CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007 DIÁLOGOS IMPERTINENTES: NUMEROLOGIA, CIDADANIA E MAIORIDADE PENAL José Eisenberg* Há um conjunto de temas para os quais determinadas opiniões públicas são consideradas tabus no campo progressista de nossa sociedade civil. Destacam-se, entre elas, a defesa da pena de morte, ser contra o aborto ou a descriminalização das drogas leves e, mais recentemente, ser contra políticas de cotas raciais. No Brasil, o “politicamente correto” encontrou nova expressão no recente debate em torno da emenda constitucional que reduz a maioridade penal, tema agora parte integral desse rol de opiniões imperativas. Somos contra a redução da idade penal e ponto. Ponto final? Os argumentos contra a redução penal apresentados no voto da senadora Patrícia Saboya na reunião deliberativa da CCJ e no artigo de Rogério Dultra dos Santos publicado nesse boletim são persuasivos, particularmente sob a ótica dos direitos humanos e das inúmeras formas com que seus abusos foram contornados em nosso país pela prática legislativa. O que Rogério Dultra dos Santos chama de “legislação de comoção”, por exemplo, desqualifica a idéia de um legislador responsivo a demandas sociais advindas do mundo da opinião, instrumento crucial para o bom funcionamento da representação política em uma sociedade de massas. Ao mesmo tempo, entretanto, temos que reconhecer que a pauta legislativa de nosso Congresso Nacional tem estado ao sabor de ventos para os quais poucos navegadores dentro daquela instituição se voluntariam a enfrentar. O pronunciamento de Antônio Carlos Magalhães no Senado, citado pelo autor na epígrafe do artigo, é atestado da má qualidade dos argumentos mobilizados no diálogo crítico dos contrários à redução da maioridade penal: “o Brasil, infelizmente, só vive no crime,” conclui o senador. Certamente, não será com diagnósticos dessa qualidade que enriqueceremos o debate com o sabor do contraditório. * Professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ) e membro da coordenação do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES). 1 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007 Os bons argumentos a favor da redução da maioridade penal encontram-se na teoria política, da mesma forma que as respostas no mundo concreto para as questões que a teoria política lhe apresenta encontram-se em uma sociologia meticulosa, não na política demagógica de que participam ACM e tantos outros no palco midiático em que se converteu o nosso parlamento. Na maior parte dos temas que compõem a pauta do “politicamente correto”, tendo a ter opiniões convergentes, ainda que não goste de pensar que elas sejam “corretas”, mas sim justas. No caso da maioridade penal, entretanto, por mais incertezas que ostente quanto a minha opinião, ouso enunciar que a sua redução no Brasil obedece a dois critérios de justiça dos quais nossa República não pode prescindir: de um lado, o espírito e a letra da Carta de 88, construída para que ela pudesse ser aperfeiçoada, mudada, adaptada a novos tempos – ou seja, seus mecanismos de auto-correção; de outro lado, a cidadania universal, em que direitos e deveres são igualmente distribuídos. Em diálogo com o artigo de Rogério Dultra dos Santos, e munido do privilégio de ter lido seu texto antes de elaborar razões em contrário, procurarei demonstrar porque a redução da maioridade penal para 16 anos não é uma idéia que pode ser descartada de maneira precipitada. Ela pode ser legítima e progressista, especialmente se for acompanhada de outras mudanças constitucionais que reforcem a legitimidade da medida. Há férteis discussões sobre as instituições disciplinares do direito penal que alimentam uma opinião pública esclarecida e orientada por valores de justiça social. Dessas discussões emerge uma perspectiva que dignifica os direitos humanos e que desloca o olhar da vítima para o sujeito social submetido àquelas instituições após um (suposto) delito. Denunciando o sistema jurídico e seu braço coercitivo por fazer (ou por deixar fazer) justiça retributiva, esta opinião demanda que o foco das políticas públicas conduza a penas e modelos disciplinares de re-educação que sejam capazes de preparar a ressocialização dos detentos. O problema, entretanto, é que esse foco em políticas orientadas por um conceito de justiça distributiva tem demonstrado ser pouco eficaz em responder às demandas de ressocialização de jovens que o sistema judiciário tem gerado para si mesmo. Suas instituições disciplinares, para jovens menores e maiores de 18 anos de idade, encontram-se falidas e incapazes de prover qualquer educação para a cidadania. Da perspectiva dessa falência, dezesseis, dezoito, vinte e um, pode parecer uma questão demográfica relevante, mas não há critério de justiça que oriente uma opinião. A 2 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007 pesquisa comparada demonstra que a nossa maioridade penal é tardia, mas países que ostentam baixas taxas de criminalidade podem coexistir com maioridades penais aos quatorze anos, por exemplo, pois a lei, nesse caso, aplica-se a um universo de excepcionalidades, e não a um problema sociologicamente determinado por intensas desigualdades sociais, como é nosso caso brasileiro. Em suma, o que dá a aparência de quimera numerológica à discussão sobre a maioridade penal em nosso país é a falência generalizada das instituições disciplinares, seja para maiores ou menores de idade. Há também forte apelo no argumento que aponta para o atrelamento de movimentos legislativos, como o que hoje tramita no parlamento, a fatos que, por uma razão ou outra qualquer, se tornam objeto de atenção da mídia. Desse apelo e sedução que eventos mórbidos do cotidiano exercem sobre nós, a audiência, os meios de comunicação de massa extraem a comoção pública necessária para deixar os políticos do legislativo interessadamente comovidos, produzindo dessa maneira uma “legislação de comoção”. Confesso que, quando reflito sobre esse conceito, minha imaginação social não é poluída por referências negativas visíveis. Legislação de comoção é, na pior das hipóteses, o gesto desesperado de um legislativo sem legitimidade, buscando estender a mão a uma audiência sedenta por políticos pró-ativos. A direção desse movimento será determinada pela composição de forças dentro do Congresso, evidentemente sempre atento aos berros da opinião pública. Mas digamos que vença a opinião que não nos comove. Parece-me mais desejável que o tema esteja em pauta (e um lado saia derrotado), do que ver o tema submerso e tratado como tabu, enquanto policiais e milícias armam-se para organizar chacinas de jovens pobres, muitos deles com menos de 18 anos, mas outros tantos não. Em outras palavras, a comoção, nesse caso e em tantos outros in extremis em nosso país, é mais do que bem-vinda. E além do mais, melhor um parlamento que debate maioridade penal quando vivemos uma crise de segurança pública em escala nacional, sensível portanto à opinião pública e seus movimentos, do que um que tranca pautas e brinca com renovações de medidas provisórias e instalações de CPIs. Na narrativa de políticas sociais que nos leva do Código do Menor aos largos passos dados sobre a questão com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), temos uma história de conquistas que certamente não queremos macular precipitando experimentos por sobre normas ainda não efetivamente 3 CEDES – CENTRO DE ESTUDOS DIREITO E SOCIEDADE – BOLETIM/ABRIL DE 2007 praticadas. Importa notar, inclusive, que a discussão sobre a maioridade penal precede juridicamente a aplicação do ECA, já que define quem a ela está sujeito. A consolidação dessa avançada legislação sobre a menoridade, seus direitos e formas de disciplinarização, é obra incompleta, mas isso não exime a nossa classe política da responsabilidade de definir com clareza quem deve ser objeto de sua aplicação. Não há nada em nossa Constituição que impeça o legislador de hoje de revisar a suposta vontade do legislador de ontem. Pelo contrário, o nosso legislador-fundador de 1988 optou por aquilo que muito gostam de chamar de “obra aberta”. Parece-me que a idade da maioridade penal, frente à diversidade de maioridades que vige em nosso país – a civil aos 21 anos e flexível, a política aos 16 e facultativa – é mera quimera numérica. Frente à crise do nosso sistema de punições aos infratores da lei, não será esse debate que trará soluções aos problemas de segurança pública que nos afetam. Sugiro, contudo, que aproveitemos a atual “comoção” para discutir maneiras verdadeiramente eficazes de aperfeiçoar esse sistema. 4