públicas conhecidas como “autos-de-fé”,
que tinham por objetivo restaurar no povo a pureza da fé, fortalecer os cristãos
vacilantes e intimidar os demais hereges ocultos. Ali se averiguavam os hereges que
aceitavam o retorno à ortodoxia católica, bem como, aos que se opunham a ela de
maneira veemente. Havia, portanto, três tipos de hereges: os penitentes, que após
confessarem se arrependiam e voltavam para o seio da Igreja, aos quais eram impostas
inúmeras penas; os impenitentes, que ao término do processo recusavam-se a retratar-se
e, portanto eram “relaxados” ao braço secular para serem executados; e os relapsos,
aqueles que uma vez julgados e arrependidos voltavam a condição de hereges. Para
estes não havia segundo julgamento, eram imediatamente entregues ao braço secular.
É perceptível que o processo foi rigoroso, mas não foi pior do que a justiça
secular da época. A tortura, por exemplo, começou a ser usada a partir do ano 1252, por
ordem do papa Inocêncio IV na bula Ad extirpanda. Devia, porém, ser aplicada apenas
uma vez durante o interrogatório. Ela não devia pôr em risco a vida do acusado (mesmo
sabendo que muitos morreram durante a aplicação de torturas), era vedada a efusão de
sangue e a mutilação de membros e partes do corpo do réu. A confissão por ele obtida
só valeria se depois livremente confirmada. Os tribunais civis, ao contrário, permitiam
quatro sessões de tortura, e usavam instrumentos que causavam, além de dor,
mutilações nas pessoas. Ninguém se opunha a tais práticas. Ao contrário, grandes e
renomados juristas aplaudiam os métodos de tortura, principalmente quando inovados.
As penas impostas pela Inquisição se dividiam em espirituais e temporais. Entre
as primeiras encontramos a excomunhão, penitências públicas, interdição de sepultura
cristã, a perda de direitos eclesiásticos. Na base das penas temporais existiam as multas
(muitas vezes criticadas pelos papas), confiscação de bens, exílio, penas infamantes, a
prisão e a entrega ao braço secular. O imperador Frederico II impôs uma uniformização
da pena capital para os hereges, através da fogueira.
A Inquisição não pode ser considerada branda, mas pode ser compreendida
como um abrandamento das penas e inquéritos seculares. No processo civil havia
apenas duas sanções: a soltura ou a condenação. A prisão como pena não existia na vara
civil, onde só existia a prisão processual. Foi a Igreja primeira a impor a pena de prisão
que podia ser perpétua ou por determinado tempo. Logo a Inquisição também começou
a adotar a prisão domiciliar ou em mosteiros.
Outro dado importante é que a Igreja proibiu o chamado “suplício” em seus
condenados. Para a justiça secular a pena de morte deveria ser precedida de torturas
públicas, estendendo a dor o quanto fosse possível. Na Itália uma requintada pena de
morte foi elaborada para que o condenado só expirasse no quadragésimo dia. Na França
mais de 100 infrações eram punidas com a pena de morte. Amputar membros, arrancar
olhos e orelhas, cegar com ferro incandescente, marcar com ferro em brasa as vítimas,
entre outros, tornou-se prática comum no modelo de justiça civil. Na França usava-se,
comumente, o esquartejamento, fogo, roda, forca e decapitação. Na Espanha teve largo
uso o garrote. Em vários lugares da Europa atiravam-se os condenados para serem
devorados por cachorros e feras selvagens. A invenção da guilhotina em 1792, por
incrível que pareça, foi um avanço humanitário.
Todas as penas civis se preocupavam em punir e castigar de maneira pública e
forte. Diante disto tudo somente a Igreja possuía o intuito de regenerar e salvar. Em
1246 uma norma é entregue aos inquisidores com recomendações de procurarem a
verdade como homens de Deus: “Esforçai-vos por levar os hereges a se converterem,
mostrai-vos cheios de mansidão diante daqueles que manifestam a intenção de fazê-lo.
Não procedei a nenhuma condenação sem provas claramente estabelecidas. Melhor é
deixar um crime impune do que condenar um inocente”. O inquisidor espanhol Nicolau
Eymerich, escreveu em 1376 um manual para inquisidores, chamado Directorium
Inquisitorum, no qual lembra que a tortura não pode ser aplicada como se fosse um
divertimento: “... tudo isso deve ser feito sem crueldade! Não somos carrascos”. É
sabido que muitos criminosos comuns se faziam “tonsurar” para passar da alçada
secular à eclesiástica, por estes tribunais serem mais amenos.
1.4 As diversas inquisições
Como já foi referido a Inquisição teve várias formas de atuar. No período
medieval esteve sujeita a Roma, mas durante a Idade Moderna, com a formação dos
Estados nacionais, ela foi, em grande parte, subjugada aos interesses da coroa.
Na Inglaterra não houve Inquisição. Quando um grupo de cátaros lá tentou se
instalar foram rapidamente marcados com ferro em brasa e expulsos.
A França, “primeira filha da Igreja”, foi a mãe da Inquisição, como já foi
relatado. Os dominicanos enviados para lá, começaram com um rigor extremado. Não
demorou muito e as fogueiras começaram a ser acesas. Iniciando o trabalho o inquisidor
Roberto Le Bougre, antigo cátaro, que convertido tornou-se dominicano em 1233
queima inúmeros hereges. Em 1234 é afastado, por excessos, todavia Gregório IX
preocupado volta atrás e o torna Inquisidor Geral da França em 1239. No início deste
ano 50 vão para a estaca e em maio mais 147 vão para a fogueira. De modo que ele é,
então, definitivamente deposto e condenado a prisão perpétua. Com isso a Inquisição
morre no norte da França. No sul da França, a partir de 1234 três tribunais se instalam,
em Tolosa, em Carcassonne e em Provença. O rigor também é extremo. Hereges e
cadáveres de hereges são queimados. Com auxílio do povo o conde Raimundo II
expulsa os dominicanos, alguns são assassinados e seus prisioneiros libertos. Contudo,
não muito tempo depois, retornam e continuam seu trabalho rigoroso e fanático. No ano
de 1244, em um só dia, 310 cátaros são reunidos e queimados em uma grande fogueira.
Por volta do ano de 1300 não havia mais cátaros em toda a França, estabilizando o
trabalho dos inquisidores.
Na Itália, a Inquisição exterminou um número incontável de hereges. Cátaros,
fraticelii e muitas outras seitas se encontravam disseminadas por toda a Itália. Só em
Milão havia dezessete diferentes seitas heterodoxas. Diante disto a Inquisição não
poupou. Inocêncio IV aumentou o poder dos inquisidores, disseminando tribunais por
toda a Itália. Convocou os franciscanos para cuidarem da Itália central e meridional, e
os dominicanos para investigarem a região norte. Na Itália um dos mais intrigantes
personagens foi Pietro de Verona. Oriundo do catarismo, Pietro se converteu e tornouse dominicano de zelo extremo. Convocado a ser inquisidor, Pietro extirpa os hereges a
ferro e fogo, sendo por isso perseguido e assassinado em 7 de abril de 1252. Em 1253
foi canonizado com o nome de São Pedro Mártir.
Na Alemanha os cátaros tiveram pouca força. Porém havia os valdenses, os
Irmãos do Livre Espírito e os luciferianos. Antes de formalizara Inquisição, em 1227,
Gregório IX já havia entregue poder para um religioso chamado Conrado de Marboug e
em 1231 já há todo um sistema repressivo eficaz. Mas devido a oposição dos bispos e
arcebispos que viam seu poder diminuído, a Inquisição na Alemanha foi sendo subtraída
das mãos dos franciscanos e dominicanos e entregue ao clero secular.
Na Espanha a Inquisição medieval teve pouco trabalho. Grande parte da
Espanha ainda estava sobre o domínio dos muçulmanos que entraram ali no ano de 711
pelo estreito de Gibraltar. Apenas Aragão, região norte do solo espanhol se manteve
católica e recebeu a Inquisição, a partir de 1242 sob São Raimundo de Penãforte. No
século XI a reconquista começou e só pode ser completa no século XV. Em 1469
ocorreu o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela. Possuíam 22 e23 anos
respectivamente. Mas sua união foi forte e decidida, e em 1492 completaram a
reconquista com a cidade de Granada, e reunificaram o país sob a égide cristã. Havia,
porém, uma sólida cultura muçulmana (por quase 800 a Espanha esteve dominada), bem
como, um número imenso de judeus.
Logo no ano de 1478, os chamados “reis católicos” pediram ao papa a instalação
da Inquisição. O papa Sisto IV, não havendo por que negar cria o tribunal no solo
espanhol, através da bula Exigit sicerae devotionis affectus, de 01 de novembro de
1478. Os reis, porém, exigiram poder nomear os inquisidores. O papa ameaçado de
perder a Espanha por um cisma, cede e permite aos reis escolherem os inquisidores. Não
demorou a chegar a Roma as reclamações. E em 1482 o papa intervém anulando
dezenas de sentenças e libertando acusados, nomeou também outros 8 inquisidores,
exigiu a participação dos bispos locais nos processos, exigiu também que os nomes das
testemunhas e suas declarações fossem reveladas aos acusados e proíbe que se
coloquem obstáculos aos que quisessem recorrer a Santa Sé. Os reis se queixaram, mas
voltaram a dominar a Inquisição exigindo mais autoridade e afirmando criar uma Igreja
nacional se o papa não cedesse. Diante disto o papa teve de se calar, intervindo algumas
vezes posteriormente.
É na Inquisição da Espanha que se encontra uma das mais conturbadas e odiadas
figuras da história: Torquemada. Frei Tomás, nascido na pequena cidade de
Torquemada, foi Inquisidor Geral da Espanha entre 1483 e1496, vindo a falecer dois
anos após o término de suas funções. De vida muito modesta e austera, foi confessor
dos reis católicos e por designação de ambos, inquisidor. Era apaixonado pelo triunfo da
Igreja e da Espanha, fazendo da Inquisição um instrumento do absolutismo religioso e
real. Teólogo e canonista, muito inteligente e culto, interessado pelas artes e pela
literatura, parece, contudo desprovido de todo o calor humano. Recomendou sempre,
todavia, misericórdia e mesmo a piedade. Mas entre a inclinação da Santa Sé à
indulgência, e dos reis católicos à severidade, ele não hesitava em ser severo.
A preocupação da Inquisição na Espanha se dá em limpar o solo espanhol de
judeus, mouros e falsos místicos. Os bispos, por indeterminadas vezes, procuraram
converter judeus e muçulmanos ao cristianismo por vias pacíficas. Os reis, contudo,
eram impacientes e ameaçaram de expulsão primeiramente os judeus que não se
convertessem, e mais tarde os muçulmanos. Os convertidos, porém, caíam em uma
armadilha ardilosa: agora sendo cristão estavam sob a jurisdição da Inquisição. Mais de
250.000 judeus se converteram ao catolicismo. Centenas foram perseguidos e mortos.
Até mesmo místicos cristãos como São João da Cruz, São Pedro de Alcântara, Santo
Inácio de Loyola e Santa Tereza D’Ávila estiveram na mira da Inquisição espanhola e
sofreram os procedimentos inquisitoriais. Em 1834 a inquisição foi formalmente
abolida.
Em Portugal, a Inquisição praticamente inexistiu durante a Idade Média.
Protegida sob a Espanha, as heresias não chegaram até o território português. Somente
no período moderno é que o Santo Ofício foi requisitado. Roma se opôs a instalação do
tribunal por medo dos excessos que estavam acontecendo na Espanha. O primeiro
pedido ao papa foi feito em 1515, por Dom Manuel, mas não foi atendido. Seu filho
Dom João III em 1531 voltou a pedir o tribunal. O alvo central eram os judeus. Dom
João para pressionar Roma inventou que seu território estava recebendo influência
protestante, diante disto, em dezembro de 1531 Clemente VII cedeu, nomeando um
Inquisidor-mor. Melhor informado, o papa em 1533 dissolve o tribunal sabendo dos
abusos que estavam sendo cometidos. Anulou as sentenças de condenação e sabendo
que judeus haviam sido batizados à força, a todos concedeu o perdão. Furioso o rei
passou a declarar que o papa estava com medo e ameaçou proclamar um tribunal
nacional. O papa seguinte, Paulo III acabou cedendo novamente e em 1536 nomeou três
inquisidores e deixou um a escolha do rei. O núncio papal, porém, alertou o papa de que
excessos estavam ocorrendo e rebelou-se contra o rei que nomeou seu Irmão Dom
Henrique como Inquisidor Mor. O papa apoiou o núncio e repeliu a nomeação. O
núncio foi expulso. Cedendo novamente, Paulo III aceitou Dom Henrique como
Inquisidor Mor, mas emitiu uma bula que negava até segunda ordem as execuções das
penas inquisitórias. O papa pressionado pelo Imperador espanhol Carlos V, cedeu
definitivamente e em 1547 a Inquisição portuguesa foi finalmente instituída. Foi abolida
em 1821.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AQUINO, Felipe. Uma história que não é contada. 3 ed. São Paulo: Cléofas, 2008.
EYMERICH, Nicolau. Directorium Inquisitorum. 2 ed. Tradução de Maria José Lopes
da Silva. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
GONZAGA, João Bernardino. A Inquisição em seu mundo. São Paulo: Saraiva, 1993.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Tradução de Waltensir Dutra. 20
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras: Malleus
Maleficarum. 8 ed. Tradução de Paulo Fróes. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1991.
LEIGH, Richad; BAIGENT, Michael. A Inquisição. Tradução de Marcus Santarrita.
Rio de Janeiro: Imago, 2001.
LOPEZ, Luiz Roberto. História da Inquisição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1993.
PIERRARD, Pierre. História da Igreja. Tradução Álvaro Cunha. 5 ed. São Paulo:
Paulus, 2002.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: Patrística e Escolástica.
São Paulo: Paulus, 2005.
LLORCA, Bernardino. Historia de la Iglesia Católica: La Iglesia em el mundo
grecorromano. 3 ed. Madrid: S.A. Apartado, 1960. Tomo I.
Download

A INQUISIÇÃO E A SUPRESSÃO DA HERESIA PELA FORÇA Pe