Entrevista
O professor Reinaldo Matias Fleuri , especialista em educação, é
presidente da Association pour la recherche interculturelle (Aric), e
professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Eleito pela
assembléia da Aric para o período 2007-2009, foi reeleito em julho para
mais um período (2009-2011) . Durante o Congresso da Aric em
Florianópolis (SC), ele concedeu à Adeilson Lopes e Melissa Oliveira, do
ISA, a seguinte entrevista:
ISA - O senhor poderia nos contar um pouco da história da associação e por
que realizar o Congresso no Brasil?
Reinaldo Fleuri: A Associação para Pesquisas Interculturais, em francês
Association pour la Recherche Interculturelle, foi fundada em 1984, por um
grupo de professores, pesquisadores que queriam justamente desenvolver,
articular pesquisas sobre uma temática muito forte na Europa na época: a
questão das imigrações, dos conflitos relativos à integração de estrangeiros
imigrantes . De interagir com os imigrantes não apenas como cidadãos de
segunda categoria, mas como sujeitos que têm sua cultura própria, na
necessidade de respeitar e valorizar todos as suas formas de vida – da religião
até sua forma de lidar com a medicina e suas práticas culturais. A necessidade
de reconhecê-los como sujeitos de cidadania, com todos os direitos dos outros,
e estabelecer um diálogo, o que implica, em mudança profunda na estrutura da
escola, numa educação intercultural, porque, não se trata de transferir somente
um modelo, uma estrutura programática oficial que todo mundo tem que
aprender a respeitar, mas de criar dinâmicas de diálogo onde cada estudante
vai trazer elementos de sua cultura e poder desenvolver não só formas de
aprender, mas também formas de pensar, de ensinar, de relacionar, etc.
A Aric se desenvolveu bastante nesse mundo francófono porque queria criar
canais de interlocução que quase não existiam. Nos útlimos anos decidiu
realizar congressos fora da Europa (são realizados a cada dois anos),
interagindo principalmente com os países do Sul. O fundador da Aric, que é
suíço, diz que as minorias, ou melhor, o sul (refere-se aos países do Cone Sul
em contraposição aos países da Europa e América do Norte) num conceito
muito mais amplo é a grande maioria, que é considerada minoria. Daí a
necessidade de se estabelecer um diálogo não só com pesquisadores,
educadores, professores, mas também com os sujeitos sociais que fazem parte
de outras culturas. Por isso se realizou um congresso na Argélia em 2005.
Foi aí que conheci a Aric. O congresso de 2007 foi em Timisoara, na Romênia,
e nele a Assembléia da Aric decidiu fazer o de 2009 no Brasil. A decisão de
estabelecer essa relação com a América Latina, do Sul, representa esse desejo
de criar um diálogo profundo não só com os sujeitos, pessoas, mas com as
próprias culturas latino- americanas, para que a gente possa aprender juntos.
Foi nessa ocasião que fui eleito presidente da associação. Fizemos também
um esforço enorme para estabelecer uma relação com os colegas da África,
que se ampliou evidentemente com a Índia, com a Oceania, com pessoas dos
cinco continentes. A Aric é uma associação pequena, que tem entre 200 e 300
sócios, de mais de 40 países e se preocupa em desenvolver pesquisas,
discutir, publicar, sobre a questão da interculturalidade.
ISA: Catherine Walsh, da Universidade Andina Simon Bolívar, de Quito
(Equador), que era uma convidada especial para a sessão de abertura desse
congresso, chamou a atenção para as diferentes perspectivas de adoção do
conceito de interculturalidade. O senhor considera que a Aric já tem uma
posição e uma prática mais clara e definida em relação a este conceito?
Reinaldo Fleuri: Por ser uma associação cuja maioria dos membros é do
mundo francófono, do mundo europeu mediterrâneo e da América do Norte,
principalmente do Canadá, Quebec, a Aric tem se preocupado
e produzido, muitas pesquisas na ótica dessa concepção de interculturalidade
que tenta responder de um lado - na Europa - aos problemas gerados na
migração, a relação com os estrangeiros; no Canadá, por exemplo, é preciso
considerar a relação entre grupos étnicos muito diferenciados. É uma
associação, portanto, interdisciplinar que procura analisar a questão da
interculturalidade não só do ponto de vista educativo, mas antropológico,
sociológico, psicológico. Há um grande número de pesquisadores psicólogos,
por exemplo, que trabalham sobre como enfrentar todos os traumas, e os
problemas, desafios psicológicos que encontra, por exemplo, o imigrante, o
exilado, pessoas que sofreram violências étnicas. Então as pesquisas e a
maioria dos pesquisadores tradicionalmente vinculados a Aric têm pesquisado
essa área. Catherine e o grupo com o qual ela vem trabalhando fazem uma
crítica radical à colonialidade e modernidade, mas também têm uma proposta
bastante inovadora a partir dos movimentos sociais, políticos, étnicos, que
vem se desenvolvendo de maneira muito forte na América Latina. Então a
necessidade, por exemplo, de construir novas formas jurídicas e de
organização política do Estado que contemple e potencialize essa
plurinacionalidade. E isso se contrapõe ao modelo de estado-nação típico da
colonialidade. Ela falou muito da experiência equatoriana, como é a experiência
boliviana, venezuelana, em que os movimentos sociais principalmente de
caráter étnico vêm se constituindo com muita força. Ela aponta em grande
parte para uma linha, uma concepção que muitas das pesquisas e propostas
desenvolvidas no âmbito da Aric vêm assumindo, mas ao mesmo tempo
desafia todos nós a pensar num modelo, numa concepção de
interculturalidade que ainda não existe, que está em construção. Nesse sentido
é um desafio para todos nós de construir isso. Essa é a riqueza desse diálogo.
Além de Catherine, há outros trabalhando com educação indígena como Zayda
Sierra, da Colômbia, Jorge Gashé, que é um membro antigo da Aric, e trabalha
em Iquitos, na Amazônia peruana; Nicanor Rebolledo, da Universidad
Pedagógica Nacional, México; Raul Diaz, da Universidad Nacional de
Comahue, Argentina; o pessoal que trabalha na Universidad Mayor de San
Simon, na Bolívia; Julieta Zurita; e outros do Paraguai. Eles estiveram nesse
encontro e se engajaram como sócios da Aric que vem se enriquecendo muito
com isso. Por outro lado a Aric tornou possível a presença de em torno de 600
pesquisadores de 44 países dos cinco continentes, num encontro
intercontinental, mundial, internacional, e com gente de muita relevância.
ISA: A interculturalidade hoje é vista como uma opção para formação de
minorias, de indígenas, de negros, e muito menos para a formação, também,
do próprio pensamento da universidade brasileira como um todo. No
Brasil se sustenta a interculturalidade como uma possibilidade de um processo
mais adequado à formação indígena. A interculturalidade não serve para nãoíndigenas? Como o pensamento indígena, por exemplo, brasileiro, que é tão
rico, poderia influenciar as universidades, o sistema de educação?
Reinaldo Fleuri: Normalmente acho que essa é a idéia restrita de
interculturalidade. De que interculturalidade é promover uma educação para o
outro de tal forma que ele possa aprender o que eu sei, para poder conversar
comigo, do meu ponto de vista. Na realidade a interculturalidade é muito mais
do que isso. Em primeiro lugar, é o reconhecimento do outro e da sua cultura
como produtores autônomos significativos de conhecimento, de autonomia
própria. Agora, a primeira coisa na relação intercultural, que é a grande
riqueza, está na interação com o outro, ao buscar compreender o outro em
profundidade eu coloco em cheque a própria estrutura do meu pensamento, do
meu modo de viver, não no singular, mas no plural. Dando um exemplo,
quando a gente entra em contato com as culturas aborígenes, a gente vai
aprendendo a importância que dão para a natureza, para a mãe terra.
Consideram a terra como uma grande mãe que nos
dá a vida e por isso tem que ser respeitada, cuidada para que ela continue
cuidando da gente. Portanto, a natureza tem um caráter estrutural sagrado, não
pode ser ultrajada, transformada simplesmente. Diante deste modo de ver na
nossa cultura ocidental capitalista, a natureza é entendida como objeto de
trabalho, transformação e de apropriação pelo homem; e portanto, ao trabalhar
e transformar a natureza o ser humano cria a propriedade, e estabelece
também o princípio da troca das propriedades, do comercial. Essa
visão ocidental capitalista considera a natureza como um objeto de dominação
e de troca. Vejam que choque com as culturas aborígenes. Para os aborígenes
este modo de viver leva a pensar mais ou menos que você pode subjugar e
explorar e vender a própria mãe. Estamos vivendo impasses ecológicos que
são fundamentais como o esgotamento das fontes energéticas, a poluição, a
água que desaparece, e em pouco tempo seguindo nesse modelo econômico e
político de exploração da natureza, nós vamos ter devastado todas as
condições de sobrevivência da humanidade. Se a gente não parar e mudar
essa estrutura de relação com a natureza, estamos condenados por esse modo
capitalista de viver a nos destruir em pouco tempo e então olha a riqueza que
essas culturas aborígenes, (faço questão de não chamar de indígenas), nativas
nos dão, dão chaves de estruturação de vida social sustentável com as quais a
gente precisa aprender, isso implica mudanças profundas no nosso modo de
organizar, de nos organizar econômica e politicamente. Então a interação com
os povos indígenas não é somente uma relação folclórica ou de preservação
dessas culturas, é uma relação para aprender com eles e isso implica colocar
em cheque e transformar radicalmente o nosso modo de organização de
sociedade. Tem uma dimensão de luta política fundamental e por isso mesmo
há embates políticos e econômicos fortíssimos. Você vê por exemplo, a
questão da água, ou do petróleo, há regiões inteiras, como Colômbia,
Venezuela, com reservas indígenas onde não é possível explorar legalmente
aquelas regiões justamente porque são propriedades dessas populações. No
entanto as empresas multinacionais estão de olho nisso, porque são
reservas de petróleo, reservas de água, etc.; e é fundamental para essas
empresas eliminar essas populações para poder perfurar, porque eles não
deixam perfurar o chão porque seria como sangrar a própria mãe, daí essa
idéia, isso que parece uma forma supersticiosa, superficial, pouco prática e
economicamente interessante de lidar com a natureza dessas culturas, se
constitui a grande possibilidade ainda de preservação desses recursos
naturais. Então preservar essas culturas, esses povos, e esses modos de
interagir com a natureza é uma condição de sobrevivência para a humanidade.
Você vê a exploração da Amazônia, todas essas poucas reservas naturais que
ainda existem na medida em que são também delimitadas como reservas
populacionais, é ainda uma estratégia de preservação importante, mas são
focos de lutas políticas extremamente violentas. Então isso é interculturalidade,
é a gente interagir com esses povos para aprender com eles e mudar
radicalmente esta forma de organizar a sociedade que é profundamente
predatória.
ISA: Hoje se fala muito em pagamento por serviços ambientais. Fala-se que a
condição de preservação estaria garantida com a valoração - como essas
outras sociedades se relacionam e valorizam a natureza - desses recursos, a
valoração da água, a valoração da floresta. Que aí residiria uma possibilidade,
uma oportunidade de dentro desse próprio modelo de pensar e agir, para
garantir essas condições de perpetuação do planeta, da própria espécie
humana. O senhor acredita então que com base nessa sua opinião acima isso
tem limites? Quais os limites de não sair do seu próprio sistema
epistemológico, econômico, que é o do mercado, para dar conta da crise
ambiental?
Reinaldo Fleuri: Os movimentos sócio-políticos dentro da sociedade
capitalista, o movimento operário, camponês, etc., tem lutado muito nessa
perspectiva de mudanças do sistema econômico, a partir de dentro, mas eu
acho que aliança com os movimentos étnicos de resistência, de luta, como
acontece hoje na Bolívia, Venezuela, América Central, México, que são
movimentos importantíssimos, têm um objetivo político fundamental que é essa
transformação radical do sistema econômico que é profundamente predatório,
que é o sistema capitalista ocidental, e muitas destas lutas vão gerando
mudanças institucionais, leis, etc., que servem como instrumentos de luta em
momentos de conflito mais agudos. Então essa é a importância da
elaboração dessas leis e do uso dessas leis como instrumento de luta política,
e de diálogo intercultural. Todo diálogo é conflitivo. É fundamental gerenciar
esses conflitos de modo a salvaguardar não só os direitos individuais e
coletivos, mas as condições de sobrevivência para todos nós. Daí a
importância de respeitar e considerar o outro, porque na medida em que a
gente potencializa, valoriza e preserva uma cultura que ajuda a defender a
natureza e as condições de vida e de sobrevivência de nosso planeta estamos
lutando para a nossa sobrevivência. E se a gente destrói essas culturas vai
promover a devastação mais rápida da natureza e no curto prazo isso vai
reverter contra todo mundo. Lutar pela preservação das culturas, dos
potenciais de cada uma, é lutar pela sobrevivência da humanidade, do planeta.
Daí que essa, por exemplo, é uma das questões importantes de entender, que
o trabalho com o respeito e a promoção da diversidade e das diferenças
culturais e sociais está ligado muito com a luta pela preservação da
biodiversidade. A dimensão ecológica e cultural, a interculturalidade se dá não
entre os seres humanos das diferentes culturas, mas também na relação com
as diferentes espécies de vida. Esta é uma dimensão importante da
interculturalidade: a dimensão ecológica.
ISA: Até mesmo porque entre muitos povos a relação com a natureza é uma
relação social também, onde osbichos, as plantas, são agentes, pessoas,
gentes...
Reinaldo Fleuri: Daí você vê, por exemplo, toda a discussão que a gente tem
tido aqui, que é desconstruir esse modelo, esse modelo de pensamento de
oposição que separa homem e natureza.
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