EDUCAÇÃO, DIVERSIDADE E DESIGUALDADE Daniela de Jesus Lima Eixo 2 - Educação, Sociedade e Práticas Educativas. RESUMO O presente artigo analisa perspectivas epistemológicas acerca da diversidade. Discute o conceito, a partir das desigualdades existentes no processo socioestrutural, a fim de elucidar as formas pelas quais a diversidade tem sido transformada em desigualdades que redundam em discriminações que afetam o direito à educação dos coletivos diversos. Situa a visão marginal desses sujeitos, no âmbito do sistema escolar como fruto do processo histórico, político, cultural e pedagógico. Conclui que para a escola compreender como os mecanismos políticos, econômicos, sociais e pedagógicos condicionam o direito à educação dos sujeitos diversos um caminho profícuo é assumir como princípio educativo a história de marginalização que condicionou e que condiciona o direito dos educandos à humanização, ao ser mais. Palavras chave: Educação, Diversidade e Desigualdade. ABSTRACT This article analyzes epistemological perspectives on diversity. Discusses the concept, from the inequalities in socio-process in order to elucidate the ways in which diversity has been transformed into inequalities that result in discrimination affecting the right to education of the various collectives. Lies the vision of these marginal subjects within the school system as a result of historical processes, political, cultural and educational. It concludes that the school understand how the mechanisms political, economic, social and educational condition of the right to education a subject many fruitful path is to take as an educational principle the history of marginalization and a condition which affected the right of students to humanization, to be. Key words: Education, Diversity and Inequality 2 INTRODUÇÃO A história da educação brasileira tem sido estruturada sob uma ótica que privilegia concepções padronizadas e homogeneizadoras, segundo uma visão monocultural de sociedade. No entanto, as políticas educativas têm como objetivo a distribuição de um direito subjetivo, cujo público receptor é heterogêneo, em termos de cultura e tradições. Desse modo, parte-se do princípio neste artigo de que o reconhecimento e a valorização da diversidade constituinte da sociedade brasileira tornam-se um imperativo sob o ponto de vista da democracia. Com as crescentes reivindicações dos movimentos sociais, nas últimas décadas, para que as políticas educativas atendam a suas especificidades emergiu um movimento em prol da centralidade da diversidade como paradigma estruturante dos sistemas educacionais. Mas, no que consiste a diversidade? Como a diversidade tem sido transformada em desigualdades que redundam em discriminações que afetam o direito à educação? De que forma a escola tem concebido a diversidade? Essas são algumas das questões que se ocupa o presente texto com a intenção de contribuir com a discussão da visão etnocêntrica de educação que historicamente impera na história da educação brasileira. Trata-se de reflexões decorrentes da pesquisa de mestrado intitulada Formação Docente para educar na Diversidade que teve como objeto empírico o Curso de aperfeiçoamento “Educação de Jovens e Adultos na Diversidade”, da Rede de Educação para a Diversidade, ofertado por uma IES pública, cuja proposição considera a educação como um direito fundamental de todos. Como tal, discute o resgate da cidadania, da igualdade de direitos, do respeito à diversidade sociocultural, étnico-racial, etária e geracional, de gênero e orientação afetivo- 3 sexual, bem como das pessoas com necessidades especiais para a inserção da temática nas redes públicas do ensino do país. 1. Diversidade, multi, terminológica? pluri e interculturalidade: uma questão No âmbito das ciências sociais brasileiras, a diversidade sociocultural tem sido utilizada para descrever um conjunto múltiplo e complexo de significados em relação à heterogeneidade de culturas que marcam uma determinada sociedade, visando o seu reconhecimento, tolerância e respeito. Segundo Moehlecke (2008), neste sentido, a expressão aparece geralmente como sinônimo do que Stuart Hall (2008) define como multicultural, isto é, sendo utilizada para descrever as características sociais e os problemas apresentados em sociedades nas quais diferentes comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao tempo em que buscam conservar sua identidade original. Nesta linha de argumentação, o autor concebe o multiculturalismo como referindo-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados por sociedades multiculturais. Trata-se de uma compreensão das questões que permeiam a diversidade que tem se difundido consideravelmente, na área educacional, sob óticas que comportam uma variedade de concepções e vertentes, quais sejam: [...] O multiculturalismo conservador [...] na assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria. O multiculturalismo liberal busca integrar os diferentes grupos culturais o mais rápido possível ao mainstream, ou sociedade majoritária, baseando em uma cidadania individual universal, tolerando certas práticas culturais particularistas apenas no domínio privado. O multiculturalismo pluralista, por sua vez, avaliza diferenças grupais em termos culturais e concebe direitos de grupo distintos a diferentes comunidades dentro de uma ordem política comunitária ou mais comunal. O multiculturalismo comercial pressupõe que, se a diversidade dos indivíduos de distintas comunidades for publicamente reconhecida, então os problemas da diferença cultural serão resolvidos no consumo 4 privado, sem qualquer necessidade de redistribuição do poder e dos recursos. [...] E assim por diante. (HALL, 2008, p. 51) No seio do debate multicultural, Walsh (2008) chama a atenção quanto à polissemia do termo. Segundo a autora, expressões como multiculturalidade, pluriculturalidade e interculturalidade são frequentemente utilizadas como sinônimos, porém as concebe como termos que possuem genealogias e significados diferentes e, que, portanto, devem ser discriminadas. Segundo a autora, o termo multiculturalismo tem suas raízes em países ocidentais, em um relativismo cultural que oculta à criação e a permanência das desigualdades e iniquidades sociais. Seu uso global é mais amplo, por orientar as políticas estatais e transnacionais de inclusão no âmbito de um modelo de cunho neoliberal, refletindo as orientações dos organismos internacionais que balizaram a reforma dos anos 90. Como tal, “em geral, o chamado multiculturalismo apóia-se em um vago e benevolente apelo à tolerância e ao respeito para com a diversidade e a diferença” (SILVA, 2007, p. 73). De acordo com Mclaren (2001), o viés multicultural destrói as possibilidades emancipatórias da educação, ao promover reivindicações por diversidade muitas vezes realizadas num isolamento antisséptico a um questionamento do centro do capitalismo. É neste cenário que Walsh (2008) chama a atenção para a necessidade de compreensão das intenções desta política, assim como de suas limitações, não somente no que respeita a respostas a demandas históricas, mas, também, no sentido em que busca apaziguar e cooptar a resistência, incorporando-a a institucionalidades estabelecidas que ocultam as desigualdades sociais e deixam intactas as estruturas que as reproduzem nos processos socioestruturais que transformam os diversos coletivos em desiguais. No campo educacional, conforme posto por MOREIRA e CANDAU (2008, p. 7) a concepção multicultural é, particularmente, problemática, visto que as questões da diversidade envolvem “um posicionamento a favor da luta contra a opressão e a discriminação a que certos grupos minoritários têm, historicamente, sido submetidos por grupos mais poderosos e privilegiados”. Razão pela qual Silva (2007) argumenta que, por mais relevante que essa abordagem pareça ser, ela impede que identidade e diferença sejam 5 concebidas como um processo de produção social que envolve relações de poder, e, portanto, “só pode ser utilizado sob rasura’” (HALL, 2008, p. 51). Quanto à expressão pluriculturalidade, Walsh (2008) ressalta que é o termo de maior uso na América do Sul, por refletir as particularidades da região. Como tal, configura-se como uma expressão que reconhece e descreve a realidade de um continente no qual povos, nações e nacionalidades indígenas e negras convivem com brancos e mestiços. Para a autora, enquanto o multiculturalismo aponta para um conjunto de culturas singulares sem relação entre elas, no marco de uma cultura dominante, o pluriculturalismo indica uma convivência de culturas em um mesmo espaço territorial, ainda que sem uma profunda interrelação equitativa. De acordo com a autora, trata-se de um conceito que questiona a maneira eurocêntrica como tem sido pensado o Estado nacional e, por conseguinte, suas políticas públicas. A pluriculturalidade configura-se em uma outra lógica – pensada a partir dos sujeitos historicamente excluídos – contrapondo-se à visão homogênea de Estado, nação e sociedade. Nestes termos, distancia-se da perspectiva multicultural, avançando na proposição de uma centralidade ativada pelo re-pensar e re-fundar da unidade nacional, sustentada em um projeto de Estado e sociedade que tenha como referência a pluralidade nacional. No Brasil, a pluriculturalidade foi inserida no processo educacional, através dos parâmetros curriculares nacionais, elaborados pelo Ministério da Educação, com o objetivo de valorizar as diversas culturas presentes no país, através de vivências voltadas ao combate de injustiças, manifestações de preconceito e discriminação social. Para Walsh (2008), apesar do seu caráter político, a pluriculturalidade sozinha não é suficiente para um projeto de descolonialidade, isto é, de superação da visão eurocêntrica de constituição do Estado nacional e, sim, a interculturalidade por está ancorada nos problemas das relações e condições históricas e atuais, de dominação, exclusão, desigualdade e iniquidade, assim como nos conflitos que estas relações e condições engrenam. Como tal, configura-se como um processo dinâmico e permanente de relação, comunicação e aprendizagem, entre culturas, em condições de respeito, 6 legitimidade mútua, simetria e igualdade que busca desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença; como um espaço de negociação e de tradução onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações e os conflitos de poder da sociedade não são mantidos ocultos e sim reconhecidos e confrontados e, como tarefa social e política que parte de práticas e ações sociais concretas e conscientes para tentar criar modos de responsabilidade e solidariedade (WALSH, 2001; 2005; 2007; 2008). Trata-se de uma perspectiva conceitual que se aproxima do multiculturalismo crítico, proposto por McLaren (1997), situado em uma agenda política de transformação, sem a qual se corre o risco da redução à outra forma de acomodação à ordem social vigente. Para tanto, o autor compreende as representações de raça, gênero e classe como produtos das lutas sociais sobre signos e significações, cuja tarefa central consiste em transformar as relações sociais, culturais e institucionais nas quais os significados são gerados. Com efeito, recusa-se a ver a cultura como não-conflitiva, assim como não compreende a diversidade como meta, mas como ação afirmada “dentro de uma política de crítica e compromisso com a justiça social” (1997, p. 123). Outra perspectiva da diversidade que vem assumindo centralidade é a sua concepção, à luz da perspectiva da diferença, como construção histórica, cultural e social. Tal concepção parte do pressuposto que as diferenças são construídas pelos sujeitos sociais nos processos históricos e culturais de adaptação do homem ao meio social e ao contexto das relações de poder. De acordo com Silva (2007), ver identidade e diferença como uma questão de produção “significa tratar as relações entre as diferentes culturas não como uma questão de consenso, de diálogo ou comunicação, mas como uma questão que envolve, fundamentalmente, relações de poder” (2007, p. 96). Neste cenário, a identidade e a diferença são atribuídas através de uma disputa pelos diversos recursos simbólicos e materiais da sociedade, sendo mutuamente determinadas e implicando sempre as operações de incluir e excluir. Tal lógica subjaz à compreensão de que afirmar a identidade significa sempre demarcar fronteiras entre “nós” e “eles”. Neste processo, “a diferença é 7 sustentada pela exclusão” (WOODWARD, 2007, p. 9) daquilo que não é considerável aceitável, desejável, natural. Ainda segundo Silva (2007), a afirmação da identidade e da diferença caracteriza-se sempre como um processo intencional, político, por se constituir em uma delimitação que divide, classifica e hierarquiza grupos sociais. Neste processo de segregação, “deter o privilégio de classificar significa também deter o privilégio de atribuir diferentes valores aos grupos assim classificados” (SILVA, 2007, p. 92). Logo, a compreensão da identidade e da diferença nas relações de poder implica sempre em problematizar os indicadores em torno dos quais elas se organizam. Pois, Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença. Normalizar significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação as quais as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas. Normalizar significa atribuir a essa identidade todas as características positivas possíveis, em relação às quais as outras identidades só podem ser avaliadas de forma negativa. A identidade normal é “natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade. (SILVA, 2007, p. 83) Nestes termos, as definições da identidade e da diferença entrelaçam-se aos sistemas de representação, sendo concebidas, especialmente, em sua dimensão de significante, isto é, como marca ou traço visível, exterior, para adquirir sentido. Por conseguinte, lembra Silva (2007, p. 91), “questionar a identidade e a diferença significa questionar os sistemas de representação que lhes dão suporte e sustentação”. Consoante com as reflexões de Silva (2007) entende-se que não basta afirmar, reconhecer e admitir a diversidade, pois estas não são ações suficientes para fornecer os instrumentos que questionem os mecanismos e as instituições sociais que fixam as pessoas em determinadas identidades culturais e as separam por meio da diferenciação cultural. No caso do Brasil, a percepção da diversidade, à luz da construção histórica, cultural e social, pode contribuir para elucidar as questões do multiculturalismo “por nos colocar diante da nossa 8 própria formação histórica, da pergunta sobre como nos construímos socioculturalmente, o que negamos e silenciamos, o que afirmamos, valorizamos e integramos na cultura hegemônica” (MOREIRA; CANDAU, 2008, p. 17). Em outras palavras, pode contribuir para desconstruir essa concepção etnocêntrica de ser, ter e poder que tem contribuído para transformar a diversidade em desigualdade via processos socioestruturais, particularmente com relação ao acesso ao direito à educação. 2. DIVERSIDADE E DESIGUALDADE: DUAS FACES DA MESMA MOEDA? De acordo com o pensamento sociopedagógico crítico das últimas décadas, a análise das desigualdades educacionais não deve ser situada nos determinantes intraescolares, mas, sobretudo, nos determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais, de gênero, de raça, etnia, campo, periferia, além das determinações dos padrões de poder, trabalho e acumulação de renda. Para Arroyo (2010), o tratamento genérico das desigualdades tem sérias consequências para a formulação das políticas educacionais, sua gestão e análise, visto que elas têm classe, raça, etnia, gênero e lugar. Segundo o autor, a concepção reducionista das desigualdades – vistas sem os sujeitos na sua concretude, reagindo às desigualdades e se afirmando como sujeitos políticos, de políticas de afirmação positivas – e da função do Estado, apenas como campo específico de intervenção social, são preocupante, visto que os desiguais chegam ao sistema escolar expondo as brutais desigualdades que os vitimam. Para compreender a relação educação-desigualdades, este autor adota como ponto de partida a análise da concepção dos coletivos desiguais no âmbito das políticas de correção das desigualdades. Neste cenário, ressalta que quando o Estado, suas políticas, suas instituições e seus gestores se propõem a resolver as desigualdades isoladamente, os diversos coletivos são ignorados em sua formulação e gestão. Por conseguinte, as políticas configuram-se como compensatórias, reformistas, distributivas, objetivando desigualdades pela distribuição de serviços públicos. compensar as 9 Segundo o autor, há outras formas de pensar os diversos coletivos, sem carregar para as políticas públicas socioeducativas uma visão reducionista da diversidade. Uma dessas visões equivocadas consiste em ver a desigualdade como carência de “condições de vida, de emprego, de moradia, de saúde, de renda. Desiguais porque carentes de educação, de letramento, de valores, de competências, de hábitos de trabalho”. (2010, p. 1389). Dessa visão decorre a função do Estado como suplência, para a equiparação das habilidades e competências necessárias à diminuição das condições desiguais de inserção na sociedade letrada, na empregabilidade, ao menos na sobrevivência. Em outras palavras, como promotor de “Políticas de solução de carências para diminuir as desigualdades.” (2010, p. 1389) Outra concepção reducionista dos diversos coletivos é olhá-los como marginais. “Desiguais porque à margem da civilização, da modernidade, da racionalidade científica, do progresso e de seus valores civilizatórios, progressistas, de esforço e de trabalho” (ARROYO, 2010, p. 1389). Nesta percepção, as políticas socioeducativas são pensadas para solucionar essa condição de marginalidade, através de pedagogias civilizatórias, moralizadoras, visando retirar esses sujeitos do atraso, da imoralidade, para a modernidade e o progresso. Segundo o autor, trata-se de uma concepção que oculta às desigualdades das condições de viver, de emprego, de sobrevivência, de exploração do trabalho desses coletivos. A compreensão da desigualdade como exclusão é outra forma reducionista de entender a diversidade. Segundo Arroyo (2010), nesta perspectiva, a categoria desigual – na pobreza, no desemprego, na exploração do trabalho, porque oprimidos. Por conseguinte, os diversos coletivos são concebidos como excluídos, não dos bens materiais, mas dos bens culturais, das instituições e espaços públicos, do convívio social. Sendo assim, cabe ao Estado, suas políticas e instituições, o dever de incluí-los segundo estes parâmetros. Do pensamento progressista, destaca outra percepção da desigualdade sob o olhar reducionista. Nesta acepção, os diversos coletivos são desiguais porque seres inconscientes, submetidos à consciência e à cultura do dominador, do opressor que os mantém na exclusão e na submissão das diversas formas de 10 desigualdade. Segundo Arroyo (2010), trata-se de uma visão que não motivou políticas nem programas do Estado porque carregava uma concepção mais radical, política, das desigualdades. Essas concepções da desigualdade têm sido transformadas em desigualdades que redundam em discriminações que afetam o direito à educação dos diversos coletivos. No âmbito do acesso à educação, um dos fatores que historicamente tem sido atrelado à negação do direito, aos diversos coletivos, consiste na ausência do reconhecimento deste direito humano na legislação nacional ou o seu reconhecimento de forma indireta ou restrita. Essa negação retrata a percepção elitista dos setores populares como marginais e, pode ser evidenciada, particularmente na história da educação de jovens e adultos no Brasil.1 Nesta conjectura, “excluídos de fato e de direito, os pobres viram suas oportunidades educacionais se diluírem em um arsenal de dispositivos e argumentações mediante os quais se justifica sua baixa ou nula presença nos âmbitos educacionais”. (GENTILI, 2009, p. 1061) Ao analisar o complexo processo de produção social da exclusão e seus efeitos no direito à educação, Gentili (2009) salienta, assim como Arroyo (2010), que os excluídos do direito à educação não estão excluídos somente por permanecerem fora da escola, mas também por formarem parte de um conjunto de relações e circunstâncias que os afasta desse direito, negando ou lhes atribuindo esse direito, de forma restrita, condicionada ou subalternizada. Neste cenário, Gentili (2009) ressalta que o processo de escolarização está marcado pela dinâmica da exclusão includente, expressão por ele elaborada para caracterizar a recriação de novas fisionomias, no contexto de dinâmicas de inclusão que são insuficientes ou, em alguns casos, inócuas. Neste sentido, aponta para o fato de que são incapazes de reverter os processos de isolamento, marginalização e negação dos direitos que estão envolvidos nos processos de segregação social, dentro e fora das instituições educacionais. É neste cenário que a concepção dos diversos coletivos, como carentes, marginais, excluídos e inconscientes, tem contribuído para sua reprodução como desiguais. De acordo com Arroyo (2010), enquanto não mudarmos o 1 Sobre o histórico da educação de jovens e adultos no Brasil, ver: Haddad e Di Pierro, 2000. 11 modo de pensar os desiguais, como um problema, não mudaremos a visão do Estado e de suas políticas como a solução. Neste sentido, entende-se que a relação diversidade e desigualdade deve ser retomada em um quadro social, político e cultural, novo, visto que “as vítimas das nossas históricas desigualdades sociais, étnicas, raciais, de gênero, campo, periferias se fazem presentes, afirmativas, incômodas, não apenas nas escolas, mas na dinâmica social e política” (ARROYO, 2010, p. 1385). 3.3 O OLHAR ESCOLAR SOBRE A DIVERSIDADE No Brasil, a criação da escola pública e de seu currículo foi pensada para atender à elite brasileira. Todavia, à medida que os coletivos populares chegam à escola há uma explicitação da tensão da relação política de dominaçãosubmissão, persistente em nossa formação social, cultural e civilizatória, em que a escola resiste em se reconfigurar para atender à nova realidade, tratando as camadas populares como estrangeiros fora do lugar. Com efeito, A não adaptação dos currículos, das didáticas, dos tempos e dos parâmetros de avaliação teria levado aos altos índices de reprovação, evasão, defasagem que tanto aumentaram com a chegada dos pobres. Esses índices, que vão crescendo na medida em que o número de alunos pobres vai aumentando, seriam um indicador inequívoco dessa postura insensível, desse ignorar a especificidade dos coletivos populares que foram chegando e sendo reprovados, defasados, por tratar todos com os mesmos parâmetros de medida, ignorando suas diferenças. (ARROYO, 2011, p. 159) Nas décadas de 80 e 90, diversos estudos e pesquisas criticaram os currículos, as escolas e a docência por não reconhecerem a especificidade dos educandos das escolas públicas populares. “Críticas que mostravam serem eles os reprovados, defasados. Segregados, convidados à evasão ou a voltar ao lugar social, da pobreza e das carências de onde não deveriam ter saído” (ARROYO, 2011, p. 159). Estudos que denunciam as estreitas relações entre carências e segregação social, racial e escolar. Porém, Arroyo (2011) lembra que tais estudos não centraram suas análises nos desenhos curriculares, nas didáticas e nos padrões de avaliação dos educandos e de seus coletivos sociais étnicos e raciais. Com efeito, as conclusões apontaram não para o sistema escolar, mas para os próprios 12 sujeitos como responsáveis por sua inaptidão diante das exigências de aprendizagem dos nobres conhecimentos universais. Tais perspectivas de análise contribuíram para o reforço da injustiça social como injustiça cognitiva, ao acentuarem sua imagem de carentes, de incapazes para as letras, para o estudo e para a aprendizagem dos elevados conteúdos curriculares. Trata-se de “um reconhecimento perverso que terminou reforçando as representações negativas, inferiorizantes com que [estes] foram pensados ao longo de nossa história social, política e cultural” (ARROYO, 2011, p. 160). Porém, a chegada dos coletivos pobres e periféricos ao sistema público foi configurando este espaço como popular. Frente a este cenário, Arroyo (2011) lembra que a escola não teve como ignorar essa realidade. Por conseguinte, passou-se a reconhecer os diversos a partir da visão que a sociedade já possuía, e continua detendo, dos coletivos populares como carentes e inferiores. Com efeito, os sujeitos populares chegaram à escola não com a visão de portadores de experiências significativas, ricas em indagações, significados e conhecimentos, mas como meros receptores, aprendizes dos conhecimentos que os coletivos nobres, sujeitos da história, da cultura e da racionalidade, produziram. “Visão histórica ameaçadora dos pobres e carentes que até hoje persiste nos campos, nas cidades e nas escolas; que é um traço marcante de nossa cultura política e pedagógica” (ARROYO, 2011, p. 161). Por conseguinte, por um longo período, as histórias de opressão, segregação social, racial, étnica, geracional, ou seja, de afirmação identitária dos diversos coletivos figuraram de forma marginal nos currículos e nas práticas escolares. No entanto, as crescentes reivindicações dos movimentos sociais, nas últimas décadas, para que as políticas educativas atendam a suas especificidades impulsionou um movimento em prol da centralidade da diversidade como paradigma estruturante dos sistemas educacionais. Nessa perspectiva educacional subjaz à lógica de que há uma relação estreita entre o olhar e o trato pedagógico da diversidade e a concepção de educação que informa as práticas educativas. Por conseguinte, 13 Potencializar a diversidade na educação pode contribuir para a transformação social e para a formulação e execução de propostas educativas em que esses sujeitos de energia, imaginação e criatividade estejam no centro, com seus desejos, necessidades e expectativas de educação, cultura, saberes e práticas – um dos meios imprescindíveis à humanização não só de suas vidas, como de toda a sociedade brasileira. (BRASIL, 2008, p. 14) Trata-se de uma perspectiva defendida por diversos autores, tais como Freire (1996), Arroyo (2011) e Giroux (1997), que advogam a promoção de uma educação em uma concepção estruturada por questões que permeiem a história política, econômica, social, cultural e pedagógica que transforma/ou esses sujeitos em desiguais. Nestes termos, defendem o direito de acesso a uma educação pública de qualidade, ao conhecimento, à cultura, à memória, à identidade, ao desenvolvimento pleno como pessoa humana, sob pena do processo educativo não atender à demanda requerida pelas especificidades desses sujeitos. Todavia, ainda assistimos na escola pública à marginalização nos currículos da valoração das experiências dos educandos e de seus coletivos de origem, assim como das tensões sociais, políticas, econômicas e culturais em que os conteúdos selecionados foram produzidos, selecionados e legitimados, como teorias e concepções científicas e tecnológicas. De acordo com Arroyo (2011), um dos aspectos que podem ajudar na compreensão da ausência dos sujeitos no currículo, consiste na lógica de que as legitimidades dos saberes fundam-se na ausência da subjetividade, ou seja, devem estar distantes das emoções e vivências dos sujeitos. Concepção que, segundo o autor, contribui para marginalizar e retirar a centralidade dos sujeitos e de suas histórias – pessoal, coletiva e social – do campo da produção e validação do conhecimento. Mas ao não reconhecerem tais experiências sociais e seus conhecimentos, os currículos tornam-se pobres em significado social, político, econômico e cultural. Para o autor, tal prática refere-se a uma intencionalidade política do padrão de produção do conhecimento concebido como válido de que fazem parte os processos políticos de segregação desses coletivos, nos diversos territórios sociais, econômicos, políticos e culturais. Neste sentido, as ausências constatadas nos currículos constituem-se em mais um mecanismo 14 histórico de manter tais coletivos ausentes, inexistentes como sujeitos sociais, políticos, culturais e intelectuais. Os currículos, nestes termos, têm tendência a ignorar não apenas outros modos de pensar, outros saberes e leituras de mundo, mas, sobretudo, os sujeitos desses outros modos de pensar. Sendo assim, Arroyo (2011) advoga que a disputa no território do currículo não é apenas para a inclusão de temas nas disciplinas, mas, sobretudo, para o reconhecimento de experiências e coletivos como produtores de conhecimentos legítimos, válidos. Pertecemos a uma tradição política e cultural extremamente segregadora dos coletivos humanos. De um lado os poucos autodefinidos como racionais, cultos, civilizados, cidadãos curtidos na ética do esforço e do trabalho, previdentes, empreendedores, dirigentes; de outro lado a maioria, os outros, inferiorizados como irracionais, primitivos, incultos, preguiçosos, os coletivos indígenas, negros, pobres, trabalhadores, camponeses, favelados, subempregados e cidadãos. (ARROYO, 2011, p. 139) É neste sentido que discutir a diversidade à luz das desigualdades existentes nos processos socioestruturais possibilita a escola compreender como os mecanismos políticos, econômicos, sociais e pedagógicos condicionam o direito à educação dos sujeitos diversos. Neste sentido, entende-se que a educação – enquanto processo de humanização desses sujeitos – deve assumir como princípio educativo a história de marginalização que condicionou e que condiciona o direito dos educandos à humanização, ao ser mais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A problemática da diversidade na educação assume na contemporaneidade uma centralidade no cenário do debate nacional que tem suscitado muitas divergências teóricas. Entender como a diversidade tem sido transformada em desigualdades que redundam em discriminações que afetam o direito à educação dos coletivos diversos é preciso ir além do seu reconhecimento, compreendendo a sua construção histórica, cultural e social a fim de obter subsídios que ajudem a questionar as lógicas, valores e estruturas que transformou e que transforma a diversidade em desigualdade no âmbito do sistema escolar. 15 Sabe-se que historicamente a ação pedagógica estruturou-se sobre ma concepção etnocêntrica de ser, saber e ter que contribuíram e contribuem para a escola compreender como os mecanismos políticos, econômicos, sociais e pedagógicos condicionam o direito à educação dos sujeitos diversos. Neste sentido, a educação – enquanto processo de humanização desses sujeitos – deve assumir como princípio educativo a história de marginalização que condicionou e que condiciona o direito dos educandos à humanização, ao ser mais. REFERÊNCIAS ARROYO, Miguel G. 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E-mail: [email protected]